crise

El País: Reunião expõe ao menos dois crimes de Bolsonaro, apontam juristas

Vídeo e entrevista desmontam versão de presidente sobre PF e elevam pressão sobre Aras por denúncia. A uma radio, mandatário diz ter sido avisado de operações policiais contra a família

Carla Jimenéz, Afonso Benites e Felipe Betim, do El País

A íntegra da reunião do conselho de ministros de Jair Bolsonaro revelada nesta sexta-feira por ordem do decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Melloexpôs como nunca o modus operandi do Governo ultradireitista e desmontou a versão do presidente de que ele jamais havia cobrado mudanças na estrutura de segurança, Polícia Federal incluída, para proteger seus familiares. Nas imagens, Bolsonaro aparece não apenas ameaçando trocar “ministro” caso não fosse atendido na missão de preservar seus parentes de “sacanagens” —ele mira na direção do então ministro da Justiça, Sergio Moro no exato momento—, como fala também da necessidade de proteger “amigos”. O Planalto vinha repetindo que o presidente, na reunião, se referia à segurança pessoal de seus familiares, que cabe ao GSI (Gabinete Segurança Institucional), e não a policiais federais. A menção aos amigos, porém, complica ainda mais a linha de defesa de Bolsonaro no inquérito que apura se ele tentou interferir na PF, uma vez que o GSI não teria como se envolver na proteção de quem não seja da sua família.

De acordo com juristas ouvidos pelo EL PAÍS, o vídeo corrobora a tese de Moro de que houve intenção de intervir na corporação policial, e aponta para ao menos dois crimes: advocacia administrativa e prevaricação. O primeiro é um crime previsto no Código Penal, que é patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração pública. Já a prevaricação diz respeito a ações ou omissões de funcionário público para atender objetivo de terceiros.

“O vídeo traz uma fala bastante clara do presidente dizendo que não mediria esforços para interferir em estrutura governamental —no caso, a Polícia Federal— para proteger familiares e amigos. Isso corrobora a versão do ex-ministro Sérgio Moro”, diz Eloísa Machado, professora de direito constitucional na FGV Direito de São Paulo. “Não podemos esquecer que, de fato, o presidente promoveu mudança na Polícia Federal, indicando pessoa muito próxima da família e que depoimentos do inquérito confirmam também essa versão”, explica Machado. “O vídeo derruba a justificativa do Bolsonaro de que ele se referia à segurança do GSI, e não à PF. Ele fala expressamente em ‘foder amigos meus’, e amigo de presidente não tem segurança do GSI. Só pode ser a PF”, concorda Rafael Mafei, da USP.

Um jurista próximo à Procuradoria Geral da República, avalia que o vídeo é muito ruim do ponto de vista jurídico para o presidente Bolsonaro. “Ele demonstra muita preocupação. Ele quer o tempo todo puxar esse assunto. Ele avisa aos ministros o tempo todo que precisa deles. Aquela reunião foi para o Moro”, acredita. Ele destaca que o presidente falou que contava com “inteligência particular”, e que a PF não informava nada. “Não tinha nada a ver com segurança, ele criticou a PF. Mesmo não sendo assunto, ele falava, e mudava o assunto”, explica ele.

pressão sobre Moro ficou destacada em vários momentos da reunião. Em um deles, Bolsonaro disse que o ministro deveria se manifestar sobre a prisão de pessoas que furavam a quarentena para conter os contágios do novo coronavírus. “Tem que falar, pô! Vai ficar quieto até quando? Ou eu tenho que continuar me expondo? Tem que falar, botar pra fora, esculachar!”. Em outra ocasião, voltou ao tema da “interferência” e avisou seus ministros de que iria interferir em suas pastas se fosse preciso. Reclamou que a Polícia Federal não passava informações ao Planalto. “Eu tenho o poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção”. E prosseguiu: “Eu não posso ser surpreendido com notícias. Eu tenho a PF que não me dá informações. Eu tenho as... as inteligências das Forças Armadas que não tenho informações. ABIN tem os seus problemas, tenho algumas informações”.

Depois, em entrevista à Jovem Pan após a divulgação do vídeo, o presidente voltou a reforçar a ideia de que exigia de Moro espécie de proteção via PF. “O tempo todo vivendo sob tensão, possibilidade de busca e apreensão na casa de filho meu, onde provas seriam plantadas. Levantei isso, graças a Deus tenho amigos policiais civis e policiais militares do Rio de Janeiro, que isso tava sendo armado pra cima de mim”, disse Bolsonaro. “Moro, eu não quero que me blinde, mas você tem a missão de não deixar eu ser chantageado”, lembrou.

Efeito político e próximos passos

O conteúdo do vídeo agora será analisado pela Procuradoria Geral da República —que também terá e mãos uma série de depoimentos e as novas acusações feitas pelo ex-aliado de Bolsonaro Paulo Marinho. “Certamente esse vídeo ajuda a compor o acervo probatório indiciário de crimes”, diz Eloísa Machado. A pressão agora recai sobre Augusto Aras, uma vez que ele pode acusar formalmente o presidente de crime. “Com certeza há substância para abrir um pedido de afastamento. Se vai abrir ou não é outra coisa. Mas isto é muito mais que o Fiat Elba que afastou o presidente [Fernando] Collor e muito mais que a pedalada fiscal da presidenta Dilma [Rousseff]”, diz o jurista próximo à PGR. Machado, da FGV, concorda com o embasamento para destituição.. “São crimes comuns, que também geram afastamento e perda do cargo, caso aconteça a condenação”, conclui.

Para o advogado Marco Aurélio de Carvalho, o procurador-geral Augusto Aras, tem a obrigação de apontar o crime de prevaricação do presidente diante do conteúdo do vídeo, ou ele mesmo pode ser acusado de prevaricação. “Essa tentativa de interferência se enquadra plenamente no artigo 85 da Constituição Federal e é suficiente para dar ensejo, entre outras, a pedido de cassação do presidente”, diz o advogado Cristiano Vilela, da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo.

A grande pergunta é como Aras, indicado por Bolsonaro em setembro de 2019 como alguém “alinhado” ao Planalto, reagirá. Se decidir pela denúncia contra Bolsonaro, ela ainda precisará dos votos dois terços dos deputados para virar uma ação penal e, assim, afastar o presidente do Planalto. Para tentar prever o quanto de pressão o procurador-geral e o Congresso terão na matéria, uma variável é quanto de desgaste as imagens, cheias de palavrõs e vulgaridades, trarão para o apoio popular de Bolsonaro, já afetado pela crise do coronavírus. Rafael Mafei, da USP, é cético: “O vídeo alimenta a base de Bolsonaro”.

Em sua defesa, o presidente disse que considerou a divulgação do vídeo como positiva. “Até que foi boa. Cada um pense, interprete da maneira que quiser esse vídeo, mas é a maneira que eu tenho de ser. E vou continuar sendo assim porque antes da eleição eu era assim. Como militar eu era assim”, afirmou em entrevista à rádio Jovem Pan. Ainda tratou as revelações de Moro como falsas. “É mais um tiro n’água, mais uma farsa como tantas outras que eu acompanho em minha vida”.

O escritor autoexilado nos Estados Unidos e ideólogo do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, concordou com a ideia de as imagens mostram um presidente “autêntico”: “Ouvi dizer que o Moro e o Celso de Mello estavam escondendo um vídeo do Bolsonaro, para depois exibir e dizer: ‘Ah, vamos mostrar ao povo quem é o Bolsonaro’. Pois mostraram, Bolsonaro é o presidente que todos os brasileiros quiseram e querem. É o presidente que não suporta ver uma elite armada oprimindo um povo desarmado.”

Processo contra Weintraub e impeachment

Ao citar “povo desarmado”, Carvalho se referia ao trecho da reunião em que Bolsonaro falou abertamente que pretende armar a população. Um dos intuitos declarados foi o de intimidar prefeitos que decretaram quarentena durante a pandemia de coronavírus. "O que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui!”.

As imagens ainda revelaram o plano do ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) de se aproveitar da crise sanitária para alterar uma série de regras de proteção ambiental, mostram Damares Alves (Direitos Humanos) ameaçando governadores de prisão e escancaram a conduta do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que ameaçou autoridades e ministros do Supremo Tribunal Federal. “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”, disse Weintraub. O ministro da Educação é o que está mais próximo de se complicar por causa do vídeo. Na decisão que liberou a íntegra das imagens, Celso de Mello apontou “indício de crimes contra a honra” do Supremo.

No meio político, a reação foi imediata. A oposição, que não tem maioria no Congresso e ainda não convenceu o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a por em andamento um processo de impeachment, não poupou indignação: “Repleto de crimes, ameaças à democracia, quebras de decoro e de falta de ética para gerir uma nação. São inaptos, mas também são abjetos. Bolsonaro não pode continuar a frente da presidência da República! Tem que cair pelo bem do país”, escreveu o senador Randolfe Rodrigues (REDE).

A antiga líder do Governo no Congresso, a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), disse que o Ministério Público não pode mais segurar qualquer denúncia contra Bolsonaro. “As provas são cabais e podem embasar tanto um processo de impeachment quanto de interdição. Bolsonaro conseguiu dar munição aos dois. É um mito!”, ironizou.


IPEA: Socorro Governamental às Pequenas Unidades Produtivas Frente à Atual Pandemia

Nota Técnica - 2020 - Maio - Número 63 - Diset

Por Mauro Oddo Nogueira, Sandro Pereira Silva e Sandro Sacchet de Carvalho

Acesse aqui o PDF (555 KB)

A atual pandemia produzida pelo Sars-CoV-2, o chamado “novo coronavirus”, vem suscitando diversas discussões sobre seus possíveis impactos econômicos, marcadas por controvérsias e também por alguns consensos entre analistas e autoridades.

A despeito da duração da crise e do grau de isolamento social a que as populações estão sendo submetidas, alguns indicadores recentes já apontam que seus efeitos terão uma magnitude, ao menos, comparável às maiores crises econômicas que o mundo moderno vivenciou. As atividades econômicas ao redor de todo o mundo estão sendo massivamente afetadas, seja por imposição do isolamento social, seja por indisponibilidade de elevados contingentes de trabalhadores acometidos pela Covid-19 associada à um recolhimento voluntário das pessoas em face do medo – fenômeno que está sendo chamado de lockdown endógeno. Sendo as empresas elos importantes das cadeias produtivas, essa paralisação se propaga a montante e a jusante, tanto pela suspensão das aquisições de seus fornecedores quanto pelo desabastecimento das empresas-clientes. O resultado é uma rápida e grave propagação da “virose econômica”, desestruturando – ou mesmo destruindo – cadeias produtivas ao redor de todo o globo.

Ademais, as projeções de evolução do produto interno bruto (PIB) para os próximos meses são cada vez mais pessimistas; quanto mais duradoura e profunda for a crise, maior o grau da recessão vindoura. Evidentemente, a queda no produto terá impacto proporcional nas receitas públicas, agravando significativamente o deficit fiscal, o que fortalece a pressão sobre os governos nacionais para a tomada de medidas urgentes de enfrentamento dessa conjuntura indesejada.

Um aspecto que surge com certo consenso é o de que o “grupo de risco” mais sensível à “virose econômica” é aquele formado pelas micro e pequenas empresas (MPEs) e os trabalhadores autônomos, sobretudo os que operam no contexto da informalidade. São empresas com limitado capital de giro e baixíssimas reservas de capital (Bartik et al., 2020), cuja atuação se concentra nos setores de comércio e serviços (Sebrae, 2020b), os mais atingidos pela crise. Além disso, essas unidades produtivas estão inseridas em cadeias também formadas majoritariamente por outras MPEs. No Brasil, pequenos negócios ou autônomos, formais ou informais, ocupam quase três quartos da massa de trabalhadores (Nogueira e Zucoloto, 2019), sendo, portanto, onde as consequências sociais decorrentes de um surto de desemprego, da suspensão dos salários ou da cessação de receitas individuais impactarão mais profundamente a sociedade brasileira. Assim, devem ser esses os principais beneficiários das medidas governamentais de socorros aos agentes produtivos.

É também consensual que, independentemente de quais as formas de socorro providas pelo Estado, o fator tempo em sua implementação é crucial para que a reação em cadeia não se instaure de forma incontrolável. No caso das MPEs brasileiras, uma pesquisa realizada pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), sobre a situação das MPEs no contexto da crise atual, aponta que estas conseguem sobreviver sem faturamento somente por, em média, 23 dias (Sebrae, 2020a). Quanto aos trabalhadores autônomos, não há dúvidas de que sua fragilidade é ainda maior, dado o conjunto de vulnerabilidades com que eles se defrontam (Nogueira e Zucoloto, 2019; Silva, 2017).

Diante desse contexto, este trabalho tem por objetivo avaliar as principais ações do governo federal brasileiro, no sentido de socorrer os segmentos mais vulneráveis do aparato produtivo nacional. Como será possível observar ao longo do texto, entendemos que as medidas apresentadas até o momento não se conectam em uma perspectiva sistêmica, mas, sim, compõem uma miríade cujo entendimento está escapando à grande parte dos micro e pequenos empresários e dos trabalhadores autônomos, alvos principais das ações aqui destacadas.


José Casado: A crise em câmera lenta

Construção do impedimento está se tornando fato político

Quem assistiu ao vídeo da reunião ministerial de 22 de abril pôde confirmar: o governo resolveu preencher com palavras o vazio de ideias sobre a crise humanitária.

Morreram mais de 16 mil pessoas até ontem. São 1.105% mais vítimas do que o país possuía apenas um mês atrás. É como se, em quatro semanas, houvesse desaparecido a população inteira de cidades do tamanho de Sumidouro, no Rio, Pindorama, em São Paulo, ou Canudos, na Bahia.

As cenas gravadas são de inusual crueza. O Planalto surge como centro de um pandemônio político na pandemia. Bolsonaro e alguns ministros se desqualificam em atmosfera de vulgaridades, incapazes de discernir entre a realidade e a fantasia autoritária. Confirmam a ironia do vice Hamilton Mourão: “Está tudo sob controle… só não se sabe de quem.”

O vídeo contém fragmentos de um processo de suicídio político, em câmera lenta. É parte do mosaico de autoflagelo que justifica pressões crescentes, hoje materializadas em três dezenas de pedidos de impeachment. Elas aguardam decisão do presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Há pedido no STF para impor à Câmara uma rápida resolução dos requerimentos sobre o impedimento de Bolsonaro. O Supremo vai decidir sobre o tempo de Maia para aceitar ou recusar. O caso é relatado pelo juiz Celso de Mello e tem desfecho previsto para esta semana. Maia alegou que não há prazo regimental, mas especialistas acham que o tribunal tende a reconhecer o direito de petição, e a obrigação de resposta diligente do servidor público.

A construção do impedimento está se tornando fato político, a despeito da decisão do procurador-geral sobre eventual crime de responsabilidade ou de Maia rejeitar os atuais pedidos de impeachment.

É impossível prever o desfecho, mas Bolsonaro percebeu o quanto já aumentou o custo da sua permanência no poder. Ontem entregou ao grupo de Valdemar Costa Neto, do PL, notório ex-presidiário do mensalão, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), onde se gasta por ano o equivalente a 20% do orçamento do Ministério da Saúde.


El País: Brasil supera a Espanha e já é o quarto país em infectados no mundo

Já são mais de 15.000 mortos, 816 nas últimas 24 horas. País se aproxima do Reino Unido em número de infectados, com 233.142 neste sábado. País digere a queda do segundo ministro da Saúde

O Brasil chega a este sábado com uma cifra triste de 15.633 mortes confirmadas por coronavírus. Foram 816 mortes confirmadas somente nas últimas 24 horas, segundo o Ministério da Saúde. O Brasil já superou a Espanha e a Itália em número de pessoas infectadas, com 233.142 casos confirmados. O país fica atrás agora de Estados Unidos, Reino Unido (241.461), um país de quase 70 milhões de pessoas, contra os 210 milhões no Brasil, em seguida Rússia (272.043) e Estados Unidos com quase um milhão e meio de infectados.

Quase 90.000 se recuperam do vírus, mas as contaminações continuam a escalas cada vez maiores. O epicentro da pandemia no país, São Paulo, soma 61.183 infectados e 4.688 mortes, seguido por Ceará e Rio de Janeiro. Essa realidade se depara com a insistência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em se concentrar na agenda econômica, enquanto perde seu segundo ministro da Saúde em plena pandemia. Nelson Teich pediu demissão por não aceitar a pressão de recomendar a cloroquina no combate à covid-19 — assim como seu antecessor, Luiz Henrique Mandetta (DEM-GO), um mês antes.

Eis um embate para o próximo nome que assumir a pasta. Até o momento não há estudos que comprovem a eficácia do medicamento no tratamento da covid-19. Duas grandes pesquisas feitas recentemente nos Estados Unidos com milhares de pacientes, e publicadas em respeitadas revistas científicas internacionais —o que significa que foram revisadas por outros cientistas—, mostraram que o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina não diminuiu a mortalidade por covid-19.

Enquanto isso, o Exército aumentou em 80 vezes a produção de cloroquina., conforme contou o EL PAÍS. O Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx) produziu 1,2 milhão de comprimidos do final de fevereiro até meados de abril. Até o começo da pandemia, a média era de 250.000 comprimidos a cada dois anos, segundo a assessoria de imprensa do Exército. O fármaco atende a quem sofre de lúpus, malária e, agora, segundo o Governo, pacientes com covid-19, apesar das negativas médicas. "A capacidade de produção pode ser de até 1 milhão de comprimidos por semana”, diz a instituição, que produz a droga sob encomenda do Ministério da Saúde.

O ex-ministro Mandetta chegou a dizer em entrevista ao Correio Braziliense que Bolsonaro quer “empurrar” a cloroquina para o tratamento de covid-19 para que as pessoas se sintam confiantes e reativem a economia. “Ele quer um medicamento para que as pessoas sintam confiança, para retomar a economia. A pessoa fica na sua tranquilidade achando que o medicamento resolve o problema. Como é barato e o Brasil produz, por ser medicamento da malária… Só que malária costuma dar em mais jovens”, afirmou.

O próximo à frente da pasta viverá essas pressões, assim como as cobranças pelo fim do isolamento social, outra bandeira de Bolsonaro durante a pandemia. Acertar um plano com o Brasil todo, que case cuidado com a saúde e com a economia é contar com o aceite geral da sociedade de soluções alternativas ao consenso mundial do controle da covid-19. A Organização Mundial da Saúde e a comunidade médica e científica advertem que é o único caminho para frear o ritmo de contágio neste momento agudo. Não se sabe o que acontecerá com o país conduzido com Bolsonaro. É um momento difícil no Brasil .


Folha de S. Paulo: Teich pede demissão do Ministério da Saúde

Nelson Teich avisou Bolsonaro que não poderia mudar o protocolo sem comprovação científica

Natália Cancian e Talita Fernandes, da Folha de S. Paulo

A dois dias de completar um mês no cargo, o ministro da Saúde, Nelson Teich, pediu demissão nesta sexta (15), informou o próprio ministério.

Uma coletiva de imprensa será marcada nesta tarde, de acordo com a pasta.

Em sua breve passagem pelo cargo, Teich teve poder como ministro minimizado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Na segunda (11), foi informado pela imprensa de decisão do presidente de aumentar a lista de atividades essenciais com salões de beleza, academias e barbearias, mostrou-se surpreso e virou alvo de memes. A postura surpresa reforçou a visão de que o ministro estava afastado de decisões que interferem em recomendações da Saúde.

Também foi enquadrado por Bolsonaro a ampliar o uso da cloroquina para pacientes com quadros leves da Covid-19, apesar da falta de evidências científicas do medicamento para o novo coronavírus. Estudos recentes internacionais, publicados em revistas científicas de prestígio, não mostraram benefícios da droga em reduzir internações e mortes e apontaram riscos cardíacos.

As divergências sobre o uso da droga foram consideradas a gota d'água para a saída de Teich.

Teich avisou Bolsonaro nesta sexta (15) que não poderia mudar o protocolo sem comprovação científica sobre a eficácia da cloroquina no início do tratamento.

Em uma teleconferência com grandes empresários organizada na quinta-feira (14) pelo presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Paulo Skaf, Bolsonaro afirmou que o protocolo sobre o uso da cloroquina "pode e vai mudar".

"Agora votaram em mim para eu decidir e essa questão da cloroquina passa por mim. Está tudo bem com o ministro da Saúde [Nelson Teich], sem problema nenhum, acredito no trabalho dele. Mas essa questão da cloroquina vamos resolver. Não pode o protocolo —de 31 de março agora, quando estava o ministro da saúde anterior [Luiz Henrique Mandetta]— dizendo que só pode usar em caso grave... Não pode mudar o protocolo agora? Pode mudar e vai mudar", declarou Bolsonaro.

"Cloroquina hoje ainda é uma incerteza. Houve estudos iniciais que sugeriram benefícios, mas existem estudos hoje que falam o contrário", afirmou Nelson Teich em 29 de abril. "Os dados preliminares da China é que teve mortalidade alta e que o remédio não vai ser divisor de águas em relação à doença."

Houve também cobrança por parte do governo sobre a demora dele em divulgar um plano mais flexível sobre isolamento.

Nelson Teich foi convidado por Bolsonaro para assumir a pasta com a expectativa de equilibrar as ações da pasta de forma a evitar mortes por coronavírus mas também minimizar o impacto econômico das medidas de restrição.

Inicialmente, chegou a dizer que o país "não sobrevive um ano parado" e defendeu um "plano de saída" do isolamento.

Em seguida, pressionado por parlamentares, passou a dizer que o ministério "nunca mudou" de posição sobre o distanciamento. Ainda assim, vinha defendendo que as medidas sejam avaliadas de acordo com o cenário de cada local.

O ministro chegou a programar o anúncio de um plano que previa diferentes níveis de distanciamento a serem aplicados por estados e municípios, com base na avaliação de diferentes indicadores.

A divulgação, porém, foi cancelada em cima da hora por falta de consenso com representantes de secretários estaduais e municipais de saúde. Essa foi a primeira derrota do ministro no cargo.

Desde que Teich assumiu o cargo, o governo já vinha ampliando o número de militares na gestão da saúde. O ministro também não chegou a definir sua equipe completa, deixando postos-chave na assistência sem definição.

Teich é o segundo ministro a deixar a Saúde em meio à pandemia. Juntamente com o impasse sobre o isolamento social, divergências sobre a aplicação da cloroquina e da hidroxicloroquina em pacientes da Covid-19 foram um dos principais pontos que levaram à demissão de Luiz Henrique Mandetta, em 16 de abril.

Internamente, o governo estuda que a pasta seja assumida pelo secretário-executivo, general Eduardo Pazuello.

Panelaços foram ouvidos em São Paulo e no Rio de Janeiro após o anúncio do ministro.


El País: Brasil perde status de democracia liberal perante o mundo

Instituto V-Dem diz que país é mera democracia eleitoral. Ataque orquestrados a jornalistas, enfermeiros e cientistas são a ponta do iceberg. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade

Nesta semana, o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, apresentou um dado revelador: no mundo, 40% das postagens numa grande plataforma social sobre a covid-19 eram realizadas por robôs. Se o dado em si é surpreendente, a pergunta que precisa ser feita é óbvia: a quem serve tal esforço? Por qual motivo um movimento disfarçado de indivíduos anônimos ― e portanto de massa ― buscaria influenciar a opinião pública sobre uma pandemia que matou nos EUA mais que a Guerra do Vietnã?

E por qual motivo líderes de nações supostamente democráticas se lançam, ao mesmo tempo, em ataques explícitos ou camuflados de “espontâneos” contra a imprensa, um eventual antídoto à proliferação de desinformação? No domingo, em pleno dia internacional da liberdade de expressão, jornalistas foram atacados em Brasília. A opção da presidência foi por minimizar os eventos. Dias depois, foi a vez do próprio presidente Jair Bolsonaro revelar sua índole mais íntima ao mandar um repórter “calar a boca” e ofender a imprensa.

Os jornalistas são apenas parte de uma nova rotina do poder. Nesta terça, Bolsonaro gritou duas vezes com jornalistas mandando um “cala a boca”, algo que só a ditadura viu no Brasil. Mas os relatos se espalham pelo país sobre como enfermeiras e médicos estão sendo alvos de ataques de apoiadores do Governo. Não faltam agressões morais contra professores, artistas, intelectuais ou cientistas, todos eles vistos como potenciais ameaças. Enquanto isso, nas redes sociais, milhares de robôs e apoiadores autênticos de um movimento violento transformam plataformas em trincheiras da mentira.

Nos discursos, quase nunca de improviso, Deus e ódio se misturam nas mesmas frases. Judas é evocado para atacar antigos pilares do movimento. A religião passa a legitimar abusos de direitos humanos. Pede-se orações para que um líder cuja promessa era a de exterminar o contraditório. Todos se apresentam como pessoas de bem. Todos se apresentam como patriotas, únicos autorizados a vestir as cores nacionais.

Nas ruas, nas praças, no mundo virtual ou na violência diária, todos esses personagens têm algo em comum: o desprezo pela democracia. O ruído causado por esse grupo, instigado por seus líderes, certamente é maior que seu número real de apoiadores. Mas ainda assim tal massa é relevante no cenário em que vivemos. Uma massa que mistura classes sociais sob uma única ideologia, com um comportamento fanático capaz criar uma surdez crônica.

Instrumentalizada, ela cumpre justamente um objetivo, online e offline: o de dar pinceladas de legitimidade popular a um movimento claramente autoritário. “Foi uma demonstração espontânea da democracia”, afirmou o presidente, numa referência aos recentes atos. Nada disso é novo. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade.

Hannah Arendt aponta como, anos antes da chegada ao poder de tais forças na Europa, sociedades de classes foram dissolvidas em massas. Já os partidos foram destruídos e substituídos apenas por ideologias. Em Brasília neste fim de semana, as caravanas do autoritarismo eram a distopia de um sonho de uma cidade erguida para ser a capital de um novo século, democrático. Nas sombras dos traços do arquiteto estavam os reflexos de uma parcela da sociedade que jamais viu a democracia com entusiasmo, que sempre desconfiou da ideia do pluralismo, que jamais entendeu a noção do público e que, com seu egoísmo insultante, nutre a convicção de que as instituições são uma fraude.

Ameaçado pelo vírus e por uma recessão brutal, o Governo mobiliza suas tropas cegas pela ignorância para se defender, aprofundar seu desprezo pela verdade e levar um país ao limite de sua coesão nacional. Todos os sinais apontam na mesma direção: a democracia brasileira está ameaçada e seu desmonte ocorre em plena luz do dia. Em cada desafio disparado a um dos poderes, em cada gesto de violência, em cada mentira disseminada e em cada caixão enterrado.

O Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, um dos maiores bancos de dados sobre democracias no mundo, já deixou de classificar o Brasil desde o começo do ano como uma "democracia liberal”. Agora, o país é uma mera democracia eleitoral.

O instituto produz e coleta informações sobre países entre 1789 a 2019 e conclui que, nos últimos dez anos, a deterioração da democracia no Brasil só não foi maior que a realidade verificada na Hungria, Turquia, Polônia e Sérvia. Segundo Staffan Lindberg, um dos autores do informe e diretor do instituto, tal tendência ganhou uma nova dimensão mais recentemente. “O Brasil foi um dos países no mundo que registrou a maior queda nos índices de democracia nos últimos três anos”, alertou.

Na ONU, gabinetes da alta cúpula da entidade são tomados por preocupações em terno do discurso anti-democrático e o encolhimento real do espaço civil. Pela primeira vez em décadas, o país é denunciado nas instâncias internacionais, inclusive por flertar com o risco de genocídio.

Em outras palavras: o direito inalienável de viver numa democracia plena não está garantido. O Centro para o Futuro das Democracias da Universidade de Cambridge foi categórico num recente informe sobre a situação das democracias no mundo: “Para o Brasil, ao que parece, o futuro foi adiado mais uma vez”.

Enquanto essa eterna promessa é uma vez mais torturada, a fronteira entre massa hipnotizada e dos robôs programados para disseminar desinformação parece se desfazer à medida que a crise institucional e de valores se aprofunda. No mundo virtual ou numa praça ensolarada, ambos tem a missão de disseminar um vírus mortal: a pandemia do ódio, capaz de aleijar uma democracia. Como troféu, seu mito governará sobre esqueletos, mordaças e carcaças. Ainda assim, com a fumaça negra desonrando o horizonte do Planalto Central, irá declarar solenemente: “e daí?”.


Alon Feuerwerker: Os riscos e a prudência

Tentar decifrar o que vai no pensamento alheio é sempre meio estrambótico. Tipo aquelas especulações “o presidente pensou em nomear fulano, mas acabou nomeando sicrano”. Um exemplo de afirmação indesmentível. Quem poderá mesmo garantir que o sujeito pensou em algo, ou deixou de pensar? E assim segue a vida.

Outra excentricidade é imaginar que todas as ações de governos e governantes são previamente pensadas e planejadas para atingir determinados objetivos, e sempre obedecendo a um bem elaborado e pré-estabelecido cenário. Parte do pressuposto, em geral, de que o governante é um gênio.

Esses dois mecanismos mentais derivam em parte da necessidade compulsiva de que tudo tenha uma explicação lógica, necessidade que é irmã siamesa do desejo de acreditar que as decisões de quem nos lidera têm sempre um fundo racional. O paralelismo mais comum, usado à exaustão, é com piloto de avião e comandante de embarcação.

Pululam as teorias sobre a razão da saída de Sérgio Moro. Todas merecem ser jornalisticamente investigadas. Então eu vou participar também com algum “especulol”. E se Jair Bolsonaro forçou a demissão para evitar que um potencial adversário em 2022 continuasse se criando e ganhando musculatura política de dentro do governo?

Perguntei aqui em janeiro: “E se Moro virar o candidato do ‘centro’?”. Sabe-se que 1) a principal oposição ao presidente desde o início do mandato é a busca de um “bolsonarismo sem Bolsonaro”; e 2) até agora os candidatos a liderar esse bloco potencial não demonstram musculatura suficiente, pelo menos nas pesquisas.

A demissão de Moro abre-lhe a possibilidade de disputar o posto agora sem amarras. Mas depende de ele conseguir provocar a amputação do mandato presidencial. Por meio do Congresso ou da Justiça. E depende de um segundo fator: caso Bolsonaro saia, impedir que o vice se consolide na cadeira rumo a 2022.

É um jogo em que tudo tem de dar muito certo. Nada pode dar errado. Uma jogada de alto risco.

Talvez por raciocínio, talvez por intuição, Bolsonaro leva jeito de ter forçado mesmo a demissão de Moro. Poderia eventualmente ter seguido a dança e não feito publicar logo pela manhã no Diário Oficial a exoneração do chefe da Polícia Federal. Imagino que soubesse: ficar nesta circunstância seria humilhante demais para o ex-juiz da celebrada Lava-Jato.

E já que estamos falando em risco, o de Bolsonaro é o impeachment ou alguma outra modalidade legal de afastamento. Neste momento, são bem minoritárias as forças políticas que desejam isso de coração. Exatamente porque não são elas que comerão o bolo se organizarem a festa. Ou vai ser Moro, ou vai ser (Hamilton) Mourão.

A resistência dos políticos nunca é garantia, mais ainda quando a chamada opinião pública entra em modo de campanha para supostamente salvar o Brasil, algo que se dá de tempos em tempos. Entretanto, pensando bem, é um processo que já vinha sendo ensaiado. Então é possível que Bolsonaro tenha decidido limpar a área, mesmo que à beque de fazenda.

Ainda falando em risco, um adicional para Moro é sua onda ser surfada por quem deseja tirar o presidente e depois o ex-ministro ser simplesmente abandonado em favor de quem estará na cadeira com a caneta na mão e isento de culpa na confusão. Sobre isso, cumpre notar que o retrospecto do destino dos heróis dos recentes impeachments recomenda alguma prudência.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Paulo Fábio Dantas Neto: Notas sobre a conjuntura e o depois – abril 2020

Interpretação de uma situação de fato

A substituição do ministro da Saúde foi um revés para uma boa política de enfrentamento da pandemia. Esse é o impacto mais importante. Atinge todo mundo. A sociedade perde, ao menos momentaneamente, a orientação, segura, transparente e diária que vinha sendo dada pelo Ministério da Saúde, numa conjuntura crítica de incerteza e medo. O próprio Estado sofre, porque suas instituições, flagrantemente em desacordo com a decisão presidencial, tendem a ficar ainda mais tensionadas. E o governo, particularmente, terá que alterar conceitos políticos, procedimentos técnicos e rotinas administrativas em pleno desenrolar de uma situação crítica.

O impacto sobre o Presidente da República é ambíguo. De um lado, o fato dele ter tomado uma decisão na contramão da ampla maioria da população certamente desgasta mais sua imagem, já bastante desgastada por sua conduta imprudente no cargo, que não começou agora. Ao mesmo tempo o devolve ao jogo, pois ele retoma, em parte, a iniciativa política que perdera por causa dessa conduta. Ele não abandonou a atitude imprudente, longe disso, mas, radicalizando-a, criou nova situação e parece começar a sair das cordas, reanimando suas falanges - as radicais e as áulicas -, energizadas com a ostentação de autoridade. Acima de tudo, afastou do seu governo uma personalidade política em ascensão, no caso o ex-ministro Mandetta, que ele logo enxergou como concorrente. De fato, desde que Lula caiu no ostracismo e Sergio Moro foi absorvido pela rotina de governo e por seu próprio elitismo, ninguém conseguia se comunicar embaixo com a população, como Mandetta conseguiu. Tirando-o dos holofotes, mesmo ao preço de colocar a saúde pública em sério risco, o presidente espera reverter um jogo que lhe vem sendo desfavorável. Parece ter sido essa a intenção. As próximas semanas e meses mostrarão o tamanho da distância entre a intenção e consequências políticas reais do gesto.

Mandetta teve apoio da população à sua conduta, em parte por méritos pessoais de quadro tecnicamente correto da área da saúde e de quadro político afeito ao entendimento e à articulação, dotado do talento para gerar empatia com públicos amplos. Em outra parte, pela sinergia entre a equipe do ministério e o engajamento da comunidade técnica da saúde. Com espírito público e consistente experiência em gestão da saúde pública ela soube se impor e o ministro a valorizou, como fez com a comunidade científica e acadêmica. Também pela ampla adesão da imprensa e da sociedade civil ao conceito geral da política adotada pelo MS.

Esse apoio social influenciou a atitude das forças políticas. Mas nessa área, o apoio à personalidade pública do ministro não teve o mesmo tamanho do apoio à política do MS. Foi assim inclusive com forças ditas de centro e centro-direita, com as quais ele interage com mais facilidade, por afinidade prévia. É compreensível que tenha sido assim. A projetos políticos como o do governador de São Paulo, a ascensão popular do ex-ministro não teria como ser ideia simpática, ainda que sejam convergentes as visões acerca do combate à epidemia. A possibilidade do DEM passar a cogitar o nome de Mandetta para 2022 não poderia passar despercebida. Já na esquerda petista ou vizinha, a atitude em geral não foi hostil, mas cooperativa (caso dos governadores), combinada a silêncio obsequioso das bancadas parlamentares e reticências e ressalvas, geralmente ligadas no retrovisor, nas redes sociais e sites ligados a ela. O trânsito ficou mais fluente com o embate entre Mandetta e Bolsonaro. Mas na reta final, perto da queda, o ainda ministro teve restrições diretas de Lula e Ciro Gomes. Elogios no campo político dessa esquerda só se tornaram mais visíveis após sua saída do ministério.

O novo ministro, como bem assinalou a colunista Miriam Leitão, ainda não disse a que veio. Talvez consiga dizer. Por ora, o que se pode especular, a partir de genéricas pistas que deu, é que ele esteja em linha com informações e estratégias que transitam, não necessariamente de modo consensual, nos ambientes científico, empresarial e militar. Mas é improvável que consiga realizar intentos pensando e agindo apenas como técnico. O processo deve confirmar a convicção do seu antecessor de que sem política não há caminho. E no esquema que está combinado, parece que a política vai caber a Bolsonaro, mordendo e a seus militares, assoprando.

Sobre a situação do Presidente

Nove entre dez analistas da política brasileira constatam o isolamento político do presidente. Sem negá-lo, faço duas ressalvas. O isolamento chegou ao auge na primeira semana de abril, quando lhe faltou, inclusive, condições para demitir o então ministro da Saúde. Mas a partir daí nota-se uma operação para tirá-lo das cordas, levada a cabo pelos seus ministros militares. É significativo o dado de recente pesquisa do Data Folha de que 48% do empresariado, em geral, aprovaram a mudança do ministro. Trata-se, ao que parece, de uma operação de estado maior em pleno curso, mesmo que o perfil político e pessoal de Bolsonaro a dificulte. A segunda ressalva é que, para um político com atitude política extremista e personalidade arrogante como as de Bolsonaro, isolamento político não deve levar a recuo, reflexão e reorientação de conduta. Assim reagiria um liberal-democrata e ele é a antítese disso. Para políticos como Bolsonaro, isolamento é convite à radicalização.

Parece inevitável que caia no colo de Bolsonaro a responsabilidade política pelo aumento de vítimas da pandemia, mesmo que não haja aí uma relação necessária de causa e efeito, pois nunca se poderá mensurar com precisão em que grau o afrouxamento do isolamento social se deverá à influência do presidente e em que medida o afrouxamento causará maior contaminação, ou pane no sistema de saúde. Não há nem haverá provas, mas já há forte conexão de sentido, que será difícil seu discurso neutralizar, nas condições da nossa democracia. Ainda mais quando se somar, à crise sanitária, uma dura recessão econômica, com suas implicações sociais.

Os movimentos do governo Bolsonaro – estratégia ou vôo cego?

Enxergo uma estratégia de governo, da qual Bolsonaro faz parte de modo pouco usual para quem ocupa o cargo de presidente. Há momentos de confusão, mas não desorientação. O modo de enfrentamento da pandemia e o desfecho do affair com Mandetta podem ajudar a desfazer dois erros de interpretação difundidos durante o primeiro ano do governo, dos quais não me excluo, aliás. Pensava-se em alguns ministros militares como quadros da corporação dentro do governo e que eles, nessa condição, estariam contendo um presidente incompetente e radical, para o país ser governado apesar dele, com racionalidade e moderação.

Parece mais claro, agora, que paraquedistas que ocupam salas no Planalto ou na Esplanada não o fazem como agentes do Estado, ou da corporação militar, mas como governistas cujo objetivo é sustentar esse específico governo, dando respaldo a Bolsonaro, ainda que à custa de agressões ao Estado e de saias justas com a própria corporação militar. Inclusive o Gal. Braga parece migrar para essa posição. Quando convenceram Bolsonaro a não exonerar Mandetta, naquele chamado dia do fico, quem estava sendo blindado era o presidente, não o ministro. Esse começou a ser fritado em fogo alto no dia seguinte e não a partir da sua entrevista ao Fantástico, uma semana depois. A entrevista parece ter sido a reação de Mandetta e do DEM para consumar, em condições mais favoráveis, um desenlace já decidido pelo governo, por entendimento entre Bolsonaro e seus militares.

Isso não significa que, mais adiante, essa simbiose se manterá. Mas caso se desfaça, o plano alternativo não parece ser o de dar protagonismo, com vistas a 2022, a um político democrático, seja de esquerda, ou mesmo de centro, direita, ou centro direita, como Mandetta, Dória, Maia ou outro qualquer. Vejo hoje em movimento um projeto de guardiania que tem e terá relação tensa com a ampla democracia política que vigora no Brasil. Se depender desse grupo de militares (insisto que não me refiro à corporação, mas a um grupo político) seu colega fardado que ocupa a vice-presidência da República pode ter um destino político além do de um presidente- tampão. Coloca-se aqui, de novo, em questão, o tamanho da distância entre a intenção dos militares governistas e as consequências e possibilidades reais de êxito dessa estratégia, que vai ficando nítida. A questão política só se resolverá após a pandemia, a depender, em boa medida, dos estragos sociais e econômicos que ela provocar.

Mas desde já é possível dizer que esse grupo militar, além de exercer força de gravidade sobre grupos palacianos e ministérios, através dos quais dialoga com políticos e partidos, parece ter certo apoio empresarial. A base conjuntural desse entendimento que pode enlaçar, por cima, esses atores no curto prazo é a necessidade de retomar, o mais brevemente possível, a atividade econômica, com vistas a atenuar os efeitos, necessariamente rigorosos, da recessão que já se instalou e que não irá embora junto com a pandemia. Mas para que uma aliança como essa seja sustentável e produza consequências políticas sistêmicas, as suas partes terão que se acertar em assuntos estratégicos, tais como o perfil futuro da presença do estado na economia e os limites aceitáveis de absorção institucional e processamento democrático do conflito social. Normal que não haja definições sobre eles nesse momento, mas a indefinição não significa que cada qual dos atores não já esteja formando uma ideia a respeito.

No caso do empresariado é insensato pensar que chegarão a uma visão “de classe”. Decisivo será, sim, o nível se convergência possível entre setores que sejam distintos o bastante para tornar a articulação ampla e suficientemente coincidentes quanto à relevância do seu peso econômico, para que essa relevância compense, na hora da operação política, a dificuldade comunicativa com a base da sociedade, decorrente da posição assimétrica que ocupam, nessa sociedade. Para eles a questão política de fundo é a escolha entre os riscos e vantagens da democracia, de um lado, e riscos e vantagens da guardiania, de outro.

Já os ministros militares - que desde a campanha eleitoral passada vêm se constituindo como grupo político e que buscam recrutar novos quadros entre os ativos e reservistas da corporação - parecem servir-se de um pensamento estratégico mais amadurecido. A formulação, naturalmente, é externa a grupo e, nesse sentido, há nexos com a corporação militar, ainda que a execução não conte com ela e até a constranja, em certos momentos, quando entram em jogo fatores estranhos à lógica estratégica do intelectual militar. O calcanhar de Aquiles está na baixa perícia desse grupo no manejo da política, que é necessária para operar a estratégia.

Já as lideranças civis, que formam a elite política, se têm revelado prudentes e hábeis em táticas de conjuntura nessa quadra difícil, mas, ainda na defensiva e presas ao imediatismo, parecem se ressentir de uma estratégia positiva que lhes dê unidade ao lidar com desafios de médio e longo prazos. Sintoma disso foi não terem encarado a ascensão pública do ex-ministro Mandetta como capital político comum, para dar nome e sobrenome à ideia de centro político que há anos se cogita para tirar o país de uma polarização política estéril. Um cavalo passou selado e não foi montado, embora ainda possa ser, mais adiante, a depender da percepção pública sobre as decisões tomadas para enfrentar a pandemia. Se já houvessem se entendido sobre apostas a médio e longo prazos, o desafio da saúde pública justificaria ensaios de reação política e institucional à exoneração do ministro. Se não poderiam impedir Bolsonaro e os militares de removê-lo, ao menos teriam mostrado a eles que o preço político para plantar uma guardiania em vestes de democracia no Brasil será mais alto do que será se o centro político permanecer fragmentado. Mas os dados ainda rolam. Um otimismo moderado permite considerar a unidade da elite política civil como um processo em construção. É desse processo que essas notas se ocuparão, a partir daqui.

Relações entre Legislativo e Executivo – o estado da arte

Esse é terreno crucial para definir o desfecho da crise atual. Do ponto de vista dos democratas é terreno mais promissor que o da disputa, com Bolsonaro, pela simpatia do grupo militar governista. O Legislativo é o leito mais seguro para a construção de uma unidade que vá do Centrão à esquerda. Essa via – que já se ensaiava antes, principalmente com o fortalecimento da liderança de Rodrigo Maia na Câmara - tem sido intensamente testada na conjuntura de combate à pandemia. A conduta já observada entre forças aliadas na viabilização da reforma da Previdência passa, agora, quando a pauta é mais consensual, a ser adotada como padrão para as relações entre praticamente todas as forças e partidos. Esse padrão tem levado o Legislativo a suprir carências governativas advindas da irresponsabilidade presidencial, através de ampliação dos consensos internos e de um diálogo tenso, mas efetivo, com as zonas de racionalidade presentes no Executivo. Esse script tem testado positivo, não só como solução para a governabilidade, mas também como rota para a unidade política requerida para, num primeiro instante posterior à pandemia, resolver, republicanamente, a questão Bolsonaro.

Esse entendimento parte da premissa de que a ação subversiva do presidente, conquanto possa ter seus danos minimizados não se sabe até quando, promove fissuras nas crenças e procedimentos democráticos. Daí estende uma nuvem sobre as possibilidades de uma saída democrática a partir de 2022. Há uma pedra no caminho do reencontro do país com a sua normalidade e não se pode subestimar o fato dessa pedra estar ocupando a cadeira presidencial, usando-a para tentar trincar a democracia de variados modos. A reação institucional precisar vir e Legislativo e Judiciário precisarão observar o timming que, uma vez ultrapassado, tornará essa reação impraticável. Três pontos, entrelaçados, sobressaem na pauta: a avaliação prospectiva da possibilidade de se processar o impedimento no imediato pós-pandemia, a condução articulada da sucessão das mesas diretoras das duas casas legislativas e a formação de um consenso a respeito das eleições municipais.

Sobre possibilidades de impeachment

Depende de um conglomerado de fatos, circunstâncias e vontades. Fatos como a extensão da crise sanitária e de suas consequências econômicas, no Brasil e fora dele. Circunstâncias como o humor do eleitorado, a ser captado em pesquisas no pós-pandemia, ou como a realização ou não de eleições esse ano. Vontades traduzidas em estratégias de atores políticos relevantes, nos âmbitos dos três poderes e nos partidos, com destaque para a atitude e atos do presidente. E as de agentes organizados na sociedade civil, incluindo aí imprensa, empresariado e organizações populares. Matemáticos poderiam armar uma matriz de probabilidades com essas variáveis. Analistas e cientistas políticos precisam esperar. Partidos políticos podem se dar a esses luxos?

Do ponto de vista da política em ato, a questão não pode ser submetida a cálculos matemáticos, nem pode ser mais postergada. As justificativas públicas para o adiamento cessarão com o arrefecimento da crise sanitária. Se a elite política não se mover por moto próprio terá que fazê-lo de improviso quando o tema ganhar as ruas num contexto pós-isolamento, situação em que as lideranças políticas terão menos chance de orientar a sua direção.

Antecipar-se é o mais prudente e, se diante de uma conjuntura nada matemática, não é possível fazê-lo com clareza sobre a sequência dos passos, há que se fazer ao menos com a clareza possível sobre o sentido político que se queira dar ao processo. Construir as premissas para que ele se desenrole como causa cívica, apoiado por arco político mais amplo do que foi o “Fora Collor” e muito mais ainda do que o arco político e social que se formou para o impeachment de Dilma Rousseff, que não estancou a divisão do país, embaixo. Conduzido assim, o processo jurídico-político do impedimento poderá aprofundar o nível do consenso já alcançado no Congresso.

O timming também se relaciona a condições objetivas do ambiente do STF. A crise sanitária colocou em segundo plano, ao menos por enquanto, as clivagens políticas que vinham marcando algumas decisões e a imagem pública do tribunal e limitando suas possibilidades de exercer a moderação que constitucionalmente lhe compete. A virtual cristalização daquela situação está entre os motivos que faziam cada vez mais olhos se voltarem a militares, como se eles pudessem ser substitutos funcionais da instituição. A irresolução do presente conflito entre o presidente, de um lado, o sistema político e a sociedade civil de outro, mostra que o equívoco dessa posição não é apenas institucional, mas também político. A lição desse março/abril precisa ser assimilada e o novo momento do STF valorizado, ainda mais quando se sabe que a situação pode se tornar volátil com a mudança do seu presidente, prevista para setembro e a substituição do seu decano, logo a seguir.

As sucessões no Legislativo

Como maior volatilidade e maior número de incertezas são traços óbvios de conjunturas críticas, prospecção aqui é inútil. O que não impede fixar uma premissa lógica sobre esse tema. Quanto mais o ponto de equilíbrio político alcançado hoje nas duas casas for conservado a partir de 2021, tanto melhor para que o processo siga na direção unitária em que está indo e, por conseguinte, permita resolver, republicanamente, a questão Bolsonaro. Esse ponto de equilíbrio é soma de despolarização política e compromisso social. O primeiro termo do par exige, principalmente, um reposicionamento da esquerda parlamentar, mormente do PT, cuja atitude “histórica” é de resistência à integração a um centro de articulação comum, onde não possa exercer hegemonia.

Um reposicionamento vem avançando, sem prejuízo do viés populista e/ou personalista das vozes eleitorais de partidos de esquerda fora do Parlamento. O segundo termo da equação exige reposicionamento da centro- direita, que precisará acompanhar o que se dá no mundo todo e rever resolutamente seu compromisso com a ortodoxia econômica dita neoliberal. Em suma, para ter bom andamento, a estratégia da convergência para vencer as crises sanitária, econômica e política terá que afastar os fantasmas de duas ideologias contrárias à política: o hegemonismo pré-político do tempo de Rousseff e o fundamentalismo econômico de Paulo Guedes.

Na Câmara, esse script prudencial tem no atual presidente da Casa, que não concorrerá ao cargo, um protagonista natural. Na interação positiva em torno dele está a chave da execução. O risco a ser evitado é a direção do processo sair das suas mãos, situação em que consensos amplos serão mais difíceis. No Senado, incerteza adicional decorre do fato de que o detentor da posição institucional capaz de coordenar o processo deseja, ao que tudo indica, achar caminhos de interpretação regimental para se candidatar à reeleição. Essa situação em si já torna o ambiente daquela Casa mais poroso às interferências do Executivo, pela exploração desse interesse, apoiando-o ou não. O sucesso do script prudencial que sustenta o instável equilibro atual não necessariamente depende das direções da Casa e do processo político ficarem nas mãos do mesmo ator. Pode até ser requerida a moderação do Judiciário daí porque ele pode, em alguma medida, também vir a ser um ator.

O tema da sucessão será inevitavelmente implicado na tentativa de Rodrigo Maia de retomar/ melhorar seu diálogo com a esquerda, meio estremecido desde que pautou e fez aprovar a MP do contrato verde-amarelo. Efeitos imediatos desse movimento são notados em recíprocas declarações públicas dos interlocutores. Maia cuida, como deve, da mobilidade do seu pé esquerdo. E a esquerda, por seu turno, ocupa, como também deve, o espaço que lhe oferece Alcolumbre no Senado para se recuperar do revés sofrido na Câmara. O alvo comum parece óbvio: acelerar, ampliar, aprofundar o entendimento e acumular forças para um enfrentamento com o Presidente. Essa convergência de interesses contra um adversário comum não seguirá itinerário cor-de-rosa. A sucessão nas duas casas será um desafio. Pela lógica da disputa sucessória, a esquerda – mesmo que não tenha pretensões próprias – pressionará Maia para enfrentar Bolsonaro, mas em litigio, ainda que relativo, com o Centrão.

Pela lógica do processo do impeachment cívico e não politicamente polarizado, Maia resistirá a essa pressão. O jogo todo é legítimo, de todas as partes. Contanto que os jogadores não o levem ao ponto de permitir espaço a quem quer virar a mesa e o próprio jogo. A radicalização provocada por Bolsonaro pode servir de biombo a ministros como Guedes, Moro e os militares para veicularem soluções que aliviem sintomaticamente os impasses, mas permitam a reintrodução, no Congresso, de uma polarização mais permanente, seja direita x esquerda, São Paulo x nordeste, ou Câmara x Senado. Pode-se ver esse jogo quando Bolsonaro desafia Maia para uma briga de rua, enquanto o governo procura amaciar o Centrão e o Presidente do Senado. A disputa pela sucessão na Câmara e entendimentos sobre reeleição no Senado são fatores que devem ter influência crescente.

As eleições municipais

O presidente da Câmara tem usado um argumento prudencial para resistir ao adiamento das eleições. Seria um precedente a alimentar virtuais apetites no futuro. Ao lado dessa razão, é intuitivo que haja outra, de mais complexa enunciação, porém de maior peso. A interação política entre as medidas de socorro federativo ora em curso por conta da pandemia e um processo de renovação dos governos municipais criaria, na base do sistema político que se relaciona diretamente com a sociedade, um ambiente favorável à solução que o Congresso encontre para a crise política derivada da conduta presidencial. Basta pensar na possibilidade de um efeito Mandetta, em contraste com um Teich sem efeito, para supor que Maia raciocina com hipóteses conectadas ao mundo da política real. Compare-se esse cenário com o seu oposto.

Adiadas as eleições para 2022, ficariam os atuais prefeitos livres do risco das urnas e expostos a duas pressões: a do alinhamento político em torno de projetos eleitorais estaduais, comandados pelos governadores e/ou as do governo federal, que voltaria em alguns meses a deter a chave do cofre sem ter mais que obedecer aos critérios federativos estipulados consensualmente no Congresso, no contexto da crise sanitária.

Sendo fortes no Brasil, como se sabe, os laços de reciprocidade eleitoral entre prefeitos e deputados federais, o aumento da força gravitacional dos governos estaduais e do federal sobre os prefeitos, permitido pelo adiamento das eleições, afetaria, indiretamente, os parlamentares federais, no sentido de uma maior fragmentação das suas preferências. Tenderia a diminuir a influência da dinâmica política consensual em curso no Poder Legislativo na indução do comportamento dos parlamentares diante do processo de impeachment e da nova situação política que esse processo instituir.

Ademais, a ideia de prorrogar os atuais mandatos até 2022, para a coincidência dos vários níveis de eleição, é um retrocesso na autonomia que pleitos municipais passaram a ter na política brasileira, permitindo maior influência do eleitor sobre a gestão de suas cidades. Unificar os pleitos, seja com argumentos financeiros, políticos ou gerenciais é, em tese, apostar em mais verticalização do contencioso político e mais polarização.

O adiamento das eleições pode, no entanto, resultar não de escolhas políticas, mas de uma imposição das circunstâncias da crise de saúde pública. Para não brigar com fatos, talvez haja espaço para pensar num adiamento por alguns meses, garantindo a separação dos pleitos. Se as circunstâncias e interesses, combinados, descartarem uma solução intermediária e houver a unificação em 2022, esse cenário aqui suposto como adverso, não produz fatalidades. Havendo política e preservada a democracia, todo limão pode virar limonada.

Especulando preventivamente sobre o longínquo 2022

Com a pandemia, Keynes voltou à voga em economia. Mas seu chiste pragmático de que “no longo prazo todos estaremos mortos” tem estado, talvez inconscientemente, no radar da elite política brasileira e aqui se trata da elite civil, nela incluídos militares e ex militares que adentram na política. Tome-se o Congresso e os governos estaduais como palcos e será visto como a elite política, atacada por um senso comum da opinião pública que a condena pelos seus vícios e por suas virtudes, entrega-se com apuro a manobras táticas defensivas e habilmente as converte em contraofensivas. Essas devolvem-lhe poder de iniciativa, usado para tomar certas decisões racionais e socialmente positivas, como tem ficado mais evidente durante as crises que ora atravessamos.

A partir dessa performance tática, lideranças políticas, ocupando posições institucionais chave, têm conseguido não só livrar o País de ser convertido num quintal de milicianos, como recuperar, embora em dose ainda pequena, uma reputação razoável, que tinha sido quase completamente varrida pela sucessão de seus erros e, em seguida, pela captura do ambiente político pelo fundamentalismo lavajatista.

Sem de modo algum pretender fazer reparo a essa conduta tática, é possível esperar que a ela se junte alguma perspectiva estratégica, a que for possível num contexto tão volátil. Algumas linhas do que pode ser essa adição tonificadora foram esboçadas acima como sendo derivadas lógicas da tática prudencial que se tem adotado, especialmente na Câmara dos Deputados, não só por seu presidente e alguns dos líderes partidários. Exemplificam prudência também, jovens parlamentares recém-eleitos acenando a uma “nova política” e que logo se distinguiram da demagogia rasteira que se apossou dessa boa ideia.

São personalidades, algumas muito jovens, que têm compreendido, na prática, a dignidade e a eficácia da tradição do trabalho parlamentar e partidário para efetivar os compromissos que assumiram com seus eleitores. Nota-se também a crescente musculação política do presidente do Senado, um neófito alçado ao cargo pela onda de descrédito da chamada “velha política”.

Também se pode interpretar como prudencial a recente guinada pragmática ao centro do governador de São Paulo, a moderação surpreendente (ainda que seja uma febre efêmera) que acomete o do Rio de Janeiro, a cooperação ativa de governadores nordestinos de esquerda numa articulação federativa liderada por João Dória, para não falar do surgimento de genuínas e animadoras atitudes prudenciais, como as do governador gaúcho e a do ministro da Saúde, exonerado na semana passada. São exemplos diversos e distintos de um mesmo processo regenerativo da política brasileira, pelo qual ela retoma o seu espaço, miseravelmente usurpado, desde 2014, por uma associação destrutiva de ideologia e distopia. Isso tem relevância estratégica para quem busca uma saída política para a crise, que signifique opção pela democracia, não apenas em oposição a formas aberrantes de autocracia, ditadura, fascismo, etc.., mas como algo também muito distinto de uma guardiania, seja ela judicial, militar, tecnocrática, ou qualquer outra.

As linhas esboçadas nessas notas querem dizer que uma estratégia democrática não precisa de um ingrediente diferente do que compõe a tática democrática hoje em plena operação no Brasil. A atitude prudencial pode orientar uma e outra. E talvez uma das primeiras tendências de uma política prudencial é não se congelar em um plano, fora do qual ela se sinta em fracasso e resmungue, isolando-se no resmungo até se comportar como ideologia. Diversos são os caminhos pelos quais uma atitude prudencial pode prevalecer. Pode, como se sugeriu aqui, arriscar-se num passo político ousado como o de dar partida, daqui a meses, a um processo de impedimento de um presidente cinco anos após outro, desde que seja um processo distinto, pelo seu caráter cívico, não só republicano e democrático, porque a aventura destrutiva atualmente investida de poder político ameaça não só a república, mas o próprio estado; não só a democracia, mas a própria sociedade.

Ninguém sabe se a situação concreta que se desenhará no pós-pandemia permitirá que a solução parta de uma articulação entre Legislativo, Judiciário e sociedade e se concretize tão logo a pandemia passe, como aqui se supõe possível. Talvez ela não se consume, porque dividiria parte do que já está unido e assim perderia sua razão de ser. Nesse caso, por uma razão política razoável, será melhor esperar 2022. Na ausência de certeza, a prudência sugere que se pense nos dois caminhos sem descartar nenhum deles. O que não se pode arriscar é não termos saída democrática possível em 2022 porque se deixou a sabotagem da democracia consumar seu desiderato, sem a devida contenção institucional. Isso pode ocorrer, se no âmbito das forças democráticas - aqui permitam evocar Max Weber - o raciocínio se restringir a uma calculo com respeito a fins. A atitude prudencial morre no varejo político se não mobilizar também valores. Toda prudência logo será abandonada na luta para conservar o poder pelo poder. Luta ilusória, como é ilusório o poder que se exerce assim.

A conclusão dessas notas evocará não mais o pensamento de um autor, mas um processo da história política brasileira recente que tem a ver com a concretíssima democracia que temos. Qual foi a estratégia da frente democrática que a conquistou após derrotar uma ditadura num processo político de 15 anos, de 1974 a 1988? Constituição primeiro e eleição direta depois, como aconteceu, ou diretas já e constituição depois, como poderia ter acontecido? O primeiro caminho implicava num passo intermediário: participar do antidemocrático Colégio Eleitoral. O segundo exigia, com passo intermediário, obter apoio de dois terços do Congresso a uma Emenda Constitucional. Houve quem preferisse e defendesse tanto um como outro caminho.

Em ambos os casos os argumentos e os argumentadores eram muitos, e dentre esses muitos, havia vários politicamente muito respeitáveis e vários outros socialmente bem amparados. Durante aqueles anos houve momentos de avanço e recuo, de esperança e de desalento. E muitas reviravoltas, de situações e de opiniões. Gente que preferia um caminho passou a preferir outro e vice-versa. Ao final aquela ditadura acabou e, em seu lugar, não ficou outra ditadura politicamente oposta, ou uma guardiania. Instalou-se uma democracia. Esse era o objetivo estratégico. Foi alcançado porque os atores políticos não o perderam de vista, apesar da cacofonia em torno do caminho. A unidade prevaleceu porque a liderança política soube ouvir a sociedade e por isso a preservou.

Ulisses Guimarães e Tancredo Neves encarnavam, cada qual, um dos dois caminhos. Cada qual lutou pelo seu, mas não apenas agiu em favor do seu. Quando preciso, em nome do objetivo comum, ajudou a pavimentar o outro. Tancredo esteve ao lado de Ulisses em todas as praças lotadas que gritavam por diretas e mobilizou, como governador de Minas, todos os recursos possíveis para lotá-las. Ulisses comandou os democratas na ida ao Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo. Altruístas? Não. Políticos realistas, orientados aos fins e aos valores.

A regeneração da política brasileira passa pelo resgate desse tipo de realismo. Há sinais de fumaça a indicar que ele renasce, em meio ao drama do bolsonarismo e do Covid-19. Trata-se hoje de defender a democracia real que o realismo político criou. A liderança e a cidadania precisam se sintonizar no agir. A FAP pode ajudar a pensar.


Alvaro Costa e Silva: Rainha de Copas

Bolsonaro corta cabeças para proteger filhos e convoca o próprio impeachment

O que eu gosto mais, francamente, é que toda crise é cheia de oportunidade." A platitude foi dita pelo empresário suíço-brasileiro Jorge Paulo Lemann, referindo-se à pandemia de coronavírus, do alto de seus bilhões de dólares. O pessoal saiu correndo atrás de uma oportunidade. Pois o último a chegar é mulher do padre.

Um grupo de chineses foi preso em São Paulo tentado vender a preços milionários 15 mil testes rápidos para detectar a Covid-19; os testes tinham sido furtados. Funerárias cariocas estão cobrando por um enterro simples, em cova rasa, até R$ 3,8 mil. A médica Ligia Kogos, conhecida como "a rainha do botox", invocou o juramento de Hipócrates para manter aberta a sua clínica de estética.

Estes são casos menores e particulares diante da farra de dinheiro que pode ocorrer sob o disfarce de compras emergenciais para combater a pandemia. O governo do Rio fez trocas suspeitas na estrutura da Secretaria de Saúde em meio à crise e dificulta o acesso a informações sobre contratos. Wilson Witzel aproveitou para enviar mensagem à Assembleia Legislativa retomando um programa de desestatização. O novo projeto de lei contempla sociedades de economia mista (como a Cedae), empresas públicas, fundações e até universidades (Uerj, Uezo e Uenf).

Cada um aproveita a chance a seu modo doentio. Weintraub, o ministro da Educação, fez piada no Twitter debochando da morte de pessoas. O chanceler Ernesto Araújo, para não ficar atrás, escreveu no seu blog que o "comunavírus" é mais perigoso que a Covid-19.

Mas quem está "oportunizando" a valer é Bolsonaro. Corta cabeças como a Rainha de Copas (decapitado, Moro retorna à República de Curitiba), age para proteger os filhos de investigações na PF, realimenta as milícias liberando munições e avança no seu projeto autocrático. Outra grande oportunidade, para ele, é o impeachment.

Alvaro Costa e Silva é jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".


O Globo: Após demissão de Moro, generais manifestam 'forte preocupação' com o futuro do governo

Mensagem foi vocalizada especialmente pelo ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno.

Vinicius Sassine, O Globo

BRASÍLIA — Apesar da tentativa de demonstração de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, com a presença dos ministros no pronunciamento feito após a demissão de Sergio Moro, os generais que são ministros e que despacham dentro do Palácio do Planalto manifestaram a colegas de farda um sentimento de "perda" e de "forte preocupação" com o futuro do governo de agora em diante. A mensagem foi vocalizada especialmente pelo ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno.

Antes da demissão de Moro nesta sexta-feira, Heleno já havia feito movimentos para que o ex-juiz da Lava-Jato não deixasse o governo, com a interpretação de que a gestão Bolsonaro acabaria se isso ocorresse. Teve êxito uma vez, mas não duas.

Os ministros que também são generais — Heleno, do GSI; Braga Netto, da Casa Civil; e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo — ouviram de generais que estão no governo ou na ativa que a continuidade de apoio ao governo Bolsonaro dependerá da permanência do trio dentro do Palácio do Planalto. Este recado explica a tentativa de demonstração de apoio dos ministros ao presidente.

Os ocupantes dos cargos na Esplanada dos Ministérios compareceram em peso ao pronunciamento no fim da tarde, numa tentativa de demonstrar unidade. Chamou a atenção a presença do ministro da Defesa, general Fernando Azevendo e Silva, logo ao lado de Bolsonaro. O ministro da Defesa tem ascendência hierárquica sobre os comandantes das três Forças Armadas. Sua função no governo excede a burocracia do cargo. Ele é, hoje, um dos principais conselheiros do presidente.

Um entendimento entre militares de alta patente — tanto integrantes do governo quanto integrantes das cúpulas das Forças — é que a demissão de Moro não se compara a uma outra rumorosa demissão, a do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. No caso de Mandetta, demitido em meio à pandemia do novo coronavírus, que já matou 3.670 brasileiros até agora, generais enxergaram uma indisciplina, uma quebra de hierarquia, à medida que o então ministro confrontava o presidente. Com Moro, que pediu demissão do Ministério da Justiça e Segurança Pública nesta sexta-feira, alegando interferência de Bolsonaro na Polícia Federal (PF), não existe essa impressão.

— Moro é uma figura muito emblemática. Tem projeção no país. Sempre vou aplaudi-lo pelo que ele fez. Então, até quem torce contra não deve estar gostando do que se viu hoje — resume um general com assento no governo, sob a condição de anonimato.

Os militares que despacham no Planalto, apesar do esforço pela imagem de unidade, não disfarçavam o sentimento de "perda", "tristeza" e "preocupação" nas mensagens disparadas a colegas da caserna. O entendimento é que a saída de Moro ocorre num momento que já é de grave crise sanitária e econômica. Eles entendem que o que ocorreu nesta sexta, inclusive, terá impactos decisivos para a própria crise do novo coronavírus.

— Não deveríamos perder nem A nem B — diz um general, em referência a Bolsonaro e Moro.


El País: Drenado por crise forjada por Bolsonaro, Brasil fica no escuro quanto ao coronavírus

Um dia após atos pedindo intervenção militar, presidente recua de respaldo e diz não apoiar fechamento do Congresso e STF. Enquanto isso, Ministério da Saúde erra cifras sobre aumento de óbitos

Felipe Betim, do El País

Em meio a uma crise política forjada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que participou neste fim de semana de atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e defendiam uma intervenção militar, o Brasil dá sinais de caminhar no escuro com relação ao real avanço de casos e mortes por coronavírus. Na tarde desta segunda-feira, o Ministério da Saúde divulgou um balanço em que confirmava 383 novas mortes pela covid-19 em 24 horas, mas cerca de uma hora depois corrigiu a informação e assegurou tratar-se de 113 novos óbitos registrados no período. O motivo do equívoco era um erro de digitação. Na tabela com o balanço diário, a pasta afirmou inicialmente que o Estado de São Paulo somava 1.307 mortes, mas o correto era 1.037. Assim, o balanço foi corrigido de 2.845 óbitos (7% de mortalidade) para 2.575 (6,3% de letalidade). O número total de novos casos confirmados ficou em 40.581, isto é, 1.927 a mais que o dia anterior.

Desde que o Governo trocou o comando do Ministério da Saúde, na quinta-feira da semana passada, os dados sobre o avanço da covid-19 são atualizados sem que ocorra a coletiva de imprensa com a equipe técnica da pasta, prática que era comum durante a gestão de Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS). Nestas entrevistas, o informe diário sobre a crise era acompanhado de anúncios sobre decisões do Executivo federal para frear a pandemia no Brasil, além de explicações sobre a curva de crescimento de casos, os gargalos do SUS, o avanço ou atraso em relação aos desafios do Governo ante a crise, além das respostas às perguntas dos jornalistas. A ausência de explicações técnicas dificulta entender o comportamento do vírus no Brasil, como saber se a expansão de casos se deve à ampliação dos testes ou à queda da adesão do isolamento social, por exemplo.

O novo ministro, Nelson Teich, que assumiu em 16 de abril a pasta, defendeu a transparência das ações do ministério ao tomar posse, mas ainda não deixou claro se retomará a rotina das explicações técnicas. No sábado, sem agenda oficial, Teich viajou ao Rio de Janeiro (onde ele mora). Na tarde desta segunda-feira, sem que o compromisso constasse na agenda do ministro, ele se reuniu com o presidente Bolsonaro no Palácio do Planalto. Nesta segunda-feira, o único membro do primeiro escalão do Governo a participar da coletiva imprensa diária foi o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, para falar sobre o pagamento da renda básica emergencial.

Teich, por sua vez, limitou-se a divulgar um vídeo de pouco mais de três minutos em que informava que o Governo estava adquirindo testes de coronavírus, que passariam de 24 milhões para 46 milhões de kits. O objetivo, explicou Teich, era realizar a testagem em massa da população, como fez a Coreia do Sul, para “entender a doença e sua evolução”, e assim “fazer um planejamento para revisão do distanciamento social”. O ministro ainda participou nesta segunda de uma reunião no Palácio do Planalto que estava fora da agenda oficial e deve ainda nomear pessoas para sua equipe ―o presidente chegou a dizer que também faria indicações.

Tensão política

O afrouxamento das medidas de distanciamento social decretadas por Estados e Municípios é uma das obsessões de Bolsonaro. Houve uma escalada da tensão política no país no último fim de semana, em que um número expressivo de bolsonaristas se juntaram em atos e carreatas com buzinaços em cidades como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.

Além dos pedidos pela reabertura dos comércios e retomada da atividade econômica, muitos manifestantes pediam o afastamento do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), além de uma intervenção militar ou um novo AI-5 —decreto de 1968 da ditadura que permitia o fechamento do Congresso e a suspensão dos direitos políticos dos cidadãos. No domingo, Bolsonaro foi até a sede do Exército em Brasília, se aproximou de manifestantes —sem máscara e tossindo, conforme mostram imagens— e fez um inflamado discurso de confronto com os demais Poderes da República. “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil”, afirmou o presidente, sob aplausos.

Nesta segunda-feira, o procurador-geral da República, Augusto Aras, indicado por Bolsonaro para o posto, pediu que o Supremo Tribunal Federal (STF) abrisse um inquérito para investigar as manifestações de domingo. Aras quer apurar se houve violação da Lei de Segurança Nacional por conta de “atos contra o regime da democracia brasileira por vários cidadãos, inclusive deputados federais, o que justifica a competência do STF”. As manifestações também geraram repúdio de ministros do STF, de Maia e outras autoridades. O presidente acabou recuando nesta segunda-feira: na saída do Palácio da Alvorada, ao se dirigir a jornalistas, afirmou não ser a favor de um AI-5 ou do fechamento do Congresso. “O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Eu já sou o presidente da República", afirmou. Em seguida, falou: “Eu sou, realmente, a Constituição”.

Em outro momento, minimizou mais uma vez a pandemia de coronavírus no Brasil, assim como as mortes que estão ocorrendo: “Aproximadamente 70% da população vai ser infectada. Não adianta querer correr disso. É uma verdade. Estão com medo da verdade?”, disse. “Levaram o pavor para o público, histeria. E não é verdade. Estamos vendo que não é verdade. Lamentamos as mortes, e é a vida. Vai morrer”, acrescentou. E completou: “Essa é uma realidade, o vírus tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia.”


Merval Pereira: Estado inteligente

Países poderosos e vulneráveis se deram conta de que dependem muito mais da China do que é desejável

Parece haver consenso em torno da ideia de que o mundo será outro depois da crise do Covid-19, não apenas porque a humanidade deu-se conta de sua fragilidade, e da necessidade de solidariedade nas relações sociais, como os problemas sociais, em maior ou menor escala, foram escancarados.

O capitalismo terá que rever conceitos, em busca de uma economia mais sustentável e menos desigual. E mesmo as relações internacionais serão alteradas, pois o mundo de repente despertou para uma realidade preocupante: a China produz 90% dos equipamentos de saúde, criando um mercado internacional selvagem de compra de produtos essenciais (máscaras, ventiladores) em que o peso do dinheiro vale mais que vidas humanas em países periféricos como o Brasil. Coisa parecida acontece em outros setores.

Os países, dos mais poderosos como os Estados Unidos, aos mais vulneráveis, se deram conta de que dependem muito mais da China do que é desejável, e terão que mudar suas relações geopolíticas, cuidando de setores essenciais, não apenas a saúde, mas também estratégicos como a Defesa, o Meio-Ambiente, a agricultura.

Ciência e Tecnologia tiveram suas importâncias realçadas durante a crise, e a reação do presidente Bolsonaro às advertências dos cientistas, tentando confrontar a doença primeiro com negacionismo, depois com orações e jejuns, mostra bem como estamos ameaçados de um retrocesso profundo em um setor que merece muito mais importância do que recebe e precisa.

O economista José Roberto Afonso, do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), um dos formuladores da Lei de Responsabilidade Fiscal e, agora, do orçamento de guerra montado pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia, escreveu um artigo onde sugere que seja criado um “seguro destrabalho” , diante do fato de que o novo coronavírus só criou isolamento físico, pois já existia o social e até econômico para enorme parcela da população brasileira, que não tinha emprego e nenhuma proteção social.

José Roberto Afonso lembra que o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), organizado no pós-guerra em torno de um elemento essencial, o salário, já não reflete a realidade atual. Porque o emprego já deixou de ser sinônimo de trabalho há alguns anos, e em todo o mundo, devido à revolução tecnológica em curso.

Já Mariana Mazzucato, professora da UCL de Londres, no International Media Call virtual do Forum Econômico Mundial, falou sobre o novo papel do Estado, que ela espera ver surgir dessa crise mundial. Rebatendo a ideia de que a crise de saúde, com suas consequências econômicas, mostrou a necessidade de um Estado forte, ela diz que o que procura não é o Estado mínimo ou máximo, mas o “Estado inteligente”:

“Não é apenas porque o Estado está tendo que intervir maciçamente na economia que vamos mudar o conceito de fazer política econômica no capitalismo”. Ela diz que o Estado tem que injetar dinheiro na economia numa situação dessas, “mas temos que ver em que condições isso será feito”.

Precisamos montar uma economia mais sustentável, para que não tenhamos novos problemas mais adiante. “Por exemplo, as companhias aéreas que precisarão de dinheiro do governo têm que assumir o compromisso de reduzir a emissão de gás carbônico. Empresas que serão auxiliadas têm que garantir os empregos”.

Precisamos definir que tipo de instituições estatais nós queremos. “As empresas privadas mandam seus executivos para o exterior para fazer cursos de especialização, de gerência. Precisamos que os Estados atuem com inteligência, organizando suas estruturas com uma visão mais ampla de sua função dentro de um Estado moderno”.

Mariana Mazzucato acha que os Estados podem se reorganizar, as empresas privadas têm que trabalhar com os organismos estatais para que o país obtenha um resultado mais inteligente de seus setores. “O Estado tem que atuar ativamente para coparticipar da criação do mercado, e não esperar que os problemas aconteçam, e só então intervir”.

Para ela, essa crise não é desconectada do jeito que o capitalismo produz o alimento que consumimos, e os produtos que usamos. “Está diretamente ligada à crise climática. Precisamos criar uma simbiose entre os setores publico e privado, para que a economia esteja preparada para a próxima crise, que sempre virá”. (Amanhã, o “seguro-destrabalho”)