crise

José Casado: O pandemônio é de Bolsonaro

Presidente finge que não é com ele

Na terça-feira 18 de junho do ano passado, Jair Bolsonaro pediu ao ministro Luiz Henrique Mandetta “a cabeça” de “esquerdistas” do Ministério da Saúde. À tarde, o deputado Helio Lopes (PSL-RJ) entregou a Mandetta a lista de “suspeitos”. Foi a primeira intervenção presidencial direta na gestão da Saúde.

Nove meses depois, quando o Brasil contava duas centenas de mortos, o ministério havia estabelecido com estados e municípios uma coordenação sobre a pandemia. Mas Bolsonaro decidiu intervir na Saúde.

Na segunda-feira 16 de março, decretou todo o poder à Casa Civil da Presidência na definição das “prioridades” contra o vírus. Nomeou 27 pessoas — ministros (20), presidentes de bancos públicos (4), especialistas da Saúde (2) e advogado (1).

O “Comitê de Crise” do Planalto completará cinco meses na próxima semana, com o país ultrapassando 100 mil mortos num quadro de descontrole da doença. É impossível saber quantas mortes seriam evitáveis. É certo, no entanto, que dois ministros e 80 dias depois de um general no papel de interino, a intervenção de Bolsonaro na Saúde resultou na perda de comando da crise. É evidente a calamidade gerencial no governo.

Não falta dinheiro. Ministério Público e Tribunal de Contas tentam desvendar mistérios em torno de despesas (R$ 912 milhões) em aventais, toucas e álcool em gel, ou em “atendimento pré-clínico remoto” (R$ 144 milhões).

Há meses pedem explicações sobre a lentidão nos repasses federais (R$ 13,8 bilhões) aos estados e municípios. Também não conseguem entender por que o Rio, com alta taxa de mortalidade, tem recebido menos recursos per capita (R$ 30) do que Roraima (R$ 108,39).

Bolsonaro finge que não é com ele, repassa a culpa a governadores e prefeitos e segue na campanha pela reeleição. Mas o funesto pandemônio governamental na pandemia tem suas digitais na autoria, além da assinatura estampada no Diário Oficial.


William Waack: Mais impostos vêm aí

A lei do mínimo esforço indica aumento de impostos e não uma ampla reforma tributária

Renúncia é a palavra decisiva no amplo debate sobre reforma tributária. É mesmo um formidável debate social e político, além da alta complexidade técnica e econômica. Pois os números consolidados indicam uma assombrosa adesão de praticamente todos os setores da economia e sociedade brasileiras a algum tipo de favor fiscal.

Agricultura, indústria, serviços, profissionais liberais, pequenas empresas, entidades não lucrativas, zonas francas, deduções para pessoas físicas são contemplados de alguma forma, e nenhum se manifesta disposto a renunciar à renúncia fiscal. Ao contrário: nos últimos 15 anos o fenômeno dobrou de tamanho (para quem aprecia números: as renúncias fiscais passaram de aproximadamente 2% para 4% em relação ao PIB).

Economistas se dividem quase em guerra religiosa quanto à eficiência dessas medidas fiscais que, na conta geral, diminuem a base de arrecadação de impostos, aumentando a carga para quem está pagando tributos. Talvez sociólogos – ou, melhor, antropólogos – entendam o problema.

As renúncias espelham um arraigado hábito político, que é o de espetar a conta nos cofres públicos e empurrar uma solução definitiva para um futuro não definido. É um tipo de “individualismo” muito característico de nosso “caráter nacional”. Todos os setores participantes nas renúncias confiam na sua capacidade de fazer valer seus interesses (que são legítimos), e a preocupação com o bem-estar geral é um problema moral reconhecido, porém secundário.

O País permaneceu num equilíbrio de interesses que foi se tornando cada vez mais precário – até o estouro de duas brutais crises, a fiscal e a de saúde (que se alimentam mutuamente). O que está escancarado agora é o clássico problema da ação e coordenação coletivas, que dependem de… lideranças.

A questão é imensamente maior do que a já complicada tarefa de arregimentar votos no Legislativo pela proposta A ou B de reforma tributária. Demanda uma imensa capacidade política de procurar algum tipo de convergência, de impor algum tipo de medida numa situação na qual ninguém renuncia a nada. Todos estão envolvidos: entes da Federação (Estados e municípios), variados segmentos econômicos, bases eleitorais (indivíduos que pagam Imposto de Renda).

No meio desse turbilhão o governo fala em quadratura do círculo, que é gastar mais num quadro fiscal delicado sem aumentar a já insuportável carga tributária. Apostando que o instinto dos congressistas, sendo o de gastar mais, os fará aceitar mais impostos. Uma aliança tácita com os “desenvolvimentistas” saudosos de Geisel no Planalto, e descontentes com o teto de gastos.

As contas dos economistas não fecham: não dá para suportar o necessário crescimento dos vultosos gastos públicos sem aumentar impostos, e apostam nisso. Sociólogos e antropólogos também apostariam. É só olhar para nosso apego à lei do mínimo esforço. É bem menos complicado do ponto de vista político aumentar impostos do que se engajar na esfalfante tarefa de coordenar esforços, praticar maldades (vistas pelo lado “individual”), convencer, articular, coagir, votar. Com as elites divididas.

Para que tudo isso, dirão os cínicos, se no fim de tanto esforço impopular (e seus efeitos eleitorais nos mais diversos níveis) o resultado será de qualquer jeito aumento de impostos? Resolver parte do problema via privatizações? No momento menos de 20 das centenas de estatais estão na lista de privatizações. Conter gastos e despesas? Segurar os gastos com funcionalismo depende de uma reforma administrativa, a que enfrentaria os bem articulados interesses corporativistas dentro do Estado brasileiro. Ela ainda é só uma intenção.

Resta a esperança de que a retomada da economia pós-pandemia traga retorno de investimentos, a produtividade aumente, emprego e renda cresçam e arrecadações encham cofres públicos que novamente seriam usados como sempre foram – para acomodar diversos interesses setoriais e privados, pois os da coletividade se resolverão sozinhos.


Eduardo Rocha: Qual austeridade fiscal ou quem pagará a conta (4)?

Os artigos anteriores apresentaram resumidamente a essência clássica de uma austeridade fiscal conservadora para fazer frente aos déficits fiscais que se fazem presentes em determinados momentos históricos. Destacaram ainda que tal essência volta a ser defendida por círculos financistas como a “vacina” ideal para a recuperação financeira do Estado e enfrentamento da brutal depressão econômica verificada no Brasil, como prova a queda histórica 13,5% do Produto Interno Bruto (PIB) na comparação de abril de 2020 com abril de 2019, segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV).

O avanço veloz da pandemia do novo coronavírus Sars-Cov-2 e da Covid-1 criou uma situação fiscal preocupante: por trás, os gastos; pela frente, a dívida e, na cabeça, a dúvida. Com as reduções do PIB, do emprego, da renda, do consumo, da receita e o crescimento dos gastos, do déficit e da dívida pública, defende-se aqui que a austeridade não pode nem deve repetir seu receituário clássico conservador, pois sua reedição aprofundará a depressão e agravará o quadro social.

Destinar mais uma vez os resultados financeiros da austeridade em favor das oligarquias e do parasitismo financista especulativo – essa economia dos papeis que compra tudo o que é fruto concreto do saber e do suor humanos – é um crime social e econômico.

É necessária uma austeridade fiscal democrática financeiramente eficaz, socialmente inclusiva, promotora do desenvolvimento, que combata o desperdício, a ineficiência, a ineficácia e elimine a concessão de recursos públicos a grupos sociais e econômicos dominantes fortemente articulados politicamente no aparelho estatal e centros decisórios da República.

A natureza de uma austeridade democrática casada a uma reforma social e econômica rompe, assim, a histórica, repetitiva, criminosa e imoral austeridade fiscal que consistiu até agora em sacrificar os miseráveis mantendo intocáveis os privilégios do “andar de cima”, emprestando aqui a definição de Elio Gaspari.

Tal austeridade democrática supera a estreiteza de perspectivas e ações que caracteriza a política de austeridade conservadora defendida pelos grupos econômicos e financeiros dominantes e entusiasticamente cultuada pelos círculos financistas em torno ministro da Economia, Paulo Guedes.

Reunida quantitativamente a força política para lhe dar vida, o que não é nada fácil, os resultados financeiros da austeridade fiscal democrática podem ser qualitativamente direcionados para a melhoria dos serviços públicos essenciais, a inclusão produtivo-social de milhões cidadãos e ao apoio às empresas do presente e do futuro. (continua…)

*Eduardo Rocha é economista


Afonso Benites: Após flerte com golpe, Bolsonaro diz que missão de militares é a defesa da democracia

Presidente participou de cerimônia de sepultamento de soldado paraquedista morto em acidente, no Rio. Ele tem evitado ator públicos desde a prisão de aliado Fabrício Queiroz

Em sua primeira aparição pública após a prisão de seu amigo Fabrício Queiroz, o presidente Jair Bolsonaro amenizou o tom crítico de seus discursos e afirmou que a missão das Forças Armadas é defender a democracia. A fala de Bolsonaro ocorreu neste domingo, no Rio de Janeiro, durante a cerimônia de sepultamento do corpo de Pedro Lucas Ferreira Chaves, um soldado paraquedista do Exército morto em treinamento. “A nossa missão, a missão das Forças Armadas, é defender a pátria, é defender a democracia”, disse o presidente. No mesmo evento, o presidente afirmou que ele e os militares estão “a serviço da vontade da população brasileira”.

Nos últimos meses, ele tem radicalizado e flertado com uma espécie de autogolpe com o apoio dos militares para se manter no poder. Já disse, por exemplo, que não aceitaria um “julgamento político” de seu mandato. E sugeriu, em mais de uma ocasião, que, conforme o artigo 142 da Constituição Federal, as Forças poderiam agir como um poder moderador para intervir em outros poderes. Essa tese já foi rejeitada em ao menos duas decisões de ministros do Supremo Tribunal Federal nos últimos dias. O ministro Roberto Barroso, do STF, classificou esse entendimento de “terraplanismo constitucional”.

Ex-paraquedista, Bolsonaro se mostrou emocionado na solenidade que contou com dezenas de pessoas em um período em que o país enfrenta uma pandemia do novo coronavírus, com mais de 50.000 óbitos registrados. O gesto contrasta com a atitude do presidente diante da pandemia no Brasil. Desde o início da crise sanitária jamais fez alguma manifestação direta de condolências aos familiares das vítimas da enfermidade como a deste domingo, direcionada aos parentes do soldado. “Todos nós, ao lado do Chaves, devemos nos preparar para, se um dia a nação assim o pedir, se preciso for, darmos a vida pela nossa pátria e pela nossa liberdade”, disse Bolsonaro.

Em Brasília, o discurso é visto como uma tentativa de pacificação, ainda que temporária, com parte do Congresso e, principalmente, com o Judiciário, de onde tem partido as principais derrotas de Bolsonaro e na qual ele sofreu uma série de ataques nas últimas duas semanas.

Entre as derrotas do presidente está exatamente a prisão do ex-policial militar Queiroz na quinta-feira passada na casa do advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef. Queiroz foi assessor do senador Flávio Bolsonaro, primogênito do presidente. É investigado por comandar um esquema de rachadinha, no qual se apropriava de parte dos salários dos servidores do gabinete de Flávio.

O presidente também se deparou com o avanço de dois inquéritos que resultaram na apreensão de documentos, computadores e celulares de 50 apoiadores seus, testemunhou a quebra de sigilo de 11 parlamentares governistas e de quatro empresários suspeitos de financiarem manifestações antidemocráticas. Atos estes que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo e, em alguns casos, de intervenção militar.

Neste domingo, foi registrado mais um ato em Brasília, um dos poucos em que o presidente não participou. O ato foi esvaziado, assim como em outras cidades, como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Além de evitar participar do ato da manifestação, o presidente também mudou, ainda que provisoriamente, o hábito de se aproximar de seus apoiadores. Faz quatro dias que ele não conversa com os fãs que o aguardam na entrada do Palácio da Alvorada, a residência oficial da Presidência da República.

Nos bastidores, ele fez dois movimentos. Sinalizou aos militares que ainda o apoiam que tomará mais cuidado com o que fala, para não radicalizar os discursos, e pediu para três de seus ministros se encontrarem com o ministro do Supremo, Alexandre de Moraes. Ele é o relator de duas investigações que atingem bolsonaristas.

O encontro entre os ministros ocorreu na sexta, 19, e contou com a participação de André Mendonça (Justiça), Jorge Oliveira (Secretaria-Geral) e José Levi do Amaral (Advocacia-Geral da União). Moraes também é ministro no Tribunal Superior Eleitoral e está nas mãos dele a continuidade do julgamento de dois dos oito processos que pedem a cassação da chapa presidencial eleita em 2018 por disseminação de desinformação, fake news.

Se antes Bolsonaro falava muito para o seu extremista público, com a perda de apoio e os ataques vindos de diversos flancos que podem resultar na perda de mandato, agora, ele ameniza os seus discursos. Só não está claro quanto tempo dura essa trégua.


Ribamar Oliveira: Vendas reagem com estímulos econômicos

Dados mostram recuperação em todas as regiões do país

As medidas de estímulo econômico adotadas pelo governo conseguiram reverter a forte queda das vendas ocorrida em abril. Em maio, a média diária de vendas voltou a crescer e chegou a R$ 21,1 bilhões, resultado 11,1% superior ao de abril, em termos reais, de acordo com as notas fiscais eletrônicas registradas no Sistema Público de Escrituração Digital (Sped).

“Houve uma recuperação importante no mês passado”, disse o secretário da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, em conversa com o Valor. Segundo ele, os dados iniciais deste mês indicam que “o fundo do poço ficou em abril”. Tostes acredita que as vendas estão em recuperação, pois “a tendência é continuar essa trajetória”.

Ele observou que alguns Estados adotaram protocolos de abertura controlada de alguns setores do comércio e que isso vai impulsionar as vendas em junho, pois “o varejo terá que ser abastecido”. Tostes citou também dados divulgados recentemente pela Fenabrave (Federação Nacional de Distribuição de Veículos Automotores), que apontam para uma alta de 11,6% nas vendas de veículos em maio, em relação a abril, embora em comparação com o mesmo mês do ano passado a queda ainda seja muito elevada, de 71,98%.

As notas fiscais eletrônicas (NFe) registram as operações de compra e venda entre as empresas e das empresas com os consumidores finais. Elas não incluem, no entanto, as vendas no varejo. O movimento agregado das notas capta, principalmente, as vendas entre empresas de médio e grande porte, bem como as vendas não presenciais de empresas para pessoas físicas - o chamado comércio eletrônico.

Embora cresçam em relação a abril, mesmo assim as vendas em maio apresentaram uma queda de 15,2%, em termos reais (descontada a inflação) na comparação com o mesmo mês do ano passado. Em abril, quando se intensificou o isolamento social para controlar a contaminação da população pelo novo coronavírus, a queda real foi de 17,8% na comparação com março.

Em relação a abril de 2019, a redução real do volume de vendas foi de 14,9%. O que as notas fiscais eletrônicas estão indicando é que, no mês passado, houve um ponto de inflexão da curva, que voltou a ser ascendente. Essa tendência terá que ser confirmada pelos dados deste mês.

O gráfico da Receita Federal sobre as vendas semanais (soma das vendas diárias na semana) mostra uma recuperação gradual nas últimas semanas do mês passado. Por esse indicador, o ponto mais baixo ocorreu em meados de abril. “A terceira semana de abril foi o valor mais baixo do ano”, explicou Tostes. A partir daí, inicia-se um aumento gradual, com o pico sendo atingido na última semana de maio. “Em maio, já voltamos ao patamar de março”, disse.

O comércio eletrônico viveu uma situação peculiar. Em vez de cair durante a pandemia, cresceu. E muito. Em março ele aumentou 20,4%, em termos reais, na comparação com o mesmo mês de 2019.

Quando tudo estava despencando em abril, as vendas eletrônicas subiram 17,2% na comparação com o mesmo mês do ano passado. Em maio, o crescimento dessas vendas ainda foi mais explosivo: 40,7%. “Não houve crise nesta modalidade de comércio”, constatou o secretário.

Ele observou ainda que, em maio, todas as regiões do Brasil mostraram recuperação no ritmo de vendas. “As quantidades de notas emitidas, que vinham em declínio em abril, em maio inverteram a tendência e subiram, em todas as regiões”, observou.

Após as medidas de contenção e quarentena adotadas em todo o Brasil, todas as regiões apresentaram queda do volume diário de vendas em abril, na comparação com março. A menor redução foi da região Sul (12,0%) e a maior foi da região Sudeste (22,6%). Em maio, na comparação com abril, todas as regiões apresentaram crescimento de vendas.

É difícil sustentar que as notas fiscais eletrônicas em maio, por si só, já mostrem uma recuperação robusta e sustentável da economia. Elas parecem indicar que as vendas reagiram favoravelmente aos estímulos do governo. O consumo foi alavancado pelo auxílio emergencial de R$ 600 concedido aos trabalhadores informais e todos os aposentados tiveram antecipação de seu décimo terceiro salário, para citar apenas duas medidas adotadas.

Mas os estímulos serão suficientes para garantir uma retomada consistente? O governo está comemorando, principalmente, o fato de que a crise não se aprofundou em maio, como alguns acreditavam que iria acontecer. Houve, na verdade, uma recuperação, que pode ser um alento para o futuro.

Tudo dependerá, e não podia ser diferente, do êxito da abertura da economia. Alguns especialistas consideram que a abertura do comércio e da indústria em algumas regiões do país está sendo feita de forma precipitada, pois a epidemia ainda não teria atingido o seu pico. Se ocorrer um novo surto de contaminação pelo coronavírus, o país poderá voltar a uma nova etapa de distanciamento social e a recuperação que se inicia poderá ser abortada.


Ricardo Noblat: Balanço da trágica parceria entre Bolsonaro e o coronavírus

O pior ainda está por vir
O coronavírus matou até ontem no Brasil 32.548 pessoas – 1.349 delas nas últimas 24 horas, uma a cada 64 segundos, um novo recorde. Dos 5.570 municípios brasileiros, 4.496 têm menos de 32.550 habitantes, segundo o IBGE.

É como se em pouco mais de dois meses tivesse sido dizimada a população de Exu em Pernambuco, ou de Três Marias em Minas Gerais, ou de Itatiaia no Rio, ou de Ilha Solteira em São Paulo, ou de São Pedro das Missões, no Rio Grande do Sul.

O número de infectados pelo vírus está próximo dos 600 mil. É como se todos os habitantes de Joinville, em Santa Catarina, tivessem ficado doentes. Ou de Londrina, no Paraná. Ou de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Ou de Macapá, capital do Amapá.

O Brasil é segundo país do mundo em número de casos da doença. Só perde para os Estados Unidos. E o quarto em número de mortos, atrás dos Estados Unidos, Reino Unido e Itália. Enquanto nesses países diminui o número de casos novos, aqui aumenta.

O que o presidente Jair Bolsonaro chamou de gripezinha, destinada a matar 800 pessoas, deverá custar a vida de cerca de 50 mil até o próximo dia 20, segundo estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E o pior não terá passado

“A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todos”, disse o presidente. Uma pesquisa realizada pela Associação Paulista de Medicina com 2.808 profissionais, apontou que 84,5% dos médicos acreditam que o pior ainda está por vir.

Quando vier, o país estará mais exposto do que jamais esteve desde quando foi dada a largada para o confinamento social. Sob a pressão de Bolsonaro, de empresários e de prefeitos, governadores por toda parte relaxaram as medidas de isolamento.

O resultado será colhido em breve. E se for o previsto pelos cientistas, ou as medidas serão restabelecidas ou haverá o caos desejado pelo presidente. Ele sempre afirmou que o vírus só será vencido depois de contaminar 70% da população. Estupidez pura!

São muitos os candidatos a dono de uma das alças dos caixões dos mortos pela pandemia. Mas uma delas, por merecimento, com toda certeza é de Bolsonaro. O Brasil é o único país do mundo que trocou duas vezes de ministro da Saúde em menos de 60 dias.

Criou-se, ontem, a figura do ministro interino oficial da Saúde para elevar o status do general Eduardo Pazzuelo que sucedeu a Nelson Teiche, que por sua vez sucedera a Luiz Henrique Mandetta, demitido por Bolsonaro porque estava muito bem no cargo.

A levar-se em conta sua nova condição de ministro interino oficial da Saúde, o general seria o quarto em dois meses. Porque sucede também a ele mesmo que até então era apenas ministro interino. Mais uma contribuição de Bolsonaro à administração pública.


Míriam Leitão: Poucas boas novas no mar da crise

Há algumas notícias favoráveis, e fatos positivos, como a mobilização de pessoas e firmas, mas o governo Bolsonaro aposta na crise

A energia solar ultrapassou a soma da potência instalada das usinas nuclear e a carvão. As indústrias farmacêuticas e de alimentos conseguiram se manter em abril e fechar o mês com produção maior do que março. O dólar, que estava em R$ 5,93 em 14 de maio, chegou ontem a R$ 5,05, queda de 14,8% pela taxa Ptax. É possível encontrar algumas boas novas, mas o avanço do coronavírus continua matando brasileiros, os prefeitos e governadores começam a liberar atividades, alguns com mais cautela, outros de forma impensada, e os infectologistas avisam que ainda é cedo demais.

No mar da nossa crise não há apenas o coronavírus. O governo em si é um problema. Diariamente o presidente cria um estresse com alguém ou alguma instituição. Se fossem só implicâncias, seria possível tolerar, ainda que o normal seria que o executivo fizesse seu papel de coordenar o país para a superação da pandemia. O governo Bolsonaro falhou flagrantemente. Além disso, trouxe de volta para a vida nacional fantasmas exorcizados há décadas. O país se pôs a discutir o significado de um artigo da Constituição, promulgada há 32 anos. O Ministério da Defesa soltou notas sequenciais para dizer que as Forças Armadas são democráticas. Brasileiros se juntam em manifestos pelo Estado de Direito. Como se fosse pouco o nosso padecimento, o governo Bolsonaro levanta o espectro do autoritarismo.

Na economia, ontem foi um dia de comemorações. Há uma interpretação de que o retorno das atividades na Europa está ocorrendo de forma mais rápida do que o imaginado. Ontem, em um seminário online da Febraban, o ex-presidente do Banco Central Ilan Goldfajn, presidente do conselho do Credit Suisse, explicou o clima positivo no mercado como resultado de eventos externos. “Em vários dos países observamos quedas dos casos, contágio e óbitos”. Esclareceu, contudo, que não subscrevia totalmente esse otimismo.

— Estamos no Brasil, não saímos ainda. Não debelamos o aumento dos casos. Tem planos de retorno, mas não fizemos o dever de casa. Estamos pagando o custo de sustentar esse período difícil. E isso num país com dívida alta e espaço fiscal pequeno — disse Ilan, lembrando que também não houve melhora aqui nos “conflitos institucionais”.

Para Ilan, quem decide a recuperação da economia é o vírus, e a capacidade do Brasil de debelar esse vírus mortal:

— É isso que vai permitir sair com tranquilidade para consumir, passear, e o produtor voltar a produzir.

A produção industrial de abril teve um tombo de 18,8% em relação a março, a pior queda em 18 anos, no início da série. Foi até considerado positivo, por incrível que pareça. Primeiro, porque havia uma dispersão enorme de previsões, todas piores, que iam de 20% a 45%. A queda foi menor do que a mediana das projeções, que estava em 32%. Segundo, porque houve setores que conseguiram ter resultado positivo, como a indústria alimentícia, que teve alta de 3,3%, e a indústria farmacêutica, com 6,6% positivo.

Como se viu na divulgação do PIB, o agronegócio continua forte, aumentando as exportações. E, ao contrário do que pensa Ricardo Salles, não é aproveitando a distração da imprensa para passar a boiada. O agro que exporta sabe que tem que seguir as normas ambientais e sanitárias se quiser continuar no mercado internacional.

Um levantamento da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) mostrou que a potência total instalada da fonte — se forem somadas as grandes usinas solares e os pequenos sistemas instalados em residências, comércio, indústrias, produtores rurais e prédios públicos — chegou a 5.764 MW. Se forem somadas as usinas mais poluentes, as que usam carvão, com as usinas nucleares, chega-se a 5.587 MW. No meio da crise que atingiu violentamente o setor de energia, o sol brilha.

O Brasil poderia estar pegando as poucas boas novas e implantando um plano de retomada, com segurança e, quando fosse possível, das atividades da economia. Poderia aproveitar a onda de solidariedade das empresas e a mobilização das pessoas para construir o impulso necessário para a superação.

Mas o país, machucado pela pandemia e abalado pela crise econômica, tem que revisitar batalhas que já venceu, defender valores que já consagrou, rediscutir o que está pactuado há três décadas. O governo abriu o baú dos horrores para lembrar que tudo sempre pode piorar. Que mesmo a democracia não está garantida.


Andrea Jubé: Os dois gigantes que movem a política

Autoridades veem risco de confrontos e até black blocs

Se estivesse vivo, o professor Emilio Mira y López identificaria na realidade nacional pelo menos dois dos “quatro gigantes da alma”, que ele radiografou no clássico da psicologia universal: o medo e a ira. O Brasil é hoje um país dominado pelo temor do coronavírus, da ruína econômica, da ruptura democrática, e tudo isso embalado pelo ódio político, que amplia a turbulência e gera insegurança.

Num momento em que o amor e o respeito à pátria são invocados para legitimar despautérios, como discursos autoritários e ataques às instituições democráticas, vem à tona a atualidade da obra de Mira y López escrita em 1947, depois que o autor, filho de um médico militar, vivenciou duas grandes guerras mundiais e lutou contra o franquismo na Espanha.

“O ódio político é extremamente devastador porque pode invocar para satisfazer-se, a cada momento, o sagrado prestigio da pátria. Assim, basta acusar o vizinho odiado de ser “traidor da pátria” para que sobre ele caiam os anátemas dos que são incapazes de dar a essa palavra um valor variável, em função do marco em que é empregada”.

Professor de psicologia e psiquiatria da Universidade de Barcelona, Mira y López, publicou um estudo cientifico pioneiro das três emoções primárias do homem: o medo, a ira e o amor. Ele as classifica como as três grandes reações neuropsicológicas, que somadas à força repressiva do meio social - o dever - formam os “quatro gigantes da alma”, título da obra, uma referência intelectual nos anos 50 e 60.

É nesse cenário em que o medo e a ira movem a política nacional que as convocações nas redes sociais para a realização de novos atos em defesa da democracia no próximo fim de semana, inclusive na Esplanada dos Ministérios, acenderam o alerta entre as forças de segurança da Presidência da República e do Distrito Federal.

Autoridades do alto escalão receiam confrontos entre apoiadores e opositores do governo. Numa análise ampliada, o temor é de que a tensão política, num cenário de crise sanitária e alto desemprego, desemboque em convulsão social, com saques e depredação de patrimônio.

Alvo de ameaças - ele e seus pares do Supremo Tribunal Federal - o ministro Gilmar Mendes alertou que é preciso “combater o discurso do ódio” para evitar que o pior se concretize. “Tememos que essa violência verbal se convole em violência física, isso não é bom para o país, independentemente de quem seja o alvo”, alertou em entrevista à GloboNews.

É nesse contexto que não foi ao acaso o conselho do presidente Jair Bolsonaro ontem aos seus apoiadores para que não repetissem os atos no fim de semana. “Estão marcando no domingo um movimento né, deixem [os opositores] sozinhos”.

O acirramento da radicalização política nos últimos anos, agravado num cenário de pandemia e crise econômica, transformou o Brasil em uma panela de pressão prestes a explodir. De um lado, o país ultrapassou a marca de meio milhão de infectados pelo coronavírus, com quase 30 mil vítimas, segundo dados oficiais. Em paralelo, a pobreza parece avançar na mesma velocidade da pandemia. A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) diz que os desempregados somam 12,8 milhões de brasileiros - o mesmo que a população inteira da cidade de São Paulo.

Esse somatório de perdas - de vidas humanas, de emprego, de esperança -, tendo como pano de fundo a ameaça democrática, torna-se um campo fértil para a revolta popular.

Por meio do Centro Integrado de Operações (Ciop), que reúne 29 órgãos do Distrito Federal, a Secretaria de Segurança Pública vem monitorando as manifestações de apoiadores de Bolsonaro aos domingos, há mais de um mês, na Praça dos Três Poderes. Sem oposição, os atos têm sido pacíficos, embora questionáveis pela violação ao decreto que proíbe aglomerações.

Fontes da secretaria ressalvam que há um impasse legal, que autorizaria os protestos, seja de que lado forem, porque a Constituição Federal assegura o direito de manifestação. É essa prerrogativa constitucional que estará em debate caso a Justiça seja acionada para proibir os protestos do próximo fim de semana para evitar confrontos.

Vários cenários estão sendo analisados pelas forças de segurança federal e dos Estados para evitar atos de violência no próximo fim de semana. Um dos temores é o ressurgimento de grupos radicais como os “black blocs”, responsáveis por ações violentas nas manifestações de 2013.

Outro receio envolve a eventual prisão da ativista Sara Winter, apoiadora do presidente, que fez ameaças públicas ao ministro do STF Alexandre de Moraes e é investigada pela Polícia Federal. Há dúvidas se a sua detenção teria o efeito de advertência para conter os excessos dos demais ativistas, ou acirraria os ânimos dos bolsonaristas.

Outro temor é de que os protestos antirracistas que ocorrem há uma semana nos Estados Unidos - e ganharam ampla cobertura da imprensa brasileira -, contra o assassinato de George Floyd, estimulem os protestos nacionais.

No limite, há quem arrisque que restará ao governador Ibaneis Rocha (MDB) imitar o seu antecessor, Rodrigo Rollemberg (PSB), que ergueu um muro de dois quilômetros de extensão nos gramados da Esplanada para dividir os grupos adversários no impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e evitar as vias de fatos entre os dois grupos.

Mira y López ficou conhecido como o “teórico da liberdade”: exilado após a luta contra o regime de Franco, ele viveu nos Estados Unidos, Argentina e Uruguai, até radicar-se no Brasil, onde faleceu em 1964, em plena ruptura democrática.

Ele não se conformava com a radicalização política, porque para ele esse ódio esbarrava na essência da atividade política, que deveria ser “modelo de tato, compreensão e respeito ao ser humano”. Sua conclusão foi de que o ódio político remonta à tendência do homem, “desde sua mais remota ancestralidade”, a ambicionar o poder, “não para servir, mas para dele se servir”.


RPD || Reportagem especial: Busca por auxílio emergencial revela legião de brasileiros na invisibilidade

No total, mais de 46 milhões de brasileiros não estão em nenhuma lista do governo e correm para conseguir benefício durante pandemia do coronavírus

Cleomar Almeida

Na geladeira da faxineira Marizete Coelho (37 anos), duas garrafas de água. É só o que tem. Mãe solteira, ela e os dois filhos (8 e 9 anos) sobreviviam com 800 reais mensais que conseguiam com bicos de limpeza em espaços de festas e eventos, que foram suspensos por causa da pandemia do coronavírus. Metade do dinheiro era para o aluguel do barracão de três cômodos onde moram, em Santa Maria, a 26 quilômetros de Brasília. Até hoje, ela não conseguiu se cadastrar para receber o auxílio emergencial de 600 reais.

Assim como milhares de brasileiros, Marizete já passou vários dias em grandes filas da Caixa Econômica Federal para tentar regularizar sua situação, mas sem êxito. Ela não está em lista alguma do governo. Não recebe nem Bolsa Família porque os filhos não estudam. Não tem CPF ativo nem conta bancária, que são exigidos para conseguir a ajuda de emergência. “Minha renda sempre foi da faxina pra colocar a comida em casa. Também nunca tive patrão para pedir documento, porque sempre trabalhei para fazer bico com ajuda de pessoas que já me conheciam”, diz ela.

A situação de Marizete não é isolada. No total, segundo dados oficiais, mais de 46 milhões de brasileiros não se enquadram nas regras e não estão em qualquer lista do governo. São trabalhadores informais que ficaram sem renda por causa da pandemia e dependem dessa ajuda para sobreviver. São os invisíveis do Cadastro Único do Governo Federal. Muitos não têm nem acesso à internet para se regularizar. 

O efeito da pandemia sobre a vida das pessoas é ainda mais trágico se considerados os 12,9 milhões de desempregados em março, conforme dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apenas nos três primeiros meses deste ano, 2,3 milhões perderam o emprego, sendo 1,9 milhão de informais, o que reforça o peso catastrófico da pandemia sobre esse grupo. As principais pesquisas sobre ocupação da população foram interrompidas ou enfrentam problemas.

O primeiro desafio do governo era inscrever 11 milhões que não estavam no Cadastro Único, mas têm direito ao benefício, segundo cálculo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). O segundo era fazer o pagamento. Para quem não tem conta em banco, a Caixa Econômica Federal prometeu criar 30 milhões de poupanças digitais, movimentadas via aplicativo.

De acordo com pesquisa do Instituto Locomotiva, mais de 5,5 milhões de brasileiros com renda de até meio salário mínimo, elegíveis para receber o benefício, não têm nem conta em banco ou acesso regular à internet.  São eles que correm o maior risco de não receber o auxílio. “A crise do coronavírus tirou renda e jogou para a pobreza muita gente que tinha pouco, mas não era alvo de programas sociais. O vírus joga luz a problemas que já existiam, como a baixa renda dos informais, e acentua uma desigualdade histórica”, diz o presidente do instituto, Renato Meirelles.

Pesquisadores do IPEA defendem ações urgentes e integradas entre União, Estados e municípios para socorrer os invisíveis. “O fundamental é partir da estrutura que já construímos, para atender de imediato às famílias mais pobres. Do contrário, o risco é de só conseguirmos operacionalizar o benefício tarde demais”, alerta o representante do IPEA, Pedro Ferreira de Souza. “Nossas simulações mostram que é possível garantir renda mínima para famílias vulneráveis com custos relativamente baixos, considerando a gravidade da situação”, diz.

O furacão de invisíveis, que aumenta cada vez mais, tem engolido até as expectativas do próprio governo. “Temos um volume muito grande de pessoas que literalmente trabalham durante o dia para comer à noite. Para atender a esse problema, saímos em busca dos que eram considerados invisíveis, os informais, que não têm uma atividade formalizada, organizada. Tínhamos a expectativa, a FGV [Fundação Getúlio Vargas] e outros institutos, de encontrar sete ou oito milhões desses invisíveis. Já encontramos 20 milhões", disse o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, no início de abril.

No dia 20 de abril, o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, reconheceu a dimensão ainda maior da população até então inexistente para o governo, em entrevista à imprensa. “Esses invisíveis hoje são 42,2 milhões de brasileiros e nós estávamos conversando, pensamos que chegaremos a 50 milhões de brasileiros. É um número maior do que imaginávamos”, afirmou.

O desespero dessas pessoas faz diminuir ainda mais o isolamento social, medida preventiva ao coronavírus, já que, na ânsia de conseguirem os 600 reais, têm de correr para as filas das agências da Caixa, para tentarem regularizar sua situação e serem vistas oficialmente pelo governo. A realidade socioeconômica torna essas pessoas ainda mais vulneráveis.

A professora Ana Carolina de Aguiar Rodrigues, do Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), da Universidade de São Paulo (USP), diz que, no Brasil, diferentemente de outros países, medidas de isolamento também devem passar por questões socioeconômicas. Ela ressalta que esse aspecto deveria moldar as diretrizes e ações a serem tomadas pelos governos no país. 

“Definitivamente, esse valor não é suficiente”, diz ela, referindo-se aos 600 reais do auxílio emergencial. “Mas é importante dizer que, na hora que esse dinheiro cair na conta, as pessoas vão reduzir suas saídas de casa”, avalia a professora da USP. O técnico do IPEA Pedro Herculano de Souza, que estuda desigualdade de renda, concorda: "O auxílio é bem desenhado. O desafio é chegar a todos".

É exatamente isso que Marizete almeja. A faxineira conta que não vai sossegar em casa enquanto não conseguir regularizar sua situação junto ao governo. “Tenho dois meninos para criar, a geladeira está vazia. Não temos o que comer”, diz.  Durante a pandemia, ela sobrevive com ajuda de vizinhos e de grupos de doação. “A gente sabe que o melhor é não sair de casa, mas hoje existir nos registros do governo é questão de sobrevivência. Só assim eu vou conseguir ter alguma ajuda nessa crise do coronavírus”, afirma.


Solidariedade socorre desassistidos pelo governo

Na ausência do Poder Público, a solidariedade tem-se tornado o melhor remédio de força para comunidades inteiras se ajudarem e passarem o período da pandemia do coronavírus. Em diversos Estados, grupos de vários segmentos da sociedade se unem para amenizar a fome ou auxiliar pessoas sem acesso à internet a fazerem o registro no Cadastro Único.

Em Goiânia, após a confirmação da progressão geométrica de casos de pessoas contaminadas pelo coronavírus, um grupo de amigos passou a se mobilizar pelas redes sociais para juntar alimentos e doá-los a quem necessita. Os beneficiados são, principalmente, pessoas consideradas invisíveis, de acordo com um dos organizadores.

“Muita gente não tem nada em casa nem perspectiva de quando vai receber algum dinheiro do governo. Já encontramos situação de trabalhadores do lixão que sequer tinham RG ou CPF. Parece inacreditável, mas é preciso visitar os lugares mais esquecidos para enxergar a realidade”, afirma o dentista Rogério Leal, voluntário do projeto. “Toda semana, entregamos cestas básicas a mais de 100 famílias desamparadas. Essa ajuda só é possível graças à sensibilidade de donos de supermercados”, diz ele.

Em Belo Horizonte, outro grupo tem-se reunido durante a semana, para ir até a casa de moradores da periferia e leva-los de carro até agências da Caixa Econômica Federal, para que consigam cadastrar a solicitação do auxílio emergencial. “Muita gente não tem pão para o café da manhã, muito menos vale-transporte para pegar ônibus e ir até uma agência”, afirma o advogado Lucas Mendonça, que se mobiliza com um grupo de evangélicos para auxiliar famílias carentes. “Nosso intuito é amparar da melhor forma possível. Se temos carro, usamos o veículo para ter função nas comunidades”, pondera.

No Rio de Janeiro, uma associação de camelôs cadastra e faz o acompanhamento do pedido do auxílio emergencial de 600 reais para colegas sem internet ou conta em banco. "Fazemos o pedido e monitoramos o andamento", conta a ativista Maria de Lourdes do Carmo. "Se a gente não se unir, todo mundo vai sofrer", acentua. Segundo ela, mais de 100 pedidos do benefício realizados por meio da associação já foram aprovados.

Além de grupos de amigos, a ajuda vem de Organizações Não-governamentais (ONGs) e associações que nunca tiveram a simpatia deste governo, na avaliação do diretor da FGV Social, o economista Marcelo Neri. "É preciso agir: a crise chegou após cinco anos de aumento da pobreza. No fim de 2019, a desigualdade de renda do trabalho, enfim, parou de subir, mas deve voltar a crescer”, alerta.


Número de auxílios liberados é três vezes maior que o projetado

O número total de auxílios emergenciais liberados a trabalhadores informais até a primeira quinzena deste mês já é o triplo do previsto pelo governo em março e deve aumentar ainda mais ao longo deste ano. A Caixa Econômica Federal informou que, até este mês, 58,7 milhões de trabalhadores informais tiveram o benefício autorizado.

A projeção inicial do Ministério da Economia era de que até 20 milhões de pessoas seriam beneficiadas pelo auxílio emergencial, o que, segundo o órgão, geraria custo de R$ 15 bilhões aos cofres públicos. Com o passar dos dias, as autoridades foram surpreendidas pelo crescente número de brasileiros que se enquadravam nos critérios do benefício.

Depois, o próprio governo teve de fazer novos cálculos e liberar novo crédito, que passou para próximo de R$ 124 bilhões. O prazo para os interessados se cadastrarem no programa vai até o mês de julho, o que ainda deixa o governo em alerta sobre possíveis aumento nos dados.

Diante do cenário de incerteza, a equipe econômica quer incluir no debate a possibilidade de revisão do que chama de gastos ineficientes. Os técnicos querem reavaliar gastos como abono salarial, seguro-defeso (pago a pescadores artesanais no período de reprodução dos peixes, quando a pesca é proibida) e farmácia popular.

Na avaliação da equipe econômica, a revisão nesses benefícios poderia abrir espaço no Orçamento para acomodar renda básica à população ou outra proposta de fortalecimento das políticas sociais no Brasil. No formato atual, o auxílio emergencial custa cerca de R$ 45 bilhões ao mês, uma despesa que, na avaliação dos técnicos, não cabe no Orçamento nem no teto de gastos, mecanismo que limita o avanço das despesas à inflação.

A manutenção do auxílio emergencial de R$ 600, além dos três meses definidos inicialmente pelo governo, já é defendida por parlamentares e entrou na conta das projeções de mercado para o resultado fiscal do Brasil em 2020. No entanto, economistas alertam para o risco de o país repetir os erros da crise de 2008, quando políticas temporárias para resgatar empresas e famílias se tornaram permanentes e contribuíram para o processo de deterioração das contas públicas.

No Congresso, o argumento de parlamentares é evitar que as famílias fiquem sem renda alguma em um momento em que a circulação do coronavírus no país ainda poderá inviabilizar a retomada plena das atividades e do emprego.


Felipe Salto: Batidas na porta da frente

A hora é da qualificada elite burocrática do País. Mas isso requer liderança política

A covid-19 levou Aldir Blanc, mas sua obra é um fio permanente de beleza a nos guiar nestes tempos obscuros, a exemplo da canção Resposta ao Tempo. A resposta à crise não pode mais ser atropelada por agendas inadequadas. A falta de diagnóstico e de prognóstico turva a visão do governo. Ainda há tempo para salvar muitas vidas. A resposta tem de se pautar em dois eixos: o combate ao vírus, no curto prazo, e o planejamento para o pós-crise.

O isolamento social é inescapável, como explicou o sanitarista Gonzalo Vecina em artigo no Estadão de 20/5. A recessão econômica poderá ser pior do que a apontada no atual cenário pessimista da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, de 5,2%. Diante disso, a tarefa primordial é reduzir mortes e planejar um horizonte de recuperação da produção e do consumo. A volta à normalidade ocorrerá, tempestivamente, de maneira coordenada.

No eixo do combate ao vírus destacam-se quatro frentes de batalha: 1) guarnecer o SUS e os governos regionais; 2) disseminar os testes de diagnóstico e acelerar a compra de respiradores e a instalação de novas UTIs, em parceria com o setor privado; 3) mitigar os efeitos da crise sobre a renda dos mais pobres; e 4) intensificar as medidas de isolamento e as campanhas de higiene pessoal e de uso de máscaras. Comento cada uma a seguir.

1) Foram aprovados R$ 50,2 bilhões de auxílio aos governos estaduais e municipais, além de compensações de até R$ 16 bilhões nos fundos de participação desses entes federativos. Outros R$ 49,8 bilhões foram destinados à saúde, incluindo gastos diretos da União e transferências para Estados e municípios. Mas desse total, de R$ 116 bilhões, foram pagos apenas R$ 11,2 bilhões. É preciso transpor obstáculos burocráticos e acelerar os pagamentos, sobretudo no gasto com saúde.

2) “O tempo aprisiona”, diz a música de Aldir Blanc. A inépcia, também. É urgente promover um esforço nacional envolvendo o setor privado. Sua estrutura, seus profissionais e seu conhecimento têm de ser convertidos para as trincheiras da guerra ao vírus. Faltam testes, medicamentos, respiradores, UTIs e profissionais. Por hipótese, o aluguel ou construção de 30 mil leitos de UTI, ao custo médio diário de R$ 2 mil/paciente, por um período de três meses, representaria R$ 5,4 bilhões. É uma cifra muito pequena relativamente ao poder de fogo da União. Poderia ser comportada nos R$ 49,8 bilhões mencionados.

3) O programa emergencial de R$ 600 está sendo executado, apesar das filas e das dificuldades para acesso ao dinheiro. Dos R$ 123,9 bilhões fixados pelo governo no orçamento, R$ 76,4 bilhões já foram pagos. A IFI estima que o programa atingirá quase 80 milhões de brasileiros, ao custo de R$ 154,4 bilhões em três meses. A discussão sobre a prorrogação do auxílio é relevante, mas precisa ser feita no contexto de eventual reestruturação e unificação dos benefícios sociais já existentes.

4) As campanhas para higienização pessoal, controle de circulação de pessoas e uso de máscaras têm de ser intensificadas. Como apontado por Vecina, se o contágio não se distribuir no tempo, a demanda adicional de UTIs levará o sistema de saúde ao colapso.

No segundo eixo, o do planejamento para o pós-crise, é preciso ter claro o ponto de partida: a dívida pública aumentará mais de dez pontos porcentuais do PIB em 2020, algo como R$ 732 bilhões. Em 2021 será preciso retomar déficits públicos menores. Tarefa complexa a executar se o PIB aumentar muito pouco. A saída da crise envolve o compromisso com o controle dos gastos governamentais e com o aumento das receitas e dos investimentos públicos.

Os juros baixos ajudarão a elevar o investimento privado, mas cabe lembrar que a ociosidade da indústria já supera os 40%. Os recursos dos programas de crédito têm de chegar mais rapidamente às empresas. Também o programa de manutenção de emprego com redução de jornada merece atenção, uma vez que foram pagos até agora apenas R$ 4,5 bilhões dos R$ 51,6 bilhões previstos. Do contrário, fragilizaremos a retomada.

Um verdadeiro bunker é necessário para dirigir tudo isso. Os dois eixos são complexos e cheios de matizes que dependem de gente competente, gestores, especialistas e estudiosos. Em nada ajuda a súcia de camisas pardas a aplaudir o caos. A hora é da qualificada elite burocrática do País. Mas isso requer liderança política.

As tarefas são óbvias: coletar informações diárias de todos os Estados e municípios, com foco nos mais afetados pelo coronavírus, e agir, a partir do bom diagnóstico. E, claro, corrigir a rota quando necessário. Não é uma operação trivial.

Como na canção de Aldir Blanc, “(o tempo) sussurra que apaga os caminhos”, atropela vidas, é implacável com a irresponsabilidade. “Batidas na porta da frente. É o tempo…”. A melhor resposta? Governar.

Nota: Meu avô, Milton Scudeler, era assinante do Estadão e lia para mim os editoriais e artigos de opinião das páginas A2 e A3, onde agora tenho a honra de escrever periodicamente. Agradeço ao jornal pelo espaço aberto.

  • Diretor executivo da IFI

Dorrit Harazim: Talkey

Pouco apaziguante para um país que ultrapassara 330 mil casos de Covid-19 e um séquito de mais de 21 mil óbitos

A linguagem do decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, em nada se assemelha ao idioma criado por Jair Bolsonaro para pregar a seus devotos. A sintaxe, o léxico, o conteúdo falam a dois Brasis cada vez mais estrangeiros. Na sexta-feira passada, porém, Celso de Mello se fez entender por todos ao lembrar que cabe ao Estado mandar apurar delitos apontados por “qualquer pessoa do povo”, mesmo que se trate de “alguém investido de autoridade na hierarquia da República”. Em outras palavras: nem o Mito está acima da lei, talkey? O causídico assinou dois despachos — bomba com poucas horas de intervalo —, autorizou a liberação quase integral do vídeo da polêmica reunião ministerial de 22 de abril último, e encaminhou à Procuradoria-Geral da República (PGR) um pedido de apreensão do celular de Bolsonaro e de seu filho 02, o vereador bissexto Carlos. As duas decisões são desdobramentos das investigações sobre a suposta interferência do presidente na Polícia Federal, denunciada pelo ex-ministro Sergio Moro.

A partir daí, o estado democrático de direito viu-se, mais uma vez, enroscado.

Com 48 horas de intervalo, o general de reserva Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) também emitira dois comunicados à nação. O primeiro já teve sonoridade meio esquisita, embora pretendesse soar como afago aos historicamente inquietos. “Os militares não vão dar golpe. Isso não passa na cabeça dessa nossa geração… São provocações feitas por alguns indivíduos…”, garantiu o general durante uma live com o grupo Personalidades em Foco. Heleno acrescentou que deve isso à geração de seus instrutores, “vacinados por toda aquela trajetória de militares se intrometendo de uma forma pouco aconselhável, mas muitas vezes necessária, na política”. No segundo comunicado, em papel timbrado via Twitter, indignou-se com o pedido de apreensão e encaminhamento à PGR do celular presidencial. Considerou o pedido uma afronta à autoridade máxima, e uma interferência “inadmissível” do STF na privacidade de Bolsonaro e na segurança nacional. E assim sendo, alertava “as autoridades constituídas que tal atitude… poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.

Pronto, o “inadmissível” estava colocado na mesa. Para bolsonaristas, intolerável passa a ser o pedido de apreensão do celular do presidente; para ouvidos mais maduros, inquietante é o aceno pouco velado a uma eventual instabilidade nacional. Tudo pouco apaziguante para um país que ultrapassara a marca de 330 mil casos de Covid-19 e um séquito fúnebre de mais de 21 mil óbitos notificados.

Foi nesse pano de fundo que os brasileiros puderam acompanhar a transmissão de largos trechos da reunião ministerial de 22 de abril, peça-chave na investigação sobre as acusações feitas pelo ex-ministro Moro ao chefe do Executivo, e cujo sigilo o ministro Celso de Mello liberara.

O seu conteúdo será dissecado por anos a fio, por histórico, revelador, estupefaciente. Mas como esta coluna dominical está sendo enviada dois dias antes, no meio da transmissão do material libertado, cita-se aqui apenas uma rima presidencial pinçada às pressas, que não se refere às acusações de Sergio Moro mas não deixa de ser instigante. Palavras do presidente da República um tanto alterado, estilo haikai talkey:

“Os caras querem/ A nossa hemorroida!/ A nossa liberdade!/ Isso é que é a verdade” .

Também digno de nota foi a imagem na parede de um grupo de crianças lindinhas, todas branquinhas, olhando com enlevo para um cartaz do governo com os dizeres PÁTRIA AMADA, BRASIL. Servia de pano de fundo ao ministro da Educação, Abraham Weintraub, que podia ser visto e ouvido elencando seu rol de inimigos. “Odeio o termo povos indígenas” haverá de se tornar um clássico. Mandar prender todos os ministros do STF também. Não que o presidente ficasse atrás. “Estou armando o povo porque não quero a ditadura” e “Povo armado jamais será escravizado”, entoou com vigor o chefe da nação.

Talvez seja oportuno invocar o velho Bertolt Brecht dos tempos em que ele ainda acreditava na capacidade humana de renunciar ao mal. Marxista de raiz, o dramaturgo alemão escreveu este poema antes de Hitler apresar o mundo:

“O vosso tanque, general, é um carro-forte/ Derruba uma floresta, esmaga cem homens/ Mas tem um defeito/ — Precisa de um motorista/ O vosso bombardeiro, general/ É poderoso:/ Voa mais depressa que a tempestade/ E transporta mais carga que um elefante/ Mas tem um defeito/ —Precisa de um piloto/ O homem, meu general, é muito útil:/ Sabe voar, e sabe matar/ Mas tem um defeito/ — Sabe pensar.”

Pensemos, pois.


Ascânio Seleme: O golpista e o interventor

A nação assistiu estarrecida ao vídeo da fatídica reunião ministerial que culminou na demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro

A nação assistiu estarrecida ao vídeo da fatídica reunião ministerial que culminou na demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro. Foi um festival de barbaridades e palavrões capaz de fazer corar até mesmo Celsinho da Vila Vintém. Tão grave quanto a reunião, ou até mais, foi a nota do general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, que ameaçou o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, e de resto todo o país, numa defesa despropositada do presidente Jair Bolsonaro. Foi a declaração mais acintosamente antidemocrática de um general desde o fim da ditadura, há 35 anos.

A nota de Heleno, sugerindo uma instabilidade nacional no caso da apreensão do celular de Bolsonaro, é tão absurda que enterra de uma vez por todas a aura de democrata que o general tenta mostrar. Como uma biruta que sopra de acordo com o vento, dois dias antes ele afirmara que não haverá golpe no país. Claro que não haverá. Estamos tratando de um aloprado, com certeza. Mas um aloprado com propósito. No mínimo, Heleno queria atrair para si a atenção do dia, toda voltada para o vídeo da reunião ministerial. No limite, queria constranger ou assustar um ministro do STF, tentando subverter sua vontade, a vontade da Justiça.

O fato é que a nota é uma ameaça ignóbil e deve ser tratada distintamente da questão que envolve o presidente e a intenção de interferir na Polícia Federal. Heleno deve responder pela nota absurda e ser sancionado adequadamente. O que ele fez foi igual ao que fazem os que carregam faixas pedindo o fechamento do Congresso e do Supremo. Mais grave, na verdade, porque o ministro tem assento do Palácio do Planalto e, por ser um ex-chefe militar, alguma ascendência sobre outros oficiais. O biruta pregou um golpe.

Sobre a denúncia propriamente dita, não resta dúvida que Bolsonaro ameaça intervir na Polícia Federal por não receber dela informações que julga merecedor. Reclama que a instituição não o ajuda: “Eu não posso ser surpreendido com notícias, eu tenho a PF e não tenho informações.” Depois reclama também das que recebe da Abin e das Forças Armadas. Diz que prefere não ter informação a ser mal informado. A certa altura, afirma: “Não sou informado, eu vou interferir”, e olha para Moro.

Ao se referir à segurança no Rio, é óbvio que se referia à Superintendência da PF, mas não é claro o suficiente nesse ponto específico. Depreende-se essa conclusão ao se entender o todo. Como este é o ponto crucial da investigação em curso contra Bolsonaro, haverá argumento para quem quiser varrer a sujeira para debaixo do tapete. Significa que, se o procurador Augusto Aras for um mau entendedor, pode isolar a fala, dizer que dela não se consegue retirar nenhuma vontade intervencionista e engavetar o inquérito.

A reunião tem tudo aquilo que já se publicou. Mas é assustador ver e ouvir as sandices e os palavrões do presidente da República num ambiente que deveria ser de alto nível. Fala em liberdade com a mesma entonação com que ataca jornais. Fala em armar a população para impedir uma ditadura e diz que o povo armado não aceitaria o decreto de prefeitos regrando o confinamento contra o coronavírus. Um absurdo. Chama os governadores João Doria e Wilson Witzel de “bosta” e “estrume”. Diz que eles querem “nossa hemorroida”, não explicando direito o que queria significar.

Não há dúvida que quem inflama Heleno e outros ministros é o próprio Bolsonaro. Ele nunca fala baixo, grita muito e extrapola no uso de palavrões, mas isso é quase uma bobagem quando se observa o teor das suas colocações. Ele pinta o governo como se fosse um ente ungido por Deus sendo atacado por todos os lados, mas nomeia apenas a imprensa. E ameaça ministro que for elogiado pelo GLOBO ou pela Folha.

O ataque de Weintraub ao Supremo está lá, com todas as mesmas letras que escrevemos e lemos nos últimos dias. O ministro fala de modo inflamado em liberdade, sem explicar a que tipo de liberdade se referia, já que acrescenta que se dependesse dele “colocava todos esses vagabundos na cadeia, começando pelo STF”. Weintraub vira-se na cadeira apontando para a Praça dos Três Poderes. Ninguém o condena.

Festejando o quê?
A reunião de quinta-feira do presidente da República com os presidentes da Câmara e do Senado e com governadores (estes online) não seria nada mais do que um encontro importante, porém normal, se esse fosse um governo normal. Mas em se tratando de Bolsonaro, foi um sucesso que entusiasmou muita gente, dentro e fora do Palácio do Planalto. Por quê? Porque Bolsonaro não levantou a voz, não xingou, não ameaçou ninguém, comportou-se como um ser humano civilizado. Alguma coisa está muito errada quando se festeja um presidente que faz nada mais do que sua obrigação. O chato é que não vai durar.

Bobo ele não é
Curioso que o modo civilizado, para não dizer bonzinho, de Bolsonaro ocorreu no dia seguinte à divulgação de uma pesquisa em que 60% dos brasileiros dizem que seu governo é ruim ou péssimo e 76% apoiam o isolamento social contra o coronavírus. Outro fator que influenciou favoravelmente o humor do presidente foi a iminente retirada do sigilo sobre o vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril. Era bom mesmo mostrar alguma inimaginável civilidade.

O uso do cachimbo
No domingo passado, dezenas de manifestantes que carregavam faixas com dizeres antidemocráticos deixaram os estandartes dentro dos seus carros antes de se agruparem na Praça dos Três Poderes para ovacionarem o capitão. Mas a coceira foi tanta que uma mulher não aguentou o novo comando do gabinete do ódio e deu uma paulada na cabeça de uma jornalista com o mastro da bandeira do Brasil que portava. É a boca torta que não consegue esconder o velho hábito da intolerância.

Oposição?
A frase que deve ter acordado o ex-presidente Lula é do filósofo e professor Luiz Felipe Pondé. “O Brasil não tem governo nem oposição”, disse Pondé numa live com o jornalista Willian Corrêa. Lula deve ter pensado “calma lá”, e rapidamente reintroduziu a oposição no festival de besteiras que assola o país (obrigado, Sergio Porto).

Restos do vídeo
Não dá para deixar passar o que falou o ministro do Meio Ambiente, o absurdo Ricardo Salles, na reunião ministerial do dia 22 de abril. Disse que era hora de aproveitar que a imprensa está ocupada com a Covid-19 para “passar de boiada” medidas que dependem apenas de parecer e caneta para “simplificar” os controles ambientais no Brasil. Parecia uma pessoa querendo cometer um crime enquanto ninguém vê. Bobagem, ministro, haverá sempre um jornalista atento aos seus movimentos.

O cientista e o sábio
O cientista Jair Bolsonaro recomenda o uso da cloroquina desde os primeiros sinais do contágio, tanto que mandou o Ministério da Saúde baixar protocolo nesse sentido, que nenhum médico assinou. O sábio Osmar Terra, que há um mês disse que o número de casos estava desabando, assina embaixo, embora ele próprio seja um ex-médico. Por sorte não estão juntos. Caso estivessem, sábio e cientista encaminhariam o país rapidamente para a beira do precipício.

Os três patetas
A última vez em que simultaneamente três oficiais generais deram as cartas no Palácio do Planalto foi entre 31 de agosto e 30 de outubro de 1969, quando uma junta militar assumiu o governo após o derrame que incapacitou o então presidente e marechal Costa e Silva. Para impedir a posse do civil Pedro Aleixo, os ministros de Exército, Marinha e Aeronáutica abiscoitaram o poder. Proibiram a imprensa de usar o termo “junta militar”, mas não conseguiram impedir que o apelido dado a eles pelo deputado Ulysses Guimarães ganhasse até os livros de História. O almirante Augusto Rademaker, o general Aurélio de Lira Tavares e o brigadeiro Márcio de Sousa e Melo ficaram conhecidos como “Os três patetas”. Eram outros tempos, hoje o pateta do Palácio tem patente inferior.

Nem o mdb
Você percebe que está mal quando convida o MDB para o seu governo e o partido gradece dizendo que neste momento prefere manter a sua “independência”.