crise

O Estado de S. Paulo: Lula aparece numericamente à frente de Bolsonaro para 2022, diz pesquisa XP

Em uma simulação para o primeiro turno, ex-presidente petista tem 29% ante 28% do atual mandatário, o que configura empate técnico dentro da margem de erro

Matheus de Souza, O Estado de S.Paulo

Nova rodada de pesquisa da XP/Ipespe sobre a disputa presidencial de 2022 mostra que o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) permanecem tecnicamente empatados. No entanto, a simulação demonstra que o petista desponta numericamente à frente de Bolsonaro, com 29% das intenções de voto, ante 28% do atual presidente.

No último levantamento realizado pelo instituto, Lula contava com 25% das intenções de voto, contra 27% de Bolsonaro. Ainda segundo a pesquisa, nomes como Sérgio Moro e Ciro Gomes (PDT) contam cada um com 9% das intenções de voto.

Em um possível segundo turno, Lula também está numericamente à frente de Bolsonaro, com 42% das intenções de voto contra 38% de Bolsonaro.

Pandemia

pesquisa da XP/Ipespe também perguntou sobre a atuação de Bolsonaro no enfrentamento da pandemia de covid-19. A avaliação de “ótima e boa” oscilou positivamente dentro da margem, indo de 18% para 21%. O cientista político Antônio Lavareda destaca que a troca do ministro da Saúde foi bem recebida pela população. “O avanço da vacinação e o posicionamento do novo titular sintonizado com a ciência, além do maior jogo de cintura, devem contribuir para melhorar essa percepção.”

Popularidade

A pesquisa mostra a continuidade na trajetória de alta da rejeição ao governo de Jair Bolsonaro. Segundo o levantamento, 48% avaliam o governo como "ruim ou péssimo", três pontos percentuais a mais do que a rodada anterior. 

Lavareda diz que a ampla reforma ministerial, que culminou na demissão do ministro da Defesa e dos comandantes das Forças Armadas, pareceu o reconhecimento de que o governo ia mal. "Confusão nos quartéis nunca é bem vista", disse ele. "O resultado é que cresceu a avaliação negativa, agora 48%, e a positiva ficou abaixo dos 30 pontos (27%) pela primeira vez desde julho do ano passado."

Foram realizadas mil entrevistas de abrangência nacional nos dias 29, 30 e 31 de março. A margem de erro máxima é de 3,2 pontos porcentuais para o total da amostra.

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Confira a entrevista!


Para a senadora, o assunto é importante, mas ela não tem condições pessoalmente de avançar no assunto nos próximos três meses.

Participaram da bancada de entrevistadores Patrícia Campos Mello (repórter especial da Folha de S.Paulo, escritora e comentarista do Jornal da Cultura), Henrique Gomes Batista (repórter especial e ex-correspondente do O Globo em Washington), Daniel Ritter (repórter do Valor Econômico), Oliver Stuenkel (professor de Relações Internacionais da FGV e colunista do El País),Thaís Oyama (colunista do UOL e apresentadora do Linhas Cruzadas, TV Cultura).


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Chamado de 'pitoresco' por Pujol, o presidente queria alguém que lhe fosse leal no comando da Força Terrestre, no fim, escolheu entre os 3 generais mais antigos

uma semana antes de ser demitido do Ministério da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva procurou o general Augusto Heleno. Revelou seu desconforto com o presidente por Jair Bolsonaro ter pela enésima vez se referido às Forças Armadas como sua guarda pessoal, como se a lealdade delas fosse à um líder e não à Constituição. Bolsonaro estava em plena campanha contra os governadores e as medidas restritivas para o combate à covid-19. Foi ao Supremo Tribunal Federal contra o toque de recolher, enquanto o deputado federal Vitor Hugo (PSL-GO) tentava obter para o capitão o domínio das polícias estaduais.

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Foto publicada pelo Exército da visita dos generais Edson Pujol e Paulo Sérgio ao general Eduardo Villas Bôas Foto: Reprodução/Twitter

No  sábado, dia 27, Bolsonaro esteve reunido no Alvorada. Seus interlocutores negaram que tivesse tratado da reforma ministerial. Só no dia seguinte ele teria decidido fazer a troca na Defesa, ainda que quase ninguém acredite que o presidente tenha resolvido em 24 horas montar uma complicada dança das cadeiras. O movimento na Esplanada congelou Brasília nos dias seguintes e fez com que os brasileiros incrédulos redescobrissem as listas de antiguidade dos oficiais generais, como não se fazia desde os anos 1970. Seu esboço, no entanto, começara a ser traçado muito antes. 

Edson Leal Pujol só havia se tornado o comandante do Exército porque o general Augusto Heleno soube contornar a primeira intriga feita contra Pujol, ainda em 2018, quando ele dirigia o Departamento de Ciência e Tecnologia do Exército. O general chamou a atenção do então candidato Bolsonaro sobre os extremos de seu comportamento e a forma como expunha as coisas. “Elas não se enquadram na figura de um candidato a presidente”. Pujol completou: "Bolsonaro tem uma personalidade muito pitoresca. Se ele perdesse um pouco dessa identidade, talvez não tivesse tantos eleitores." 

A fala de Pujol despertou reações entre os oficiais engajados na campanha de Bolsonaro. Heleno pôs panos quentes usando o argumento de que era necessário garantir a unidade dos militares. O episódio, no entanto, ficou arquivado. Escolhido comandante por ser o oficial mais antigo – e o critério de antiguidade foi respeitado com as demais Forças – Pujol se esqueceu do que dissera naquela entrevista. Os generais pensavam então que tinham um governo para chamar de seu e obtiveram vantagens orçamentárias e salariais, além de milhares de cargos na Esplanada

Bolsonaro, no entanto, nunca dissimulou o que sentia. Deixava claro o desconforto com Pujol toda a vez que este era elogiado pela imprensa em contraste com a reprovação que recebia. Lembrava-se de ter sido chamado de “pitoresco”. E se preocupava com cada notícia sobre os humores dos generais, escalando o general Luiz Eduardo Ramos para auscultar os colegas. Foi na passagem para a reserva do general Antonio Miotto que dois fatos curiosos aconteceram: o primeiro foi o ministro Ramos aparecer fardado na cerimônia e o segundo foi o cumprimento com o cotovelo que Pujol estendeu à Bolsonaro, que ficou com a mão no ar. 

O vídeo com a imagem do general preocupado com a covid-19 diante do presidente da gripezinha foi compartilhado por muitos militares, inclusive generais da ativa – um deles chegou a postá-lo no Twitter após retirar a identificação de sua conta. Bolsonaro ficou irritado. Depois, em novembro, quando Pujol se manifestou contra a política nos quartéis, Bolsonaro fez questão de lembrar que o general só comandava o Exército por causa da tinta de sua caneta.

Enquanto arrumava mais uma pessoa para brigar, Bolsonaro assistia ao fracasso de Eduardo Pazuello na Saúde, o que levou o Exército a tentar se dissociar da gestão que levou cloroquina em vez de oxigênio à Manaus e atrasou a vacinação no País. A Força Terrestre exibia seu plano para se manter aberta por meio do uso de máscaras e distanciamento social, além do álcool em gel, tudo o que Bolsonaro e seus ministros se recusavam a fazer.  

A estratégia de tratar Bolsonaro como pitoresco não bastava para salvar reputações. Exemplo disso era o ministro da Defesa. Mesmo que Azevedo e Silva tenha em nota defendido a preservação das Forças Armadas como instituição de Estado, seu papel na crise foi questionado até por colegas, como o general Francisco Mamede de Brito Filho. "Participou do famigerado tuíte do general Villas Bôas. Foi assessor de Toffoli em circunstância questionável. Permitiu militares da ativa em cargos civis." E concluiu: "Fica-se a imaginar o que ele teria preservado. É preciso vir a público com a verdade." 

A verdade é que Bolsonaro foi o escolhido pelos generais como candidato em 2018. Quase todos o conheciam, pois haviam sido contemporâneos de academia ou mesmo colegas de turma, como Pujol, Paulo Humberto Oliveira, Mauro Cesar Cid e Carlos Alberto Barcellos. Sabiam de seu passado no Exército e de seu comportamento no Congresso. Apesar disso, havia euforia com o Cavalão. Basta consultar – se alguém as guardou – as mensagens daquela época no grupo de WhatsApp Aman 77.  Raros se opunham à ideia de tê-lo como presidente e quem dizia isso publicamente era atacado pelos colegas. 

O general Otávio do Rêgo Barros tornou-se o porta-voz do novo governo. Fora o responsável pela comunicação do comandante Villas Bôas no momento do polêmico tuíte às vésperas do julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Um ano depois de deixar o governo e após o presidente patrocinar a defenestração do ministro da Defesa e da cúpula militar do País, Rêgo Barros escreveu: “O mandatário não é mais um militar. Ele detém, tão somente, uma carta patente que indica ter obtido, em um determinado momento da vida, os requisitos para exercer as funções intermediárias na hierarquia da oficialidade das Forças Armadas.” 

O general continuou ainda, em artigo, publicado no dia 31 de março, a descrição que fez de seu antigo chefe: "O amadurecimento intelectual – característica marcante na formação dos atuais chefes - não esteve presente em sua trajetória".  Disse ainda que os atributos aprendidos na caserna por Bolsonaro foram "substituídos por conceitos não aplicados dentro de uma instituição como é o Exército Brasileiro". "Seu aparente desejo de transformar essa centenária instituição, detentora dos mais altos índices de confiabilidade, em uma estrutura de apoio político, afronta tudo o que defendem as Forças Armadas em sua atitude profissional."

Um leitor de Weber afirmaria que generais como Santos Cruz, Rêgo Barros, Paulo Chagas e tantos outros que estiveram com Bolsonaro estão dizendo que o presidente dispõe ao mesmo tempo de elementos da dominação tradicional e da dominação carismática, mas ele se apresenta distante da dominação legal-burocrática sine ira et studio. De fato, já se notou que Bolsonaro é avesso à impessoalidade das leis e da administração. Devia ele saber que, mesmo na ditadura militar, quem governou o País foi o Exército e não um  líder. Não houve no Brasil um Augusto Pinochet, mas presidentes com mandato.

Nossos generais pensavam na ditadura romana, como um regime de crise e não em uma tirania. É no exemplo de Lúcio Quíncio Cincinato que se miravam. Cincinato, não é demais lembrar, foi buscado pelo Senado para exercer o poder em Roma quando um exército inimigo ameaçava a República. O poder não estava em uma pessoa, mas no papel, na lei, na tradição. Para Bolsonaro ter o seu Exército, seria necessário subverter a lógica de poder da própria corporação, o que limita esse tipo de projeto golpista.

Desde os anos 1930 os militares gostam de pensar que fazem a política do Exército e não política no Exército. Quando pensa em fazer do quartel uma propriedade privada, Bolsonaro se bate contra um dos marcos referenciais nos quais a cadeia de comando trabalha há décadas. O poder pessoal de um Mito é muito diferente do poder exercido segundo o pensamento conservador que prevalece no Exército. Afrontar essa estrutura é que levou Santos Cruz a chamar a ação de Bolsonaro de "tiro no pé". E fez Rêgo Barros concluir: "Buscar adentrar as cantinas dos quartéis com a política partidária é caminho impensado para as Forças Armadas. Elas já estão vacinadas contra esse vírus."

 Pior ainda. A identificação com o Centrão, o enterro da Lava Jato e as manobras para salvar o filho Flávio da Justiça e dos questionamentos sobre os R$ 6 milhões pagos em uma mansão em Brasília fizeram-no ouvir do general Paulo Chagas: "Bolsonaro exonerou os três comandantes das Forças Armadas porque eles não apoiaram a sua intenção autoritária de usar a força das Forças para, ao lado do centrão/ladrão, impor-se ao Congresso."  Com a política de volta entre os militares, a questão seria saber quem a pode fazer e em nome de quem. Por isso tudo, ao término da crise, o Alto Comando do Exército cantava vitória e publicava a foto de Villas Bôas e Pujol com o novo comandante, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.

Para os generais, a corporação saiu do imbróglio em que se meteu com Bolsonaro como "grande vencedora" do episódio que levou à demissão de Leal Pujol. Primeiro porque o pitoresco Bolsonaro escolheu o sucessor de Pujol dentro da lista de antiguidade que trazia os generais José Luiz Freitas, Marcos Antonio Amaro dos Santos e Paulo Sérgio. Depois, porque todo o ônus da troca recaiu sobre Bolsonaro, expondo seu desejo de nomear três Pazuellos para cada uma das Forças. Prevaleceu a ideia de continuidade, de que seja quem for o comandante, Bolsonaro não poderá contar com o Exército para se tornar ditador. E, se tentar, é mais fácil ele acabar deposto do que um cabo e um soldado arriscarem o pescoço por um mito. Os generais podem agora sonhar em 2022 com a eleição de um governo do qual participem sem o inconveniente de lidar com o pitoresco capitão. 


José Luis Oreiro: 'Sem medidas efetivas para controle da Covid-19, pandemia custará ainda mais caro ao Brasil'

Para o economista, “enquanto o vírus estiver circulando e as pessoas tiverem medo de morrer”, o setor de serviços não vai se recuperar e a indústria não conseguirá retomar sua capacidade de investimento e modernização

Patricia Fachin, IHU Online

O professor e economista José Luis Oreiro não tem meias palavras: “precisamos ter clareza de que o que afeta negativamente a economia não são as medidas de isolamento social, mas o vírus SARS-CoV-2 que causa a Covid-19”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ele ainda detalha que “a negligência no combate à pandemia vai custar muito caro ao Brasil em 2021, tanto em termos de vidas humanas como em termos de atividade econômica perdida”. “Enquanto o vírus estiver circulando e as pessoas tiverem medo de morrer, as atividades ligadas ao setor de serviços serão duramente afetadas”, completa.

Já na indústria, pela natureza do negócio, ele diz que o impacto parece não ser tão grande. No entanto, chama atenção para o fato de que a pandemia pegou a indústria nacional num processo de desindustrialização que já dura pelo menos 20 anos. “Se o Brasil tivesse um percentual maior da sua força de trabalho na indústria de transformação, a queda do PIB teria sido menor. Vemos isso claramente nos países europeus. Países como a Alemanha, onde a indústria responde por um percentual maior do PIB e da força de trabalho empregada, tiveram uma queda menor do nível de atividade”, exemplifica.

E, ainda, há aqueles que são acometidos em cheio com a perda de renda e que encontraram no Auxílio Emergencial de 2020 a última saída para fugir da fome e do desespero. Cenário que, como bem lembra Oreiro, não se repetirá em 2021. “Não só os valores são menores, como ainda houve uma redução significativa do acesso ao benefício. Estima-se que, pelo menos, 20 milhões de pessoas que tiveram acesso ao auxílio no ano passado ficarão sem receber o benefício este ano. Veremos um aumento expressivo da miséria no Brasil por conta da irresponsabilidade do governo e do Congresso Nacional na renovação do Auxílio Emergencial em 2021”, dispara.

Para enfrentar a crise pandêmica, além de agir com a responsabilidade de promoção de um efetivo isolamento social e promover vacinação ampla e irrestrita, o professor defende a extensão do Auxílio Emergencial nos patamares do ano passado enquanto estivermos em pandemia. “Uma vez superada a pandemia, temos que passar à fase de reconstrução da economia do país por intermédio de um vasto programa de investimentos públicos em infraestrutura (mobilidade urbana, geração de energia, logística, estradas e ferrovias) com foco na descarbonização da economia”, indica.

José Luis da Costa Oreiro é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, possui mestrado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ e doutorado em Economia da Indústria e da Tecnologia pela UFRJ. Atualmente é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília - UnB. Entre as inúmeras publicações, destacamos o livro Macroeconomia do Desenvolvimento: uma perspectiva keynesiana (publicado pela LTC em 2016) e o livro Macrodinâmica Pós-Keynesiana: crescimento e distribuição de renda (Alta Books, 2018).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Desde o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro se posicionou contrário ao isolamento social com a justificativa de que o isolamento poderia prejudicar a economia. Qual é a situação econômica do país neste momento em que também estamos imersos em uma crise sanitária e com altos índices de desemprego?

José Luis Oreiro – Antes de mais nada, precisamos ter clareza de que o que afeta negativamente a economia não são as medidas de isolamento social, mas o vírus SARS-CoV-2 que causa a Covid-19. As medidas de distanciamento social têm por objetivo reduzir o número de contágios para impedir o colapso do sistema de saúde. Essas medidas tiveram um relativo sucesso em 2020, mas agora em 2021 foram adotadas de forma tardia pelos governos subnacionais.

A população também relaxou as medidas de proteção, em parte por causa do cansaço com a situação posta pela pandemia, mas em parte por falta de uma campanha nacional de conscientização sobre os riscos da Covid-19. Caberia ao Ministério da Saúde vincular, por intermédio dos meios de comunicação social, informações para a população se prevenir do vírus. Isso não só não foi feito pelo Ministério da Saúde, como o presidente da República adotou comportamentos públicos que incentivaram as pessoas a minimizar o risco do novo coronavírus.

O resultado está aí, 300 mil brasileiros mortos e com o sistema de saúde entrando em colapso em várias cidades brasileiras. A negligência no combate à pandemia vai custar muito caro ao Brasil em 2021, tanto em termos de vidas humanas como em termos de atividade econômica perdida. Quero aqui deixar claro que não existe trade-off entre vidas e economia. Enquanto o vírus estiver circulando e as pessoas tiverem medo de morrer, as atividades ligadas ao setor de serviços serão duramente afetadas, mesmo na ausência de medidas de distanciamento social.

Patamares piores que na grande depressão

Em 2020, o PIB brasileiro teve uma contração de 4,1%, a maior desde a grande depressão de 1929. A taxa de desemprego atingiu 14% da força de trabalho e cerca de 9 milhões de brasileiros tiveram que se retirar da força de trabalho. O que salvou o ano de 2020 de ter sido muito pior foi o Auxílio Emergencial. Isso permitiu que milhões de pessoas tivessem uma condição financeira mínima para sustentarem a si mesmos e suas famílias num contexto em que o setor de serviços (responsável por cerca de 70% do PIB) se contraiu fortemente por conta da pandemia.

O peso da desindustrialização

Veja que a indústria não foi tão afetada pela pandemia como o setor de serviços, devido à natureza das relações de trabalho na indústria, que permitem distanciamento social sem interrupção do trabalho. A pandemia afetou muito a economia brasileira por conta do processo de desindustrialização prematura que ocorre há mais de 20 anos. Se o Brasil tivesse um percentual maior da sua força de trabalho na indústria de transformação, a queda do PIB teria sido menor. Vemos isso claramente nos países europeus. Países como a Alemanha, onde a indústria responde por um percentual maior do PIB e da força de trabalho empregada, tiveram uma queda menor do nível de atividade.

Já países onde o setor de serviços, particularmente o turismo, tem uma participação expressiva no PIB e na força de trabalho ocupada, como a Espanha e a Itália, tiveram quedas assombrosas do nível de atividade econômica. 

A negligência no combate à pandemia vai custar muito caro ao Brasil em 2021, tanto em termos de vidas humanas como em termos de atividade econômica perdida – José Luis Oreiro

IHU On-Line – Que balanço faz das políticas econômicas adotadas durante o primeiro ano de pandemia? O que poderia ter sido feito para além do que se fez?

José Luis Oreiro – O Auxílio Emergencial foi, de longe, o maior acerto da política econômica, embora tenha sido iniciativa do Congresso Nacional, não da equipe do Ministério da Economia. Foi o auxílio que impediu que o PIB brasileiro caísse entre 8 e 9% em 2020, como era previsto por organismos internacionais como o FMIBanco MundialBanco Central Europeu e Comissão Europeia.

Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte - Pronampe, que tinha por objetivo conceder crédito para essas empresas e assim permitir que elas pudessem sobreviver durante o período da pandemia, foi bem menos eficiente, no sentido de que os desembolsos realizados pelo programa ficaram aquém do esperado. Esse programa foi interrompido em 31/12/2020 e ainda não existe previsão de retorno. Já o BEm (Benefício Emergencial de Preservação de Emprego e Renda), que permitiu às empresas reduzir a jornada de trabalho (e os vencimentos) dos seus funcionários ou suspender temporariamente os contratos de trabalho, com o governo cobrindo uma parte da perda de renda dos funcionários dessas empresas, foi mais bem-sucedido, pois evitou um grande número de demissões e ajudou a manter a renda (ainda que com uma certa redução) dos trabalhadores. O problema é que esse programa também foi extinto em 31/12/2020 e não existe previsão de retorno.

Se o governo tivesse renovado o estado de calamidade pública no dia 31/12/2020 por, pelo menos, mais 120 dias, a Emenda Constitucional do Orçamento de Guerra continuaria válida, permitindo ao governo manter o pagamento do Auxílio Emergencial, bem como o Pronampe e o BEm, pois não seria obrigado a retornar à "disciplina fiscal" imposta pela EC do Teto de Gastos e pela "Regra de Ouro". Estamos quase no final de março e nenhum desses programas foi retomado. Acredito que o efeito sobre o nível de atividade econômica e o emprego será devastador.


IHU On-Line – Como avalia o novo Auxílio Emergencial para trabalhadores informais e beneficiários do Bolsa Família, que será pago a partir de abril, em quatro parcelas, com valores de R$ 150, R$ 250 ou R$ 375?

José Luis Oreiro – Representa uma redução gigantesca com relação aos valores pagos no ano de 2020, num contexto em que o Brasil entrou com força numa segunda onda de contágios e mortes por Covid-19, na qual o índice de óbitos por dia já se encontra 2,5 vezes maior do que na pior fase da primeira onda.

Veremos um aumento expressivo da miséria no Brasil por conta da irresponsabilidade do governo e do Congresso Nacional na renovação do Auxílio Emergencial em 2021 – José Luis Oreiro

Não só os valores são menores, como ainda houve uma redução significativa do acesso ao benefício. Estima-se que, pelo menos, 20 milhões de pessoas que tiveram acesso ao auxílio no ano passado ficarão sem receber o benefício este ano. Veremos um aumento expressivo da miséria no Brasil por conta da irresponsabilidade do governo e do Congresso Nacional na renovação do Auxílio Emergencial em 2021.

IHU On-Line – A inflação está subindo, a atividade econômica desacelerando em alguns setores e, do ponto de vista sanitário, o país está em colapso. O aumento da inflação representa algum risco no atual contexto de crise econômica, desemprego e crise sanitária?

José Luis Oreiro – O aumento da inflação ocorrido nos últimos meses é resultado de um choque de oferta, não devido a pressões de demanda, por isso mesmo trata-se de um fenômeno transitório: a partir de junho/julho de 2021 a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA acumulada em 12 meses começará a ceder após alcançar um pico entre 6 e 7%, fechando o ano de 2021 em torno de 4%.

Por que a inflação se acelerou nos últimos 12 meses? Em primeiro lugar, devido ao aumento dos preços dos alimentos causado por uma combinação de fatores: desvalorização acentuada da taxa de câmbio em 2020 (cerca de 40% entre janeiro e dezembro de 2020); aumento dos preços dos alimentos nos mercados internacionais em função da demanda precaucional de alimentos por parte de diversos países dada a incerteza sobre os efeitos da pandemia no abastecimento de alimentos; e a eliminação dos estoques reguladores de alimentos da Companhia Nacional de Abastecimento - Conab levada a cabo nos governos liberais de [Michel] Temer e [Jair] Bolsonaro.

Sem estoque, sem controle

Se o Brasil, a exemplo dos Estados Unidos, tivesse mantido um estoque grande de alimentos em 2020, então o governo poderia vender esse estoque no segundo semestre do ano passado, o que contribuiria para reduzir a pressão sobre os preços dos alimentos, assim reduzindo a inflação. Mas Paulo Guedes achava que era muito caro manter esses estoques e decidiu vender praticamente tudo em 2019. O resultado é que o Estado Brasileiro ficou sem um importante instrumento para conter pressões inflacionárias vindas do lado da oferta da economia.

IHU On-Line – Em que consiste sua proposta para a retomada do crescimento da economia, baseada no Auxílio Emergencial, no ajuste fiscal e na reindustrialização? Como essa arquitetura pode resolver o problema da renda, do emprego e da retomada da economia?

José Luis Oreiro – O Auxílio Emergencial, como o próprio nome diz, é para atacar uma emergência: trata-se de transferir renda para aquelas pessoas que, devido à pandemia, ficaram sem emprego ou sem condições de exercer alguma atividade remunerada. Esse auxílio deve permanecer até que o país atinja, por intermédio das campanhas de vacinação, a chamada imunidade de rebanho, o que seria, talvez, 70% da população com mais de 14 anos.

Uma vez superada a pandemia, temos que passar à fase de reconstrução da economia do país por intermédio de um vasto programa de investimentos públicos em infraestrutura (mobilidade urbana, geração de energia, logística, estradas e ferrovias) com foco na descarbonização da economia, ou seja, com a redução da emissão de CO2 por unidade de PIB, ou seja, aumentar a eficiência ambiental da economia brasileira. Trata-se de uma verdadeira mudança estrutural verde na economia brasileira, em que será estimulada a adoção de tecnologias não poluentes e/ou que permitam a captura de CO2 da atmosfera.

Uma vez superada a pandemia, temos que passar à fase de reconstrução da economia do país por intermédio de um vasto programa de investimentos públicos em infraestrutura com foco na descarbonização da economia – José Luis Oreiro

Isso vai exigir vultosos investimentos tanto do setor público, como do setor privado. Como são investimentos em novas tecnologias, o governo deverá, por intermédio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES e da Financiadora de Estudos e Projetos - Finep, conceder crédito subsidiado para a realização dos mesmos, exigindo contrapartidas concretas e mensuráveis em termos da redução de emissão de CO2. Essa transformação estrutural será um elemento importante para a reindustrialização da economia brasileira.

Carga de impostos

Esse pacote de investimentos terá que ser financiado por intermédio do aumento da carga tributária. É uma falácia dizer que não é possível aumentar a carga de impostos no Brasil. É possível sim, conforme artigo de Alexandre Sampaio Ferrazpublicado recentemente no Nexo Jornal

A alíquota efetiva do imposto de renda das pessoas físicas começa a cair a partir dos 2% mais ricos, e despenca quando chegamos nos 0,1% mais ricos da população brasileira. Isso é o resultado da combinação entre isenção de imposto de renda para lucros e dividendos distribuídos, crescente pejotização dos profissionais liberais e alíquota mais baixa de imposto de renda para a renda financeira (ganhos de capital sobre ativos e juros das aplicações financeiras). Como a proporção de lucros, dividendos e renda financeira na renda total é muito mais alta no topo da distribuição de renda do que na parcela intermediária (a "classe média"), os brasileiros mais ricos pagam, como proporção da sua renda, muito menos do que os funcionários públicos (que a Faria Lima diz serem a elite do Brasil) ou os pequenos e médios empresários.

Daqui se segue que uma reforma tributária que contemple não apenas a criação do Imposto sobre Bens e Serviços - IBS, como previsto na PEC 45, como também a tributação de lucros e dividendos distribuídos e o aumento do imposto de renda sobre ganhos financeiros irá resultar num aumento expressivo da arrecadação de impostos, permitindo uma consolidação fiscal de médio prazo pelo lado da receita.

IHU On-Line – Os economistas costumam se situar em polos extremos: ou defendem o gasto social sem restrições ou defendem o equilíbrio das contas independentemente da situação social do país. O senhor tem defendido "um limite para o aumento da dívida pública". Em que consiste sua proposta?

José Luis Oreiro – A dívida pública como proporção do PIB não pode aumentar indefinidamente, mesmo sendo denominada na moeda que o país emite; mas não existe um número mágico a partir do qual os mercados deixam de financiar o Tesouro. O importante é desenhar um plano de consolidação fiscal de médio-prazo (5 a 10 anos) que mostre que a relação dívida pública/PIB irá começar a cair dentro desse horizonte de tempo. Para isso a combinação de aumento do investimento público com reforma tributária será absolutamente necessária: o aumento do investimento público irá acelerar o crescimento da economia e a reforma tributária permitirá que uma parcela maior do crescimento do PIB se transforme em aumento da arrecadação de impostos.

Esse é o ajuste fiscal inteligente que o Brasil precisa, não esse terraplanismo econômico do "teto de gastos" adotado em 2016 e que foi totalmente ineficaz no que se refere ao propósito para o qual foi criado, a saber: a redução do endividamento do setor público.

IHU On-Line – Em decorrência da crise pandêmica e também do Auxílio Emergencial concedido no ano passado, voltou à tona a discussão sobre a elaboração de programas de transferência de renda mais amplos e abrangentes. Alguns, inclusive, propõem uma renda mínima universal incondicional. Como o senhor tem refletido sobre essa questão, especialmente na atual conjuntura? Que desenho de programa de transferência de renda é desejável e possível neste momento?

José Luis Oreiro – Sou favorável a um programa emergencial de renda básica enquanto durar a pandemia, aliás, fui signatário do manifesto do Movimento Direitos Já em defesa do pagamento de um valor de R$ 600,00 a título de Auxílio Emergencial até, no mínimo, o final de 2021. Situações excepcionais exigem medidas excepcionais. Mas não gosto de um programa de renda mínima universal incondicional.

Sou favorável a um programa emergencial de renda básica enquanto durar a pandemia. Situações excepcionais exigem medidas excepcionais. Mas não gosto de um programa de renda mínima universal incondicional – José Luis Oreiro

renda mínima deve ser concedida apenas para aquelas pessoas que, por diversas contingências da vida, são incapazes de se inserir de forma produtiva na sociedade. Aqui tem um julgamento de valor meu, o qual reflete minha visão cristã e católica do homem e do mundo: Deus criou o homem para guardar e cuidar do jardim do Éden. É o trabalho que dá ao homem sua dignidade como criatura feita à imagem e semelhança de Deus. O trabalho não é apenas um meio para se ganhar a vida, mas é a forma pela qual o homem coopera com Deus na obra de criação.

Tendo esse princípio em mente, eu prefiro um programa de garantia de Emprego pelo Estado, tal como o defendido pelo senador Bernie Sanders nos Estados Unidos. Todo cidadão, não importa gênero, idade, orientação sexual, religião ou etnia, tem direito a um emprego digno com o qual possa não apenas ganhar seu sustento, mas contribuir para o bem comum.

IHU On-Line – Como avalia a decisão do Comitê de Política Monetária - Copom de elevar a taxa Selic para 2,75%? O que essa medida indica e sinaliza para os próximos meses em relação à política de juros no país?

José Luis Oreiro – Foi uma decisão errada, que mostra a força do rentismo no país. Em linhas gerais, o Banco Central reagiu a um choque temporário de oferta com uma elevação da taxa de juros em 0,75 p.p. e sinalizou que irá continuar o processo de "normalização" da política monetária nos próximos meses, ou seja, irá continuar aumentando a Selic.

Segundo estimativas do próprio Banco Central, um aumento de 1,5 p.p. na Selic irá produzir uma elevação de R$ 47,7 bilhões na dívida bruta do governo geral; um valor equivalente a um mês de Auxílio Emergencial de R$ 600,00 para um público de 67 milhões de pessoas. Em outras palavras, o governo não tem dinheiro para pagar o mesmo valor de Auxílio Emergencial que pagou em 2020, mas tem dinheiro para o PESFL, “Programa Emergencial de Socorro à Faria Lima”. É muita cara de pau.

O governo não tem dinheiro para pagar o mesmo valor de Auxílio Emergencial que pagou em 2020, mas tem dinheiro para o PESFL, "Programa Emergencial de Socorro à Faria Lima" – José Luis Oreiro Tweet

IHU On-Line – Em fevereiro deste ano, o Congresso aprovou a autonomia do Banco Central, que foi sancionada pelo presidente Bolsonaro, com a justificativa de "evitar pressões políticas na condução da política de juros da instituição". Como o senhor avalia essa medida?

José Luis Oreiro – Foi essa medida que deu ao Banco Central os graus de liberdade para tomar a decisão insana de aumentar a taxa de juros no meio da pior crise econômica e sanitária de nosso país. Veja que a autonomia do Banco Central foi aprovada antes da PEC emergencial e até mesmo antes de o Congresso Nacional ter aprovado o orçamento de 2021.

Por que tanta pressa dado que essa discussão já se arrasta há mais de 30 anos? Foi porque a turma do mercado financeiro receava a intervenção do presidente da República no Banco Central do Brasil caso o mesmo fizesse o que acabou fazendo. Agora não só Bolsonaro como o próximo presidente da República estarão de mãos atadas no que se refere à condução da política monetáriaPerdeu a Democracia, ganhou a Plutocracia.

IHU On-Line – O senhor costuma criticar o que chama de "porta giratória" do Banco Central, mas também do Ministério da Economia, no sentido de que economistas, depois de trabalharem para essas instituições do Estado, passam a atuar no mercado financeiro. Que problemas percebe nessa relação?

José Luis Oreiro – É um problema de captura do regulador pelo regulado. Por que um economista que não concluiu seu doutorado, que nunca estudou ou trabalhou com finanças é convidado para ser economista chefe e sócio de um dos maiores bancos de investimento do país depois de ter trabalhado no Ministério da Economia? Na minha cabeça só existe uma explicação possível: recompensa pelos bons serviços prestados ao setor financeiro quando de sua atuação no setor público. Assim, simples.

IHU On-Line – Quais são suas projeções para a economia brasileira no decorrer deste ano?

José Luis Oreiro – Eu estaria sendo néscio se cravasse um número para o crescimento do PIB em 2021. A incerteza é muito grande. Ao que tudo indica, a pandemia está fora de controle no Brasil. A base de apoio do governo no Congresso começa a mandar sinais de descontentamento. O Ministério da Economia não tem um plano concreto de medidas de incentivo econômico e, para piorar, o Banco Central vai "normalizar" a política monetária. Eu aposto que o PIB irá se contrair no primeiro e no segundo semestre deste ano. O que vai ocorrer no segundo semestre eu não faço a menor ideia. Incerteza pura. Não dá para fazer previsão.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

José Luis Oreiro – Eu aconselharia o presidente Bolsonaro a adotar um gesto de grandeza e renunciar ao cargo de presidente da República. Seria melhor para todos, inclusive para ele que, aparentemente, se sente sufocado pelo peso da responsabilidade de governar um país onde a maior parte das pessoas não gosta dele e/ou não concorda com as decisões que ele toma.

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Alon Feuerwerker: Ofensiva ou defensiva? E uma lembrança sobre 1964

As movimentações do poder nos últimos dias permitem pelo menos duas leituras. Uma diz que a troca dos comandantes das Forças Armadas faz parte de certo rearranjo numa ofensiva política do presidente da República. Expressão desse raciocínio é a palavra “golpe” ter dado as caras com assiduidade durante algumas horas.

Em especial no intervalo entre a demissão da antiga cúpula militar e o anúncio da nova.

Cada um tem sua própria opinião, mas a minha é que talvez tenha sido o contrário. Talvez o movimento presidencial tenha sido essencialmente defensivo, parte da construção de barreiras protetivas num período em que a ofensiva é dos adversários ferrenhos, circunstância que sempre embute o risco de provocar desequilíbrios em aliados não tão orgânicos assim.

O cenário das últimas semanas combina números trágicos e explosivos da Covid-19, dúvidas disseminadas sobre o ritmo da vacinação, desconforto sobre o valor do novo auxílio emergencial, temores de perda de fôlego da atividade econômica, conflito aberto do presidente com a maioria dos governadores em torno das medidas de isolamento social.

E até dias atrás juntava-se a isso a encrenca do então chanceler com o Senado Federal.

Em certo momento da confusão, o presidente da Câmara, último muro que separa a oposição de entrar no terreno do impeachment, ligou o sinal amarelo. Quem avisa, aliado é. A partir dali, ficar parado não era mais opção para Jair Bolsonaro. Ele entrava na situação corriqueira dos presidentes brasileiros: ter de oferecer os anéis antes de perder os dedos.

Mas só recuar provocaria efeitos colaterais indesejados. Preservaria forças e recursos do poder. Mas também transmitiria sinal de fraqueza. Que sempre tem uma resultante perigosa: acender ainda mais apetites. Na última linha, a política não se define pelo sentimento de gratidão, define-se pela correlação de forças. Quem quer sobreviver precisa ter força, ou ao menos dar a impressão.

É fácil constatar. Se Bolsonaro tivesse apenas trocado o chanceler e aberto espaço no núcleo do Planalto para uma aliada do presidente da Câmara, o noticiário giraria em torno do recuo do presidente sob pressão. Como ele, ao mesmo tempo, deu certo sinal de “manda quem pode”, trazendo as Forças Armadas para dançar, o jogo simbólico ficou algo equilibrado.

Sim, apenas equilibrado, porque restou claro que os novos comandantes foram indicados em consenso com o escalão mais alto de cada força. Assim, ao final, todo mundo mostrou um pouco de dentes: a Câmara dos Deputados, o Senado, o Presidente da República e a turma das quatro estrelas na Marinha, no Exército e na Aeronáutica.

E segue o jogo. E qual é esse jogo? Há a necessidade de combater a pandemia e retomar a economia, claro, mas a bússola política está apontada mesmo é para 2022. Aliás, esse talvez seja o principal saldo semiótico das últimas semanas. Tem projeto? Então foco. Prepara-te para outubro do ano que vem. As outras opções são bem menos prováveis.

Pois, a rigor, ninguém relevante está, tirando a retórica, interessado numa ruptura. Entre os vários motivos: ao contrário de Fernando Collor e Dilma Rousseff, o vice agora não é uma ponte potencial dos políticos para a ocupação do governo. E outro detalhe: numa ruptura digna do nome, não tem seguro que proteja 100% de ser tragado pelo tsunami.

Sobre tsunamis, esta semana registrou-se mais um aniversário de 31 de março de 1964. Como habitual, reacendeu-se a discussão sobre o que teria acontecido se Jango não tivesse sido derrubado. Debate que persistirá para a eternidade. Uma coisa, porém, é certeza. Nem Juscelino Kubitschek, nem Jânio Quadros e muito menos Carlos Lacerda eram comunistas.

Todos apoiaram a deposição de João Goulart. E quem não souber o que aconteceu depois com eles, é só procurar no Google.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Heloisa Starling: 'Altas patentes da ativa estão em silêncio eloquente'

Pesquisadora alerta para o nível de tensão entre governo e Forças Armadas mas vê como bom sinal a falta de manifestações políticas da cúpula militar

Janaína Figueiredo, O Globo

RIO - A inédita troca simultânea dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, semana passada, colocou historiadores brasileiros como Heloisa Starling em estado de alerta. A professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, coautora de "Brasil: uma biografia", se pergunta, por exemplo, se existem fissuras nas Forças Armadas, e se a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de contar com respaldo militar para seu projeto político tem adesão nas baixas patentes. "O silêncio dos quartéis tem sido muito eloquente. Todas as altas patentes na ativa estão em silêncio, o que é muito bom para a democracia", afirmou a historiadora, em entrevista ao GLOBO. Heloisa não vê risco de golpe, mas faz uma ressalva: "o projeto autoritário do governo corroi por dentro a democracia. A novidade é essa".

Qual é a sua avaliação sobre a crise entre o presidente Jair Bolsonaro e a cúpula militar?

Os sentimentos são vários. O Brasil vive numa montanha-russa, a cada dia temos um solavanco maior, sem respiro. Um dos pensamentos que tive foi me perguntar como é possível que, num momento em que mais de 300 mil brasileiros morreram, se faça uma reforma de ministério. Ao invés de todas as forças do governo federal estarem voltadas para o enfrentamento da pandemia e para dizer à sociedade que a vida de cada brasileiro vale igual, o governo faz uma reforma e arruma uma crise com as Forças Armadas? Isso é muito assustador e dá a dimensão do grau de degradação do país. Muitos nos perguntamos o que realmente está acontecendo.

Que precedentes históricos devem ser levados em conta na hora de analisar o estremecimento da relação entre Bolsonaro e a agora ex-cúpula das Forças Armadas?

Se você olhar, do governo Deodoro da Fonseca até o governo Geisel, você tem umas 15 tentativas de intervenção militar no Brasil, duas deram certo e liquidaram a democracia: o Estado Novo, em 1937, e a ditadura militar, em 1964. Desde a redemocratização, não temos esse quadro de tensão entre Planalto e Forças Armadas. Se o ministro da Defesa precisa dizer que as Forças Armadas são uma instituição do Estado republicano, isso significa que alguém estava forçando para que não fosse. Por outro lado, as Forças Armadas são politicamente heterogêneas. Isso inclui diferença de arma, geração e carreira; também possui interesses próprios e capacidade de promovê-los. Gostaria de entender o que está acontecendo dentro delas. No período Geisel, por exemplo, o projeto de abertura era defendido por um setor, mas houve uma reação muito forte contra essa abertura. Essa reação culmina com uma tentativa de golpe militar em 1977, com Sylvio Frota, através de um pronunciamento que buscou insuflar as tropas contra Geisel. Ele era uma das lideranças mais importantes do setor mais reacionário das Forças Armadas. Às vezes, me parece o mesmo filme. No manifesto, Frota faz a defesa do alinhamento incondicional com os EUA, ataca Geisel pela aproximação com a China e por críticas a Israel. Seriam provas de uma “escalada socialista” no Brasil, como ele diz. Também reclama que Geisel é complacente com as críticas da mídia às Forças Armadas e permite propaganda subversiva. Tem um caldeirão ideológico no pronunciamento dele que vale a pena olhar. Recém promovido a capitão, o general Augusto Heleno era seu ajudante de ordens.

Merval Pereira:  Não será fácil usar as Forças Armadas para autogolpe

A senhora se pergunta se o discurso e as pretensões de Bolsonaro de politizar as Forças Armadas têm algum respaldo dentro do mundo militar ativo?

Minha dúvida é: tem fissuras hoje nas Forças Armadas? Se sim, quais são essas fissuras? Tem alguma cunha sendo metida dentro das Foças Armadas, no sentido de buscar adesão nas baixas patentes para um projeto de poder? Isso já aconteceu no passado, tivemos a revolta dos marinheiros, dos sargentos, entre outras. Na ditadura, tivemos fissuras, que vieram dos setores mais ideológicos das Forças Armadas. Não quero saber se tem partidários do presidente Bolsonaro, quero saber se tem fissuras.

Até agora, o que a senhora responderia a essa pergunta?

Se ligarmos para o passado, para entender o que estamos vendo hoje, ele nos dirá que as Forças Armadas não são homogêneas, já se dividiram, existe uma tradição de intervenção política, e já se manifestaram de diferentes maneiras. Posso supor que a força institucional, pelo que tudo indica, está sendo demonstrada. Mas e as patentes inferiores? O presidente tem uma atuação frequente, uma presença que não é comum entre chefes de Estado em formaturas militares. Até agora, o silêncio dos quartéis tem sido muito eloquente. Bolsonaro não tem tropas ao seu redor, tem muito militar da reserva. Todas as altas patentes na ativa estão em silêncio, o que é muito bom para a democracia. O general (Pedro Aurélio) Góis Monteiro, um dos mais importantes da história do Exército brasileiro, responsável pela grande modernização das Forças Armadas nos anos 30, dizia que o Exército é o grande mudo. Temos de lembrar do Góis Monteiro, enquanto estiver mudo, é bom.

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Semana passada, representantes do governo comemoraram o golpe de 1964...

Existe uma ideia de que Bolsonaro constantemente evoca a ditadura. Mas não é a ditadura, ele evoca um momento da ditadura, os anos 70, o período mais violento e repressivo. Se você observar a história dele e dos generais que estão em torno dele, são todos formados nos anos 70, por coronéis instrutores que vieram da repressão à luta armada, principalmente no Araguaia. A nostalgia não é da ditadura, é do porão.

Quais são os riscos que a democracia brasileira corre hoje?

A vertente dessas pessoas que mencionava antes foi derrotada por Geisel nos anos 70, derrotada pela abertura e o início da transição democrática. Eles poderiam, e aqui estou especulando, alimentar um projeto messiânico. Isso significa um projeto de poder, no mínimo, autoritário. Estamos lidando com um pensamento muito autoritário, e não é uma aventura, tem uma história.

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O presidente disse que joga dentro da Constituição, mas que outras autoridades atuam no limite.

O projeto autoritário do governo corrói por dentro a democracia. A novidade é essa. Todas as vezes que a democracia sucumbiu no Brasil foi por força de golpe de Estado. Hoje, temos um processo de corrosão, dentro das instituições, das agências. Cada vez que as instituições reagem a esse projeto, por exemplo o Supremo Tribunal Federaç (STF), elas se enfraquecem. Isso esgota a energia das instituições. Exauridas, elas vão perdendo capacidade de reação. Outro mecanismo de corrosão são gestões muito incompetentes dentro de agências do Estado, como foi a do Ministério da Saúde. Lembro que em janeiro de 2019, Bolsonaro tinha acabado de tomar posse, e fez um discurso num jantar em Washington no qual ele diz que seu governo não vai construir nada, vai desconstruir. Tem método, e está em ação.

Hoje, esse projeto de poder está acuado?

Não vejo esse projeto acuado, ele está em pleno funcionamento. Tenta-se impor, ainda, uma nova língua que parece saída diretamente das páginas do livro “1984”, de George Orwell: a apropriação das palavras e a inversão de seu significado. Ditadura militar significa liberdades democráticas; os inimigos da democracia se dizem vítimas de ditadura; liberdade de expressão virou licença para delinquir. É um processo lento, e não ocorre apenas no Brasil. Acontece na Hungria, na Polônia, Venezuela, os Estados Unidos de Trump, Índia. Tem um padrão, um modo como governantes com vocação autoritária, eleitos democraticamente, agem para corroer por dentro as instituições democráticas. O que me preocupa é que as instituições não se defendem sozinhas. Falta uma reação da sociedade, mesmo na pandemia, a sociedade pode ser criativa, e não se pode falar só na internet, é preciso falar na cena pública. Existem, por exemplo, movimentos para defender um luto para os brasileiros mortos na pandemia. A sociedade também deve dizer que a democracia é um valor e não abriremos mão dele. É preciso pensar formas de expressar o respeito à nossa democracia. Como diz a música de Aldir Blanc, uma estrela é um incêndio na solidão. A democracia não acontece na solidão.


Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro e o mito de Sísifo

Como disse Camus, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata do presidente da República

O consagrado escritor francês Albert Camus foi um existencialista, para quem o homem vive em busca de sua essência, do seu sentido, e encontra um mundo desconexo, ininteligível, guiado por religiões e ideologias políticas. Num de seus ensaios filosóficos, Camus classifica Sísifo, um dos grandes personagens da mitologia grega, como um herói absurdo. “Tanto por causa de suas paixões como por seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo seu ser se empenha em não terminar coisa alguma. É o preço que se paga pelas paixões desta terra”, resumiu.

Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha, de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. “Imaginaram que não haveria punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”, afirma Camus, que publicou O Mito de Sísifo em 1942. Nessa obra, destaca o mundo imerso em irracionalida- des. “Ou não somos livres, e o responsá- vel pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso”, questionava.

Àquela época, em plena Segunda Guerra Mundial, o mundo parecia mesmo absurdo: a guerra, a ocupação da França, o triunfo aparente da violência e da injustiça, tudo se opunha ao humanismo e à ideia de civilização. O trabalho de Sísifo, ao empurrar incessantemente uma pedra até o alto da montanha, até ela tornar a cair, é uma analogia perfeita com o esforço empreendido por profissionais da saúde, prefeitos e governadores para combater a pandemia do novo coronavírus: a covid-19. Entretanto, esse não é um trabalho inútil e sem esperança, como no caso do mito grego. É uma batalha que acabará sendo ganha, apesar de tudo.

Como disse Camus, porém, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata de um governante, como o presidente Jair Bolsonaro, que combate as medidas de isolamento social e mobiliza seus aliados para sabotar os esforços dramáticos que estão sendo realizados para evitar que a pandemia mantenha sua escalada, que pode chegar a mais de 500 mil mortos em julho, segundo estimativas dos principais centros de estudos epidemiológicos do mundo.

Liminares
A polêmica do momento é a liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Marques, o mais novo da Corte, indicado por Bolsonaro, que autoriza o funcionamento de templos religiosos durante a pandemia, mesmo contrariando as medidas de restrição de circulação de pessoas e aglomerações adotadas por prefeitos e governadores de cidades e estados nos quais a pandemia saiu do controle. Apesar de o Sistema Único de Saúde (SUS) estar entrando em colapso, por falta de leitos, respiradores e insumos para atender tantos infectados graves, o ministro acolheu pedido da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, apresentada em junho do ano passado, para libertar os cultos.

Houve reação entre seus colegas do Supremo. Além das críticas públicas do decano Marco Aurélio Mello, ontem, o ministro do STF Gilmar Mendes, ao negar uma ação do PSD, manteve o decreto do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que restringiu as atividades religiosas de igrejas no estado. Contrariou a decisão de Kassio Marques, que havia liberado celebrações presenciais em todo o país. À tarde, o procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro e cotado para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello, que está prestes a se aposentar, protocolou no Supremo um pedido para retirar de Gilmar Mendes e transferir para Kassio Marques a ação do PSD contra a proibição de cultos e missas coletivas em São Paulo, porque é relator de uma ação mais antiga: a do PSD é de março deste ano.

O presidente do STF, ministro Luiz Fux, decidiu pôr o assunto em votação amanhã, na reunião plenária da Corte. A decisão de Kassio Marques, a pretexto de garantir a liberdade religiosa, está em contradição com a jurisprudência do Supremo, que atribuiu aos estados e municípios autoridade para fixar medidas restritivas de enfrentamento da pandemia, inclusi- ve, o fechamento de templos e igrejas.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-bolsonaro-e-o-mito-de-sisifo/

Marco Aurélio Nogueira: Pessimismo e imaginação democrática

É hora de pegar o touro à unha e criar condições para que a população não esmoreça

O pessimismo anda de braços dados com o cansaço, um ano depois do início da pandemia. Há motivos de sobra para isso. Quarentenas, confinamentos e lockdowns estressam, especialmente quando são o principal recurso para que as pessoas não sejam infectadas. E o pessimismo cresce ao se constatar que parte dos problemas não podem ser solucionados somente com intervenção política e outra parte foi causada por erros cometidos lá atrás, que não podem mais ser corrigidos.

Falo da pandemia, mas poderia ir além, incluindo, por exemplo, o estrago ambiental e a economia.

Quando lemos que não há como acelerar a vacinação por falta de doses de imunizantes, que abril será um mês ainda mais trágico do que março, que só em setembro os grupos prioritários da população conseguirão ser vacinados, vemos com clareza o tamanho da nossa desgraça. O vírus se espraia e assume novos formatos — porque não foram tomadas as medidas corretas antes –, não há vacinas disponíveis no mundo, está sendo amargo o preço que os brasileiros estão pagando pela incúria desastrosa de seu governo.

A própria gestão Bolsonaro vem do passado, dos erros cometidos em 2018, da incapacidade demonstrada pelos democratas de chegarem a um ponto mínimo de entendimento, fruto de uma leitura errada da situação. Desde então o País está sem rumo, carente de alguém que proponha algo plausível para modificar as circunstâncias e injetar ânimo na população. Sua substituição não é garantia de que a situação se modificará de imediato. O Congresso está mais ativo, mas teme colocar o guizo no gato, que, de resto, tem seus apoiadores, mais fanáticos ou menos.

Achar que encontraremos o rumo por meros atos de vontade ou pela mudança do estilo bolsonarista de ser é sonhar acordado.

É hora de pegar o touro à unha., Como estão a fazer diversos governadores, que se articulam para elaborar uma estratégia própria contra a pandemia. Como fazem Butantan e Fiocruz com a dedicação integral à produção de vacinas. Como fazem milhares de voluntários que colaboram nos postos de vacinação, com doações de alimentos, com ajuda financeira aos desassistidos. Como fizeram alguns “presidenciáveis” com o manifesto em defesa da democracia.

Precisamos avaliar bem o quadro político. A imaginação democrática pode frutificar com mais vigor, contagiar os cidadãos a partir de proposições políticas claras. Não podemos esmorecer. O País não é uma divisão simples entre bolsonaristas e lulistas, essa polarização que virou o bicho-papão da política nacional. Há muito mais coisas no meio. Uma “terceira via” é uma possibilidade legítima e factível, pela qual vale se empenhar, mas ela não cairá do céu se o diagnóstico ficar enviesado. O ideal é que se consiga chegar a uma ampla aliança entre o centro e o campo progressista, como tem falado o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), dentre outros. Dar um passo além do meio termo entre Lula e Bolsonaro. Sem extremismos, com inteligência, generosidade, em nome da moderação reformadora. Não há outra saída segura.

Não é inevitável que Lula encabece essa aliança. O campo progressista tem outros nomes em condições de compensar o desgaste do ex-presidente e Lula, com o prestígio e o talento que tem, pode vir a atuar como um decisivo fator de união. Depende dele, mas também depende do PT e dos demais partidos de esquerda, do mesmo modo que das forças de centro. Os democratas precisam suspender os vetos cruzados. Errar menos, romper com seus fantasmas e temores.

Estacionamos no terreno das conjecturas. Tal sinalização precisa encontrar força material, pessoas dispostas a fazer sacrifícios e a levar em conta o conjunto dos interesses nacionais, não seus caprichos pessoais ou seus cálculos eleitorais. A imaginação democrática precisa atuar aqui com toda sua efetividade. É o único modo de derrotar o pessimismo que nos paralisa e deprime.


Eduardo Rocha e George Gurgel de Oliveira: O Brasil tem urgência na vacinação

Um problema extraordinário exige uma solução extraordinária. O Brasil tem urgência na vacinação e as organizações empresarias podem ajudar. O combate eficaz à escalada colossal e fúnebre da pandemia e a defesa da vida exigem uma inédita cooperação entre o Estado, o mercado e toda a sociedade brasileira para promover a universalização acelerada da vacinação.

Propõe-se aqui que os governadores e prefeitos enviem aos seus respectivos Legislativos, de comum acordo com o governo federal e o Congresso Nacional, um projeto de lei que autorize as empresas privadas nacionais e internacionais que atuam no Brasil adquiriram vacinas já disponíveis no mercado mundial contra a Covid-19.

As vacinas compradas seriam divididas em duas partes. Uma destinada a vacinar os trabalhadores dessas empresas adquirentes e outra (cuja quantidade deve ser pactuada e ser superior às destinadas aos funcionários das empresas compradoras) seria doada ao Sistema Único de Saúde (SUS) para vacinar a população dos estados e municípios, seguindo a ordem dos grupos prioritários já definidos.

A compra de vacinas e sua aplicação gratuita aqui proposta visa salvaguardar a saúde e a vida do próprio trabalhador, garantir a continuidade da atividade econômica das empresas (a maioria delas amargando enormes prejuízos), descolapsar a rede hospitalar e atender o interesse social-humanitário da população, que clama por vacinas, enfrentando assim a tragédia sanitária, econômica e social que a sociedade brasileira está vivendo, com desdobramentos imprevisíveis.

Esta nossa proposta vai além da Lei 14.125/21, que autoriza o setor privado comprar vacinas, determina que estas doses adquiridas sejam integralmente doadas ao SUS enquanto estiver em curso a vacinação dos grupos prioritários e, após a conclusão dessa etapa, o setor privado poderá então ficar com metade das vacinas que comprar, e estas deverão ser aplicadas gratuitamente. Mas isso não está ocorrendo ou está muito lentamente e não atende de imediato aos funcionários das empresas compradoras.

Diferentemente desta Lei e de outras iniciativas legislativas (no Congresso Nacional e em algumas Assembleias) que permitem corretamente a compra pelas empresas privadas, mas restringe tal compra apenas a seus funcionários, nossa proposta é mais ampla e unificam as duas iniciativas citadas acima.

Em primeiro lugar, nossa proposta visa, salvaguardada a ordem dos grupos prioritários, a ampliação da cooperação público-privada na compra das vacinas para atender imediatamente aos trabalhadores dessas empresas compradoras, chefes de família (mulheres e homens) que diariamente se deslocam ao trabalho, correndo os riscos de contaminação no trajeto casa-trabalho-casa.

Em segundo lugar, garante às empresas manterem em pé suas atividades econômicas, pois contarão com seus trabalhadores vacinados e, por fim, que estados, municípios e setor privado, numa ação conjunta, acelerem a universalização da vacinação da população, vivifiquem as empresas e possibilitem a retomada gradual do crescimento econômico, do emprego, da renda.

Assim, a presente proposta, sem prejuízo das compras já anunciadas pelos governos federal, estaduais, municipais (e consórcios), fortalece a cooperação público-privada no Brasil em defesa da universalização acelerada da vacinação neste momento trágico de nossa história. É urgente e factível.

Sempre foi a hora suprema de o Brasil combater e eliminar o vírus que nos mata e nos envergonha mundialmente. Somos o centro de propagação e de vítimas fatais da Covid-19, cujo vírus em constante evolução produz novas e mais agressivas cepas, cuja propagação acelerada tende a abrir as portas do inferno caso se concretize a alarmante e sinistra previsão científica de Alexander Gintsburg, diretor do Centro Nacional de Investigação de Epidemiologia e Microbiologia (Instituto Gamaleya), responsável pela criação da Sputnik V, e Acadêmico da Academia Russa de Ciências.

Em entrevista ao site de notícias russas Izvestia, Gintsburg afirma que “a próxima etapa é a infecção de animais domésticos e de fazenda. E quando protegermos a humanidade com a ajuda de boas vacinas dentro de um ano, os animais de estimação estarão infectados nessa época e ninguém vai se livrar de seus amados animais de estimação.”.

Ou seja, um descontrole total da transmissão viral e a lentidão da vacinação combinadas tendem a contaminar (provavelmente com novas cepas) os animais e cujos impactos sanitários ainda estão em estudo. Imagine o impacto para o Brasil (para ficarmos nele) na produção avícola, suína e bovina. Um caos sanitário e econômico e social sem precedentes. O Brasil tem urgência na vacinação!

Os atos da nossa atual geração de brasileiros já estão registrados na história. A consciência cidadã e democrática do futuro narrarão como nós nos comportamos. As futuras gerações sentenciarão se fomos ou não capazes de unir Estado, mercado e sociedade civil em torno de um só único objetivo: salvar vidas!

A história julgará a todos nós, pelo que fizemos ou pelo que deixamos de fazer no enfrentamento do COVID-19. Ser impotente quando lhe falta arma é até compreensível, mas ser derrotado quando lhe falta à razão a boa política, é um crime, que não haverá perdão!

É possível combater e vencer a pandemia através da unidade de ação do Congresso Nacional, dos governos e legislativos estaduais e municipais, da comunidade científica, das empresas, da sociedade civil organizada, dos gestores e profissionais de saúde, da consciente participação da cidadania brasileira e da cooperação internacional.


*Eduardo Rocha (E-mail: edursj@yahoo.com.br) é economista e George Gurgel de Oliveira (E-mail: geogurgel1@gmail.com) é professor da UFBA e Vice Presidente da Câmara Brasil-Rússia de I & C e Turismo no Brasil.


Lourival Santanna: O magnetismo político que torna um país refém de seu líder

Os mais suscetíveis são os que foram menos expostos ao pensamento racional

Brasil vive a maior tragédia de sua história. A epidemia do coronavírus é um desafio de gestão, mas adquiriu tamanha dimensão no Brasil por causa da estratégia de poder do presidente. Jair Bolsonaro está aplicando no Brasil técnicas testadas por Donald Trump nos Estados Unidos. Essa abordagem encontra no Brasil condições ainda mais favoráveis do que nos EUA.

O objetivo é capturar a adesão de um contingente suficiente da população para tornar o país refém de seu líder. Não é preciso que seja a maioria, como não foi nos EUA e não é no Brasil. O mais importante é a intensidade da adesão, o grau de fidelidade.

Como o restante da população está desmobilizado e aturdido, essa minoria se torna dominante pela coesão e lealdade ao líder.

Não é uma lealdade construída sobre fatos nem sobre raciocínios lógicos, mas sobre a emoção. Para entender o cimento que une o líder e os seguidores, é preciso fazer uma analogia com a religião. Não é escolha racional. É fé. Tanto assim que parte desse contingente associa o líder a sua igreja. Outra parte segue apenas o líder político, o que torna sua fé ainda mais intensa, já que sua demanda pelo sagrado está centrada exclusivamente nele.

Da mesma maneira como a fé religiosa, a crença num líder político também se constrói com convicções que não podem ser comprovadas empiricamente. O benefício é intangível. Nas religiões, os fiéis são instados a realizar sacrifícios para provar sua fé. Essa é a chave que desconecta o seguidor da realidade material, e o eleva a uma experiência sobrenatural. Daí a necessidade de desprezar a gestão, a ciência, a estatística, o jornalismo e qualquer atividade ancorada no empírico. 

Outra analogia é com a linguagem dos sonhos. Quando sonhamos, nossas experiências do dia anterior são armazenadas em nossa memória. Enquanto assiste a esse fluxo cerebral, o inconsciente reorganiza as imagens que representam essas experiências de acordo com as emoções que elas provocam.

Os sonhos usam representações de coisas reais. Mas elas aparecem associadas de forma muito diferente da realidade. Coisas separadas no tempo e no espaço na nossa experiência real se juntam nos nossos sonhos, e adquirem significado totalmente diferente. Por serem representações do real, acreditamos na trama que estamos sonhando.

Pela história desfila uma longa linhagem de governantes que inspiraram esse fervor messiânico, do imperador romano Júlio César à dinastia Kim na Coreia do Norte, passando por Adolf Hitler, Benito Mussolini, Juan Domingo Perón, Getúlio Vargas, Fidel Castro, Hailé Selassié, Idi Amin Dada e tantos outros.

As narrativas desses líderes coletam experiências reais e as reordenam de uma nova forma, para dar aparência de lógica e legitimidade a suas posições. Seus seguidores não despertam do sonho. Passam a interpretar o mundo segundo o pensamento mágico, em que o desejo se sobrepõe à realidade, e a interpretação passa a criar o fato. 

É um giro copernicano ao contrário. É como voltar a acreditar que o Sol gira em torno da Terra (ou que ela é plana). A partir dessa inversão fundamental na ordem entre realidade e emoção, o indivíduo ingressa em um mundo paralelo.

É uma revolução. No campo político, líder e seguidor estabelecem relação direta, sem a mediação de partidos, leis, parlamento, sistema judiciário ou qualquer referência externa. É uma identificação: líder e seguidor se tornam, no plano afetivo, a mesma pessoa.

A coesão é alimentada cotidianamente por parábolas que provocam medo e raiva nos seguidores. São teorias conspiratórias que provam que o líder é um salvador ameaçado por forças malignas, externas ao seu culto.

As pessoas mais suscetíveis ao magnetismo dessa liderança são as que foram menos expostas, de forma sistemática, organizada e atraente, ao pensamento racional. Noutras palavras, as menos educadas (e não necessariamente mais pobres). Essa não é uma regra absoluta, mas estatisticamente muito consistente.

É por isso que no Brasil essa abordagem do poder tende a ter mais tração do que nos Estados Unidos, onde a penetração e a qualidade do ensino são muito maiores. Além disso, a elite americana é muito mais bem preparada do que a brasileira, e as instituições, mais sólidas.

É preciso entender tudo isso para esboçar uma resposta eficaz a esse desafio, e ao menos gerenciar o seu enorme dano. Grande parte da elite brasileira acreditou que ficaria protegida do efeito destrutivo da precariedade da educação no País. Foi preciso uma pandemia para escancarar a incongruência desse projeto.


Alexandre Sampaio Ferraz: A escalada dos impostos e o 1% mais rico do Brasil

Não resta dúvida que os mais ricos são taxados proporcionalmente menos, e não mais, como receita a teoria. E até aqui foram eficientes em imprimir sua agenda pelo fim da tributação.

Ao contrário do que diz o senso comum, o Brasil é um país pobre. A décima economia do mundo é apenas o centésimo país em renda per capita, segundo ranking de 2019 do Banco Mundial. Faturamos em média um pouco menos do que US$ 15 mil ao ano, o que mal chega a um terço da renda per capita da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). O brasileiro médio, no entanto, não passa perto dessa grana. De acordo com a Rais (Relação Anual de Informações Sociais), só 10% dos brasileiros trabalhando no mercado formal (CLT) recebem salário mais alto que este, o equivalente a R$ 5.000 por mês. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) aponta ainda que cerca de 70% dos brasileiros dispostos a trabalhar mal ganham dois salários mínimos mensalmente no trabalho principal, o que equivale a R$ 2.200 em 2021.

Os baixos salários não livram o brasileiro de pagar um dos mais altos impostos sobre o consumo do mundo, mas os livra de pagar o IRPF (Imposto de Renda de Pessoa Física) — o Brasil é o 8° país que proporcionalmente mais taxa o consumo no mundo, dos 61 países analisados pela OCDE. Não existe cidadão que não queira ganhar mais do que R$ 1.900 por mês, ou ter mais de R$ 300 mil em bens e direitos e, assim, poder pagar o IRPF. Mas nada menos do que 70% dos brasileiros estão fora do seleto grupo dos declarantes; são os isentos da Receita.

Os declarantes no Brasil se dividem em cinco faixas de renda, correspondentes às cinco alíquotas existentes. São poucas quando comparamos com os países desenvolvidos, que tendem a ter mais faixas/alíquotas de forma a maximizar a progressividade. Também temos uma das menores alíquotas máximas do mundo civilizado, 27,5%, contra uma média de 41% entre os países da OCDE. A discussão sobre a proporcionalidade das alíquotas é antiga e remonta a Adam Smith, que, no livro “A riqueza das nações”, argumentava que os cidadãos (súditos, para a época) deveriam “contribuir o máximo possível para a manutenção do Governo (...) em proporção ao rendimento de que cada um desfruta, sob a proteção do Estado”.

Taxar os cidadãos segundo sua capacidade e não com uma alíquota única tem sido uma máxima da teoria da tributação desde então. O Brasil passou a adotar o imposto de renda em 1922, e logo estabeleceu a progressividade. No ano base de 1988, ainda tínhamos nove faixas com alíquotas que variavam de 10% a 45%. Mas a minoria organizada exerceu eficientemente sua voz no novo período democrático. No ano seguinte passaram a ser apenas duas alíquotas, a maior de 25%. Em 1994, introduziu-se uma nova alíquota e a máxima subiu para 35%

Mas a grita levou a uma nova redução para duas faixas/alíquotas, com a máxima de 25%, que em 1998 passaria aos 27,5% atuais. Sem conseguir implantar a “progressividade para cima”, implantaram a “progressividade para baixo”. Em 1999, criaram as alíquotas de 7,5% e 22,5% ao lado da antiga mínima de 15%, que vigorava desde 1992. Não é simples implementar a progressividade e sobretudo taxar os mais ricos. E este não é um problema só do Brasil, como mostram Gabriel Zucman e Emmanuel Saez no livro “The Triumph of Injustice: How the Rich Dodge Taxes and How to Make Them Pay” (em tradução livre, “O triunfo da injustiça: como os ricos evitam impostos e como fazê-los pagar”), publicado nos Estados Unidos, em 2019.

Tabela de alíquotas do IRPF para cada uma das cinco faixas de rendimento

A alíquota padrão ou de referência não é, na verdade, a alíquota efetiva paga pelos declarantes. A tributação do IRPF varia também por tipo de rendimento auferido no ano, e ainda tem as isenções legais. Ocorre que justamente os mais ricos têm mais rendimentos provenientes de fontes com tributação exclusiva e isentas de imposto.

A REFORMA TRIBUTÁRIA E A ATUAL CRISE ECONÔMICA PODEM TER ABERTO UMA JANELA DE OPORTUNIDADE PARA MUDARMOS ESSE JOGO, EM DIREÇÃO A UM PAÍS MAIS JUSTO

A “alíquota efetiva”, ou o total de tributos pagos em proporção da renda total declarada, tributável ou não, deveria aumentar conforme a renda. Mas isso só ocorre até os contribuintes que declaram em média cerca de R$ 35 mil por mês em rendimentos. A progressividade pode ser vista no gráfico abaixo. O ordenamento e a alíquota efetiva foram calculados sobre a renda RB2, ou a renda tributável bruta + renda de sócio/titular + lucros e dividendos + rendimento sujeito à tributação exclusiva.

Dois gráficos mostram o rendimento da população e a alíquota efetiva cobrada dos contribuintes por faixa de renda

O recurso de imaginarmos uma escada com 100 degraus ordenando os contribuintes segundo sua renda anual declarada é sempre conveniente neste momento. Até o 15º degrau a alíquota efetiva é próxima a zero. A receita até recolheu cerca de R$ 5 milhões em impostos com os 7,5 milhões de contribuintes no primeiro quarto da escada — ou seja, com os que estão nos 25 primeiros degraus —, mas é um valor insignificante perto dos R$ 153,8 bilhões arrecadados em 2018.

A partir do 15º degrau a alíquota se eleva de forma progressiva até o 98º, o antepenúltimo. Neste patamar, os declarantes pagam entre 13,4% e 11,8% de imposto, e a alíquota é menor quando incluímos na RB2 as receitas declaradas como “outros rendimentos isentos”. Daí em diante a alíquota efetiva despenca. Os 29,8 mil declarantes no penúltimo degrau pagam em média 10,7% da renda em IRPF. Já o pessoal no clube dos 1% paga apenas 4,7% em média.

Mesmo os 1% mais ricos podem se achar injustiçados, pois enquanto os 10% mais “pobres” deste grupo pagam alíquota de 8,8% sobre a renda, os 10% mais ricos pagam uma alíquota efetiva de apenas 2,5%. A pontinha da cauda é ainda mais cruel: os 2.984 declarantes com maior renda pagaram efetivamente em 2018 apenas 1,6% em imposto sobre a renda total declarada. Não resta dúvida que os mais ricos pagam proporcionalmente menos, e não mais, como receita a teoria. E até aqui foram eficientes em imprimir sua agenda: chega de impostos! Mas a reforma tributária e a atual crise econômica podem ter aberto uma janela de oportunidade para mudarmos esse jogo, em direção a um país mais justo e com menos desigualdade.

Alexandre Sampaio Ferraz é economista, doutor em ciência política e assessor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).