crise

Mario Vargas Llosa: A derrota de Correa

 

Mais cedo que tarde, como o Equador de hoje, a Venezuela também sairá do pesadelo

No plebiscito realizado no Equador, dia 4, não foi derrotado apenas o ex-presidente Rafael Correa, que não poderá se candidatar novamente à primeira magistratura do país, mas também o chavismo e sua criação ideológica, o “socialismo do século 21”, da qual Correa foi um promotor entusiasta.

Durante os dez anos em que esteve no governo, o exuberante demagogo que alardeava seu “socialismo cristão” foi, como o comandante Daniel Ortega, na Nicarágua, Evo Morales, na Bolívia, e Fidel e Raúl Castro, em Cuba, um propagandista tenaz das políticas que destruíram a democracia venezuelana e a transformaram numa ditadura devastada pela ruína econômica, a violência repressora e a inflação.

Por sorte dos equatorianos ingênuos que o levaram ao poder, Correa não imitou todas as políticas chavistas de nacionalização de empresas, redução drástica do setor privado, inchaço do setor estatal, corroído por incompetência e roubo, e perseguição sistemática à imprensa livre e aos críticos - embora tenha golpeado de várias maneiras os empresários privados e, entre outras ações antidemocráticas, tenha criado, em 2013, uma vergonhosa Lei Orgânica da Comunicação, condenada por todas as associações internacionais de imprensa, que equivalia a uma forma de censura ao dissidente e ao crítico e deixava suspensa uma espada de Dâmocles sobre os meios de comunicação independentes. Apesar de essa lei não ser mais aplicada, ela ainda não foi revogada.

De resto, como costuma ocorrer sempre que caudilhos se instalam no poder, a corrupção também se alastrou no Equador nos anos de Correa. Apenas encerrado o plebiscito, ele teve de depor ante a Promotoria de Guayaquil, que investiga os contratos de venda antecipada de petróleo assinados pelo Equador com China e Tailândia, os quais, segundo a Controladoria-Geral do Estado, causaram graves prejuízos ao Tesouro.

Rafael Correa sentia-se muito seguro, acreditando que seu sucessor, Lenín Moreno, que havia sido seu vice-presidente, protegeria sua retaguarda. Mas Moreno nunca concordou com a reforma constitucional promovida por Correa para - à moda de Evo e Ortega - se reeleger quantas vezes quisesse.

Desde que assumiu o poder, Moreno procurou acalmar o ambiente político e propiciar uma coexistência pacífica entre as diversas forças e partidos, visando a um consenso que permitisse reformas e progresso. Essa tranquilidade, da qual se orgulha, contrasta radicalmente com o estado de sobressalto e convulsão no qual as arengas de seu antecessor mantinham o país. Não é de se estranhar que o conflito de temperamentos, ao lado das diferenças políticas, provocasse a ruptura entre Correa e Moreno.

O presidente decidiu, sob critérios democráticos, convocar um plebiscito com várias perguntas para que o povo equatoriano se pronunciasse sobre a reeleição. Os resultados foram meridianamente claros. Uma maioria inequívoca se declarou contra e uma maioria ainda mais contundente vetou o acesso a cargos do governo de pessoas envolvidas em corrupção.

Correa, que havia voltado da Bélgica para defender suas “reformas”, fez campanha por um mês inteiro pelo país, o que serviu para comprovar, pela chuva de insultos, pedras e ovos com que foi recebido em muitos lugares, a queda radical da popularidade que teve em outros tempos - em consequência, ao que parece, de um despertar do povo equatoriano para a liberdade.

É preciso comemorar esse processo, que ao lado do que ocorreu na Argentina e da mobilização popular no Brasil contra a corrupção e pela regeneração democrática, assinala uma tendência muito positiva em toda a América Latina em favor da depuração e fortalecimento das instituições.

A outra face da moeda é sem dúvida a Venezuela. Com o surpreendente apoio do ex-primeiro-ministro espanhol Rodríguez Zapatero, que sem corar de vergonha acaba de exortar a oposição a Nicolás Maduro a participar da farsa eleitoral de abril - ou seja, a pôr no pescoço a corda com que será enforcada -, o filho putativo de Hugo Chávez espera se reeleger presidente de um país em que pelo menos três quartos dos cidadãos fazem verdadeiros milagres para sobreviver a uma penúria cotidiana na qual não há comida, remédios, trabalho ou esperança, salvo para a máfia de demagogos e narcotraficantes encastelada no poder.

Para ganhar essa eleição, Maduro precisará contrariar violentamente a vontade popular. Tomara que a heroica e maltratada oposição venezuelana não se preste a dar ao pleito uma aparência de legitimidade participando dele. Nas condições atuais, não existe nenhuma possibilidade de uma eleição legítima. A comunidade democrática internacional deveria anunciar, desde já, que não reconhecerá seus resultados.

Já o plebiscito equatoriano deixa também entrever, no governo de Lenín Moreno, a esperança de que, abandonando o servil apoio que o governo de Rafael Correa deu à ditadura de Chávez e de Maduro, o Equador se una ao chamado Grupo de Lima, que há algum tempo vem mobilizando os países democráticos de todo o mundo para continuar isolando e pressionando a Venezuela para que seu governo aceite eleições verdadeiras, sob controle das Nações Unidas e da OEA, com observadores internacionais independentes. Só assim colocaremos fim a uma das mais ineptas ditaduras da história da América Latina, que em poucos anos conseguiu transformar um dos países mais ricos do mundo em um dos mais pobres.

O ocorrido na Venezuela ficará como um dos exemplos mais trágicos de suicídio político de uma sociedade. Durante 40 anos, a terra de Bolívar teve uma democracia com eleições livres nas quais eram renovados os governos e combatia resolutamente as ditaduras que naqueles anos assolavam o restante do continente. Embora nesse período houvesse corrupção, a sociedade venezuelana prosperou mais que nenhuma outra no continente.

Chávez foi um militar que traiu sua Constituição e seu Exército, sendo por este derrotado em sua tentativa golpista. Em lugar de ser indultado pela cegueira do presidente Rafael Caldera, deveria ter sido julgado e condenado pelos tribunais. Seria outra a realidade da Venezuela hoje se o povo venezuelano não se tivesse deixado seduzir pelo canto de sereia do caudilho revolucionário.

No entanto, pelo menos, ele soube reagir e agora luta com bravura pela democracia. Mais cedo que tarde, como o Equador de hoje, a Venezuela sairá do pesadelo. Tomara que aprenda a lição e esta seja a última ditadura de sua história. / Tradução de Roberto Muniz

*Mario Vargas Llosa é prêmio Nobel de Literatura


Míriam Leitão: A bomba venezuelana

A viagem de ontem do presidente Michel Temer a Boa Vista marcou o início da federalização do problema que antes estava entregue apenas a Roraima. A decisão de criar uma força-tarefa e baixar uma MP para enfrentar a crise veio da constatação de que a questão dos venezuelanos assumiu dimensão muito grande e que é preciso uma atuação conjunta de vários órgãos federais, sob o comando das Forças Armadas.

A força-tarefa vai oferecer serviço médico, alimentação e triagem na fronteira com a entrega de documentos provisórios. O governo hesitou nos últimos meses, entre agir ou não. O temor é que quanto mais efetiva for a ajuda, maior o incentivo a vir para o Brasil. Só que o peso da crise estava todo sobre Roraima. Esta é a primeira crise migratória que o Brasil enfrenta.

A economia venezuelana apresenta números de país em guerra. De 2012, ainda no governo de Hugo Chávez, até o final de 2018, o PIB per capita terá encolhido 50%, pelos cálculos da consultoria Econométrica. Este será o quinto ano de queda. Isso jamais aconteceu no país, mesmo durante os dois conflitos do século XIX, a guerra da independência e o tumulto civil conhecido como a Guerra Federal, conta o economista venezuelano Ángel García Banchs, sócio da Econométrica, que há seis meses deixou o país para ir morar na Espanha. Hiperinflação, que pode ter sido de 3.000% no ano passado, desemprego em massa e desabastecimento crônico estão produzindo a maior onda de refugiados venezuelanos da história. A Colômbia, primeiro destino, está restringindo a entrada. O Brasil vem recebendo cada vez mais.

Uma pesquisa feita em Boa Vista, no final do ano passado pelo Instituto Unama, perguntou a 626 pessoas se o entrevistado “considera o povo venezuelano amigo do brasileiro", 61% disseram “não", chegando a 70% na faixa de renda acima de cinco salários mínimos. A maioria admite que nem conversa com os refugiados e responsabiliza os venezuelanos pelos problemas de Boa Vista. Eles dizem que o estado brasileiro não deveria ajudá-los financeiramente e 66% pensam que não deveria ser permitida a entrada de novas pessoas do país vizinho.

O economista venezuelano explica que a economia não apenas está encolhendo; ela cai em queda livre.

— Em 2017, o PIB encolheu 13%, pelas previsões, e vai cair algo como 15% neste ano. É um dado de guerra, e é assim que a situação vai terminar, com a mais primitiva de todas as soluções. A saída para o problema não será interna — diz García.

O governo de Maduro antecipou as eleições presidenciais para 22 de abril. A oposição não sabe se concorrerá. O calendário eleitoral pode estar por trás do movimento recente do governo de reacender a discussão territorial com a vizinha Guiana. A questão vem desde o século XIX, quando a área foi adquirida pela Grã-Bretanha. Recentemente, a Exxon encontrou petróleo no litoral da Guiana. Como este é o único assunto que une governo e oposição, o Brasil teme o conflito na nossa fronteira.

A Econométrica apura um índice de escassez no país. A taxa estava em 55% em janeiro. Faltam, principalmente, alimentos. No caso de azeites e óleos, o desabastecimento chega a 89%; nos peixes, a taxa está em 87%. A falta de pães, cereais, leite, queijo e ovos é de 80%. A Venezuela importa praticamente tudo, e estão faltando dólares. As reservas internacionais estão em queda. O país atrasa pagamentos de dívidas desde o ano passado e tem hoje menos de US$ 10 bi em caixa. A produção de petróleo, que responde por mais de 90% dos ingressos internacionais do país, caiu 20% no ano passado, uma redução de 300 mil barris. A estatal PDVSA atrasou pagamentos e fornecedores deixaram de prestar serviços ou fecharam as portas. O país, assim, passou a conviver com o êxodo de seus cidadãos.

— Primeiro, foram os profissionais mais talentosos e bem preparados. Agora, estão indo pessoas de todas as idades e formações. Algo como 6 milhões de venezuelanos devem deixar o país neste ano, gente que foge da fome e busca abrigo nos países da região, especialmente na Colômbia. O problema não é só da Venezuela, é tão grande que se tornou um tema internacional — diz García. A Venezuela tem 31 milhões de habitantes.

Essa é a bomba que está armada na fronteira com o Brasil.

 


Mauricio Huertas: Hoje só nos resta desejar: Feliz 2019, Brasil!

Num 2017 que termina com o tal “insulto” natalino do presidente Michel Temer para um terço dos condenados na Lava Jato; com a liberação de um sorridente mensaleiro (Henrique Pizzolato, aquele que fugiu do Brasil se passando pelo irmão morto), juntando-se a outros indultados famosos, como José Dirceu, José Genoíno eJoão Paulo Cunha; com o mercado comemorando um reaquecimento ínfimo (que beneficia os investidores da bolsa, enquanto para o trabalhador o desemprego volta a subir, em plena época natalina); com a demissão de um ministro do Trabalho que ninguém sabe quem é (e a entrada de outro, idem!), isso num ano em que se aprovou uma reforma trabalhista e se discute a reforma previdenciária; só nos resta mesmo desejar aos brasileiros um Feliz 2019!

Se já sabíamos que entraríamos num período de transição no pós-impeachment de Dilma Rousseff, este 2018 será o auge desse rito de passagem. Com o agravante de uma eleição presidencial determinante, mas completamente imprevisível, num cenário de descrença generalizada nas instituições democráticas e republicanas, e um porto nada seguro para o novo ciclo que se iniciará com o resultado a ser proclamado em outubro de 2018.

O calendário do ano novo (novo?) está posto, com aquela estranha sensação de déjà vu logo na sua chegada: manifestações contra o aumento de 20 centavos no transporte público de São Paulo estão marcadas para 11 de janeiro (onde certamente teremos a monótona repetição de cenas de depredação e violência); além do julgamento de Lula em segunda instância no dia 24 de janeiro – e isso nos remete ao início deste texto, quando mencionamos o indulto concedido aos bandidos do Mensalão e da Lava Jato. Teremos afinal a condenação do chefe dessas duas quadrilhas? Ele estará afastado das eleições? Vai recorrer para sair candidato? Será preso ou responderá em liberdade?

Mas isso é só o começo de janeiro, neste ano (de novo: novo?) que entramos com ranço dos anos 70 e 80: afinal, temos Paulo Maluf e José Maria Marin atrás das grades; enquanto Jair Bolsonaro e Lulalideram livres, leves e soltos as pesquisas de intenção de voto. Nada mais emblemático destes velhos novos tempos. O que mais virá por aí entre o Carnaval, logo no início de fevereiro, a Copa do Mundo no meio do ano, seguida pelas campanhas eleitorais, a eleição em si e… 2018 vai voar!

De todo modo, será uma boa chance para a (re)definição dos campos partidários e talvez até para o necessário surgimento de novas lideranças. Crise é oportunidade, diz a sabedoria milenar. Esse último suspiro do (des)governo Temer – na súbita e típica melhora do paciente terminal antes da morte – pode clarear um pouco o horizonte político ao atrair para o seu entorno oportunistas de todas as matizes que se reunirão para dilapidar o que resta da máquina estatal. Do lado oposto, o vitimismo dos que construíram a narrativa do golpe e o queremismo redivivo do pai dos pobres.

Isso abre um flanco estratégico para uma candidatura equidistante do governo e da oposição tradicional, ambos comprovadamente quadrilheiros e indesejáveis para o país que desejamos construir para o futuro – e que aí sim poderemos estufar o peito e encher a boca para bradar: UM BRASIL NOVO! Renovado, reformado, recuperado, reestruturado, reconstruído.

Sem os Malufs e Marins, sem os Temers e Lulas, sem os Bolsonarosou Meirelles, políticos vetustos com novos disfarces, que tentam esconder a velha política com as suas práticas obsoletas, deletérias e condenáveis. Não precisamos de mais do mesmo! Basta de indultos aos maus políticos! Basta da complacência da sociedade com tudo aquilo que empurra o Brasil para o buraco, que arrasa com a nossa esperança por dias melhores e que coloca em risco a nossa jovem estabilidade democrática.

Se queremos felizes 2019, 2020, 2021 (…) precisamos construir isso nos próximos meses. Não vamos delegar aos mesmos enganadores e exterminadores de sonhos, o nosso futuro. Vamos assumir a nossa responsabilidade e exercer o nosso protagonismo para forjar a mudança que desejamos. Vamos criar, inovar, fazer nascer e crescer um novo Brasil! Já!

Mauricio Huertas, jornalista, é secretário de Comunicação do PPS/SP, diretor executivo da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), líder RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), editor do Blog do PPS e apresentador do #ProgramaDiferente

 


Míriam Leitão: Duas cabeças

O governo está dividido sobre o que fazer diante da crise do Rio Grande do Norte, mas só existe um caminho: o de cumprir a lei. Não é possível seguir a cabeça dos ministros políticos e do ministro do Planejamento, que estão se esforçando para atender ao pedido do governo estadual. Existe uma lei de recuperação fiscal, que estabelece regras, e só através dela se pode dar ajuda federal.

Foi esse caminho que o Rio de Janeiro seguiu. É doloroso, difícil, mas é isso que está na lei. A própria legislação que estabelece a forma de socorrer estados em crise foi uma concessão. Ela cria uma espécie de monitoramento das contas estaduais pelo governo federal e faz exigência de que o estado, antes de ser ajudado, se enquadre em um programa de recuperação das contas públicas. No Rio, os funcionários ficaram o ano inteiro com seus salários atrasados enquanto o governo tentava aprovar o programa de recuperação que previa cortes de gastos, aumento da contribuição de funcionários e a privatização da Cedae. Há percalços, até judiciais, mas o fato é que o Rio vem tentando conseguir formas de se enquadrar na lei de recuperação. O mesmo acontece com o Rio Grande do Sul.

Se o governo quiser transferir recursos para o Rio Grande do Norte para que o governo estadual pague os salários atrasados, estará desrespeitando a Lei de Responsabilidade Fiscal, que veda este tipo de socorro. É isso que internamente tem dito a secretária do Tesouro, Ana Paula Vescovi. Oficialmente, o Ministério da Fazenda vetou a ajuda de R$ 600 milhões, depois que ouviu do Tribunal de Contas que a ajuda seria inconstitucional.

É crime pela LRF transferir recursos aos estados sem que eles se enquadrem em um programa de recuperação. Além disso, é quebra da isonomia federativa. Se ajudar um estado, terá que transferir recursos para todos os outros. No dia em que, neste ponto, vencer a ala gastadora do governo, haverá outros 26 governadores na porta do Palácio do Planalto querendo recursos. E é bom lembrar que este é um governo que enfrenta uma enorme crise fiscal e que está com déficit primário nas suas contas.

Em qualquer governo, há divisão entre os gastadores e os que querem manter, em maior ou menor grau, o controle de gastos. Desta vez, a cisão é ainda pior e parece haver, na prática, dois governos Temer, tal a distância que está se abrindo entre um lado e outro. Um deles tem resultados a mostrar porque controlou o pior da crise econômica, já reduziu fortemente a inflação, e esta semana mesmo mostrou melhora de arrecadação e até um superávit primário nestes tempos difíceis de déficits sequenciais. Há outra parte que repete a fórmula da gastança e do toma-lá-dá-cá que o ministro Carlos Marun explicitou esta semana ao defender o uso político dos recursos da Caixa como se fosse natural e apenas “ações de governo”.

O Congresso depôs a presidente Dilma exatamente por não cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal e por usar politicamente os recursos dos bancos públicos. Se cada disputa interna continuar sendo vencida pela ala que acha que os limites legais são meros detalhes que podem ser contornados, o perigo é enorme. Não para o governo, mas para o país, que tem uma situação fiscal desastrosa e vive uma recuperação econômica frágil.

O Rio Grande do Norte está em uma crise social e de segurança de grandes proporções, com os policiais e os bombeiros aquartelados e em greve há uma semana. No Espírito Santo, houve um motim da PM, deflagrado apesar de os salários não terem atrasado. O governo capixaba enfrentou o problema e ele foi resolvido sem a ajuda financeira do governo federal. Não há outra saída a não ser avisar ao governador potiguar que ele tem que propor um programa de ajustes dentro da Lei de Recuperação Fiscal e só depois disso começará a ser discutida a ajuda federal.

O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que foi rigoroso com o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, não pode se ausentar nesta discussão. E neste assunto ele tem que pensar com a cabeça de ministro das finanças e não como possível futuro candidato. O governo federal tem que ter a cabeça na lei que aprovou e sancionou, e não em interesses políticos momentâneos.

 


Demétrio Magnoli: Duas filas em Iribarren

No domingo, duas filas formaram-se em lados opostos de uma rua de Iribarren, na periferia de Barquisimeto (Venezuela). Numa delas, as pessoas votavam em eleições municipais boicotadas pelos maiores partidos oposicionistas. Na outra, registravam-se para receber o Carnet de la Patria, cartão de benefícios sociais oferecidos pelo governo. Um dia depois, o presidente Nicolás Maduro anunciou que os partidos boicotadores perderiam o direito de concorrer em eleições futuras, a começar pelas presidenciais de 2018. Não se ouviu uma palavra de protesto de Lula, Dilma Rousseff, Guilherme Boulos ou algum dos ícones intelectuais da esquerda brasileira.

A troca direta da ajuda oficial pelo voto é uma antiga estratégia do regime chavista. Porém, desde dezembro de 2015, quando a oposição obteve vitória avassaladora nas eleições legislativas, o governo sabe que nunca mais triunfará em eleições livres. Nos pleitos estaduais, Maduro apelou à intimidação e à fraude generalizadas. Mas o recurso tem limites, definidos pelo colapso da economia. O PIB contrairá 12% em 2017, mais que em países sob guerra civil como a República Democrática do Congo. A inflação anualizada ultrapassa 800% e, em 2018, deve romper a barreira de 2.000%. Proibindo a ação política da oposição, o chavismo prepara-se para reprimir uma temida revolta popular. O argentino Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz no longínquo 1980, reproduz o discurso de Maduro, justificando a ditadura pelo álibi previsível: as “agressões do império norte-americano”.

“Eles desaparecerão do mapa político”, proclamou Maduro, referindo-se aos partidos de oposição. Para todos os efeitos práticos, o chavismo converte-se em regime de partido único. É Cuba 2.0 — só que sem Fulgencio Batista, revolução ou Guerra Fria. Na Nicarágua, em julho, diante do Foro de São Paulo, uma articulação de partidos da esquerda latino-americana, a presidente petista Gleisi Hoffmann garantiu “apoio ao presidente Maduro”. Logo depois, o PSOL emitiu nota de “solidariedade à revolução bolivariana” na qual, sinistramente, avisa que “não há meio-termo”. A esquerda latino-americana acostumou-se a celebrar ditaduras em nome da utopia. Na Venezuela, aprende a descartar a utopia, ficando apenas com a ditadura.

Cuba foi a última experiência da utopia comunista: a abolição da propriedade privada, pelo controle estatal dos meios de produção. A Venezuela chavista, uma Cuba sem utopia, não almeja abolir a propriedade privada, mas conservá-la como privilégio restrito aos empresários que circundam o poder — a “boliburguesia” (burguesia bolivariana) — e às empresas estrangeiras conectadas ao regime, como a Odebrecht, financiadora de campanhas de Hugo Chávez e Maduro. A solidariedade ao chavismo não representa uma recuperação tardia da utopia econômica e social comunista, mas um sinal de adesão ideológica ao sistema de partido único. Os líderes do PT e do PSOL, e os intelectuais de esquerda que os acompanham, estão dizendo que aboliriam a democracia, se pudessem.

Maduro conserva o poder graças à aliança tecida entre o chavismo e a cúpula das Forças Armadas. O regime fracassou absolutamente no domínio da economia, mas obteve um sucesso decisivo na incorporação dos militares ao mais lucrativo dos negócios estatais: a importação e distribuição de alimentos. As operações de arbitragem entre as taxas de câmbio controlado e subterrâneo proporcionam lucros fabulosos, que asseguram a lealdade militar. O regime “cívico-militar”, caracterização precisa utilizada por Maduro, assenta-se sobre o desastre econômico e o desvio legalizado de recursos públicos. Autoritarismo e corrupção formam as faces complementares do chavismo crepuscular. A “revolução bolivariana” dos nossos intelectuais de esquerda assemelha-se cada vez mais às ditaduras militares clássicas da América Latina.

A moderna social-democracia europeia nasceu no rescaldo da Revolução Russa. A implantação do regime de partido único na Rússia Soviética ensinou os social-democratas a repudiar o poder monolítico. Os comunistas europeus resistiram a aprender a lição. Em 1974, bem depois da morte de Stalin (1953) e das invasões soviéticas da Hungria (1956) e da Tchecoslováquia (1968), o filósofo ex-comunista polonês Leszek Kolakowski recordou, enfastiado, ao historiador marxista britânico Edward P. Thompson que “esse esqueleto nunca voltará a sorrir”. Por essa época, Enrico Berlinguer, líder do Partido Comunista Italiano, concluía sua ruptura com Moscou, anunciava o “eurocomunismo” e comprometia-se com o princípio da pluralidade política. A tragédia na Venezuela prova que nem mesmo a falência de Cuba abriu uma fresta na caverna histórica da esquerda latino-americana.

As duas filas simétricas de Iribarren descrevem o horizonte distópico no qual se movem o PT e o PSOL. A primeira, metáfora do partido único, registra uma persistente aversão às liberdades públicas. A segunda, metáfora da economia política do chavismo, denuncia um projeto de controle estatal sobre os indivíduos. O esqueleto não sorri, mas funciona como marcador ideológico e moral: Maduro é um cortejo.

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Demétrio Magnoli é sociólogo

https://oglobo.globo.com/opiniao/duas-filas-em-iribarren-22187501


Luiz Carlos Azedo: O passado e o futuro

Os elos entre o passado e o presente no Brasil são cheios de surpresas e singularidades. Vejamos, por exemplo, o caso do populismo. As forças que resistiram ao regime militar somente tiveram êxito porque recusaram a centralidade do Estado e buscaram reforçar e organizar a autonomia da sociedade civil na luta pelo restabelecimento da democracia. Feita a transição, porém, mesmo após a Constituinte, o patrimonialismo, o clientelismo e o fisiologismo, que sobreviveram a duas modernizações autocráticas, continuaram firmes e fortes e o velho populismo renasceu das cinzas depois do fim da “guerra fria”.

Tanto um quanto outro, porém, entraram em crise com a globalização e as novas relações do Brasil com o mundo em transformação, que cobram uma mudança nas relações entre o Estado e a sociedade. Um novo ciclo está se fechando, mas o novo ainda não se abriu, seja por causa desses laços com o passado, seja em razão de que a nova agenda do país não foi construída. Por onde passa essa agenda? Em primeiro lugar, pela transnacionalização das nossas cadeias produtivas e integração competitiva à economia mundial; em segundo, por um novo pacto entre o Estado, o mercado e a sociedade, no qual a modernização não se dê à custa de mais exclusão e desigualdades regionais; terceiro, pela renovação política e fortalecimento da nossa democracia representativa, o que não é uma tarefa fácil diante das mudanças em curso e da emergência das redes sociais e a crise ética dos partidos.

Esse novo cenário faz com que os sinais sejam trocados. Forças que desempenharam um papel democrático e transformador, com as mudanças em curso, ao se oporem a elas, não no sentido da sua forma específica apenas, mas ao rumo geral, acabam se colocando no papel de elementos reacionários e conservadores, num contexto delicado da vida nacional, em que estamos saindo com êxito de uma das mais graves recessões da nossa história, graças a um governo eficiente do ponto de vista da economia e das relações com o Congresso, mas que opera mais uma modernização sem ser moderno e não goza de popularidade por causa da crise ética.

É neste contexto que vamos às eleições de 2018. Por circunstâncias muito singulares, a coalizão que aprovou o impeachment da presidente Dilma Rousseff, formada por forças que participavam do antigo governo e da oposição, não consegue se reproduzir como uma alternativa unificada de poder. É curto o prazo que lhes resta para isso. As alternativas postas com mais vigor para a sucessão do governo Michel Temer representam uma recidiva de tendências populistas de direita e de esquerda, um anacronismo em relação não ao futuro próximo, mas ao próprio presente. Tanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto o deputado Jair Bolsonaro (que está de saída do PSC para o Patriotas) defendem modelos que se baseiam no fortalecimento do capitalismo de Estado e em velhas teses nacional-desenvolvimentistas. Ambos desdenham da democracia representativa, da liberdade de imprensa e da autonomia da sociedade civil.

Diferenças históricas

Por que será, então, que propostas mais comprometidas com a democracia e as mudanças que o país exige não conseguem se apresentar novo processo como alternativa de poder, ainda? Por dois motivos. Um é a crise do PSDB, que somente agora vê uma luz no fim do túnel, com a eleição do governador Geraldo Alckmin à presidência da legenda, mas que não conseguiu ainda se impor ao conjunto das forças que apoiaram ao impeachment como alternativa real de poder. De certa forma, muito mais do que unir um partido fragilizado pelo envolvimento de alguns de seus líderes mais expressivos na Operação Lava-Jato, com forte repercussão eleitoral em alguns estados, falta ao virtual candidato do PSDB à Presidência da República um projeto político de modernização do país que combata as desigualdades e a exclusão e seja capaz de empolgar a sociedade.

O segundo motivo é o governo de transição. Não somente devido ao enorme desgaste causado pelo envolvimento de alguns dos seus principais ministros na Operação Lava-Jato, mas por causa das divergências entre Temer e seus aliados e os tucanos paulistas, que acabam de desembarcar do governo. Por mais cordiais e cavalheirescas que sejam as relações entre o presidente e o governador paulista, essas divergências são de natureza histórica: em princípio, o PSDB nasceu para negar o PMDB. Mas também não é isso que impede a aliança. É a vontade de Temer e seus aliados de terem seu próprio candidato em 2018, de preferência o próprio, bafejado pelo sucesso de suas reformas, quiçá a da Previdência, por indicadores econômicos como as menores taxas de inflação e de juros em décadas.


Merval Pereira: Democracia em crise

O economista Eduardo Giannetti da Fonseca defendeu ontem, em palestra na Academia Brasileira de Letras (ABL), que o patrimonialismo que domina o Estado brasileiro é a principal causa da disfunção de nossa democracia e, por isso, a Operação Lava-Jato tem importância como a principal ação corretiva de uma situação que predomina desde que o Brasil foi descoberto pelos portugueses.

O painel de que ele participou, dentro do ciclo “Brasil, brasis” da ABL, tinha o título genérico de “Crise e metamorfose da democracia” e foi coordenado pela escritora e acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira. Ao apresentar os participantes, Giannetti e o ex-presidente do Supremo Ayres Britto, Rosiska ressaltou a atualidade do tema do debate, já que a democracia estava em xeque em várias partes do mundo, devido à falta de credibilidade dos políticos e à sensação de que eles não representam os cidadãos.

Ela lembrou que nas últimas eleições pelo mundo a radicalização política foi a tônica, levando à eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e ao aumento de votação em partidos extremistas, à esquerda e à direita, em diversos países da Europa. Outro aspecto ressaltado por Rosiska é o fenômeno, disseminado pelo mundo, do voto de protesto, que se reflete no aumento dos votos brancos e nulos e o não voto, com o aumento das abstenções.

São tendências já sentidas no Brasil com o aumento gradativo dos votos brancos e nulos nas últimas eleições, inclusive a mais recente, para governador do Amazonas, quando votos brancos, nulos e abstenções registraram quase 50%.

Para Giannetti da Fonseca, o patrimonialismo brasileiro tem sua origem na formação de nosso país. Ao contrário dos Estados Unidos, país que foi organizado pelos e para os imigrantes que lá chegaram, o Brasil, segundo Giannetti, foi criado para abrigar a Coroa portuguesa, e até hoje o Estado serve aos governantes. Ele vê essa tensão entre o governo e a sociedade num ponto à beira de uma ruptura e disse que não se espantará se chegarmos num momento revolucionário desencadeado por uma fagulha qualquer, como em 2013, quando uma campanha contra o aumento do preço dos ônibus desencadeou um movimento popular que encurralou o governo Dilma.

Outro ponto de quase ruptura, na sua análise, foi a campanha de 2014, quando Marina Silva, a quem apoiava, tornou-se candidata devido à tragédia que matou o ex-governador Eduardo Campos, e quase teve condições de desbancar a polarização entre PT e PSDB, cujos candidatos afinal foram para o segundo turno.

Esse rompimento só não se deu, segundo Eduardo Giannetti, devido a uma campanha de violência inaudita contra Marina, cuja presença na disputa teria uma característica disruptiva, interrompendo uma situação política tradicional que dominava a disputa eleitoral brasileira há 23 anos.

Segundo Giannetti, a Operação Lava-Jato, por si só, não tem condições de alterar essa cultura patrimonialista, mas as eleições de 2018 têm condições para isso, caso a sociedade as utilize para forçar uma mudança de paradigma, que seria consolidada com uma reforma política.

O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Britto, outro palestrante do painel, mostrou-se mais otimista na manutenção de nossa democracia, que, segundo ele, está em crise, mas em metamorfose, parafraseando o título geral do debate, que era “Crise e metamorfose da democracia”.

Para Ayres Britto, o ponto de inflexão foi o julgamento do mensalão, que ele presidiu no Supremo. A partir dali, teria sido aberto um caminho para concretizar a máxima de que todos são iguais perante a lei. O ex-presidente do Supremo utilizou-se da Constituição de 1988 para defender uma visão otimista do futuro do país, garantindo que é possível encontrar-se no texto constitucional a solução para todos os problemas que afligem nossa democracia.

 

 


Gaudêncio Torquato: Rejeição à política tradicional

A crise da democracia representativa, decorrente de certos fenômenos como o declínio das ideologias, o desânimo dos eleitores, a pasteurização dos partidos, a perda de prestígio dos mandatários e o enfraquecimento das oposições, tem propiciado a rejeição à política tradicional e o florescimento de novos polos de poder.

A rejeição social aos velhos costumes políticos assume proporções tão significativas que chegam a abalar, até, os alicerces das instituições do Estado, a partir dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), que passam a receber sérios questionamentos por parte da sociedade.

Dessa constatação, emerge importante questão: protagonistas rejeitados e mal avaliados, principalmente quem detém mandato popular, poderão recuperar seus vetores de força a ponto de repor a confiança das massas eleitorais? Vejamos.

Convém inicialmente lembrar ser impossível apagar da noite para o dia uma taxa de rejeição, principalmente quando ela é alta.

O que vem a ser esse repúdio e qual a origem dessa indignação?

Trata-se de uma predisposição negativa que os cidadãos desenvolvem e mantêm acesa em relação a determinadas figuras públicas. Para compreendê-la melhor, há de se veri¬ficar a intensidade da rejeição dentro da fisiologia de consciência do eleitorado.

O processo de conscientização leva em consideração um estado de vigília do córtex cerebral, comandado pelo centro regulador da base do cérebro e, ainda, a presença de um conjunto de lembranças (engramas) ligadas à sensibilidade e integradas à imagem do nosso corpo (imagem do EU), e, ainda, lembranças perpetuamente evocadas por sensações atuais. Portanto, a equação aceitação/rejeição se fundamenta na reação emotiva de interesse/desinteresse, simpatia/antipatia.

Extensões da maldade
Pavlov se referia a isso como reflexo de orientação. A rejeição tem uma intensidade que varia de pessoa para pessoa.

Figurantes que são ou foram objeto de tiroteio por parte da mídia, principalmente a televisiva, são os mais prejudicados. Eles integram o manual da maldade, tornam-se extensões do território da ilegalidade e, nessa condição, passam a ser demonizados.

Há casos clássicos de políticos que vestiram o figurino da bandidagem. Com o passar do tempo, alguns conseguiram limpar a camada de sujeira que cobria seus perfis.

Ademar de Barros (1901-1969), ex-prefeito e ex-governador de São Paulo, ex-candidato à presidência da República, em 1955 e 1960, exerceu grande influência no Estado-líder da Federação. Colou nele a marca “rouba, mas faz”.

Orestes Quércia, ex-governador de São Paulo, deixou uma imagem não muito asséptica.

Paulo Maluf, que sempre teve altos índices de rejeição, passou a administrar o fenômeno com muito esforço. Mudou comportamentos. Tornou-se menos arrogante, o nariz levemente arrebitado desceu para uma posição de humildade e começou a conversar humildemente com todos. Hoje, perambula pelo universo político e se dá bem com os jornalistas. É um caso de sobrevida na política. Foco de Procuradores que o acusam de ter feito fortuna com recursos obtidos ilegalmente, ele se resguarda sob o mantra: “não tenho dinheiro no exterior; quem achar conta minha no exterior pode ficar com o dinheiro”.

Erros e rejeições de adversários também contribuíram para ate¬nuar a predisposição negativa contra ele. Purgou-se pelos pecados mortais dos outros. “Ruim por ruim, vou votar nele porque ele fez coisas”, pensam seus contingentes eleitorais.

Pesquisar as causas
Em regiões administradas pela velha política, a rejeição a determinados candidatos se soma à antipatia, ao familismo e ao grupismo.

O fato é que diante de uma paisagem assolada por escândalos e denúncias, as massas passam a se manifestar de forma aguda, mantendo a disposição de se libertar de candidaturas impostas e nomes envolvidos em negociatas de propinas.

Mas não se pense que o caciquismo se restringe a grupos familiares. Certos perfis, mesmo não integrantes de feudos políticos, expressam a imagem de antipatia, ora pelo ar de arrogância, ora por um estilo ortodoxo de fazer política ou, ainda, por se vestirem com o manto do oportunismo.

Na atualidade, em quase todas as regiões, há perfis com altos índices de rejeição, comprovando que os eleitores, cada vez mais racionais e críticos, intencionam passar um arado para derrubar a cerca de currais eleitorais.

Isso explica a eleição de candidatos que expressam o sentido do novo, como se viu, por exemplo, no Maranhão, onde Flávio Dino venceu a família Sarney.

A rejeição pode ser atenuada quando o protagonista penetra fundo na origem dos problemas que consomem sua imagem. Para tanto, é oportuno usar as ferramentas adequadas, como pesquisas qualitativas, que poderão mostrar como e porque os grupos sociais o rejeitam.

Nesse momento, deve-se enfrentar com coragem o uso do espelho, onde ele, o ator político, vai descobrir as manchas que sujam sua feição: atitudes pessoais, jeito de encarar as massas, oportunismo, mandonismo, autoritarismo, orgulho, vaidade, arrogância, desleixo, desprezo pelas demandas sociais, cooptação à moda antiga, abuso do poder econômico, história política negativa, envolvimento em escândalos, ausência de boas propostas, descompromisso com as regiões etc.

Para enfrentar essa trilha de obstáculos, os figurantes hão de gastar muita sola de sapato. Não se apaga índice de rejeição com meia dúzia de providências. Trata-se de uma mudança de estilo de fazer política.

Trabalhar com a verdade – esse é o ponto-chave para se começar a administrar a taxa de rejeição. O eleitor distingue factóides de fatos políticos, de boas e más intenções, propostas sérias de coisas enganosas.

O candidato há de montar no cavalo de sua própria identidade, melhorando as habilidades e procurando atenuar os pontos negativos.

É erro querer mudar de imagem por completo, passar uma borracha no passado e usar cosmética em demasia.

Urge mudar sem riscos, sem mudanças constantes e bruscas, de acordo com a sabedoria da velha lição: não ganha força a planta frequentemente transplantada.

* Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação.

 


Mario Cesar Flores: Transição atribulada

A crise que flagela o país é mais uma da turbulenta evolução pós-1930: aumento da população - de 40 a 207 milhões, hoje a 5ª população do mundo -, industrialização acelerada e urbanização desordenada.

Da revolução de 1930 até hoje vivemos dois períodos autoritários -1937-45 e 1964-85 -, o segundo com guerrilha rural e urbana; a revolução paulista de 1932, a intentona comunista de 1935 e o putsch integralista de 1938; participação na 2ª GM contra o Eixo, depois de discreto flirt com o fascismo; suicídio de um Presidente; renúncia de um Presidente e resistência à posse do Vice, resolvida por uma pífia experiência parlamentarista; impedimento de dois Presidentes; quatro (!) constituições; forte ingerência estatal na economia; surtos de inflação e seus planos salvacionistas; três (!) trocas de moeda; protecionismo chauvinista e sua política de substituição das importações; organização do trabalho e sindical à sombra do Estado; greves danosas à vida nacional; aumento da violência e criminalidade e por ai vai...

Um mosaico de atribulações contaminadas por inquietação institucional e conflitos políticos, pela guerra fria, pela ofensiva global do socialismo, pela fantasia terceiro-mundista, pela integração econômica global e pela ilusão mística do populismo. A condução política da atuação direta do Estado (saúde, educação, segurança...) ou normativa, indutora e fiscalizadora (economia) não respondeu aos desafios da transição tumultuada.

A responsabilidade cabe basicamente à condução política, com um complemento que agrega culpados: na evolução demográfica a qualidade não acompanhou a quantidade. Houve pequena - se tanto - melhora na educação elementar da base da pirâmide social, mas o preparo para a cidadania continuou precário. E nos extratos médio e superior predominou a especialização coerente com o desenvolvimento; a cultura retraiu, sobretudo na política. É esse perfil de consciência cidadã que - ressalvados os períodos autoritários - escolhe os atores do nosso melancólico enredo político.

Além de não cercear vícios tradicionais - patrimonialismo, clientelismo e corrupção -, a constituição de 1988 permitiu outros. Em evidência: instituiu um modelo de federação indutor da vassalagem financeira à União. Moldou uma sistemática político-eleitoral que vem gerando ficções partidárias sem consistência, unidas ou em conflito mais por recursos e cargos do que por idéias; o trato pelos deputados, da denúncia contra o Presidente, reflete essa conduta capenga: embora não se tratasse de julgamento de mérito, é moralmente frágil a decisão política depender do escambo (voto x interesse) à revelia da convicção de culpa ou inocência.

Manteve o Estado gigante na economia - e corrupto na proporção do gigantismo. Consolidou um modelo de walfare state (nele a previdência) incompatível com a realidade fiscal da União, Estados e Municípios. Concedeu ao serviço público o direito à sindicalização e à greve, dotando a máquina do Estado gigante com condições legais para pressionar por vantagens alheias à lógica fiscal e ao quadro salarial brasileiro, para resistir à redução do gigantismo estatal, que lhe é conveniente. E citado aqui porque afeta a crise atual, sobrecarregou o STF, corte constitucional, com ações penais de nosso imenso foro privilegiado.

Nos 1930 foi fácil ao poder revolucionário extinguir o carcomido Estado da república velha e sua democracia oligárquica. Está sendo difícil corrigir hoje vícios e equívocos da república de 1988, respeitado o paradigma constitucional, a ser respeitado, mas não usado para proteger interesses - a exemplo desse paradoxo insólito: o reflexo eleitoral da posição do congressista em correções ditas impopulares o leva a se manifestar contrário ao interesse do país, à solução de problemas que projetam um futuro dramático. O povo acredita nas retóricas interesseira ou populista que minimizam as correções a título de protegê-lo, ou não se interessa por conhecê-las e entendê-las – as alternativas da sistemática eleitoral, por exemplo.

O padrão das reformas vai pautar o país que teremos e isso preocupa. A lassidão cultural e a política brasileira cujo desempenho não acompanhou (léxico tolerante...) a complexidade crescente do país, já sugerem naturalmente a improbabilidade de mudanças que de fato atendessem a necessidade. E o tumulto político e institucional que estamos vivendo cria situações em que o interesse nacional é superado pelo político, paroquial e pessoal – problema bem refletido na deprimente (para a democracia) idéia de que será difícil “tocar” a previdência porque o governo já gastou sua “gordura” no escambo das denuncias contra o Presidente.

Mas se a despeito dessas dificuldades o saldo do processo reformista for satisfatório, ainda que não o improbabilíssimo ideal, o país estará mais capacitado para superar as atribulações da longa transição histórica de país rural com democracia oligárquica para país urbano, industrializado e com a 4ª democracia de massa do mundo. Ter-se-á evitado a continuidade da perda da fé na democracia, e do correlato crescimento da esperança - de que já existem sintomas e manifestações simpáticas - em alternativas messiânicas à direita e à esquerda, sancionadas pelo voto desiludido com o stato quo e iludido por fantasias populistas e salvacionistas ou seduzido por visões redentoristas até nostálgicas.... Inclusive alternativas messiânicas populares, que não seriam novidade histórica: aferido pelo apoio do povo o Estado Novo carismático de Getúlio Vargas teria sido uma ditadura popular...

A pergunta que se impões no fim de texto da natureza deste é: as reformas possíveis serão satisfatórias? Os interesses influentes nos partidos e a turbulência política que provavelmente se estenderá no canário eleitoral de 2018 não inspiram muita esperança.

(*) Mario Cesar Flores é almirante-de-esquadra brasileiro. Foi ministro da Marinha no governo do presidente Fernando Collor de Mello.


Eliane Cantanhêde: O Rio de Janeiro chora

Governadores, secretários, deputados, membros do TCE, empresários... Quem escapa?

Aos que até hoje condenam a transferência da capital da República, ironizam a “ilha da fantasia” e imaginam que Brasília é a origem de todos os males e o centro da corrupção brasileira: já imaginaram se a capital continuasse no Rio de Janeiro?

A Lava Jato explodiu esquemas em vários Estados do País, inclusive no DF, mas nada tão avassalador quanto no Rio, pela abrangência, pelos valores e pela diversidade de órgãos, partidos, personagens. Onde o MP, a PF e a Justiça mexem, há escândalos. Nada escapa.

O símbolo disso é o ex-governador Sérgio Cabral, que se arvorava até candidato à Presidência da República, enquanto dilapidava o patrimônio público e vivia como magnata com sua mulher, Adriana Ancelmo. Só faltou um apartamento com R$ 51 milhões em dinheiro vivo.

Não escapam nem os secretários de Cabral, nem mesmo Sérgio Côrtes, da Saúde. Da Saúde!!! Mas o Rio não tem só um, mas pelo menos três ex-governadores enrolados. Além do megalomaníaco Cabral, estão na mira Anthony e Rosinha Garotinho que, diante do sucessor, parecem ladrões de galinha, mas também são de colarinho-branco e têm fama de espertos.

Os desmandos no Rio, que continua lindo, não se resumem ao Executivo. O presidente da Assembleia Legislativa, Jorge Picciani, foi preso com dois outros deputados estaduais e é a ponta de um iceberg. Dá para imaginar as falcatruas na Alerj? E na família Picciani? São três filhos: Leonardo, ministro de Dilma e de Temer, Rafael, deputado estadual, e Felipe, empresário, que também foi preso. Agora, é saber se os pares dos Picciani na Alerj vão impedir a prisão do chefão. Chegariam a tanto?

É também do Rio o ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, um outro peixe graúdo a cair na rede da Lava Jato na Baía da Guanabara e agora passando um tempo em Curitiba. Mas grandes, médios e pequenos empresários brilham nesse cardume.

Como o espaço é curto, fiquemos nos grandes, como Eike Batista, do grupo X, e Jacob Barata Filho, o “rei do ônibus”. E o vice-almirante da reserva Othon Silva, que presidiu a Eletronuclear, controlada pela Eletrobrás? Difícil entender como alguém que entraria para a História como pai do programa nuclear brasileiro joga tudo no lixo por corrupção, pelo vil metal.

O que dizer do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), que, de acordo com o TCU, gerou um prejuízo de US$ 12,5 bilhões à Petrobrás? A própria Petrobrás, aliás, tem sede no Rio, uma coleção de ex-diretores e gerentes condenados e três ex-presidentes respondendo por corrupção e/ou má gestão, como Aldemir Bendine, que Dilma tirou do Banco do Brasil e jogou na petroleira, apesar da Lava Jato e da má fama do nomeado.

E já que se falou de TCU, que tal o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ)? Dos sete conselheiros, cinco, inclusive o presidente, Aloysio Neves, são acusados de corrupção pela Operação O Quinto do Ouro, por aceitarem propinas à época do governo Sérgio Cabral. A eles se junta mais um ex-conselheiro. Por enquanto...

Haveria ainda muito a dizer sobre o passado macabro do lindo Estado do Rio, mas é preciso também refletir sobre o presente e o futuro. No presente, o governador Pezão negocia dívidas com o mesmo empenho com que precisa se descolar do padrinho Cabral. E o futuro é incerto e não sabido, com Eduardo Paes, César Maia e Rodrigo Maia, todos três batendo na trave da Lava Jato e seus desdobramentos.

Enquanto isso, quem sofre é a população carioca, sem salários, sem 13.º, sem saúde e educação e ameaçada por ladrões e assassinos sanguinários. Nem uma inofensiva moradora de rua escapou da barbárie. Só falta o Cristo Redentor chorar.

 


Míriam Leitão: O preço do populismo

A Venezuela desce a ladeira há tantos anos que ninguém se surpreendeu pelo fato de três agências de risco terem declarado que o país está em default, e o Brasil ter reclamado junto ao Clube de Paris por não estar recebendo do país vizinho. O populismo, seja de esquerda ou de direita, sempre termina em desastre, que aprisiona o país por anos, como ocorre na Venezuela.

O encontro com a verdade, que o populismo adia com discursos de ódio contra os supostos inimigos, algum dia chega. E na Venezuela tem estado presente há muitos anos, mas agora está num ponto de não retorno. Nesta quinta-feira, os credores reunidos na Isda, uma associação internacional de detentores de títulos, ainda conversarão com o governo, mas a tendência é a de se juntarem às agências Standard&Poors, Moody's e Fitch e também declararem que a Venezuela não paga dívidas. O acordo fechado ontem com a Rússia não ajuda muito. A dívida total do país é de US$ 150 bi, e a parte renegociada é de US$ 3,1 bi. Rosamnis Marcano, da consultoria venezuelana Econometrica, conta que a negociação pouco tem avançado. Os EUA determinaram que credores americanos não devem negociar sem a presença da Assembleia Nacional, controlada pela oposição e que, depois do plebiscito, perdeu poderes.

— É preciso mais que uma revisão da dívida. O normal nesses processos é o devedor apresentar um plano de ajuste que convença os credores sobre a capacidade de pagamento. Mas o governo não apresentou nada capaz de equilibrar as contas — diz.

Um dos pontos de desequilíbrio é o controle de câmbio. Empresas que têm boas relações com o governo conseguem o câmbio super artificial de 10 bolívares por um dólar; no paralelo, a cotação passa de 10.000. As reservas venezuelanas são mínimas, em torno de US$ 10 bi. No Brasil, são de US$ 380 bi.

Caso o default se torne oficial, os credores poderão requisitar as garantias. Isso atingiria em cheio a indústria petroleira, praticamente o único setor em que a Venezuela é competitiva. Os navios da estatal PDVSA em águas internacionais poderão ser tomados. A petroleira também é dona da Citgo, que detém refinarias nos EUA e teve metade das ações colocada em garantia aos empréstimos venezuelanos. A situação é dramática. O default atingiria em cheio a indústria que é responsável por mais de 90% das exportações do país.

A produção de petróleo, intensiva em investimento, já definha. Pelos dados da Opep, em outubro o país extraiu menos de 2 milhões de barris por dia. Há 28 anos a Venezuela não produzia tão pouco. A empresa de petróleo sempre foi ordenhada pelo chavismo e não tem conseguido investir em novos campos. Neste momento em que o petróleo sobe no mercado internacional, o país não é capaz de se aproveitar dos preços porque tem produzido cada vez menos. Até parte da produção futura já foi negociada em contratos de empréstimos, especialmente com os russos. Eles, inclusive, usam esses títulos para negociar com os EUA, driblando o embargo imposto desde o conflito na Ucrânia.

A maior atingida, claro, é a população. Com o petróleo trazendo cada vez menos dinheiro, a crise de abastecimento se agrava. A Venezuela produz pouco, importa até gasolina. A Econometrica divulga um índice de escassez da economia, que hoje está em 50%. A cada dois produtos, um está em falta. No caso dos produtos de higiene, como os desodorantes, a escassez é de 80%. A pior situação é nos medicamentos. Falta desde amoxicilina, para inflamações de garganta, a remédios para o tratamento da Aids, passando pela insulina. Rosamnis conta que na terça-feira havia uma fila de um quarteirão no caminho do seu trabalho. No mercado, havia chegado farinha de milho, também escassa, que os venezuelanos usam para fabricar a arepa, onipresente na dieta local.

Essa mesma farinha eu vi sendo negociada em comércio paralelo no canto de um corredor do Palácio Miraflores, em 2003, quando fui entrevistar Hugo Chávez. O desabastecimento é crônico. O caso da Venezuela tem inúmeras lições sobre o que se deve evitar em qualquer país. Políticas públicas, sejam quais forem, se não tiverem uma base de sustentação fiscal acabam desmontando a economia. O país vive há anos um quadro de recessão, inflação e crise cambial. Foi levado a isso pelo populismo chavista. O longo retrocesso da Venezuela mostra o que não fazer com a economia e a democracia.

 


Rubens Bueno: O perigo reacionário

Vivemos um momento de crescimento do reacionarismo no mundo e esse movimento, que se alastra a cada dia, precisa ser enfrentado com firmeza sob pena de vermos, nos próximos anos, a derrubada de conquistas históricas.

Na mira desses grupos radicais estão os direitos humanos, o direito de livre escolha, a liberdade de circulação das pessoas, a arte e até mesmo a política. Não é à toa que recente levantamento do Instituto Paraná pesquisas apontou que 43,1% dos brasileiros defendem a volta da intervenção militar no Brasil. Outros 51,6% são contra e 5,3% não sabem ou não responderam.

A pesquisa reflete a onda reacionária que tem se proliferado não só no Brasil, mas no mundo inteiro, e também o desconhecimento histórico, por parte de parcela da sociedade, sobre as atrocidades praticadas durante a ditadura militar no Brasil. A junção do desencanto com a política, falta de conhecimento e busca por um salvador da Pátria acaba desaguando em resultados como esse. E, perigosamente, abre um corredor para o crescimento de políticos que se utilizam do populismo radical e do discurso messiânico para alavancarem suas candidaturas.

Trata-se de um processo mundial que tem como sua maior exemplificação a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos. Esse mesmo movimento também vem crescendo na Europa, em países como a França e Alemanha, e em outras regiões do planeta.

No Brasil esse radicalismo cresceu com a série de escândalos de corrupção dos últimos governos e com a incapacidade das forças progressistas de enfrentar e resolver gargalos como o aumento da violência, a geração de emprego e a melhoria da qualidade de vida da população. O Brasil é hoje um país em desencanto e todo esse processo deixou o cidadão descrente da política.

Nesse cenário muitas pessoas acabam embarcando em movimentos erráticos. Uma parcela grande da população que não viveu a ditadura e não conheceu o retrocesso que ela trouxe para o país é levada a acreditar que uma intervenção militar resolveria os problemas do país. Pelo contrário, a situação se agravaria e as liberdades, conquistadas após tanta luta pela democracia, estariam em risco.

A pesquisa divulgada, e outras que apresentam resultados semelhantes, servem de alerta para o meio político que precisa urgentemente mudar as suas práticas viciadas.

A manutenção da velha política acabará por reforçar as forças retrógradas que querem ver nosso país de novo sob a mordaça do autoritarismo e do famoso bordão “prendo e arrebento”. É hora de agir, de fazer o contraponto ao discurso reacionário, e de deixar de fingir que não há uma ameaça ao nosso redor.

Nossa crise precisa ser resolvida por meio da democracia e a melhor arma para mudar o futuro do país não é o fuzil, mas o conhecimento e o voto.