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Folha de S. Paulo: Coronavírus deve levar o Brasil à pior década econômica da história

Contração acima de 2% em 2020 traria queda mais profunda na renda per capita que a dos anos 1980

Érica Fraga, da Folha de S. Paulo

O período de dez anos que se encerra em 2020 poderá registrar a maior queda da renda per capita da história republicana do país, superando até mesmo a contração dos anos 1980, que ficaram cunhados como a década perdida brasileira.

Uma contração do PIB (Produto Interno Bruto) superior a 2% neste ano —que vários analistas já consideram factível— levaria o rendimento médio da população a recuar mais do que o 0,43% amargado entre 1981 e 1990, segundo cálculos de Fernando Montero, economista-chefe da corretora Tullett Prebon.

As medidas necessárias para conter a expansão da Covid-19 já têm surtido efeito, fortemente recessivo. Isso não é exclusividade do Brasil.

O problema, no caso brasileiro, é que o quadro negativo da atividade não se restringe a este ano atípico. O país enfrentou uma severa e longa recessão entre o segundo trimestre de 2014 e o fim de 2016. Depois, veio uma recuperação lenta, que, ano após ano, vinha surpreendendo os analistas negativamente.

“A crise atual é muito forte, abrupta, e pega uma economia com uma baixa dinâmica de crescimento, logo no início do ano”, diz Montero.

A debilidade econômica dos últimos anos já fazia com que especialistas comparassem o quadro de estagnação da renda média da população brasileira nesta década com o registrado nos anos 1980, quando a economia foi assolada por hiperinflação e crises da dívida externa.

Até recentemente, as projeções de crescimento entre 1,5% e 2% da economia previstos para 2020 indicavam que o desempenho do período de 2011 a 2020 seria ligeiramente melhor do que a contração de 0,43% da renda per capita, verificada entre 1981 e 1990.

Mas, após a eclosão da crise da Covid-19, as estimativas do PIB para este ano se deterioraram rapidamente, passando de uma expectativa média de alta de 1,5% para outra de queda de 0,5%.

A tendência, segundo analistas, é que essa projeção média de contração mais recente continue a cair nas próximas semanas. Grandes bancos como Bradesco, Itaú Unibanco e UBS revisaram seus números para baixo. As duas instituições esperam, respectivamente, contrações de 1%, 0,7% e 2% em 2020.

Na quinta-feira (2), o BofA (Bank of America) afirmou esperar quedas severas da atividade em toda a América Latina neste ano, com contrações de 3,5% e 8% das duas maiores economias da região —a brasileira e a mexicana—, respectivamente.

Para Montero, sua estimativa atual, de uma queda de 2,5% do PIB do Brasil em 2020, já é uma espécie de cenário menos drástico possível.

“Conforme os números de contágio pelo vírus pioram e aumentam os riscos de uma quarentena mais extensa, talvez até recorrente, uma queda de 2,5% começa a parecer otimista”, afirma.

Se o PIB recuar 2,5% neste ano, a queda da renda per capita na década será de 0,48%.

Montero ressalta que um agravante do cenário atual brasileiro é o fato de o colapso econômico recente ter se concentrado em um intervalo de poucos anos, a partir de 2014.

“Chamam a atenção não apenas a intensidade e a sequência das quedas anuais mas também a ausência de qualquer recuperação significativa no intervalo dos últimos anos.”

A magnitude dos efeitos da Covid-19 sobre a atividade econômica ficará mais clara nas próximas semanas à medida que indicadores da produção e do consumo forem divulgados.

Mas dados preliminares mostram um impacto negativo significativo da pandemia sobre a atividade econômica.

O Índice Gerentes de Compras (PMI, em inglês) mostrou uma queda de 3,9 pontos da atividade industrial no Brasil em março, o pior desempenho desde fevereiro de 2017. Com esse recuo, o nível de produção passou de 52,3 para 48,4 (números abaixo de 50 indicam contração).

No caso do setor de serviços, o desempenho capturado pelo PMI foi ainda pior: uma queda de 15,9 pontos para 34,5 em março, o menor nível e a maior queda desde que a série começou, no início de 2008.

O PMI é bastante acompanhado por economistas porque se baseia em entrevistas com executivos do segmento manufatureiro que focam indicadores como nível de novas encomendas, variações em custos e ajustes de estoques.

Segundo a consultoria IHS Markit, que calcula o PMI, “as medidas de saúde pública para deter a propagação da Covid-19 levaram a uma demanda mais baixa tanto no mercado interno quanto no externo”.

A consultoria destacou que os entrevistados relataram cortes de mão de obra que, como um todo, causaram a maior perda mensal de empregos no setor industrial em mais de três anos.

Além da queda de novas encomendas, os empresários mencionaram maior pressão sobre seus custos, causada por fatores como a desvalorização do real em relação ao dólar.

As medidas de isolamento também tiveram efeito sobre os prazos de entregas de insumos. O subíndice do PMI da indústria que mede isso caiu 4,3 pontos, a maior contração mensal desde a greve dos caminhoneiros, que paralisou o Brasil entre maio e junho de 2018.

Outro efeito já capturado no fim de março foi um forte recuo nos emplacamentos de carros.

Indicadores da confiança de consumidores e empresários, compilados pela FGV (Fundação Getulio Vargas), também mostram uma deterioração abrupta do cenário econômico nas últimas semanas.

Alguns desses índices vinham se recuperando, embora ainda não tivessem voltado para os níveis de otimismo anteriores à recessão despencaram.

Agora, houve uma nova reversão de tendência. O indicador que mede a confiança de empresários de quatro setores —indústria, comércio, serviços e construção civil— recuou 6,5 pontos em março, para 89,5 (patamares abaixo de 100 denotam pessimismo).

As sondagens da FGV são formadas por dois componentes principais, um que indica a percepção de empresários em relação ao presente e outro que revela suas expectativas para o futuro.

O índice que aponta as tendências esperadas no ambiente de negócios nos próximos meses recuou 14,9 pontos, a maior queda desde outubro de 2008, quando eclodiu a crise financeira global.

A confiança do consumidor brasileiro também registrou forte recuo em março, atingindo 82, o menor patamar da série desde janeiro de 2017, quando o país começava a sair da recessão.


El País: Bolsonaro lidera negacionismo do coronavírus e incentiva ‘fake news’

Na TV, presidente questiona estatísticas das mortes e segue defendendo fim de ações de isolamento social. Twitter, Facebook e Instagram apagam postagens

Felipe Betim, El País

“O movimento negacionista do coronavírus agora tem um líder”. Foi com essa manchete que a revista norte-americana The Atlantic descreveu os discursos diários que o presidente Jair Bolsonaro promove contra as medidas de distanciamento social decretadas por governadores e prefeitos e recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo próprio Ministério da Saúde para conter a pandemia do coronavírus. No início da crise, o ultradireitista parecia seguir os passos do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que também minimizava os efeitos da Covid-19. Mas até mesmo Trump, vendo que seu país se transformara em epicentro mundial do novo vírus, mudou de atitude: negociou com o Congresso um pacote de dois trilhões de dólares (cerca de 10 trilhões de reais) para resgatar a economia, adotou um tom de conciliação com governadores, estendeu até 30 de abril as restrições à circulação e, no último fim de semana, chegou a dizer que poderia instituir o chamado lockdown nos Estados de Nova York, New Jersey e Connecticut. Em suma, o republicano deixou de lado a retórica de que a atividade econômica não pode e passou a salientar que, neste momento, a saúde dos estadounidenses deve ser a prioridade.

Bolsonaro, por ora, ignora a guinada daquele que lhe serve como modelo político e vem insistindo que as pessoas devem sair às ruas e trabalhar normalmente. “É um nível de irresponsabilidade que nunca vi num líder democraticamente eleito. Bolsonaro faz Trump parecer Churchill”, ironizou Ian Bremmer, presidente da consultoria de risco Eurasia Group, no Twitter. Agindo de maneira errática logo após atender as demandas de governadores, o mandatário brasileiro determinou em pronunciamento em cadeia nacional na passada terça-feira que “algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento do comércio e o confinamento em massa”. Também aproveitou a ocasião para forjar inimigos e se referir ao coronavírus como uma mera “gripezinha”.

Isolado politicamente, Bolsonaro dobrou a aposta na radicalização de sua base e estimulou as carretas de empresários em várias cidades pedindo pela reativação das atividades desde a sexta-feira. Além disso, mais uma vez driblou todas as orientações de médicos e especialistas e passeou no domingo por mercados e centrais de vendedores ambulantes na periferia de Brasília. Durante o chamado “coronatour”, o presidente cumprimentou cidadãos de Taguatinga, Ceilândia e Sobradinho, além de reforçar sua tese de que é importante fortalecer a economia. Alguns analistas acreditam que Bolsonaro não quer ser visto como responsável pela recessão na economia, diante de mortes inevitáveis, segundo sua visão. Por outro lado, se governadores e prefeitos têm sucesso em suas medidas e consigam conter o coronavírus, ele ainda poderia argumentar que estava certo ao dizer que não havia demasiados riscos para a saúde da população.

O presidente e seu entorno mais radical —sobretudo seus filhos— também vêm divulgando e incentivando medidas contra o isolamento ou fazendo ênfase sobre possíveis curas para o coronavírus. No domingo, o Twitter decidiu pela primeira vez barrar conteúdo compartilhado pelo ultradireitista e pagou dois vídeos que havia postado contra o isolamento social. Nesta segunda foi a vez do Facebook e do Instagram decidirem fazer o mesmo por considerar que conteúdo promovia a desinformação. O vídeo mostrava o presidente conversando com um ambulante: “Eles querem trabalhar. é o que eu tenho falado desde o começo”, dizia. “Aquele remédio lá, hidroxicloroquina, está dando certo em tudo o que é lugar”, continuava. Em nota ao portal BBC News Brasil, justificou a remoção dizendo que "viola nossos padrões da comunidade, que não permitem desinformação que possa causar danos reais às pessoas”.

Nesta segunda, em entrevista ao canal de televisão aberto Rede TV, Bolsonaro voltou a questionar os números de mortes provocadas pela Covid-19. “Parece que há interesse por parte de alguns governadores de inflar o número”, disse o presidente, ecoando uma notícia falsa, espalhada em grupos de WhatsApp e nas redes, de que um porteiro ou borracheiro teria tido sua morte erroneamente incluída nas estatísticas de coronavírus (veja aqui os números em tempo real).

O que Bolsonaro faz é utilizar “uma comunicação meticulosamente arquitetada para ironizar e atacar inimigos ideológicos e políticos, da imprensa ao médico Drauzio Varella, passando por governadores e prefeitos adversários", opina o cientista político Vinícius do Valle. “Bolsonaro quer, na verdade, o caos”, conclui Valle.

O motivo de querer o caos se deve à própria natureza do bolsonarismo, que precisa do conflito para se manter e se expandir, segundo Valle e outros estudiosos, como o historiador argentino Federico Finchelstein. “Eventualmente a realidade se impõe e inclusive os seguidores mais fanáticos em algum ponto deixam de acreditar neles. Mas, quando isso acontece, já terá havido muito sofrimento e muitas vítimas, no sentido literal do termo. As políticas de ajuste, de repressão e de discriminação têm suas consequências”, disse Finchelstein ao EL PAÍS na semana passada. Para Valle, Bolsonaro poderia encontrar na convulsão social a justificativa que precisa para tentar concentrar ainda mais poder em suas mãos, seja a partir de operações de Garantia da Lei e da Ordem ou da decretação de um Estado de Sítio.

Possível demissão de Mandetta

Um dos fatores que podem detonar esse caos à curto prazo é a possível troca de comando no Ministério da Saúde. No sábado, o ministro Luiz Henrique Mandetta e toda a sua equipe colocaram os cargos à disposição de Bolsonaro. Segundo apurou o EL PAÍS, os ministros e generais do Exército Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Walter Braga Netto (Casa Civil) tiveram de intervir e convencer Bolsonaro de que, sem Mandetta, a impressão que passaria para a opinião pública seria de ingovernabilidade em meio à crise ―está previsto que o pico de contágios aconteça em meados de abril.

Uma fonte do Palácio do Planalto relatou que o presidente foi relutante, porque se se sentiu “enquadrado” pelos militares. Mas, num primeiro momento, concordou em manter Mandetta no cargo —algo que foi reforçado nesta segunda-feira por Braga Netto durante a coletiva de imprensa com Mandetta e outros ministros.

Mandetta está decidido a não se demitir. Disse a aliados que só sai do ministério se for exonerado pelo presidente. Ao longo da última semana ele foi orientado a falar menos e deixar que o secretário-executivo da pasta, João Gabbardo dos Reis, e o titular da Vigilância em Saúde, Wanderson Oliveira, apareçam mais. Mas não acatou os conselhos. No sábado, foi protagonista de uma coletiva de imprensa na qual recomendou o isolamento social e contrariou as teses do presidente. Nesta segunda-feira também não deu um passo atrás.

Nos bastidores são ventilados três possíveis nomes para o Ministério da Saúde: o médico e deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), que já foi demitido pelo presidente do Ministério da Cidadania por não apresentar resultados; o contra-almirante da Marinha, Antônio Barra Torres, médico que preside a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e acompanhou Bolsonaro na manifestação do dia 15 de março; e, correndo por fora, o filantropo e gestor do Hospital do Amor (o antigo Hospital do Câncer de Barretos), Henrique Prata. Ele chegou a ser cogitado para assumir a pasta já no primeiro ano da gestão de ultradireita, mas o apoio político de Mandetta e sua capacidade de unir parte da direita entorno de Bolsonaro prevaleceu.


Vinicius Torres Freire: Pacote deixa a descoberto 22 milhões de trabalhadores com carteira

Crédito de emergência ainda vai demorar a sair, não cobre outras despesas fixas e não trata de microempresas

O maior e mais imediato problema do plano de empréstimos de emergência do governo é que o dinheiro vai demorar. Trata-se aqui da linha de crédito anunciada nesta sexta-feira (27), de até R$ 40 bilhões, para pequenas e médias empresas.

O pessoal do governo diz que a coisa pode levar de sete a quatorze dias para ficar pronta. Mas as empresas já estão demitindo ou morrendo. Outras firmas e mais empregos morrerão em duas semanas.

Há mais problemas, alguns deles apontados por economistas que discutem como se pode compensar a brutal perda de faturamento das empresas menores. Se tais firmas naufragarem, será ainda mais lenta a retomada econômica depois da epidemia. Os economistas preferem não se identificar, até porque ainda não existe detalhe formal das medidas.

Quais problemas?

TAMANHO DO PACOTE
O plano prevê empréstimos de até R$ 40 bilhões, R$ 34 bilhões com fundos do governo e R$ 6 bilhões dos bancos. Vão bancar por até dois meses salários de até R$ 2.090 (dois salários mínimos). Chutando que trabalhadores beneficiados ganhem a média de um e dois salários mínimos, podem ser atendidos, no limite, 12,7 milhões de empregados.

Trata-se de cerca de 1 de cada 3 empregados com carteira assinada, exclusive trabalhadores domésticos. Cerca de 20 milhões de trabalhadores com CLT ficam fora do esquema, por ora, sem contar 1,7 milhão de domésticos registrados.

E AS MICROEMPRESAS?
Parte dessas pessoas fora do pacote do governo pode trabalhar em microempresas, que empregam mais de 8 milhões, segundo o Sebrae. Mas o critério de microempresa do Sebrae é porte (número de empregados), não faturamento, critério do governo.

Empresas com faturamento inferior a R$ 360 mil por ano não entraram neste pacote de crédito (apenas aquelas que faturam de mais de R$ 360 mil a R$ 10 milhões anuais).

A ajuda para as micro ainda estaria “em estudo”. Pode, pois demorar ainda mais que o pacote para as médias e pequenas. As micro tem ainda mais dificuldades de tomar crédito, sem conseguem algum.

O TAMANHO DO BURACO
O pacote cobre o rendimento de cada trabalhador até dois salários mínimos (R$ 2.090). A empresa pode complementar o restante. Se tiver dinheiro. Pode demitir. Fazer acordo de redução de salário, se houver regra para tanto. De qualquer modo, é mais perda de renda e mais crise para o conjunto da economia.

O pacote não cobre despesas como alugueis, água, luz, gás, comunicações. A despesa que causa mais desespero é a folha, decerto. No entanto, se uma empresa não puder pagar seus custos fixos, ainda pode operar, sem demitir? Se pegar o empréstimo de emergência, não pode demitir. E então? Vai ficar com a cruz ou com a caldeirinha?

OS BANCOS
Os bancos vão ter de entrar com 15% do total de empréstimos, R$ 6 bilhões, no total. Parece pouco, em princípio. Os empréstimos bancários para empresas somavam R$ 1,44 TRILHÃO em fevereiro passado.

Os cinco maiores bancos têm 85% do total de crédito. Caberia a cada um, pois, numa divisão simples, pouco mais de R$ 1 bilhão para emprestar, nessa emergência.

É um crédito com juro tabelado (Selic, 3,75% ao ano), carência de seis meses e parcelamento em 36 meses. Na “vida real”, bancos jamais fariam tal negócio, ainda menos agora, com a perspectiva de calote ou quebra de muitas empresas.

Os bancos vão refugar dado o risco? Evitar empréstimos justamente para as empresas que mais precisam, as de maior risco? Se fizerem tal coisa, o plano vai funcionar mal.

De outro modo, se emprestarem o dinheiro, os bancos vão ter de engolir custos (juros tabelados e calotes) ou repassá-los para outra linha de crédito.

Além do mais, restou uma dúvida séria. A taxa dos empréstimos é a Selic ou a atual taxa Selic (3,75%)? As taxas não serão variáveis, certo?

Enfim, o governo criou essa linha emergencial. Tudo mais constante, seria mais crédito. Mas qual é o tamanho da retranca que os bancos estão armando nas outras linhas?

OS BANCOS PÚBLICOS
Cerca de metade dos empréstimos para empresas jurídicas vem de bancos públicos, além do mais. Em 2018, último dado oficial disponível, eram cerca de 21% concedidos pelo BNDES, 18% pelo Banco do Brasil e 11% pela Caixa, os três maiores estatais. Bradesco e Itaú ficavam com 21,5%, juntos.

A fatia dos bancos públicos no total de empréstimos de qualquer tipo caiu 8% desde então. Numa estimativa grosseira, os três bancos públicos ainda teriam uns 45% dos empréstimos para empresas, pois.

Logo, os bancos privados devem ficar com fatia muito pequena do risco e do pacote, uns R$ 3 bilhões, por aí.

O PACOTE E A RENDA TOTAL
O pacote de crédito, como visto, pode no limite cobrir R$ 20 bilhões por mês de perda de renda do trabalho, por dois meses. O total da renda dos empregados com CLT no setor privado era de uns R$ 75 bilhões por mês (em fevereiro) _o pacote de crédito poderia cobrir, pois, 27% da renda total mensal.

O total dos rendimentos do trabalho no país, segundo contas feitas com os dados do IBGE, é de R$ 215 bilhões. O rendimento dos sem carteira e dos “por contar própria” informais (sem CNPJ) soma uns R$ 43 bilhões por mês. Parte será atendida pelo pacote que tramita no Congresso, de “renda mínima”. Mas não há como saber ainda quantos serão alcançados pela medida.


Adriana Fernandes: Quem vive e quem morre

O orçamento “paralelo”, para apartar os gastos da crise, é uma boa ideia

O enfrentamento da grave crise econômica provocada pela pandemia da covid-19 não pode se transformar numa disputa política de quem dá mais dinheiro. Dos “R$ 3 bilhões, R$ 4 bilhões ou R$ 5 bilhões” anunciados pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, no último dia 13 de março, para “aniquilar” o coronavírus, o governo passou nesta sexta-feira para uma promessa de injeção de R$ 700 bilhões na economia brasileira nos próximos meses.

Entre a primeira resposta da equipe econômica à crise até a nova cifra, passaram-se 14 dias. Mudança louvável e tomara que ainda tenha chegado a tempo de mitigar o cenário devastador já em curso no Brasil e no mundo.

Que se gaste todo dinheiro necessário para salvar vidas, o emprego dos trabalhadores e impedir uma quebradeira geral.

Mas a hora agora é também de foco e muita transparência. Mas muita transparência! Ainda estamos longe dela. Medidas foram anunciadas pelo governo sem o texto legal pronto, no afã de dar respostas à cobrança crescente por ação.

É preocupante demais a tentativa do presidente de restringir os instrumentos da Lei de Acesso à Informação (LAI), justamente agora. Péssimo sinal.

Não pode haver drible na contabilidade e muito menos espaço para escolhas do tipo “quem vive e quem morre”.

Vale para as pessoas e também para as empresas. Em crise passadas e ainda muito presentes na memória, muitas escolhas foram feitas para beneficiar os amigos do rei. O presidente Jair Bolsonaro tem também seus empresários de estimação – apoiadores de sempre. Muitos deles dos setores mais afetados pelo isolamento forçado e a paralisação do comércio.

Nos primeiros dias de enfrentamento das crises econômicas de grande magnitude, como a que vivemos agora, é comum a confusão inicial na busca pelo caminho das medidas. Faz parte do processo. Agora, com o risco de contaminação, a tarefa é ainda mais complicada.

É por isso que o momento exige ação forte da política fiscal, com expansão dos gastos, mas também muita visibilidade de como essa montanha de dinheiro será gasta e o seu tamanho real. Se o Tesouro capitalizar os bancos públicos, tudo tem que estar bem visível.

A sociedade precisa saber com clareza o que está empenhando dos seus recursos para combater a crise do novo coronavírus. E precisa estar informada para combater o oportunismo que pode surgir durante esse processo.

Com lupa, essas horas cruciais serão mapeadas no futuro. A ajuda tem que ser feita com máximo cuidado para que não haja direcionamento, discriminações e muito menos transferência de dinheiro para quem menos precisa agora.

Por isso, o orçamento “paralelo”, para apartar os gastos da crise, é uma boa ideia. Para isso, a PEC do “orçamento de guerra” articulada pela Câmara é a ideal, mais abrangente e com melhor controle para a sociedade.

Empurrado pela pressão do Congresso e da sociedade, o governo acordou e começou a dar sinais nessa sexta-feira de que deixa para trás a morosidade, com o anúncio de medidas mais potentes. O time de Guedes e os presidentes dos bancos públicos negociaram um plano de salvamento.

A cartilha liberal dos “Chigago Oldies” foi colocada na gaveta. Há um ano, o discurso da equipe econômica era deixar Caixa, Banco do Brasil e Petrobrás “bem magrinhas”. Quem não lembra?

A estratégia da equipe econômica era essa, para depois privatizar essas estatais, num eventual segundo mandato do presidente Jair Bolsonaro. Esses planos devem passar uma revisão mais tarde?

Bancos públicos, principalmente a Caixa, que é a ponte principal do governo com a população de baixa renda e vulnerável, assumem um papel essencial na crise. Os bancos privados, como se viu na última semana, se fecham até que o governo vá lá e abra as portas para eles.

O presidente da Caixa, Pedro Guimarães, terá que conduzir esse momento com zelo e cuidado para defender a sustentabilidade do banco, que está muito líquido.

O momento é de guerra.


Afonso Benites: Reação ao coronavírus faz cúpula militar acender alerta e sinalizar apoio a Mourão

Representantes das Forças Armadas têm realizado encontros em Brasília para discutir cenários de médio e longo prazo sobre afastamento do presidente. Possibilidade de saída imediata é remota

A cúpula das Forças Armadas acendeu um sinal de alerta nos últimos dias diante das reações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) à crise do novo coronavírus. Nesta semana, representantes da Aeronáutica, Exército e Marinha sinalizaram ao até então nem tão bem-quisto vice-presidente, general Hamilton Mourão (PRTB), que poderiam contar com o apoio deles, caso o ocupante do Palácio do Planalto deixasse o cargo por meio de um impeachment ou renúncia.

Apesar de o debate ter se intensificado desde que a crise sanitária se agravou, as chances de que Bolsonaro saia da presidência são remotíssimas. Em mais de uma ocasião ele disse indiretamente que não deixaria o cargo. “Nunca abandonarei o povo brasileiro, para o qual devo lealdade absoluta!”, afirmou em seu Twitter. E o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), responsável por dar o ponta pé inicial a um eventual processo de impeachment, declarou nesta semana que o assunto não está na pauta do Congresso, por ora.

Ainda assim, os militares têm feito seguidas reuniões em Brasília, inclusive com aliados de Bolsonaro e membros civis de seu primeiro escalão. Nesta semana, ao menos dois encontros ocorreram. Neles foram debatidos cenários hipotéticos para o médio e longo prazo.

Dois participantes dessas reuniões relataram ao EL PAÍS que o grupo está preocupado com um possível aumento repentino de registros e mortes provocadas pela doença e que isso seja vinculado ao discurso negacionista feito por Bolsonaro sobre a gravidade da Covid-19. Ressaltaram que, quando o mandatário sugere o fim das quarentenas e dos isolamentos sociais decretados por governadores e prefeitos, pode soar insensível.

Nesse cenário, avaliam que a popularidade do presidente poderia despencar e que fosse colada nele a pecha de um fracassado líder que prefere alavancar a economia do que salvar vidas. “É um discurso de que estamos em guerra. Mas quem está na linha de frente da guerra é um soldado que sabe que pode morrer. Em uma pandemia, não podemos colocar todos na mesma situação que os soldados”, afirmou, em caráter reservado, um dos membros do grupo. Responsável por atrair a maçonaria à campanha de Bolsonaro, o vice-presidente já garantiu o apoio dela caso tenha de assumir o Planalto.

Na terça-feira, o comandante do Exército, o general Edson Leal Pujol, tratou de vacinar as forças de qualquer responsabilidade sobre a crise. Na contramão do defendido pelo presidente, declarou que os militares devem, sim, se preocupar com a Covid-19 e disse que o combate à disseminação da doença “talvez seja a missão mais importante de nossa geração”.

Tem circulado em Brasília também a tese de que o presidente poderia dar uma cartada extrema e decretar um estado de sítio ou de defesa – ambos dependem de aprovação do Congresso Nacional, onde ele não tem maioria – e criam uma série de restrições de liberdade, de comunicação e a suspensão de garantias constitucionais. São atos radicais, mas que podem ser usados politicamente com base no discurso voltado para os seus, de que ele tenta “salvar o Brasil”, mas a velha política não o ajuda.

Oficialmente, o presidente nega que decretará estado de sítio ou de defesa sob a justificativa de que causaria uma sensação de pânico no país. “Acho que estaríamos avançando, dando uma sinalização de pânico para a população”, disse em entrevista coletiva na semana passada. Nas entrelinhas, porém, manda recados. Nesta sexta-feira, em entrevista ao jornalista José Luiz Datena, da TV Band, ele foi indagado se pretendia dar um golpe e fechar o país. A resposta: “Quem quer dar o golpe jamais vai falar que quer dar”.

Principalmente por essas sinalizações, os militares se aproximaram do vice-presidente. Entre os fardados, o próprio Mourão está longe de ser uma unanimidade. No meio militar, ele passou as ser visto como um radical quando, em 2015, sugeriu que as Forças Armadas poderiam fazer uma intervenção. Na ocasião, a presidenta Dilma Rousseff (PT) estava em crise e a Lava Jato começava a revelar escândalos de corrupção em série. No campo político, Mourão era a quinta opção de Bolsonaro para compor sua chapa. Foi escolhido de última hora, diante das negativas de outros políticos, dos partidos deles ou por desconfiança do próprio presidente.

Entre a família Bolsonaro, Mourão também não é bem visto. Seu principal inimigo entre o clã é o vereador pelo Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro (PSC). Logo no início da gestão, ele passou a receber embaixadores estrangeiros para mostrar que o Brasil não se fecharia para o mundo. Também foi o principal articulador da aproximação com a China, principal parceira comercial do Brasil. A partir de então, passou a ser visto como uma voz moderada em um governo de ultras. Entre o núcleo ideológico do governo, a aproximação com a China foi interpretado como uma traição ao presidente, que queria se afastar comunistas. Na prática, a ideologia foi colocada de lado e o comércio entre as duas nações foi mantido a pleno vapor.

Mourão foi colocado de lado. Atuou em poucos momentos-chaves, como na crise da Venezuela, quando se discutia se o Brasil apoiaria ou não uma intervenção militar para apoiar Juan Guaidó no embate com o presidente Nicolas Maduro e, mais recentemente, passou a coordenar o Conselho Amazônia, um colegiado recriado após a crise dos incêndios florestais.

Nesta semana, o vice voltou a emergir quando contrariou o seu chefe e disse que ele havia sido mal interpretado ao defender em um pronunciamento à nação que o país deveria priorizar a economia. “Pode ser que ele (Bolsonaro) tenha se expressado de uma forma, digamos assim, que não foi a melhor, mas o que ele buscou colocar é a preocupação que todos nós temos com a segunda onda como se chama nesta questão do coronavírus”.

Bolsonaro reagiu nesta sexta. Na entrevista à Band, disse que Mourão se sentia à vontade para se pronunciar por ser “indemissível”. “Com todo o respeito ao Mourão, ele é muito mais tosco do que eu. Não é porque é gaúcho, não. Alguns falam que eu sou até muito cordial perto do Mourão. Ele é o único que não é demissível no Governo, então pode ficar à vontade”.

Soma-se ainda a esse contexto, a aposta de Bolsonaro em confrontar governadores e se isolar politicamente e a ouvir panelaços contrários ao seu governo há dez dias seguidos nas principais cidades do país. Nesta semana, ele perdeu o apoio de um aliado de primeira hora, o governador goiano Ronaldo Caiado (DEM). Mas o xadrez político está distante de estar definido. Depois da pressão do presidente, três governadores autorizaram a abertura parcial do comércio em seus Estados: Rondônia, Santa Catarina e Mato Grosso. Os dois primeiros Marcos Rocha e Carlos Moisés são filiados ao PSL, antigo partido do presidente e eleitos na onda conservadora das eleições de 2018. Já o mato-grossense Mauro Mendes é emparedado pelo setor agrícola, mola propulsora da economia local. Os próximos movimentos no planalto central ainda dependerão mais da questão sanitária do que dos discursos de um lado ou de outro.


André Lara Resende e Francisco Serra: Desafio atual é mobilizar recursos para a saúde

É imperativo ser generoso com a população desassistida e que se adote um programa de ajuda de custo universal

Estamos diante de uma crise sem precedentes. A pandemia provocada pelo coronavírus não tem mais fronteiras. A experiência dos países onde a epidemia está mais avançada deixa claro que não há opção. Para evitar um pico de infectados com necessidade de atendimento hospitalar que levaria ao colapso do sistema de saúde, é imperioso que as pessoas se isolem e evitem todo o contato social. O confinamento domiciliar de todos que não trabalhem nas atividades essenciais é a única forma de reduzir o coeficiente de infecção e de distribuir o número de doentes ao longo do tempo.

O confinamento obrigatório tem altos custos pessoais e econômicos. A paragem brusca da economia será sem precedentes. Muito mais intensa do que a provocada por qualquer crise recessiva cíclica do passado. Estamos diante de uma verdadeira escolha de Sofia: ou o colapso do sistema de saúde, com um enorme número de mortos, vítimas da sobrecarga do sistema hospitalar, ou bem uma paragem sem precedentes da economia. Mas não há alternativa. Ao menos por alguns meses, na melhor das hipóteses, será preciso paralisar todas as atividades não essenciais para reduzir a circulação de pessoas.

A sobreposição da crise econômica a uma dramática crise sanitária exige resposta imediata e audaciosa. Na Europa e nos EUA os governos anunciaram medidas de emergência. O Banco Central Europeu e o Fed estenderam linhas de crédito praticamente ilimitadas para o sistema bancário. Medidas fiscais estão sendo negociadas para aprovação nos parlamentos. Há uma preocupação de não repetir o erro de 2008, quando foi feito “muito pouco, muito tarde”.

Antes de mais nada, é preciso descartar as falsas restrições. A questão das fontes de recursos para as despesas do governo é um falso problema. É resultado de um arcabouço teórico equivocado e anacrônico que foi erigido em dogma dos economistas hegemônicos nos últimos anos. A tese de que o governo não pode gastar se não dispuser de fontes fiscais, de que é sempre preciso equilibrar o orçamento para evitar a expansão da dívida pública interna, não tem qualquer validade lógica ou empírica. É um mito com pretensão científica. Um mito transformado em dogma para restringir a ação do Estado. Trata-se de um mito com altos custos em tempos normais, mas que em situações extraordinárias, como a atual pandemia, ao impedir a adoção de políticas públicas indispensáveis para minorar a crise e o sofrimento, é desastroso.

A preocupação com as fontes de recursos e o equilíbrio orçamental do governo são restrições autoimpostas para conter os excessos populistas e tentar dar racionalidade aos gastos públicos, justificadas em tempos normais, mas que devem ser desconsideradas por completo numa emergência como esta pela qual passamos. Países que delegaram a emissão da moeda para sistema supranacional, como é o caso dos países do euro, dependem da atuação coordenada do Banco Central Europeu (BCE). Por isso, a ação do BCE, garantindo crédito ilimitado para as economias da UE, é fundamental.

O desafio não é encontrar “fontes” de recursos. O governo pode sempre gastar para financiar despesas indispensáveis e justificáveis. Ao longo da história, mesmo quando o Estado ainda estava restrito pela exigência de lastrear a moeda num metal precioso, a conversibilidade da moeda foi sempre suspensa quando necessário para fazer face a despesas públicas extraordinárias e imprescindíveis, como no caso das mobilizações de guerra. O verdadeiro desafio é, antes de tudo, como mobilizar, de forma rápida e eficiente, recursos reais para a saúde, como expandir a capacidade da rede de hospitais, com leitos, equipamentos e recursos humanos. Em seguida, como minorar os efeitos econômicos e sociais do confinamento obrigatório e da brusca paragem da economia.

A crise de 2008 foi uma crise financeira que provocou uma crise da economia real. Esta é uma crise da economia real que irá provocar uma crise financeira. Em 2008 o problema estava no sistema financeiro, que carregava créditos ilíquidos e inadimplentes. A injeção de liquidez primária no sistema bancário, para compensar a contração do crédito privado, foi capaz de estancar a crise financeira, salvar o sistema financeiro e com ele toda a economia. Hoje, o problema não está no sistema financeiro. A injeção de liquidez primária pelos bancos centrais irá ficar retida no sistema bancário, que, temendo um incumprimento generalizado provocado pela paragem da economia, irá se recusar a estender crédito às empresas, independentemente da quantidade de reservas injetadas pelo banco central.

É preciso que os governos e os bancos centrais ajam de forma a garantir a liquidez e o crédito, sem depender da intermediação do sistema financeiro privado.

A primeira medida seria uma moratória de todos os créditos correntes, pelo tempo em que durar a paralisação obrigatória da economia. Todos os créditos correntes seriam estendidos, à taxa básica do Banco Central, até o fim do confinamento. Além disso, os bancos deveriam obrigatoriamente conceder crédito adicional a todas as empresas afetadas pela paralisação, à taxa básica acrescida de um spread mínimo para cobrir os seus custos. O risco de crédito, durante a fase crítica de emergência inicial, deverá ser assumido integralmente pelo Estado. Os bancos devem fazer uma análise e aferimento mínimos acerca da idoneidade das empresas e da necessidade do crédito.

Um programa de ajuda de custo universal, no mínimo durante o período em que durar a paralisação, deveria ser imediatamente adotado. É imperativo ser generoso com a população desassistida e com os que irão perder o emprego e as suas fontes de renda.

Medidas como essas tendem a vir acompanhadas de exigências burocráticas para evitar abusos. Compreende-se, mas a hora exige deixar de lado a burocracia. Grandes crises podem tanto despertar o egoísmo quanto o altruísmo. O Estado precisa dar o exemplo, ousar e confiar.

*André Lara Resende é economista e Francisco Serra Lopes Rebelo de Andrade é advogado e empresário português

Este artigo é uma versão reduzida de texto publicado originalmente no jornal digital português “Observador”


Folha de S. Paulo: Governo deveria pagar os salários nas empresas menores, diz economista

Para Armando Castelar, é mais simples depositar o dinheiro na conta dos empregados do que conceder crédito via bancos

Vinicius Torres Freire, da Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Em certos casos e condições, é melhor o governo pagar salários de pequenas empresas em dificuldades por causa do paradão da epidemia. Melhor, de qualquer maneira, que o Tesouro emprestar dinheiro por meio de bancos, diz o economista Armando Castelar, coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV e professor da UFRJ.

Castelar tem dúvidas sérias sobre os planos de criar uma linha de empréstimos a taxas de juros baixas e prazos longos de pagamento, com fundos ofertados pelo governo, que ficaria com o risco de crédito, o qual seria concedido por meio de bancos.

“Deve ser necessário, por exemplo, manter empregos em empresas viáveis, mas sem faturamento algum na crise, pequenas e médias empresas. É mais simples o governo pagar esses salários, depositando o dinheiro diretamente na conta dos empregados da empresa, por exemplo na conta do FGTS.”

As receitas de paliativos para crise, porém, são várias e devem mudar, diz o economista. “Neste começo, o tamanho do pacote não precisa ser grande, pois famílias e empresas ainda têm reservas para lidar com a parada de, até aqui, uma semana ou duas, dependendo do caso. Com o passar do tempo, mais ajuda será necessária. Será preciso focar quem não tem reservas: famílias pobres, trabalhadores informais e micro, pequenas e médias empresas. Não acho que seja o caso de ajudar grandes empresas.”

A crise vai ser longa. Além de paliativos, o que fazer? “Agora é hora de prover uma rede de segurança. Haverá uma segunda etapa em que será adequado dar mais estímulos monetários e fiscais. Isso ocorrerá quando a crise de saúde pública começar a amainar e a economia tentar começar a reagir.”

As medidas anunciadas pelo governo são razoáveis? Pode-se fazer mais?
Em termos. O pacote parece relativamente bem focado, dirigido a fornecer liquidez a quem mais precisa nesta etapa, micro, pequenas e médias empresas, trabalhadores informais ou que podem ficar desempregados, por exemplo. O BC também está operando bem em garantir a liquidez nos mercados de crédito e ativos financeiros.

Isto posto, o tamanho anunciado até aqui do pacote reflete o fato de a crise de saúde e a quarentena ainda estarem no início, em relação a Europa e EUA. Acredito que mais recursos serão adicionados conforme o tempo passe e as reservas financeiras de empresas e famílias seja consumida.

Os trabalhadores informais, por exemplo, têm renda média bem superior a R$ 200 e seria importante ver como elevar esse valor.

Para as pequenas empresas, postergar pagamento de tributos e dívidas resolve bem. Fica faltando ajudar com os salários, e isso pode ser feito via os diversos registros, como a Rais. O problema são as empresas informais, mas aí o foco deve ser nos trabalhadores.

Fala-se em ajudar a travessia do deserto, a falta de faturamento, com empréstimos com carência razoável e prazos alongados de pagamento.
Sim, o crédito pode cumprir esse papel. A questão é que os bancos querem que o Tesouro garanta o pagamento dessas dívidas. Aí deixa de ser uma boa ideia, pois o perigo de risco moral é grande [bancos emprestarem sem critério, para quem não precisa, já que o governo fica com o risco].

Como disse, acho que a melhor solução é ajudar no pagamento dos salários em micro, pequenas e médias empresas, além de adiar pagamento de tributos. As dívidas com os bancos, estes deveriam resolver privadamente.

Os bancos têm de evitar risco de inadimplência —não vão sair daí os empréstimos da emergência. Imaginando que apenas operacionalizassem um fundo público se resolve isso?
Não penso que o Tesouro deva se envolver nisso. Só vai tirar o custo dos bancos, que precisam eles mesmos lidar com a reestruturação das dívidas que no passado concederam a essas empresas.

O crédito, nos casos em que os bancos acreditarem que se justifica, deve ser o resultado de uma análise privada de risco de crédito e retorno esperado.

Mas estava falando aqui dos empréstimos específicos, de uma nova linha com recursos públicos, que também ficariam com o risco.
Em teoria, é fácil separar as duas coisas. Na prática, separar dívida nova de dívida velha é difícil. Também é difícil de fiscalizar as condições para a concessão de crédito, como verificar se a empresa demitiu ou não.

Quais seriam a carência e o prazo razoáveis, para que as empresas aguentem o serviço dessa dívida, depois da epidemia?
Depende de quanto durar a quarentena. Se for um mês ou dois, por exemplo, me parece que três meses de carência e nove depois para pagar seria razoável. Se for mais tempo, seria necessário mais tempo. Mas não me parece que deveria passar de dois anos. De qualquer forma, como disse, crédito com garantia estatal não é uma boa ideia.

Até em páginas de jornais liberais se discute hoje “imprimir dinheiro” e doá-lo, em alguns casos. Que diferença haveria, em termos macroeconômicos (juros, inflação, dívida), fazer dívida via emissão de títulos e “imprimir dinheiro” para pagar as despesas da crise?
A crise do coronavírus reduz a velocidade de circulação da moeda e permite que se emita dinheiro (que também é dívida pública, só não paga juros) sem gerar inflação. Mas, com a volta à normalidade, a velocidade aumenta, e o risco de a inflação saltar aumenta.

Nos países ricos, a inflação está muito baixa e os governos têm tido dificuldade de fazer a inflação subir. Se isso ocorrer, terão de emitir títulos para enxugar a quantidade de moeda na economia. No Brasil, o risco da inflação é mais alto.

*Armando Castelar Pinheiro, 64, Coordenador de economia aplicada do Ibre/FGV e professor do Instituto de Economia da UFRJ; foi analista na Gávea Investimento, pesquisador do Ipea e chefe do Departamento Econômico do BNDES; é doutor em economia pela Universidade da Califórnia, Berkeley, mestre em administração pela Coppead/UFRJ e em estatística pelo Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) e engenheiro eletrônico pelo ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica).


Míriam Leitão: Política de governadores

Esta crise é a maior e a mais complexa que o país enfrenta em muitas décadas e tem no comando o mais insensato dos presidentes da República

O presidente Jair Bolsonaro criou uma crise federativa no meio de um pandemia e de um colapso econômico. Como se fossem poucos os males que nos assolam. Era previsível. Desde o começo do governo, Bolsonaro tem mantido distanciamento dos governadores, criou conflitos com alguns deles, discriminou grupos regionais, e principalmente jamais manteve diálogo. “É de se contar nos dedos da mão as audiências que concedeu aos administradores dos estados”, diz Renato Casagrande, do Espírito Santo. Os governadores, em compensação, criaram consórcios regionais, escolheram porta-vozes, formaram grupos de Whatsapp e têm mantido intensas conversas.

Esta crise é a maior e a mais complexa que o país enfrenta em muitas décadas e tem no comando o mais insensato dos presidentes. O conflito de ontem entre Bolsonaro e os governadores do Sudeste era previsível. Ao longo dos 15 meses em que governa o Brasil, Bolsonaro nunca quis liderar a federação. Vê as decisões dos estados como se fossem usurpação dos seus poderes. Tratou o Nordeste com preconceito porque teve menos percentual de votos por lá. “Daqueles governadores de Paraíba”, ele disse no meio de uma crítica a Flávio Dino, do Maranhão. Recentemente, fez uma escalada de ataques a Rui Costa, da Bahia. Tirou os governadores da Amazônia do Conselho do Fundo da Amazônia. E o presidente entrou em disputas de egos com outros governadores do Sudeste.

Era de se esperar que Bolsonaro provocasse uma grande crise ontem. Seu desastroso pronunciamento da véspera foi recebido com repulsa entre a população, que a demonstrou em panelaços. Ele colocou a vida dos brasileiros em risco ao estimular o relaxamento do que está apenas começando, o período de distanciamento social. Seu método sempre foi criar uma polêmica para desviar a atenção de um erro que cometeu. Só que, desta vez, os dois fios desencapados se misturaram. A crise explodiu por causa da sua fala, deliberadamente marcada para a véspera da reunião com os governadores do Sudeste. E ao ser contestado ele dobrou a aposta, repetindo a sua tese baseada em nenhuma evidência científica e no seu tosco conhecimento da economia.

Todos os bons economistas do país estão dizendo a mesma coisa. Primeiro proteger a vida humana. E elevar o gasto público para financiar a saúde, para socorrer as outras unidades da federação, para criar uma rede de proteção social eficiente e ampla, e para sustentar as empresas. O presidente que trata a sua ignorância dos assuntos econômicos como se fosse um biombo para fugir de perguntas, estava ontem falando que era preciso relaxar a quarentena que mal começou para salvar a economia.

Neste momento, a ordem natural dos eventos, como têm repetido os administradores dos entes subnacionais, é primeiro proteger a vida humana. As crises social e econômica decorrentes da ação de parar a economia têm que ser enfrentada pelo Estado. E essa é a função do governo federal, que é o único emissor de moeda. A União não está fazendo favor quando transfere recursos para os estados, porque são impostos pagos pelos brasileiros e o monopólio de emissão da moeda é conferido ao governo federal. O presidente não é o dono dos recursos. Eles são dos brasileiros.

O presidente Bolsonaro tem errado mais do que é tolerável nesta crise. E a sua administração vai se esgarçando, mesmo as boas partes. Ontem, o ministro Luiz Henrique Mandetta fez uma exibição de subserviência e contorcionismo, ao tentar adaptar seu discurso à insensatez presidencial. A ex-ministra Marina Silva disse que o ministro da Saúde não pode permanecer no cargo ao custo de abrir mão do que é correto na área médica e científica. “Mandetta não pode ficar ao custo de ser adaptado”, disse a ex-ministra.

Bolsonaro vai perdendo o poder de fato com suas atitudes temerárias. Ontem, os governadores se reuniram sem ele. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, participou da reunião de videoconferência e, depois, em entrevista deixou claro que “se fosse para ajudar o presidente teríamos dificuldade de conseguir quórum”, mas para votar medidas pelo Brasil ele disse que trabalhará com as lideranças. Se alguém não sabe exercer o poder, ele o perde. É o que acontece neste momento com o presidente Jair Bolsonaro. Ontem, ele era um homem à deriva.


Eugênio Bucci: Por que, em vez da doença, eu prefiro a cura como metáfora

É hora de doar tudo o que pudermos a quem não tem, é hora de bater panela...

Susan Sontag viu nas doenças do nosso tempo, o câncer e a aids, metáforas poderosas para pensarmos sobre as mentalidades que nos aprisionam e nos fazem cativos de preconceitos e medos irracionais. Acertou no nervo. Seus livros A Doença como Metáfora e Aids e suas Metáforas viraram clássicos instantâneos. Mas agora, diante da pandemia da covid-19, em que a civilização foi inteira para a enfermaria – e em parte para a UTI –, a metáfora que olha para nós com ares de esfinge não está na doença, mas na cura.

Sim, eu bem sei que a cura não existe. Não há vacina. Não dispomos de remédios específicos e comprovados, a despeito da propalada cloroquina presidencial. Por enquanto não há um fármaco que aniquile o coronavírus. Quando muito, a medicina nos socorre combatendo os sintomas e os médicos nos apoiam para ganhar tempo, enquanto o corpo, como diria Voltaire, trata de neutralizar a moléstia.

Não há solução individual para ninguém. Uma pessoa que desenvolva um quadro grave da doença terá de contar com os paliativos hospitalares, de um lado, e, de outro, com o próprio organismo para restabelecer o corpo. É só o que temos. Na dimensão coletiva, porém, podemos recorrer a um arranjo coletivo para enfrentar a enfermidade com eficácia. Individualmente, somos indefesos, mas agindo em conjunto, socialmente, podemo-nos proteger. As esperanças que podemos ter são esperanças coletivas. É por aí que começa a metáfora da cura (da cura que ainda não há, mas já é metafórica).

As medidas que os países que não são governados por loucos estão adotando ilustram o que quero dizer. A diminuição organizada dos contatos sociais – com a interrupção das aulas, dos comícios e dos cultos religiosos, além de festas (de aniversário, inclusive) e funerais – vai se mostrando eficaz para retardar e diminuir a intensidade do chamado pico de contaminação. Se não formos por aí, será o caos. Se o volume de casos graves explodir acima de um patamar suportável, faltarão, como se viu em outros países, leitos de UTI com respiradores. Ato contínuo, virá o sufocamento do sistema de saúde, o que vai esgarçar o tecido social, com o risco da generalização de mercados negros (não só de álcool em gel) e da violência descontrolada.

A única opção sensata que temos é ficar em casa e, acima disso, ajudar aqueles que não têm moradias adequadas – e não leem estas páginas – a se proteger. Dependemos agora de renúncia e solidariedade. A renúncia é individual: consiste em abrir mão de sair por aí passeando (para buscar o prazer) ou trabalhando (para buscar dinheiro). A solidariedade, claro, só se realiza no plano coletivo. Dispensar os trabalhadores domésticos sem lhes cortar o salário é o mínimo, mas não é suficiente. Estamos sendo chamados a fazer mais.

O mais interessante é que ninguém pode controlar se será ou não será infectado, mas todo mundo pode controlar, ao menos um pouco, se será ou não um vetor de contágio. Ninguém será bem-sucedido em ficar à distância do vírus, por mais que mantenha no armário do banheiro um estoque de máscaras cirúrgicas (que estariam mais bem empregadas se fossem doadas a um hospital). O vírus virá, seja no desenho da netinha ou no prato que o restaurante caro manda entregar por motoboy. Mas temos chances de ser mais bem-sucedidos em postergar o momento em que o vírus que está em nós atinja o próximo.

Eis, então, a metáfora: a única forma de cuidar de nós é cuidar do outro. Se eu quiser cuidar de mim, individualmente, de forma egoísta, estou roubado e, mais ainda, os outros ao meu redor também estão. Note bem o improvável leitor: no caso presente, os vícios privados não nos levarão a benefícios públicos. Só nos levarão ao desastre.

Vamos dizer “não” ao desastre. Vamos dizer “sim” ao pensamento. A metáfora nos desafia a repactuar as bases da civilização enferma. O Estado despachante do capital precisa ser questionado. Os governos autoritários e destituídos de empatia precisam ser derrotados. O sujeito que faz pose de fortão e chama a pandemia de gripezinha, apoiado em fake news, precisa ser desmascarado. É hora de doar tudo o que pudermos a quem não tem, é hora de bater panela e piscar as luzes do apartamento (para quem tem panela, energia elétrica e apartamento).

É hora disso tudo, mas sem lenga-lenga de autoajuda, pelo amor de Deus. Essa conversa de redescobrir o valor da família e as delícias de lavar com cândida o chão da cozinha, francamente, não dá pé. Haja afetação. Haja mariantonietismo. Eu não vejo nenhuma vantagem em ficar trancado no meu endereço domiciliar dando aulas para um notebook, por meio do qual meus alunos tentam me entender e fazer perguntas tão atentas quanto generosas. Quero reencontrar o quanto antes as pessoas que amo e de quem preciso sentir o calor, o beijo, o abraço. Gosto de perdigotos no meio da rua. Sinto saudades das calçadas sobre a quais salivam, enquanto sonham, as famílias que não têm casa para morar e precisam ser salvas.

No mais, a metáfora me intriga.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Igor Gielow: Fala de Bolsonaro sobre crise é monumento ao radicalismo irracional

Presidente mistura agressão política e medicina de WhatsApp em hora de crise aguda

Uma característica acompanha Jair Bolsonaro desde que ele era visto como um delírio de meia dúzia de apoiadores, antes da campanha eleitoral de 2018: a mentalidade de cerco, de bunker.

O agora presidente sempre pautou seu processo decisório, caótico, pela necessidade de criar uma rede de proteção baseada na existência do proverbial inimigo aos portões. Ora era o "sistema", ora era a mídia, ora eram os outros Poderes.

Uma vez chefe do Executivo, provou-se por diversas vezes incapaz de assumir responsabilidades em momentos de crise, transferindo-as para esse Grande Outro hostil. Cambaleou até aqui, ainda mantendo respeitável apoio de um terço do eleitorado.

O pronunciamento da noite desta terça (24), no qual apareceu quase sorridente ao anunciar um futuro radiante de vitória da "nação brasileira" sobre versão local da pandemia do novo coronavírus, coroa esse movimento com uma dose extra de radicalismo quase insana —como se isso fosse possível. É um monumento ao pior que o bolsonarismo representa.

Após passar uma semana acuado pela reação à sua irresponsabilidade sanitária do dia 15, quando desceu para a galera que alegremente pedia o fechamento do Congresso e do Supremo do outro lado da praça dos Três Poderes, Bolsonaro parecia estar se controlando.

Por influência da ala militar do governo, pela enésima vez chamada a tentar colocar ordem no playground do Planalto, o presidente reduziu o grau de ataques a governadores e evitou a puerilidade ao tratar do coronavírus, que já matou 46 cidadãos governados por ele e vai matar muitos outros.

Uma coisa é discutir a racionalidade e o tempo certo de aplicação de medidas restritivas, como está sendo feito de forma escalonada em São Paulo, motor da economia nacional. É preocupação lícita. Outra coisa é brincar com o tema e falar estultices científicas acerca do efeito do vírus sobre crianças.

Ora, os pequenos podem se contaminar. Elas apenas morrem bem menos e, óbvio, são vetores do patógeno. O presidente usou rede nacional para emular um raciocínio primo daquele segundo o qual "tudo bem, só os muito velhos morrerão".

Bolsonaro teve a pachorra de aplicar uma lição de medicina de WhatsApp, ao dizer que se, se teve contato com o vírus, nada lhe ocorreu devido ao seu "histórico de atleta". Se desenvolvesse a Covid-19, seria novamente "uma gripezinha, um resfriadozinho".

É inacreditável que, neste momento, o presidente use o púlpito eletrônico que lhe é facultado para renovar os ataques à imprensa, aos governadores, e aos ditos alarmistas. Refazer a narrativa, dizendo que estava preocupado desde o começo, mas "sem histeria", vá lá, é do jogo. Não sei se engana mais alguém.

O som ensurdecedor de panelas e buzinas Brasil afora se fez presente novamente, especialmente em nichos bolsonaristas clássicos, mostrando que a infiltração na imagem presidencial sugerida por pesquisa do Datafolha tem uma avenida a percorrer.

O mundo parece hoje estar se dividindo entre duas classes de pessoas que ocupam lugares que já foram de líderes.

De um lado, os apocalípticos, amparados no fato de que as quarentenas são a única forma conhecida de reduzir a expansão do contágio —embora não haja certeza do que acontecerá uma vez que elas são levantadas; saberemos em breve em Wuhan.

Do outro, os integrados, para ficar na figura do ensaísta Umberto Eco. Esses são liderados por Donald Trump, que quer ver seus EUA "back to business" na Páscoa, Bolsonaro e o pânico de que uma recessão destrua seus planos de reeleição, e mesmo esquerdistas como o mexicano López Obrador e seu apego a abraços. Populismo não tem coloração ideológica.

No meio, como em todo o debate acerca da polarização mundo afora, a população e alguns governantes que ainda buscam agir racionalmente enquanto a ciência tenta entender melhor a natureza desse novo inimigo.

Por tantas incertezas, não é impossível que o vírus entre mais ou menos rapidamente no rol de riscos aos quais aceitamos nos submeter todo dia em que saímos de casa. Se isso for rápido, excelente, ainda que o preço a pagar seja ver Bolsonaro esbravejar com olhar maníaco uma vitória que nunca lhe pertenceu.

Se não for, a conta do impacto da epidemia lhe será debitada por uma população crescentemente insatisfeita. Na realidade, ela parece que já o está sendo de qualquer forma. A aposta de Bolsonaro é saltar no escuro, novamente, apoiado no irracionalismo político e pessoal.

*Igor Gielow é repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília da Folha. É autor de “Ariana”.


Cartão bolsa família | Foto: Agência Brasil

Pedro Fernando Nery: Defenda o Bolsa Família

Programa tem expertise e capilaridade para ser usado como instrumento contra a crise

Ele foi responsável por 10% da redução de desigualdade entre 2001 e 2015, e por tornar menos insuportável a pobreza de milhões – segundo estudo do Ipea e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. É um feito notável para um programa que custa menos de 0,5% do PIB. Principal mecanismo de proteção de renda de informais e desempregados, o Bolsa Família chega já em crise para atender à crise do coronavírus.

Ele custa um décimo do gasto com funcionários públicos, e cerca da metade da isenção de lucros e dividendos que beneficia a elite que não paga imposto de renda na pessoa física. Mas tem enfrentado cortes. As filas são antigas: Temer conseguiu zerar, mas já à custa de exclusões. Elas voltaram, em meio à recuperação econômica desigual.

No atual governo, o Bolsa Família recebeu um 13.º maldito. Um pagamento adicional, promessa de campanha, seria louvável – desde que houvesse orçamento adicional. Sem a complementação, o 13.º implicou exclusão: famílias comprovadamente pobres ficaram sem receber nada para que outras recebessem o pagamento adicional.

Para piorar a falta de complementação, os escassos novos pagamentos de 2020 se centralizaram nas regiões mais ricas, apesar de filas gigantes no Nordeste. É que o critério de concessão ignora completamente as filas, e usa estimativas de pobreza baseadas no Censo de 2010. De lá para cá, o País viveu a recessão de 2015-16, que afetou mais o Nordeste, quando a recuperação favoreceu mais o Centro-Sul.

Por isso, dos 100 mil novos benefícios concedidos em janeiro, Santa Catarina – com o menor desemprego do País – recebeu 6 mil, o dobro de toda a Região Nordeste. O Piauí recebeu 86. Se 12% da fila catarinense foi atendida, somente 0,1% da fila piauiense o foi. Três milhões e meio de brasileiros esperam para receber os benefícios: já estão habilitados, o que quer dizer que são reconhecidamente pobres.

Fisicamente, a fila do Bolsa poderia ocupar a distância entre Brasília e São Paulo. Ela vem depois da renda dos 5% mais pobres ter caído 40% entre 2014 e 2018 – segundo a FGV Social. É um risco político desnecessário à agenda de reformas.

Já passou da hora da fila ser zerada: é inclusive questionável que haja discricionariedade na concessão do benefício para quem já está habilitado. Nos termos da Constituição, é prioridade absoluta assegurar o direito à alimentação e à saúde das crianças – principais destinatárias do programa.

Mesmo zerar a fila é pouco agora, porque o Bolsa é o instrumento mais efetivo para repor a perda de renda da quarentena da epidemia. Primeiro, porque não exige carteira assinada, podendo ser recebido pelos informais. Até por essa focalização, é a despesa pública com maior multiplicador conhecido em curto prazo sobre o consumo e o PIB. Segundo, porque atende a crianças, um público que fica em insegurança alimentar quando as escolas fecham.

Em terceiro lugar, porque dado o grau de incerteza da evolução da epidemia, a resposta econômica à covid-19 precisa ser desejável por si. Boas propostas de reforma do Bolsa Família já tramitavam desde o ano passado. Elas miram a constitucionalização antifilas e o combate à pobreza intermitente, flexibilizando as linhas duras para acesso ao programa (que também desincentivam portas de saída).

O debate da sustentação da renda dos informais durante a pandemia vai apresentar a muitos brasileiros a modéstia dessa rede de proteção. O Bolsa Família paga benefícios de R$ 89 por mês, para as famílias que vivem com menos de R$ 89 por pessoa (extrema pobreza). As famílias que estão “só” na pobreza (menos de R$ 178 por pessoa) apenas recebem se tiverem crianças ou grávidas. O valor é de R$ 41 por dependente, um milésimo do teto remuneratório no serviço público.

O programa conta com capilaridade e expertise para ser usado como instrumento importante contra a crise: só o seu estigma pode explicar os que pedem uma nova transferência de renda para a pandemia. Mas ele precisa de recursos. Hoje, de cada real do Orçamento, o Bolsa leva só dois centavos. Defenda.

*Doutor em economia


José Márcio Camargo: De volta ao paraíso

Suspender ou flexibilizar o teto fatalmente levará a uma reversão da trajetória de queda dos juros

Na semana passada, o Congresso derrubou o veto do presidente Bolsonaro ao projeto que aumenta o limite para receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC) de ¼ para ½ do salário mínimo. Segundo o Ministério da Economia, isso significa um aumento de gasto obrigatório de R$ 20 bilhões em 2020 e R$ 217 bilhões em dez anos, o que tornaria impossível o cumprimento do teto para o crescimento do gasto público. Uma decisão em total desacordo com as necessidades do País.

No final de 2019, o governo enviou ao Congresso três Propostas de Emenda Constitucional (PECs) que, em conjunto com a PEC da Regra de Ouro, caso aprovadas, criariam condições para a redução dos gastos obrigatórios do governo e tornariam o teto do gasto sustentável. A derrubada do veto ao aumento do limite do BPC faz com que a aprovação dessas propostas seja uma condição necessária, mas talvez não suficiente, para a manutenção do teto.

A pandemia da covid-19 é uma emergência que vai requerer recursos públicos e, portanto, redução de outras despesas para que o teto seja respeitado. Este é um dos objetivos do teto dos gastos: criar na sociedade brasileira (população, Legislativo e Executivo) a cultura de ordenar e definir prioridades no processo orçamentário. As quatro PECs que estão no Congresso viabilizam essas escolhas ao diminuir os gastos obrigatórios. A opção seria suspender ou flexibilizar o teto, como já sugerem alguns analistas. Por que não adotar essa alternativa?

Um importante objetivo do teto é criar condições para uma redução estrutural das taxas de juros da dívida pública brasileira, que, por décadas, estavam entre as maiores do mundo. Por que a existência do teto atingiria esse objetivo?

Para respeitar o teto, os gastos públicos terão de permanecer constantes em termos reais até 2026. Ou seja, todo aumento de receita terá de ser alocado para reduzir o déficit primário, ou a dívida pública, ou a carga tributária. Portanto, qualquer crescimento real do PIB vai, eventualmente, levar a uma redução da dívida como proporção do PIB. Afinal, se o PIB cresce, crescem as receitas tributárias e, como os gastos estão constantes, eventualmente vão sobrar recursos para diminuir a dívida.

Como a relação entre a dívida pública e o PIB é o principal indicador de solvência do País, a existência de um teto é uma garantia de que o grau de solvência do Brasil vai melhorar no futuro. Quando isso acontecer, a demanda pelos títulos públicos e, portanto, seus preços deverão aumentar, com a consequente queda das taxas de juros.

Mas os investidores só conseguem lucrar com suas aplicações financeiras se forem capazes de antecipar os movimentos dos preços dos ativos. Ou seja, se a expectativa dos investidores é de que os preços dos títulos vão aumentar no futuro, a melhor estratégia é comprar hoje e esperar os preços aumentarem para vender no futuro. Com a antecipação do movimento, o resultado é um aumento dos preços e queda nas taxas de juros no presente.

Não deve ter sido por simples coincidência que as taxas médias de juros reais pagas pelos títulos do governo brasileiro mostraram forte redução (de 21% ao ano para 5% ao ano) desde que o teto para o crescimento do gasto público foi aprovado, em dezembro de 2016.

Suspender ou flexibilizar o teto retira a restrição para o crescimento do gasto público e destrói este mecanismo automático de ajuste, o que fatalmente vai levar a uma reversão da trajetória de queda dos juros que ocorreu nos últimos três anos e meio. E, com juros mais elevados, aumenta a probabilidade de uma volta da recessão. Um tiro no pé.

Também não foi coincidência que, após a derrubada do veto ao aumento do BPC, uma decisão que mostra total irresponsabilidade do Congresso, as taxas de juros dos títulos públicos subiram acentuadamente. Um indicador eloquente do que poderá estar à frente caso o teto seja flexibilizado ou suspenso: a volta do paraíso dos rentistas!

* Professor do Departamento de Economia da PUC/Rio, é economista-chefe da Genial Investimentos