crise

Ana Carla Abrão: O dia seguinte

Precisamos de uma ação coordenada e planejada para lidar com esta crise

Mesmo com sorte e acesso à vacinação, ainda teremos de enfrentar os efeitos da pandemia sobre a economia ao longo de todo o ano de 2021. Isso significa um esforço de políticas públicas e ações de enfrentamento por algum tempo e, consequentemente, a necessidade de se focar em iniciativas de apoio que estejam direcionadas aos setores e às camadas da população mais atingidos. Essas deverão substituir os amplos programas de socorro que foram o padrão na primeira fase de enfrentamento e que foram tão importantes para minimizar os efeitos primários da interrupção da atividade econômica. A provisão de liquidez foi fundamental. Agora é hora de olhar para a solvência. 

Essa é a conclusão de um relatório recém divulgado pelo Grupo dos 30, grupo consultivo para assuntos de economia internacional e monetários. O G-30 é composto pelos atuais e ex-chefes dos bancos centrais da ArgentinaBrasil, Grã Bretanha, CanadáChinaFrançaAlemanhaÍndiaIsraelItáliaJapãoMéxicoPolôniaCingapuraEspanha e Suíça, além dos presidentes do Federal Reserve Bank de Nova York, do Banco Central Europeu, do Comitê de Supervisão Bancária de Basileia, do Bank for International Settlements (BIS), dos economistas-chefes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Participam também representantes de grandes bancos privados e membros de instituições acadêmicas e internacionais. 

Ressuscitando e Reestruturando o Setor Corporativo Pós-Covid – Desenhando intervenções de política pública (Reviving and Restructuring the Corporate Sector Post-Covid - Designing public policy interventions) é o título do estudo. Ele visa a alertar formuladores de políticas públicas sobre os riscos de, passado o primeiro momento de enfrentamento e realizada a expectativa de vacinação da população, se buscar restabelecer o status quo pré-pandemia, ignorando as transformações que em boa parte se manterão ao longo deste ano, senão de forma perene, sobre o mundo corporativo. Agora é hora de permitir uma realocação de recursos e garantir que as economias sairão melhores das transformação ocorridas nesses últimos tempos. Nesse processo, instituições financeiras e o mercado de capitais terão papel fundamental e precisarão estar prontos para apoiar essas transformações e os impactos delas sobre as empresas. Mais desenvolvido e profundo o mercado financeiro, maiores as chances de recuperação econômica – e mais rápida ela será. Além disso, alertam os membros do grupo de trabalho liderados pelos ex-banqueiros centrais Mario Draghi e Raghuram Rajan, caberá aos governos estabelecer as condições para que isso aconteça, se afastando cada vez mais das ações amplas de apoio e se concentrando em iniciativas mais focalizadas e de maior eficácia.

Na medida em que as ações emergenciais vão sendo retiradas, segue o relatório, há que se antecipar um conjunto de problemas que deverão emergir e que exigirão respostas de políticas públicas adequadas. Esses problemas vão desde as distorções geradas pelas políticas de apoio à liquidez (que não necessariamente atuaram de forma proporcional aos impactos diversos sobre diferentes setores), passam por eventuais problemas de sobreendividamento, gerados pelo estímulo ao crédito num ambiente de fraca atividade econômica e vão até uma intervenção excessiva do setor público, causando alocações subótimas de recursos. 

Não menos importante e particularmente grave no Brasil, são os impactos fiscais das medidas de enfrentamento e a falta de sustentabilidade dessas ações no longo prazo. Para guiar o enfrentamento desses problemas o relatório avança com recomendações baseadas em princípios e instrumentos de política pública e acompanhados de um processo de decisão que leva em conta as particularidades locais. Não os exponho aqui pelas restrições de espaço, mas também para deixar ao leitor curioso a possibilidade de se aprofundar nas possibilidades e nos detalhes ali apresentados.

A mensagem principal que fica desse trabalho é a de que precisamos de uma ação coordenada, planejada e focalizada para lidar com esta que é uma crise sem precedentes na História. Dados os efeitos – temporários e permanentes – da pandemia, há que se criar as condições para que a economia se recupere, protegendo vidas, entendendo as limitações de cada país, mas também minimizando o custo para a população e para as gerações futuras. Para isso será necessário garantir que o setor privado assuma seu papel com ações de política pública que restaurem a confiança, garantam a solvência (em particular a do setor público) e tragam resultados estruturais. 

Sem dúvidas, um grande desafio para um país como o Brasil, que tem um governante que nega a pandemia e um governo que demonstrou baixa, senão nenhuma, capacidade de coordenação e planejamento. Mas sempre é tempo de sair da paralisia e apresentar um plano de recuperação que possa nos trazer esperança de que dias melhores virão quando o dia seguinte da pandemia chegar.

*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman. 


William Waack: De Dilma a Bolsonaro

As questões básicas não resolvidas do País permanecem as mesmas

A década que começou com Dilma e vai terminando com Bolsonaro tem uma extraordinária constância. Nossas mazelas continuam praticamente as mesmas. Apenas mais escancaradas por uma pandemia que expôs (e também agravou) problemas que já existiam. Nesse sentido, não se pode falar de uma década que começa e termina com sinais trocados. A incompetência governamental e nossa complacência em sua essência seguem as mesmas.

Sim, Dilma foi a vítima da tortura praticada por um regime de exceção, que Bolsonaro teima em exaltar. Por mais abjetas e fracassadas as ideias que ela defendia, não há nada que justifique tortura especialmente por órgãos de Estado, como aconteceu na ditadura militar brasileira. É um aspecto que o capitão Bolsonaro ignora e que exércitos profissionais de democracias abertas, como na França (na Argélia), Estados Unidos (por último, no Iraque) e Israel (na Intifada de 1987) reconhecem como destruidor da moral da força armada e se empenham em condenar.

A sociedade brasileira segue exibindo a mesma tolerância em relação a pragas nacionais há tempos estabelecidas: injustiça social, miséria disseminada, violência endêmica, corrupção e incompetência governamental. São características com as quais se podia descrever o Brasil de 10 ou 20 anos atrás, e a onda disruptiva de 2018 não ofereceu resultados até aqui convincentes para alterar fundamentalmente esse quadro. As comparações internacionais nada proporcionam para nos orgulharmos em termos de nível de desenvolvimento humano e, especialmente, educação, que continua sendo entendida no Brasil como ferramenta e não como valor em si.

Nas comparações mais recentes estamos capengando para proteger nossa população da covid-19. Os que primeiro começaram a vacinar estão em todas as regiões do mundo. Nessa lista figuram ricos e emergentes, países gigantes e pequenos, regimes abertos, democracias liberais, monarquias absolutistas, a ditadura comunista da China, variadas etnias, as principais denominações religiosas (entre os latino-americanos, governos de esquerda e de direita).

O atraso brasileiro na questão da vacinação é uma vitrine expondo nossos limites estruturais. O sistema de governo, possivelmente o pior do mundo, mantém Executivo e Legislativo em choque constante, agravado pela insegurança jurídica emanada de um Judiciário que não foi eleito para governar, mas está governando. O podre sistema de representação política é fator preponderante para entender a falta de lideranças abrangentes e enraizadas – um grande deficit em situações de crise econômica e sanitária que se reforçam mutuamente. A força dos regionalismos e o egoísmo de suas respectivas elites – não só as geográficas, mas as de diversos segmentos sociais e econômicos nos fazem assistir à concorrência dos entes da federação.

Há aspectos peculiares na incompetência demonstrada pelo atual governo no trato da pandemia, mas incompetência em várias questões, agudas ou não, causadas pela “sabedoria” de chefes de Executivo (só lembrar o que Dilma fez com o setor elétrico, por exemplo) tem sido recorrentes. No plano mais abrangente, para um País que cultiva a imagem de ser dono de um futuro brilhante, estamos sendo extraordinariamente incompetentes em chegar lá. Nossa distância nesses dez anos em relação às economias mais avançadas aumentou – e estamos há mais tempo do que isso estagnados em matéria de produtividade e competitividade internacionais.

É confortável apontar o dedo acusador para este ou aquele governo do começo ou do fim da década. O fato é que nós os colocamos lá.


El País: Atraso do Brasil em começar vacinação retarda retomada da economia

Especialistas acreditam que PIB do primeiro trimestre do ano pode vir negativo caso a Covid-19 não seja controlada. Fim do auxílio emergencial deve causar salto na taxa de desemprego

Heloísa Mendonça, El País

Enquanto mais de 40 países do mundo já começaram a aplicar vacinas contra a covid-19, o Brasil continua em disputas políticas, sem uma data para o início da imunização e ainda não aprovou o registro de nenhum imunizante. Com mais de 7,5 milhões de casos de coronavírus registrados no país, tendência de alta em vários Estados e quase 200.000 mortes pela doença, o presidente Jair Bolsonaro chegou a dizer que não “dá bola” nem se sente pressionado pelo avanço da vacinação no mundo. A demora por um plano, no entanto, tem graves consequências. Além de não frear a perda de muitas vidas, o atraso deve dificultar ainda mais a retomada da economia brasileira, que já irá encontrar vários percalços em 2021, como alta do desemprego, da inflação e o agravamento do rombo das contas públicas.

O quadro é claro. Quanto mais o país demorar para aplicar o plano de vacinação nacional, mais tempo estenderá a crise. A atividade econômica deve ter um tombo de quase 5% em 2020. “A vacina é a única forma efetiva de resolver o problema. Só assim você consegue retomar a economia de forma contínua e não fica nesse abre e fecha das atividades, nessa incerteza, como estamos vivendo novamente com o aumento de casos”, explica Joelson Sampaio, coordenador do curso de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo. Segundo ele, os países que já conseguiram sair na frente na imunização da população serão os primeiros a sentirem os impactos na retomada da economia.

O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, já reconheceu que só a vacinação em massa da população conseguirá garantir um retorno seguro ao trabalho e retomada do crescimento econômico brasileiro.

Apesar do mercado projetar um cenário um pouco mais otimista para o próximo ano, apostando em um crescimento de cerca de 3,5% do Produto Interno Bruto, algumas instituições financeiras não descartam um primeiro trimestre negativo caso a vacinação não comece rápido e os registros da doença continuem em alta. “Vamos torcer para que todos estejam vacinados, porque, em um cenário com 400 mortes diárias pode ocorrer um trimestre negativo. Precisamos que a taxa de mortes caia. Agora [nas primeiras semanas de dezembro], os dados pioraram, e isso aumenta o risco de termos um PIB negativo no primeiro trimestre de 2021”, disse Mario Mesquita, economista-chefe do banco Itaú, em uma apresentação sobre as perspectivas para o próximo ano. Ele aponta ainda que, mesmo que as autoridades não imponham restrições às atividades, o aumento das mortes faz com que as próprias pessoas passem a sair menos de casa para utilizar serviços que impliquem em aglomerações.

Soma-se a esse quadro o fim do auxílio emergencial, benefício criado para minimizar os impactos econômicos da pandemia. Ao menos 40 milhões de pessoas começarão o próximo ano sem esse amparo do Governo em meio a uma pandemia e sem plano de vacinação. O encerramento da ajuda irá diminuir a renda da população mais vulnerável, a injeção de dinheiro na economia e deve provocar um aumento no desemprego no país. Muitas pessoas que perderam seus postos de trabalho não voltaram a procurar outro por conta da pandemia e das regras de quarentena, já que contavam com a transferência de renda.

Dados divulgados nesta terça-feira (29) pelo IBGE mostram que a taxa de desemprego ficou em 14,3% no trimestre encerrado em outubro, uma avanço de 0,5 ponto porcentual em relação ao trimestre encerrado em julho. O Brasil tinha 14,1 milhões de desempregados no trimestre, 931.000 a mais do que no trimestre móvel anterior, encerrado em julho. O aumento da fila do desemprego é um reflexo de um número maior de brasileiros que decidiu sair em busca de uma vaga com a flexibilização das regras de isolamento.

Além de mais pessoas à procura de emprego, houve alta de 2,8% na população ocupada, que chegou a 84,3 milhões de pessoas. “Esse cenário pode estar relacionado a uma recomposição, ao retorno das pessoas que estavam em afastamento. Nesse trimestre percebemos uma redução da população fora da força de trabalho e isso pode ter refletido no aumento de pessoas sendo absorvidas pelo mercado de trabalho e também no crescimento da procura por trabalho”, explica a analista da pesquisa Adriana Beringuy.

Há ainda, no entanto, queda na ocupação e aumento na população fora da força quando a comparação é feita com o mesmo período do ano passado. “Temos uma população ocupada que é menor em quase 10 milhões de pessoas e um aumento de 12 milhões na população fora da força [que inclui pessoas que não estavam trabalhando nem procuravam por emprego]. Então esse pode ser um início de uma recomposição, mas as perdas acumuladas na ocupação durante o ano ainda são muito significativas”, completa.

Para o professor João Saboia, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é inevitável que a fila do desemprego aumente com a extinção do auxílio emergencial, já que o mercado não conseguirá absorver todas as pessoas que voltarão a buscar novos postos. “E mesmo quem conseguir um novo emprego será mal absorvido, informalmente ou com nível de renda muito baixo”, explica. A maior parte do aumento no número de ocupados do último trimestre veio do trabalho informal, segundo o IBGE.

Terceiro trimestre pode ter pico de desemprego

O primeiro trimestre de 2021 deve ser o mais preocupante, na avaliação de Saboia. “Sem auxílio e provavelmente sem vacina praticamente, é difícil pensar como retomar. Também são os meses de verão quando historicamente a economia anda mais devagar. Depois, pode ser que a atividade comece a sair mais do fundo do poço, mas vai ser tudo muito lento”, analisa.

De acordo com a corretora XP, a grande fonte de incerteza relacionada ao desemprego ainda é quanto à transição do fim da ajuda às famílias e empresas em 2021 com os desafios da economia brasileira, como a agenda de reformas que podem trazer confiança, principalmente, ao setor de serviços em recontratação. A corretora estima que a taxa de desemprego alcançará sua maior taxa no primeiro trimestre de 2021, chegando a quase 16%.

Inflação pressionada por alimentos e luz

Outro vento em contra no início de 2021 é a inflação. A pandemia pressionou os preços, principalmente dos alimentos e pode ter reflexos ainda no início do próximo ano. Nos últimos meses do ano, a inflação acelerou e o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo-15 (IPCA-15), uma prévia da inflação oficial, fechou em 4,23%, acima da meta de 4%. A pressão também foi causada pela decisão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) de cobrar bandeira vermelha, aumentando o valor da conta de luz dos consumidores no último mês do ano. Segundo analistas, o preço dos alimentos deve começar arrefecer no primeiro trimestre. Para 2021, a meta fixada pelo Banco Central é de 3,75%, e o mercado financeiro estima algo em torno de 3,34%, também segundo o Focus. No próximo ano a tendência é de um “espalhamento” da inflação.

A pandemia também piorou a saúde das contas públicas do Brasil que já estão há anos no vermelho. O rombo fiscal acumulado entre janeiro e novembro deste ano foi de 699,1 bilhão de reais, o pior desempenho da série histórica iniciada em 1997. Em relação ao mesmo período de 2019, houve um recuo de 9,7% nas receitas e avanço de 39,3% nas despesas. A meta fiscal para este ano admitia um déficit de até 124 bilhões nas contas do governo central, mas a aprovação, pelo Congresso, do decreto de calamidade pública para o enfrentamento da pandemia autorizou o Governo a descumprir o valor em 2020.

Em nota nesta terça-feira, o ministério da Economia afirmou que há três desafios para o próximo ano: o emprego, o crédito e a consolidação fiscal. A pasta projeta um crescimento de 3,2% do PIB em 2021 e afirmou que “com a vacinação ganhando força no mundo, o cenário internacional, será propício” para o Brasil, já que a taxa de juros internacional está baixa e deve manter esse patamar, “o que nos favorece para manter os juros baixos internos” e por estimular “capitais internacionais que busquem oportunidades de retorno”.

Enquanto o ministério da Economia aposta no avanço da vacinação no mundo, Bolsonaro, que já afirmou que não tomará vacina contra covid-19, chegou a dizer que se alguém “virar um jacaré” por tomar o imunizante, não poderia tomar qualquer medida contra os fabricantes. O presidente também afirmou que são os laboratórios que precisam correr atrás de registros de vacinas para vender ao Brasil.

O país se encontra no meio de uma batalha política entre Bolsonaro e o governador de São Paulo João Dória na corrida por uma vacina. O país inicialmente centrou esforços na vacina da AstraZeneca, a chamada “vacina de Oxford”. O Governo Federal assinou um acordo para a realização dos testes da fase três do imunizante e de transferência de tecnologia, com a promessa de produção de milhões de doses pela Fiocruz. Nesta segunda, a Fiocruz afirmou que se encontra no processo de submissão contínua e que deverá enviar os últimos dados à Anvisa até 15 de janeiro. São Paulo, no entanto, diz que começará sua imunização no dia 25 de janeiro com a vacina do laboratório chinês Sinovac, que assinou um acordo de cooperação com o Instituto Butantan. Porém, o Governo paulista adiou a divulgação de seus dados de eficácia da vacina três vezes, enquanto a Sinovac tenta combinar dados de teste globais que incluem Indonésia, Turquia e Chile. Por enquanto o que ronda o país é uma nuvem de incertezas e nenhuma data concreta de vacinação.


IHU Online: Para superação das crises, Brasil precisa abandonar o liberalismo econômico, diz Bresser-Pereira

Para economista, com pensamento liberal não pode haver crescimento. Por isso, reedita sua tese novo-desenvolvimentista e assegura que imprimir moeda não é sinônimo de inflação descontrolada

João Vitor Santos, IHU Online

crise econômica que temos vivido em decorrência da pandemia de covid-19 parece ter pego o Brasil de cheio. Segundo o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, é preciso compreender que essa crise é nova, mas que vem no bojo de grandes crises nunca realmente superadas e que têm origem no projeto liberalBresser defende que o Estado não pode se retirar do jogo. “O mercado é uma maravilhosa instituição, não é mecanismo e nem ‘ente’, é uma instituição, um sistema de normas que coordena de maneira ótima uma economia, mas apenas na sua parte competitiva”, alerta. E, por isso, “os outros setores não competitivos, mais a macroeconomia, a distribuição de renda e ainda a proteção do meio ambiente, tudo isso depende da intervenção do Estado”. “Coisa que o neoliberalismo esquece e nós esquecemos também, desde 1990, quando o presidente Fernando Collor de Mello fez a abertura comercial”, dispara.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o economista recupera a tese de que o Brasil vem sofrendo um processo de desindustrialização. Sem confiança para investir, as indústrias são sucateadas ou vão embora enquanto a ‘poupança pública’ míngua. É aí que entra sua Teoria do Novo-Desenvolvimentismo. Mas, como investir em desenvolvimento no meio da crise? Para ele, o governo precisa criar condições, especialmente manter o câmbio mais depreciado e a taxa de juros baixa. “Tem que mudar o regime de política econômica, tem que abandonar o liberalismo econômico e voltar a ser desenvolvimentista. É preciso voltar a acreditar que deve haver uma intervenção moderada do Estado na economia e que é preciso ser nacionalista econômico”, aponta.

E uma das vertentes dessa intervenção estatal moderada, para ele, é a emissão de moeda. “É preciso pensar que a moeda é uma espécie de óleo lubrificante que permite que as transações aconteçam. E o sistema econômico precisa de um certo grau de liquidez”, endossa. Sua defesa está na experiência de outros países que fizeram a manobra para conter, por exemplo, a crise de 2008. Além disso, Bresser destaca que essa operação tem sido retomada por muitos justamente para custear os gastos decorrentes da pandemia. “São despesas de subsídios às pessoas para as manter vivas, de subsídios às empresas para evitar que quebrem etc. Foram enormes gastos e grande parte está sendo financiada dessa maneira”, acrescenta.

No fim da entrevista, o economista ainda avalia as políticas econômicas do atual governo, que define como “o pior governo que já vi em toda história de minha vida, de longe”. E conta ‘um causo’: elementos da teoria novo-desenvolvimentista foram apresentados – e muito bem aceitos – pessoalmente por ele a Ciro Gomes e Fernando Haddad, nomes que considera muito preparados para assumir a Presidência em 2022. Além disso, olha para a experiência chinesa e destaca que o país resolveu seus problemas desde a realidade local, sem se abraçar a cânones do pensamento econômico. “Existem soluções para o problema brasileiro, mas é preciso que não se pense de acordo com os livros-textos escritos pelos americanos e ingleses. É preciso que tenhamos capacidade de ver nossos problemas por nossa conta”, resume.

Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, atuou como professor visitante de desenvolvimento econômico na Universidade de Paris I (1978), de teoria da democracia no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo - USP (2002/03), e de Novo-Desenvolvimentismo na École d’Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, entre outras universidades pelo mundo. Também foi ministro da Fazenda, da Administração Federal e Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia no governo Fernando Henrique Cardoso. Bacharel em Direito pela USP, é mestre em Administração de Empresas pela Michigan State University, doutor e livre docente em Economia pela USP. Entre os livros publicados destacamos A construção política do Brasil: Sociedade, economia e Estado desde a Independência (São Paulo: Editora 34, 2016),Desenvolvimento e Crise no Brasil (1968/2003), Construindo o Estado Republicano (2004), Macroeconomia da Estagnação (São Paulo: Editora 34, 2007) e Globalização e Competição (Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor defende que é preciso abandonar a ortodoxia econômica. Por quê?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Sou um crítico da Teoria Econômica Neoclássica ou Ortodoxa, que é a Teoria ensinada principalmente nas universidades americanas e inglesas. Entendo que essa teoria é essencialmente errada porque ela utiliza o método hipotético dedutivo ao invés de adotar um método empírico, histórico. Ao invés de ela observar a realidade e tentar generalizar a partir dessa realidade, o que os economistas neoclássicos ortodoxos fazem é partir de dois axiomas, como se faz em Matemática.

É o axioma do homem econômico, sempre racional e portanto seu comportamento é totalmente previsível, e a ideia das expectativas passionais, pois os agentes econômicos além de serem racionais e oniscientes, conhecem os modelos certos de economia e se comportam de acordo com isso. É um absurdo que resultou na crise de 1929, pois essa teoria foi dominante no mundo desde o final do século XIX até 1929. Mas que teoria é essa? É o liberalismo radical que voltou a ser dominante no mundo rico a partir de 1980 com a virada neoliberal de Thatcher e Reagan, e agora desde 2008, quando houve novamente uma grande crise provocada por essas ideias, chegando até o momento atual, em que estamos em profunda crise.

Sou um economista heterodoxo e, entre os economistas ortodoxos, venho desenvolvendo desde 2001 uma teoria chamada de Novo-Desenvolvimentismo. Essa teoria novo-desenvolvimentista tem origem em Keynes e nos desenvolvimentistas estruturalistas como Celso Furtado e Raul Prebisch.

IHU On-Line – Que respostas o Novo-Desenvolvimentismo pode trazer a essa crise que vivemos?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – O Brasil vive uma crise econômica muito grande desde 2014, que foi agravada por um impeachment em 2016 e agora ainda mais por uma pandemia terrível. Diante disso, o governo precisa reagir e as medidas que defende são de austeridade, ou seja, de reduzir o gasto público em toda parte e de manter a taxa de câmbio elevada (com elevada quero dizer não competitiva). E isso, evidentemente, é incorreto.

A tese de que nos momentos de crise o Estado precisa aumentar sua despesa contraciclicamente é uma coisa que foi originalmente desenvolvida por Keynes nos anos 30 do século XX e está mais que comprovado que é a forma correta de se fazer a política macroeconômica. Uma coisa curiosa é que, embora o governo seja contra esse tipo de política, ele, pressionado pelo Congresso, criou um auxílio emergencial muito grande. Foi voltado mais para os pobres, mas que, de alguma forma, sustentou a demanda neste ano e impediu que a crise econômica fosse mais forte ainda. Estava se prevendo uma queda no PIB de 9% e hoje a queda esperada é de 5%.

IHU On-Line – Então, o senhor considera já termos aí uma prova de que o Estado tem de gastar mais em situações de crise?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – A prova disso existe em toda parte, em mil casos. Em 2008 nós só não tivemos uma crise monumental porque todos os governos, tanto americano quanto chinês, também o brasileiro e os europeus, imediatamente fizeram elevadíssimos gastos fiscais. Além de irem correndo salvar os bancos que tinham quebrado. E isso deu certo, caso contrário a crise teria sido tão grave quanto foi a crise de 1929 e a grande depressão nos anos 1930. Assim, reitero, isso está mais do que claro.

O problema é que, além de termos de enfrentar essa crise de curto prazo, nós precisamos pensar que o Brasil vive um regime de quase estagnação há 40 anos. Isso é muito sério. O Brasil, entre 1950 e 1980, crescia a uma taxa per capita de 4,5% ao ano. Era uma taxa muito elevada, a segunda maior do mundo; só o Japão tinha uma taxa um pouco maior do que a do Brasil. Desde 1980 e, principalmente, desde 1990, quando o Brasil resolveu adotar o regime de política econômica liberal ortodoxa ao invés de desenvolvimentista, a taxa de desenvolvimento do país tem sido de 0,8% ao ano. Veja: de 4,5% para 0,8% é uma diferença brutal.

E se nesse mesmo período compararmos esses 0,8% do Brasil com os países ricos, que nós deveríamos estar alcançando, veremos que eles cresceram 1,5% ao ano, ou seja, o dobro do Brasil. E os demais países em desenvolvimento cresceram 3% ao ano, quatro vezes mais do que nós. O Brasil está quase estagnado desde 1980 e nada é feito sobre isso. Nada é feito tanto pela direita, que está hoje no governo – aliás, desde 2016 –, quanto pela esquerda, que no Governo Lula tentou fazer alguma coisa, mas infelizmente no Governo Dilma tudo desmoronou. E uma das causas que se desencadeou em 2014 para a queda do governo, não foi a principal, mas uma delas, foi a má gestão econômica da Dilma.

IHU On-Line – Gostaria que recuperasse seus argumentos para a ‘semiestagnação’ que o senhor coloca.

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Para isso é importante lembrarmos que o desenvolvimento econômico depende fundamentalmente da taxa de investimento do país. Quanto maior for a relação do investimento em capital e o PIB, mais alta tende a ser a taxa de crescimento. Os países do Leste asiático tinham, normalmente, 35% de taxa de investimento. A China, que nos últimos 40 anos apresentou o mais extraordinário crescimento – na história do mundo nunca houve nada semelhante –, cresceu durante esse tempo cerca de 7,5% ao ano.

estratégia de desenvolvimento usada pela China sempre foi desenvolvimentista e não liberal. Enquanto isso, em 1980 o mundo fazia uma virada neoliberal. É uma virada de um regime de política econômica desenvolvimentista – que pressupõe uma intervenção moderada do Estado na economia, com exceção dos setores não competitivos, com uma perspectiva de nação, em defesa do interesse nacional – para uma virada neoliberal com Thatcher e Reagan, na qual se espera que o mercado seja um ente ou um mecanismo milagroso capaz de coordenar tudo. Ora, isso é algo profundamente equivocado. O mercado é uma maravilhosa instituição, não é mecanismo e nem ‘ente’, é uma instituição, um sistema de normas que coordena de maneira ótima uma economia, mas apenas na sua parte competitiva. Aliás, o mercado funciona bem com competição, senão, não existe mercado.

Os outros setores não competitivos, mais a macroeconomia, a distribuição de renda e ainda a proteção do meio ambiente (mecanismos para frear aquecimento global etc.), tudo isso depende da intervenção do Estado. Coisa que o neoliberalismo esquece e nós esquecemos também, desde 1990, quando o presidente Fernando Collor de Mello fez a abertura comercial. Abertura essa que fez com que as tarifas aduaneiras caíssem de 45% para 12%, além da eliminação de subsídios à exportação de manufaturados que eram também de 45% e foram zerados.

Desde então, a economia brasileira cresce muito pouco, porque a taxa de investimento é muito baixa. Isso ocorre porque, devido a essa mudança de regime para o modelo liberal, os investidores foram desestimulados a investir. O investimento acontece quando o empresário tem uma boa expectativa de lucro e sua taxa de juros, o seu custo do capital, é baixo. É uma lei geral e óbvia, ninguém vai investir sem esperar lucro e esse lucro tem que ser maior do que a taxa de juros.

Perda de competitividade

O que houve foi que as políticas adotadas pelo Brasil, a começar pela liberalização comercial e em seguida financeira, que foram adotadas ainda no Governo Collor e depois mantidas e aprofundadas no Governo Fernando Henrique, tonaram as indústrias brasileiras não competitivas. Mesmo as muito bem geridas que usavam a melhor tecnologia do mundo passaram a ter uma enorme desvantagem competitiva em relação às empresas do resto do mundo. Não apenas as empresas nacionais, mas também as multinacionais. E isso fez com que muita empresa falisse e também levou muitas multinacionais a irem embora.

Quando se tem uma taxa de câmbio apreciada no longo prazo e uma taxa de juros muito alta, se é completamente desestimulado a investir. E isso aconteceu desde 1990 até recentemente, porque veio a crise de 2014 em cima dessa semiestagnação. Essa crise foi desencadeada pelo preço da queda das commodities. Na medida em que o Brasil passou a ter uma taxa de câmbio muito apreciada, entrou num processo de violenta desindustrialização, justamente pela apreciação da taxa de câmbio e porque a “doença holandesa” que existe no Brasil deixou de ser neutralizada – a doença holandesa é uma apreciação de longo prazo da taxa de câmbio de um país que exporta commodities, pois essa taxa é determinada pelas commodities. Essa taxa de câmbio deve cobrir o custo com lucro satisfatório das empresas produtoras de commodities, que são as dominantes. E quando há a doença holandesa, a taxa de câmbio corrente é substancialmente mais apreciada do que a taxa de câmbio das empresas industriais do país. Eu chamo isso de equilíbrio industrial, ou seja, tem o equilíbrio corrente dado pelas commodities que equilibra a conta corrente do país, que é conta comercial mais os serviços. A diferença entre o equilíbrio da taxa corrente e essas que as empresas industriais precisam para serem competitivas é a doença holandesa.

Desindustrialização e os efeitos do câmbio

doença holandesa era neutralizada até 1990 com tarifas aduaneiras muito altas, aqueles 45% que referi anteriormente. E, desde 1967, também por subsídios elevados à exportação de manufaturados. Tudo isso foi desmontado em 1990 de acordo com a lógica neoliberal e foi um desastre. A desindustrialização foi brutal e a taxa de crescimento também caiu brutalmente. Para se ter ideia, o investimento no Brasil representava 26% do PIB nos anos 1980, em média, e hoje representa 10%.

Isso aconteceu por causa da taxa de câmbio muito apreciada e por causa dos juros muito altos que atraíam capitais. Ou seja, havia duas causas para essa apreciação de longo prazo da taxa de câmbio que tornava as boas empresas não competitivas. Uma causa era a doença holandesa não neutralizada e a outra era a intenção de crescer não com endividamento externo, o que significaria que se está importando pouco de outros países e aumentando a sua capacidade de investimento. Isso é um enorme equívoco que a teoria novo-desenvolvimentista critica de maneira muito firme. Os brasileiros, não só os economistas ortodoxos neoclássicos, mas também os demais desenvolvimentistas e pós-keynesianos, acreditam que se o Brasil tiver um déficit de conta corrente de cerca de 3% do PIB e se esse déficit for principalmente financiado por empresas multinacionais, então estamos nos melhores dos mundos possíveis. Estaremos aumentando nossa capacidade de investimento, porque esse dinheiro que vem de fora trazido pelas multinacionais vai aumentar a taxa de investimento e em seguida a taxa de crescimento do país.

Só que isso é completamente falso. Na verdade, quando se aprecia o câmbio, se resolve crescer com endividamento externo, entra-se em déficit em conta corrente, e quando entra nesse déficit é preciso que haja mais entrada do que saída de capitais no Brasil. Devido a isso, a taxa de câmbio se aprecia, pois também é determinada pela oferta e procura de moeda estrangeira. E quando isso ocorre, o poder aquisitivo não apenas dos trabalhadores, mas também as rendas dos rentistas (os juros, os dividendos e os aluguéis que recebem) aumentam, de forma que todo mundo fica feliz.

Mais consumo e menos investimento

E o que fazem com esse dinheiro? Consomem mais. Não investem porque na hora em que se tornou a taxa de câmbio apreciada, as boas empresas perderam competitividade, tornando-se mais barato importar aqueles produtos que antes se produzia localmente. Assim, evidentemente elas não investem, são desencorajadas a investir. Tudo isso explica uma parte fundamental dessa quase estagnação da economia brasileira desde 1990 até hoje.

Poupança pública

Há, ainda, uma segunda causa para a semiestagnação, que está relacionada à poupança pública. A poupança pública (toda a receita do Estado menos a despesa corrente ou de consumo) deve existir para financiar os investimentos públicos, que são sempre muito importantes. Uma economia que cresce bastante geralmente tem uma taxa de investimentos públicos de 20 a 25% do PIB.

poupança pública brasileira era, na última década em que o Brasil cresceu fortemente, nos anos 1970, de cerca de 4 a 5% do PIB. Isso fazia com que o investimento público fosse perto de 7% do PIB, porque o governo também usava um pouco de endividamento público. Mas desde os anos 1980 a poupança pública se tornou negativa e os investimentos públicos caíram fortemente, passando de 7% para 2% mais ou menos. Isso é uma segunda causa dessa quase estagnação.

IHU On-Line – O que muda com a crise de 2014 e com o cenário que ela traz?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Isso que destaquei acima vinha acontecendo no Brasil até 2014. No ano de 2014 veio essa grande crise, semelhante à ocorrida durante o governo de Fernando Henrique Cardoso entre 1998 e 2002.

Agora, é importante perceber que a crise de 2014 começa ainda no governo do PT, de Dilma, e depois continua em tempos de Bolsonaro, até agora quando temos uma crise econômica nova. Essa crise nova teve uma consequência interessante: a taxa de juros caiu fortemente pela primeira vez. Eu venho criticando a taxa de juros muito alta desde 2001 e sempre dizendo que é absurda, a mais alta do mundo e, na verdade, essa taxa de juros era uma captura do patrimônio público pelos rentistas e financistas, que assumiram muito poder no governo desde 1990, enquanto os empresários industriais perdiam poder.

Essa taxa de juros tão alta vinha caindo aos poucos, tendo já estado muito alta em 1992, quando houve a abertura financeira, mas em 2014, com a enorme recessão, a taxa de juros teve realmente uma queda. O Banco Central foi obrigado a baixar a taxa porque a inflação quase desapareceu, havia falta de demanda, e a justificativa que o Banco Central usava para manter aquelas taxas de juros altíssimas (que era de combater a inflação) já não se sustentava mais. Na verdade, a taxa de juros vinha alta para atrair os capitais e levar adiante aquela perspectiva de crescimento com endividamento externo.

A consequência dessa queda da taxa de juros, mais a crise que o Brasil vive hoje e a perda de confiança dos credores lá fora, foi uma depreciação da taxa de câmbio. Acredito que uma taxa de câmbio competitiva no Brasil hoje deve estar em torno de 4,80 Reais por dólar. E a taxa de câmbio está a 5,50 Reais, ou seja, está depreciada. Então, ótimo. A economia brasileira estava numa armadilha de juros altos e câmbio apreciável. Essa armadilha não existe mais neste momento.

IHU On-Line – Mas o crescimento não veio. Por quê?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Não veio porque continuamos em crise. Quando se está em crise, quer dizer que não se tem confiança de que a demanda será mantida – como a demanda criada agora pelo auxílio emergencial –, que a taxa de juros será mantida baixa e que a taxa de câmbio continuará competitiva. Vendo como reagem as elites brasileiras e seus economistas, vai-se achar que isso não dura. E, ainda, a confiança dos mercados financeiros internacionais no Brasil hoje está baixíssima. O resultado é que começa a entrar capital financeiro no Brasil, que novamente vai fazer com que a taxa de câmbio volte a se apreciar. Os empresários não investem por isso, porque não têm confiança.

IHU On-Line – O que fazer para reverter esse quadro?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – O que o governo deveria fazer é não apenas ter uma meta de inflação, mas além disso deveria assegurar que a taxa de câmbio será mantida basicamente nesse nível. Em segundo lugar, assegurar que a taxa de juros permanecerá baixa. Pode ser aumentada quando houver um pouco de inflação, mas o nível da taxa de juros será civilizado, semelhante à taxa de outros países do mundo. Se o governo desse essas garantias para os empresários e se recuperasse a sua capacidade de poupança, então nós poderíamos voltar a crescer. Agora, para voltar a crescer não basta sair da armadilha da taxa de juros, é preciso que o governo também volte a investir.

IHU On-Line – Qual a solução para isso?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – A mais óbvia é a austeridade. Mas, ora, a austeridade é um desastre. Porque austeridade quer dizer reduzir a demanda, causar desemprego, diminuir salário e isso não resolve o nosso problema de jeito nenhum. É preciso recuperar as finanças públicas e voltar a ter uma poupança pública, mas isso só pode ser feito gradualmente, com muito cuidado e muita firmeza.

Agora, há uma coisa nova que surgiu no mundo e que promoveu uma revolução completa na macroeconomia mundial: a emissão de moeda pelos Bancos Centrais e os Tesouros Nacionais. A emissão de moeda foi sempre considerada o pecado máximo. Aqui no Brasil se explicava a inflação com emissão de moeda; no exterior os monetaristas explicavam a inflação com aumento de moeda.

IHU On-Line – Justamente, e como responder a esses economistas sobre essa perspectiva de emissão de moeda ser sinônimo de inflação descontrolada?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – No começo dos anos 1980, eu e [YoshiakiNakano desenvolvemos toda uma teoria de inflação inercial, o livro principal é “Inflação e Recessão” (São Paulo: Brasiliense, 1984) [a versão PDF da obra pode ser acessada aqui], e nesse livro demonstramos com muita clareza que o aumento de moeda não causava inflação. Já num artigo de 1983, intitulado “Fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação”, dizíamos que o fator acelerador da inflação – por exemplo, uma inflação de 1% ao ano subir para 2% – é o excesso de demanda, segundo explicação keynesiana.

O fator que mantém a taxa de câmbio num valor elevado, o fator inercial, é a indexação. O que mantém a inflação mesmo quando há recessão é o fato de que os agentes econômicos no Brasil, especialmente na época da alta inflação, indexavam formal (com base na lei) ou informalmente (segundo o costume) todos os preços de modo que a inflação só subia e não caía.

Em terceiro vem o fator sancionador, ou validador, que era o dinheiro. O dinheiro é consequência, endógena, do processo de crescimento. O dinheiro aumenta ou diminui numa economia na medida em que o crédito e as despesas do governo aumentam ou diminuem. Se tivesse uma inflação muito alta – durante anos a nossa inflação foi mais de 1.000% ao ano, mas vamos considerar uma inflação de 100% ao ano –, se o governo conseguisse impedir que a quantidade de moeda, que nasce do mercado, não aumentasse em nada, ficasse nominalmente exatamente igual ao começo do ano, tendo havido uma inflação de 100% nesse ano, isso causaria uma crise enorme, uma crise de liquidez.

É preciso pensar que a moeda é uma espécie de óleo lubrificante que permite que as transações aconteçam. E o sistema econômico precisa de um certo grau de liquidez. Isso estava lá em nossa teoria, que não era só nossa porque havia alguns economistas que afirmavam coisas semelhantes, mas o grosso dos economistas ignorava isso, tanto alguns ortodoxos quanto heterodoxos. Aí veio a crise de 2008 no Norte e primeiro houve uma reação muito correta, que já citei, keynesiana, e grandes aumentos de gastos. Mas isso foi em 2009.

Quando chegou em meados de 2010, definiram que deveriam voltar à austeridade. E de fato voltaram para a austeridade fiscal, mas os bancos centrais ignoraram esse fato e, vendo que a economia não se recuperava, começaram a fazer as políticas de afrouxamento quantitativo. Isso consiste em o banco central do país comprar títulos do governo ou das empresas em grande quantidade e, ao fazer isso, acelerar o processo endógeno de criação de moeda. Isso foi feito em volumes absolutamente extraordinários, principalmente no Japão, também nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e em países menores como a Holanda. Só não aconteceu nos países das zonas do Euro porque eles não têm um banco central para cada país para que seja feito o processo.

O funcionamento dessa operação

Nesse processo, quando se aumenta a quantidade de moeda e se compram títulos do Tesouro, e títulos novos ao invés de comprar títulos velhos ou títulos de empresas, se está emitindo moeda direta para financiar. Como a despesa pública estava muito baixa, esse dinheiro servia para reduzir a dívida pública. Para se ter ideia da importância disso, no caso do Japão, que foi o que mais fez isso, calculei que a dívida pública japonesa, que era de 260% do PIB, caiu em termos reais em 77%.

As estatísticas do Japão mantêm o mesmo nível de dívida porque não consideram essa operação. O Banco Central comprou do Tesouro, e a contabilidade pública deles define que quando o Tesouro deve para o Banco Central isso é dívida pública, o que é ridículo. A dívida pública é a dívida do Estado; o Tesouro e o Banco Central estão dentro do Estado. O Tesouro pode dever, mas o Estado não deve.

Emitindo moeda e financiando despesas da covid-19

Mas aí veio a inflação? Não, não veio inflação nenhuma, absolutamente nenhuma. O tempo todo havia o medo da deflação e não da inflação. Podem dizer que essa revolução morreu aí, mas não morreu, porque neste ano de 2020, o ano da pandemia, esses mesmos países que têm seus bancos centrais e são ricos voltaram a emitir dinheiro enormemente. O Tesouro, então, está vendendo títulos novos para o Banco Central para financiar as despesas da covid-19.

São despesas de subsídios às pessoas para as manter vivas, de subsídios às empresas para evitar que quebrem etc. Foram enormes gastos e grande parte está sendo financiada dessa maneira. Isso é uma forma muito heterodoxa e correta de fazer, desde que realizada com cuidado. Nós aqui no Brasil não fizemos. Isso chegou a ser discutido, eu fiz minha briga pessoal nos artigos que publiquei, mas não adiantou. O medo da inflação ainda é muito grande, esse medo de que a emissão de moeda causa inflação está muito no fundo da alma brasileira. O resultado é que a dívida pública brasileira estava em 80% do PIB e está subindo para 100%, o que é péssimo. Depois será preciso pagar isso.

IHU On-Line – Diante do atual cenário e das estratégias adotadas pela equipe econômica do atual governo, como o senhor vê o Brasil dos próximos anos? Como esse cenário deve impactar 2022, o ano eleitoral?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – As perspectivas para a economia brasileira são muito ruins. Em princípio, continuaremos nessa crise. Em 2021 certamente, porque a pandemia ainda não está resolvida e seus efeitos negativos estão aí. Agora, a partir do final do ano que vem, a confiança poderia voltar. E não só a confiança dos empresários e dos credores estrangeiros, o que não me importa, pois o crescimento não deve ser feito com endividamento externo. Mas se os empresários brasileiros e as multinacionais existentes aqui no Brasil voltarem a ter confiança, e vendo a taxa de juros baixa e a taxa de câmbio competitiva, poderão voltar a investir.

Agora, será que isso vai acontecer? Será que vai voltar a confiança com o governo que está aí? É impossível ao meu ver. Esse é o pior governo que já vi em toda história de minha vida, de longe. O que temos aí é gente absolutamente incapacitada para governar e está nos governando, ou desgovernando. São políticas econômicas contraditórias e realmente ineficientes. Acho que as eleições de 2022 ainda vão ser tomadas nesse quadro de baixíssimo crescimentodesemprego elevado; acho que não muda não.

IHU On-Line – Mas realmente não tem solução para isso?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – É claro que tem. Não é fácil, mas tem que mudar o regime de política econômica, tem que abandonar o liberalismo econômico e voltar a ser desenvolvimentista. É preciso voltar a acreditar que deve haver uma intervenção moderada do Estado na economia e que é preciso ser nacionalista econômico, ou seja, pensar que o Brasil é um Estado-Nação que compete com todos os demais Estados-Nação do mundo. Não só as empresas que competem, são os Estados-Nação também. E para o Brasil poder competir, precisa ter um projeto nacional de desenvolvimento.

IHU On-Line – Em que consistiria esse projeto, dada a atual conjuntura?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Contaria com uma garantia de manter a taxa de juros num nível baixo, em torno do qual o Banco Central faz a sua política monetária. Significa, portanto, ter uma taxa de câmbio competitiva e uma taxa de inflação baixa. Para isso o governo precisa dar garantias de que agirá nesse sentido ao mesmo tempo que vai fazendo gradualmente o ajuste fiscal para recuperar a poupança pública. E é preciso que o governo também passe a ser autorizado a emitir moeda para financiar até 5% do PIB para investimentos públicos. Isso, desde que não haja excesso de demanda.

Uma reforma constitucional autorizaria Banco Central e Tesouro a fazerem essa emissão ao limite de 5%. E o Conselho Monetário Nacional, a cada três meses, se reuniria para, entre outras coisas, decidir se essa transferência de fundos produzidos por emissão de moeda pode continuar a financiar os investimentos ou se a demanda começou a ficar alta e a inflação começou a subir, sendo então preciso parar com esse processo por algum tempo. Existem soluções para o problema brasileiro, mas é preciso que não se pense de acordo com os livros-textos escritos pelos americanos e ingleses. É preciso que tenhamos capacidade de ver nossos problemas por nossa conta.

capitalismo lá do Norte anda muito mal, não tão mal quanto o brasileiro, mas anda muito mal. Quem anda bem sempre são os países do Leste da Ásia, que são desenvolvimentistas. A China, que é quem anda melhor, é claramente um país estadista, mas que fez sua transição para o capitalismo a partir de 1980 e fez uma transição desenvolvimentista. Lá, o Estado intervém moderadamente na economia, controla os bancos, investe na infraestrutura e nos insumos básicos e deixa que o mercado funcione de maneira mais livre possível no setor competitivo da economia. São duas políticas: para os setores não competitivos, macroeconomia, administração do Estado, política econômica, e, para o resto da economia competitiva, dá-lhe mercado. Essa é a lógica chinesa, a lógica novo-desenvolvimentista, e é isso que nós deveríamos fazer.

IHU On-Line – Para além desse grupo econômico que está no governo, o senhor encontra ecos tanto à esquerda como à direita? Suas sugestões são aceitas para que se construa uma alternativa visando as eleições de 2022?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Vou responder contando uma historinha. Em dezembro de 2017, um ano antes da eleição de 2018, eu telefonei para o Ciro Gomes e para o Fernando Haddad. Disse para eles o seguinte:

olha, vocês são, provavelmente, candidatos a presidente e a vice-presidente – eu já tinha na minha cabeça a minha chapa, mas isso era irrelevante; minha chapa era Ciro Gomes para presidente e Fernando Haddad para vice-presidente –, ou, de qualquer forma, vocês vão se candidatar e serão importantes, e estou desenvolvendo uma teoria nova e essa teoria deveria fazer parte das ideias que vocês vão defender caso eleitos. Então, proponho que no mês seguinte – estávamos no fim de dezembro – nós marquemos um dia e vocês reservem a tarde toda desse dia para eu dar para vocês uma aula de Teoria Novo-Desenvolvimentista e depois minha mulher oferece um jantar para vocês”.

Eles vieram os dois juntos, dei minha aula, ficaram muito interessados e, depois, infelizmente, a chapa não aconteceu. Deveria ter acontecido, o PT não pensou bem, mas nos programas dos dois estavam presentes várias coisas que fazem parte da Teoria Novo-Desenvolvimentista e das políticas dela. Isso pode acontecer novamente. O Ciro Gomes vai ser novamente candidato a presidente, acabou de publicar um livro que é ótimo [o livro é Projeto Nacional: O dever da esperança (São Paulo: Leya, 2020)]. Esse livro mostra que o Ciro está mais do que preparado para ser presidente da República. O Haddad é capaz de ser o candidato pelo PT, ele também está preparado. Isso pode acontecer, mas não há nenhuma garantia.

Políticas erradas

As políticas erradas estão do lado liberal e são, obviamente, erradas. O Brasil não poderá crescer num regime político liberal, porque os liberais só defendem uma coisa: ajuste fiscal e reformas, mais nada. E nós fazemos sempre muitas reformas e eles sempre dizem que é preciso mais. Para manter a taxa de juros e a taxa de câmbio no lugar certo, não se pode adotar políticas neoliberais. Para ter uma poupança pública, não se pode ser liberal.

Eles dizem defender responsabilidade fiscal, mas eu também defendo responsabilidade fiscal. Só que eles não querem poupança pública, querem reduzir a despesa do Estado para reduzir a carga tributária e os ricos pagarem menos impostos. Os liberais não têm a menor possibilidade de promover o desenvolvimento do Brasil, e os desenvolvimentistas, alguns têm, mas não todos. Ainda há muito populismo e ideias antigas entre desenvolvimentistas e pós-keynesianos.

IHU On-Line – Em uma das suas reflexões, que reproduzimos no sítio do IHU, o senhor diz que, em nossa sociedade, a “ideia de solidariedade perdeu espaço” e isso nos deixou doentes. Que solidariedade é essa e como reaver essa ideia?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Em primeiro lugar, o capitalismo é uma forma de organização social, um modo de produção, se quisermos usar a expressão marxista, que leva a muita injustiça e tende, naturalmente, ao individualismo. O liberalismo político tem uma parte boa que é a defesa dos direitos civis, o Estado de Direito, mas tem uma coisa horrível que é o individualismo feroz. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, como o país, sendo liberal do ponto de vista político, conseguiu se desenvolver tanto?

A resposta é muito simples: é que nos Estados Unidos havia uma ideologia que neutralizava em boa parte esse individualismo liberal. Isso através de uma coisa chamada republicanismo, uma ideologia clássica que vem de Aristóteles e de Cícero na Grécia e a Filosofia Política que diz que ‘você só é livre quando está disposto a defender o interesse público. E, em certos pontos, está disposto a sacrificar seu próprio interesse para defender o interesse público’. O republicanismo é o oposto do liberalismo, porque este diz que se é livre para fazer tudo que se quer desde que não seja ilegal. Desse jeito não se constrói sociedade nenhuma, para construir uma sociedade é preciso saber que existe algo que se chama bem comum e esse bem comum precisa ser defendido por cidadãos com espírito republicano.

Isso nos Estados Unidos, onde o republicanismo teve uma influência muito grande. Vários daqueles que fizeram a independência tinham uma mistura, um pouco de liberalismo e um pouco, se não bastante, de republicanismo. O republicanismo que domava o capitalismo neoliberal nos Estados Unidos. Na Europa é a solidariedade, pois sabemos que lá o movimento socialista foi muito grande. E se pode pensar o socialismo como modo de produção em que se extingue a propriedade privada, mas se pode pensar o socialismo como a ideologia da igualdade social, da justiça social e da solidariedade.

Essas ideias socialistas foram muito fortes na Europa. E são até hoje, porque os governos social-democratas refletiam essas ideias de solidariedade. Assim, na Europa foi a solidariedade que domou o capitalismo. Então, o capitalismo neoliberal só funciona bem se for domado pelo republicanismo e pelo socialismo, pela solidariedade e a ideia do espírito público ou do bem comum. O neoliberalismo foi um retrocesso muito forte, porque essas duas ideologias que domam o capitalismo individualista foram muito enfraquecidas.

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José Serra: A dimensão federativa da crise

A solução da crise passa por um federalismo de cooperação, como vem apontando Joe Biden

A economia brasileira está lidando com desequilíbrios das contas públicas simultâneos com uma pandemia imprevisível. Há forte pressão da sociedade por aumento de gastos na área social, ao mesmo tempo que os orçamentos das três esferas de governo – União, Estados e municípios – não apresentam capacidade fiscal para dar conta dessa necessidade de apoio estatal. Neste cenário incerto, uma certeza pode ser considerada apartidária: a crise fiscal tem dimensão federativa.

Sabe-se que o Brasil é uma República Federativa formada pela união indissolúvel dos Estados, municípios e do Distrito Federal. É o que está escrito no primeiro artigo da nossa Constituição. Mais ainda, nossa República se apresenta como uma organização político-administrativa que compreende três esferas de governo autônomas, nos termos do artigo 3.º da nossa Lei Maior.

Pode-se debater o tema, mas não se pode negar que nosso federalismo começa com duas palavras: união e ampla autonomia. Na maioria dos sistemas federativos os governos locais são “extensões” dos Estados federados, ao passo que no Brasil os municípios não estão subordinados a nenhuma outra esfera da Federação. É o acordo que se estabeleceu na Constituição, como condição de cláusula pétrea.

Bem, essa noção de que precisamos manter a integridade do nosso federalismo fiscal, um dos pilares da nossa Constituição, é fundamental no contexto da crise atual. Tenhamos claro que o País só vai sair desta crise e conseguir deslanchar, reduzir as desigualdades e promover o bem de todos – os objetivos da República previstos no mesmo artigo 3.º – se tornar viável um plano de curto e médio prazos, politicamente acertado com a participação das lideranças das três esferas de governo e da sociedade.

Ainda assim, o desafio é maior: essa concertação política deve envolver os três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Ou alguém ainda duvida de que medidas e ações precipitadas, ou autoritárias, de algum modo desequilibradas em matéria federativa, serão provavelmente revertidas pelo Congresso Nacional e/ou pelo Supremo Tribunal Federal (STF)? Aqui cabe lembrar nosso histórico de decisões tomadas por esses dois Poderes, alterando ou moldando iniciativas do Poder Executivo federal.

Nota-se nesse contexto próprio que importar o federalismo de colisão patrocinado pelo presidente americano, Donald Trump – União versus Estados –, é uma estratégia perigosa. Basta perceber que, se os Estados e municípios brasileiros não forem capazes de financiar suas despesas, o Brasil simplesmente para de prover bens e serviços públicos para a sociedade. Isso porque somos uma das Federações mais descentralizadas do planeta, em que quase a metade do gasto público total está alocado nos orçamentos dos governos estaduais e municipais.

Vejamos alguns números sobre o nosso federalismo fiscal a fim de evidenciar a perspectiva federativa da nossa crise fiscal em tempos de pandemia.

Os gastos com salários no setor público, sem considerar proventos de aposentadorias, representaram cerca de 13,3% do produto interno bruto (PIB) em 2019, sendo 9,1% referente a Estados e municípios. Isto é, para cada R$ 100 que são gastos com salários no setor público brasileiro, basicamente R$ 70 se referem a servidores estaduais e municipais. Em relação à contratação de bens e serviços, o Estado brasileiro gasta cerca de 5,3% do PIB, sendo que os Estados e os municípios respondem por 85%. E com relação às despesas com consumo de capital fixo? Mais de dois terços são realizados pelas administrações públicas estaduais e municipais.

Foi nessa conjuntura do sistema federal brasileiro que o Congresso Nacional aprovou o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus. Assim que a pandemia invadiu o País – paralisando a atividade econômica e colapsando o sistema público de saúde –, a arrecadação de tributos despencou. Ao mesmo tempo, houve significativo aumento das despesas com ações governamentais adicionais para o enfrentamento da proliferação do vírus nas cidades brasileiras.

A espinha dorsal do pacote de ajuda consistiu em dois tipos de socorro financeiro: um auxílio financeiro de R$ 60,1 bilhões e a suspensão das dívidas dos entes da Federação com a União e os bancos públicos, totalizando uma folga no caixa dos Estados e municípios de R$ 47,5 bilhões. Algumas questões ainda estão sendo discutidas no Congresso, como a retomada gradual dos pagamentos das dívidas com a União, levando em consideração que os efeitos negativos da redução da atividade econômica e as ações de combate à pandemia ainda persistirão, pelo menos, no médio prazo.

É importante ter claro que as medidas a serem tomadas daqui para a frente devem assumir a dimensão federativa da crise. O governo federal precisa assumir a liderança das negociações sobre as necessárias reformas na área econômica, sem perder de vista a responsabilidade fiscal e as características do nosso sistema federativo. Bom é dizer que a solução passa por um federalismo de cooperação, como, aliás, vem apontando o novo presidente dos EUA, Joe Biden, no contexto norte-americano.

*Senador (PSDB-SP)


Míriam Leitão: Retrato amplo do desemprego

O desemprego cresceu, o mercado de trabalho ficou muito menor, a desigualdade se aprofundou. Tudo nessa soma de distopias que vivemos vem em camadas. É preciso levantá-las para entender as várias dimensões do nosso mal. Houve criação de vagas e o governo até comemorou, mas isso é uma parte pequena de uma história muito mais ampla. O IBGE divulgou ontem que a taxa de desocupação entre julho e setembro ficou em 14,6%, a maior da série. E que há menos 11,3 milhões de pessoas trabalhando do que há um ano.

Há muitas desigualdades, como sempre. Só que pioraram. Na Bahia, o desemprego é de 20%, em Santa Catarina é de 6,6%. Se você é homem, sua taxa é de 12,8%, se for mulher, é 16,8%. Se é branco, seu índice de desemprego é de 11,8%, pardo, 16,5%, e se for uma pessoa preta é de 19%. As nossas desigualdades são regionais, de gênero e raciais. Sempre existiram, mas quando a conta de alguma crise chega ela bate mais em quem tem menos e aumenta as distâncias sociais.

O problema adicional do desemprego nesta pandemia é que ele é mal medido. Não por erro do IBGE, mas por dificuldade mesmo de ver o que se passa. As lentes não captam a realidade. A estatística registra quem procurou emprego e quem não procurou. Se não procurou, você está desempregado, mas não aparece na foto. Muita gente tem adiado essa procura porque acha que o momento não é favorável, com o vírus solto por aí. Se melhorar, se a pandemia ceder, se houver segurança, a pessoa vai procurar. E aí entrará na estatística.

De cara, 5,9 milhões de pessoas não procuram, nem pensam em procurar mais porque acham que não encontrarão. São os que estão em desalento. Em um ano, 1,2 milhão de pessoas entraram no universo dos desalentados. Mas quem for de Alagoas convive com o fato de que 21,6% da população em idade de trabalhar está desalentada. No Maranhão, 20%. Em Brasília, apenas 1,3%.

O que o governo comemorou esta semana foi o Caged, que é um pedaço dessa história toda. A criação de empregos formais em outubro teve um saldo positivo de 394.989 vagas. É bastante para contexto tão difícil, mas não a prova de recuperação em V como exultou o Ministério da Economia. Ademais, a metodologia dessa conta mudou. O governo passou a obrigar os empresários a reportarem também as contratações temporárias. A série foi quebrada, não dá para comparar com o passado.

O futuro no mercado de trabalho é absolutamente incerto, porque pouco se sabe do cenário econômico. Se esse aumento dos casos de infecção e morte por Covid-19 continuar, a recuperação não se manterá. Está sendo difícil garantir neste quarto trimestre o ritmo do terceiro. Sem certeza do que vai acontecer nos próximos meses, os empresários não contratam.

Uma segunda onda nos pegará tão desprevenido quanto a primeira, porque o Ministério da Economia está negando o problema pela segunda vez. Em março, o ministro Paulo Guedes achava que com R$ 5 bilhões ele acabava com o vírus. Era negação. Agora de novo tem dito que não acontecerá o que pode já estar acontecendo.

Economistas trabalham com cenários e formuladores de políticas públicas preparam-se exatamente para as mudanças de conjuntura. O improviso custou caro da primeira vez. Gastou-se mais do que o necessário com o auxílio emergencial e com muito menos foco do que era preciso.

Esta é a aflição imediata. Há uma devastação no mercado de trabalho, o Ministério da Economia comemora dados parciais como se eles fossem o fim da crise. Ela pode se agravar. O negacionismo vai fazer novas vítimas. Na saúde e na economia. Há, além disso, uma desorganização mais ampla e profunda no mercado de trabalho para o qual será preciso mais inteligência, e menos ideologia, para encontrar a saída.

A taxa de desemprego entre jovens de 18 a 24 anos é mais que o dobro da taxa geral: é 31,4%. Excluindo tanta gente jovem, a economia não se renova.
A crise no mercado de trabalho não nasceu ontem, mas se agravou na pandemia. O coronavírus chegou com sua força destruidora num mercado com dificuldade crônica de abrir oportunidades para jovens, incluir pobres e negros, tratar homens e mulheres da mesma forma, reter os talentos maduros e reduzir as injustiças regionais. Não há soluções fáceis, mas certamente elas ficaram mais difíceis no encurralado ano de 2020.


Míriam Leitão: A conta será do agronegócio

Sim, a China pode nos atingir com as consequências negativas desse tipo de agressão grosseira, gratuita e infantil como a do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). O agronegócio precisa se mexer, porque é o alvo. Basta que a China queira fazer um gesto de boa vontade em relação ao governo Biden e passe a redirecionar sua compra de soja para lá. Ou que invista em países que substituam pelo menos em parte as exportações brasileiras de alimentos. Uma pequena redução já nos afetará.

Essa é a visão de um diplomata experiente que vê com perplexidade os movimentos sem eira nem beira da nossa política externa. A palavra dura também cabe na diplomacia, mas só deve ser usada com algum propósito bem definido. Nada da política externa do governo Bolsonaro tem rumo. Uma política biruta.

Um analista bem próximo ao governo Bolsonaro que, contudo, discorda da tendência que tem tomado a política externa, explica a raiz do problema. O verdadeiro chanceler é o assessor internacional Filipe Martins, um jovem sem qualquer qualificação para a ascendência que tem sobre assunto tão relevante. “O Ernesto é um maria vai com as outras”, explicou esse analista.

De fato, o atual ministro só mostrou seu fervor de extrema-direita durante a campanha presidencial, criando um blog para se alavancar para o cargo. Uma vez lá, passou a aceitar todo tipo de interferência e se coloca subserviente aos ditames tanto de Eduardo Bolsonaro quanto de Filipe Martins, um fanático olavista, sem qualquer experiência no ramo.

A mensagem postada pelo filho do presidente era tão absurda que foi apagada depois. Eduardo Bolsonaro estava fazendo mais um ato explícito de vassalagem ao governo de Donald Trump, que está nos seus dias finais. Como foram muitas outras agressões dele, de Araújo, do próprio presidente, a embaixada chinesa reagiu falando que o deputado está solapando as relações entre os dois países. E disse que ele deveria “evitar ir longe demais” para não “arcar com as consequências negativas”.

A China é o nosso maior parceiro comercial, um dos maiores investidores. Mesmo que não fosse, não há razão alguma para que se dê ao filho do presidente o direito de ofender qualquer país na hora que decide postar algo nas redes sociais.

A relação Estados Unidos e China vai passar por um outro momento agora com a posse de Joe Biden. Pode vir a ser até mais tensa do que antes. Com Trump, havia escaramuças intempestivas, ataques via Twitter, idas e vindas. Com Biden, haverá mais estratégia na disputa que continuará existindo entre as duas potências. Mas, uma carta no baralho chinês, em qualquer contexto, será sempre a de aumentar as compras de soja e de outras commodities agrícolas no mercado americano. Nesse caso, o agronegócio exportador brasileiro pagará a conta. Se os empresários não se insurgirem, se acharem que basta resmungar, estarão mais vulneráveis.

Em artigo publicado ontem no “New York Times”, o analista David Leonhardt disse que o governo Trump foi um presente para a China. “Ele antagonizou aliados que estavam também preocupados com o crescimento da China, em vez de construir uma coalizão com Japão, Europa, Austrália e outros.” Foi, segundo ele, citando um professor chinês da London School, um “presente estratégico para a China”. De fato, nesta hora poente de Trump no poder, a China fechou um acordo, no último dia 15, com um grupo de 15 países asiáticos, inclusive o Japão, considerado o maior acordo de livre comércio do mundo. Trump havia retirado os Estados Unidos da Parceria Transpacífica, costurada por Barack Obama, para estabelecer com vizinhos da China um acordo de comércio. A China aproveitou o erro de Trump e fez seu próprio tratado. Esse episódio mostra como a diplomacia é um jogo para profissionais. Amadores acabam atirando sempre no próprio pé.

Biden, em artigo publicado na revista “Foreign Affairs”, disse que os Estados Unidos precisavam ser “duros” com a China. Com Biden, os Estados Unidos voltam ao multilateralismo, mas a rivalidade com os chineses continuará. Só que, ao mesmo tempo, na área comercial e econômica, há uma simbiose entre os dois países, ao contrário do que havia na bipolaridade da Guerra Fria. Diante de relação tão complexa, cabe ao Brasil não tomar partido, porque a missão da política externa brasileira é defender os interesses brasileiros.


Ribamar Oliveira: A impressão é de um governo perdido

Bolsonaro não aceita sugestões apresentadas por seu ministro da Economia, e há um bate cabeça da área técnica com os líderes políticos que apoiam o governo

Na segunda-feira passada, na presença do presidente Jair Bolsonaro, do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), o senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da proposta orçamentária para 2021, anunciou a criação do novo programa social do governo, que chamou de Renda Cidadã. Ele informou que o governo iria limitar o pagamento de precatórios judiciais e, com os recursos que sobrariam, financiar o programa. Ontem, o ministro Paulo Guedes surpreendeu o país ao afirmar que nada daquilo valeu. Chegou a sugerir que nunca se pensou em tal coisa.

O anúncio de Bittar, no Palácio do Planalto, está gravado e pode ser facilmente acessado na internet. O mais impressionante é que, no dia seguinte, o próprio Bittar e o líder Ricardo Barros reafirmaram a decisão e negaram que o governo pudesse recuar de sua proposta, mesmo com a forte reação contrária dos mercados.

A avaliação unânime dos analistas foi de que o governo estava propondo uma “pedalada fiscal”, com a postergação do pagamento dos precatórios. Iria transferir uma dívida, que todo ano a Justiça manda pagar, para ser quitada pelas futuras gerações.

Guedes aproveitou ontem a entrevista de divulgação dos dados do Caged, que mostraram uma forte criação de empregos com carteira assinada em agosto, para alterar inteiramente o discurso oficial sobre os precatórios. “Sabemos que precatórios são dívidas líquidas e certas, transitadas em julgado. Ninguém vai botar em risco a liquidação de dívidas do governo. Vamos pagar tudo”, disse, demonstrando uma certa exaltação. “Estamos aqui para honrar compromissos. Compromisso fiscal, de dívida”, acrescentou.

O ministro afirmou que sua preocupação era com o “crescimento explosivo” da despesa com o pagamento de precatórios nos últimos anos. Segundo informou, esse gasto era de R$ 10 bilhões a R$ 12 bilhões no governo Dilma Rousseff e a projeção para 2021 é de R$ 55,5 bilhões. “Estamos examinando [os precatórios] estritamente com foco em controle das despesas.”

Guedes reafirmou, no entanto, sua intenção de apresentar um novo programa social para amparar os “invisíveis”, que foram descobertos pelo governo com o auxílio emergencial. Segundo ele, são 40 milhões de pessoas que precisam de ajuda a partir de janeiro, quando o auxílio emergencial acabar. Guedes voltou a afirmar que é preciso promover uma aterrissagem suave, quando isso ocorrer.

Ele disse que nunca pensou em utilizar parte do dinheiro que seria usado para pagar os precatórios para financiar o Renda Brasil. Foi com esse nome que o ministro se referiu ao novo programa social do governo Bolsonaro, e não Renda Cidadã, empregado por Bittar. “Uma despesa permanente precisa ser financiada com uma receita permanente. Não pode ser financiada por um puxadinho, por um ajuste”, afirmou.

O problema, portanto, está do mesmo tamanho. Ou seja, como o novo programa do governo, qualquer que seja o seu nome, será financiado a partir de janeiro do próximo ano?

É importante relembrar que todas as sugestões apresentadas pela área econômica foram vetadas pelo presidente Bolsonaro. A ideia inicial, com a qual a equipe de Guedes trabalhou desde o início, era eliminar os programas sociais considerados ineficientes, ou seja, que não estão atingindo as pessoas mais necessitadas da sociedade, e direcionar os recursos para os mais carentes e para os trabalhadores informais.

A primeira proposta levada ao presidente foi a de acabar com o abono salarial, que concede até um salário mínimo por ano para o trabalhador que ganha até dois pisos por mês. Bolsonaro rejeitou a proposta publicamente, dizendo que não iria tirar dos pobres para dar para os paupérrimos. Aquele foi um banho de água fria na equipe de Guedes, pois o fim do abono abriria um espaço de R$ 20 bilhões para turbinar o Renda Brasil.

Depois, o presidente rejeitou também o fim do seguro-defeso, que é concedido aos pescadores artesanais no período da desova dos peixes. O secretário da Pesca, Jorge Seif Junior, ao lado de Bolsonaro em sua live semanal, chegou a dizer que o fim do seguro-defeso era “fake news”.

Em seguida foi a vez de o secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, ser desautorizado pelo presidente da República. Em entrevista ao Valor, Waldery defendeu a desindexação de benefício previdenciários, ou seja, suspender pelo prazo de dois anos a correção monetária do valor das aposentadorias e pensões. O secretário estimou que a medida reduziria as despesas da União em R$ 17 bilhões em 2021 e em R$ 41,5 bilhões em 2022.

Com a repercussão das palavras de Waldery, o presidente usou as redes sociais para dizer que uma proposta como aquela só podia ser feita por alguém que não tem coração e anunciou que daria “cartão vermelho” para quem insistisse no assunto. Bolsonaro disse também que não queria ouvir falar em Renda Brasil até 2022. Ele mudou de ideia no dia seguinte, ao autorizar o relator das PEC Emergencial e do Pacto Federativo, senador Marcio Bittar, a incluir em seu substitutivo a criação de um novo programa social.

Depois da forte reação dos mercados e da própria sociedade à “pedalada fiscal” dos precatórios, o ministro Guedes informou ontem que o governo não vai financiar o Renda Brasil com parte dos recursos que seriam utilizado para pagar precatórios. O ministro disse, no entanto, que o programa será criado para fazer a “aterrissagem suave” do auxílio emergencial.

A impressão que está passando ao público é de um governo perdido. Com um presidente que não aceita as sugestões apresentadas por seu ministro da Economia e um bate cabeça da área técnica com os líderes políticos que apoiam o governo. Há também as intrigas entre ministros. Ontem, por exemplo, Guedes afirmou que tinha gente dentro do governo querendo “estourar o teto de gastos em R$ 60 bilhões a R$ 70 bilhões”. E que sua intenção é não deixar que isso aconteça.


Elio Gaspari: Bolsonaro criou uma crise do nada

Houve presidentes que amansavam a onça da crise; Jair Bolsonaro e Paulo Guedes inovaram: eles criam a crise do nada

Houve presidentes que amansavam a onça da crise. Ela entrava rosnando no Planalto e saía miando. Foi assim com Michel Temer (salvo quando ele conversava com Joesley Batista no Jaburu) e com Fernando Henrique. Com Dilma Rousseff, ela entrava miando e saia rosnando. Jair Bolsonaro e Paulo Guedes inovaram: eles criam a crise do nada.

No domingo passado, o secretário especial da Fazenda, Waldery Rodrigues, deu uma entrevista ao repórter Alexandro Martello propondo uma girafa: congelar por dois anos os benefícios da Previdência Social.

Ela foi para a rede no fim da tarde. Sabe-se lá o que estavam fazendo os doutores, mas ninguém se lembrou de jogar água fria no assunto. Era uma ideia ruim, nada mais que isso. Era também mais um balão de ensaio da ekipekonômika. Tratando-se de matéria que exigiria emenda constitucional, suas chances eram nulas.

Passou a segunda-feira, e nada. Alguém, inclusive o doutor Waldery, poderia ter colocado os pingos nos is. Na terça de manhã, com a fúria de Zeus, Bolsonaro foi para as redes sociais com um vídeo e matou a proposta, mandou ao arquivo qualquer conversa sobre o programa Renda Brasil e ameaçou botar na rua quem lhe trouxer o assunto. Sendo presidente da República, poderia ter usado o aparelho do governo para cuidar do assunto.

Sendo um animador de vídeos, poderia ter argumentado com mais simplicidade e elegância. Preferiu se apresentar como defensor dos pobres e dos paupérrimos, impondo mais uma humilhação ao çuperministro Paulo Guedes e colocando a prêmio a cabeça do doutor Waldery. Logo ele, cujo governo tentou, e continua tentando, tungar o Benefício de Prestação Continuada dos miseráveis e quis taxar o seguro dos desempregados.

Bastariam dois telefonemas e uma frase para que o governo derrubasse a girafa do doutor Waldery, que além de ser apenas um plano, era inexequível. Sobrou para o burocrata a quem Guedes deu poderes excepcionais, pois sua secretaria é aquilo que outrora foi o Ministério da Fazenda. (Isso foi parte do projeto de concentração teórica de poderes do çuperministro. Na prática, está dando no que se vê.)

Waldery Rodrigues é um burocrata eficiente que na cadeira se tornou também onisciente. Olhando para a macroeconomia, achou boa ideia avançar no orçamento dos segurados do INSS. Olhando para a microeconomia da geladeira do doutor Rodrigues, ele foi outro. Como servidor qualificado do Senado Federal, ganhava R$ 35 mil mensais. Aceitou uma secretaria especial que rendia apenas R$ 10,3 mil. Os costumes de Brasília permitiram que fosse para os conselhos do Banco do Brasil e do BNDES e, tchan, passou a receber mais R$ 14 mil. (Como ele, outros 333 servidores civis e 12 militares estão agraciados pela velha prebenda dos conselhos.)

Bolsonaro disse que não quer mais ouvir falar em Renda Brasil e passou a iniciativa para o Congresso. Ganha uma visita a uma fábrica de cloroquina quem apostar que daí sairá a próxima crise.

O Guedes de Machado
Miguel (“Migalhas”) Matos, estudioso da obra de Machado de Assis, achou um Guedes no mundo do Bruxo. Ele apareceu numa crônica de julho de 1885.

Machado contou que “há trinta anos, ou quase, que o Guedes espreita um trimestre de popularidade, um bimestre, um mestre que fosse, para falar a própria linguagem dele. Ultimamente, lá se contentava com uma semana, um dia, e até uma hora, uma só hora de popularidade, de andar falado por salas e esquinas.”

“Se realmente quer popularidade, abra mão de planos complicados.”

Machado apontava um caminho para que Guedes conseguisse a popularidade:

“A gente não tem remédio senão recorrer à única cultura em que não há concorrência de boa vontade, que é plantar batatas.”

Matos trabalha num livro sobre as relações de Machado de Assis com o Direito. Lateralmente, cuidará da paternidade do Bentinho do conto “Dom Casmurro”. Segundo uma fofoca secular, Machado de Assis seria o pai de Mário, filho de Georgiana Cochrane, mulher do romancista José de Alencar.

Problema fabricado
A humilhação a que o INSS vem submetendo centenas de milhares de pessoas que precisam de perícias médicas para receber os benefícios a que têm direito era pedra cantada.

No ano passado os çábios transferiram os médicos do quadro de funcionários do INSS para um órgão exclusivo, chamado Perícia Médica Federal. Com a mudança, os servidores foram dispensados do registro eletrônico de presença.

Em março, quando a pandemia chegou ao Brasil, o INSS anunciou “novas medidas em função da pandemia do coronavírus no Brasil.”

As coisas ficariam assim:

“A partir de agora, o INSS, em conjunto com a Perícia Médica Federal, dispensará o segurado da necessidade de comparecer em uma agência para a perícia médica presencial. Dessa forma, os segurados que fizerem requerimentos de auxílio-doença e Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoa com deficiência devem enviar o atestado médico pelo Meu INSS, aplicativo ou internet. A medida tem por objetivo assegurar a saúde dos cidadãos, em especial a dos idosos.”

Contem outra, doutores.

O ativismo de Bolsonaro
Nos últimos dias de sua campanha pela Presidência, Jair Bolsonaro fez a mais apocalíptica de suas promessas: “Vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil.”

Estimulou duas novas formas de ativismo. De um lado deu espaço aos agrotrogloditas com seus incêndios. Em agosto do ano passado, eles criaram o Dia do Fogo, com 478 queimadas. De cada dez incendiários, menos de seis foram autuados.

A esse ativismo correspondeu outro, contrário. Os três maiores bancos brasileiros se afastaram dos desmatadores. Um documento assinado por 230 empresas e organizações ambientais pediram-lhe que controle os agrotrogloditas. Entre as empresas estão a Klabin, a Maggi e a Unilever. Além disso, os governos de Alemanha, Inglaterra, França, Itália, Dinamarca, Holanda, Noruega, Reino Unido e Bélgica mandaram uma carta ao governo dizendo que a piromania atrapalha até mesmo os negócios.

Não chore, Rio
No Rio de cinco governadores levados ao cárcere, outro afastado e substituído por um vice filmado ao chegar com uma mochila para um encontro com um larápio confesso, o prefeito Marcelo Crivella é protegido por milicianos e se ligou perigosamente a uma quadrilha que garfava o carnaval.

Se tudo isso fosse pouco, vem aí a eleição para prefeito. Um dos candidatos é Eduardo Paes, que esteve na cadeira de 2009 a 2016. Ele seria o novo. Na sua equipe brilhava o marqueteiro Marcello Faulhaber.

O Ministério Público descobriu que, entre junho de 2017 e agosto de 2018, o doutor trocou 11,2 mil mensagens com Rafael Alves, poderoso operador de Crivella no mundo do samba. Nas suas palavras:

“Quem manda sou eu e ponto. A caneta é minha, não é de A ou B, e sim só minha”.


Eliane Cantanhêde: De quem é a culpa?

A crise do Rio confirma que a culpa da descrença na política não é da Lava Jato, é de políticos

Quem tem certeza de que a culpa pela eleição de Jair Bolsonaro, o esfarelamento do PT e a desgraça dos partidos, da política e dos políticos é da Lava Jato e da mídia deve parar, pensar e olhar o que acontece no Rio de Janeiro, um dos três estados mais importantes, que abriga o cartão postal do Brasil no mundo. Ali, não sobra pedra sobre pedra.

A crise no Rio é moral, ética, política, econômica, financeira, social, de segurança, de saúde, de educação… Isso tudo não é resultado da Lava Jato e da cobertura da mídia. Ao contrário, veio à tona exatamente porque houve um mergulho dos órgãos de investigação no que vinha ocorrendo e se eternizando e porque a mídia registrou. Ou melhor, revelou.

Sérgio Cabral não existiu por causa da Lava Jato, mas a Lava Jato existiu por causa dos Sérgio Cabral. Ele virou o que virou pela impunidade, ela surgiu contra a impunidade. A roubalheira ficou tão fácil que foi crescendo a perder de vista, contaminou instituições, dragou belas biografias, operou com quantias de tirar o fôlego. A corrupção no Brasil e no Rio se mede aos muitos milhões, aos bilhões de reais.

Os últimos cinco governadores do Rio estão na cadeia ou passaram por ela, ex-presidentes e líderes da Assembleia Legislativa também, a cúpula do Tribunal de Contas desmoronou. O atual governador, Wilson Witzel, está afastado e toda a linha sucessória comprometida: o vice em exercício, Cláudio Castro, e o presidente da Alerj, André Ceciliano, acabam de ser alvos de busca e apreensão.
Ceciliano é do PT, mas Witzel e Castro são do PSC, da linha de frente de apoio ao governo federal e presidido pelo Pastor Everaldo, que acaba de ser preso, é acusado também de ter ganho R$ 6 milhões para fingir ser candidato a presidente para insuflar a candidatura de Aécio Neves, do PSDB, e foi quem batizou Bolsonaro no rio Jordão, em Israel.

O prefeito do Rio, aliás, é Marcelo Crivella, da Igreja Universal do Reino de Deus, e passou raspando na votação do pedido de abertura de impeachment na Câmara de Vereadores, por pagar sua própria “milícia” com dinheiro público. São servidores públicos que impedem que cidadãos denunciem os desmandos da saúde à mídia nas portas dos hospitais e transformam em fakenews e oba-oba os eventos públicos do prefeito. O líder passou a ganhar R$ 18 mil por mês em plena pandemia.

Crivella viajou com Bolsonaro no avião presidencial justamente no dia em que sofreu busca a apreensão. Bolsonaro, o senador Flávio e o vereador Carlos apoiam a reeleição de Crivella, que concorre em novembro com o ex-prefeito Eduardo Paes, igualmente alvo da Justiça, e a ex-deputada Cristiane Brasil, que se entregou à polícia anteontem. Ela é filha do presidente do PTB, Roberto Jefferson. E até a Fecomércio, o Sesc e o Senac do Rio estão na mira, junto com advogados de Witzel e do ex-presidente Lula e o misterioso ex-advogado de Bolsonaro e Flávio.

A Mãos Limpas produziu o indigesto Berlusconi na Itália e a Lava Jato desaguou em Bolsonaro, Witzel, juízes, procuradores, militares, policiais e neófitos que assumiram o discurso moralista e agora caem na mesma rede dos antecessores. Assim como o PT foi só mais um a cair nessa rede, Witzel é só o exemplo mais vistoso do que veio em seguida.

A culpa por essa avalanche de escândalos, que atinge partidos e políticos de todos os matizes, muito experientes ou arrivistas, é da Lava Jato? Das TVs, rádios, jornais e revistas? Quem gerou o bolsonarismo e seus filhotes não foram a Lava Jato, que descortinou a sujeira, muito menos a mídia, que a mostrou ao distinto público. Foi, sim, a própria política. O erro original está no sistema. Que tal fazer a reforma política, eleitoral e partidária? Mas para valer.


Merval Pereira: O futuro de volta

André Urani fez parte de uma geração de economistas "cariocas" que começou a se debruçar sobre os caminhos e descaminhos da sua própria cidade. Nascido na Itália, escolheu o Rio para viver e trabalhar. Morto há nove anos, muito jovem, passou seus últimos anos a pensar o futuro da região metropolitana do Rio de Janeiro unida à de São Paulo (e vice-versa).

A conurbação imaginada por André Urani abrangeria cidades dos três estados mais importantes do país, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, em direção a Campos, no Rio de Janeiro, a Campinas, em São Paulo, e a Juiz de Fora, em Minas Gerais. Formariam a "Megalópole Brasileira". Para Urani, o que estava em jogo era, simultaneamente, o revocacionamento de nossas duas principais metrópoles para o Século XXI, e o próprio papel do Brasil no mundo.

Essa e muitas outras idéias surgiram no OsteRio, reunião para debater as principais questões do desenvolvimento do Rio, que se realizou às noites de segunda-feira no restaurante Osteria Dell’ Angolo, em Ipanema. Hoje, o Rio de Janeiro volta a estar às voltas com uma decadência moral, política e econômica.

Já não temos nem a Osteria Dell´Angolo, que fechou com a crise, nem André Urani. Para tentar compensar essas perdas e retomar o debate sobre o futuro do Rio, será lançado em outubro o livro “Maravilhosa para todos” que reúne propostas para o debate sobre o futuro do Rio, dedicado a André Urani, o economista que dedicou sua curta vida a pensar e apostar no Rio.

O foco é na recuperação ética, fiscal, e econômica - com todos os programas voltados para redução da desigualdade da cidade. Usar o avanço tecnológico para dar o salto de qualidade de vida aos cidadãos cariocas com políticas públicas baseadas em evidências, com acompanhamento e avaliação de resultados.

Cerca de 50 pessoas das mais diversas áreas participaram de reuniões virtuais nos últimos dois meses e fizeram os diagnósticos e propostas. São 14 capítulos: Contas públicas, Educação, Saúde, Economia, Mercado de Trabalho, Políticas Públicas, Assistência Social, Segurança Pública, Saneamento, Políticas de Gênero, Mobilidade Urbana, Meio Ambiente e Sustentabilidade, Empreendedorismo e Cultura.

Mesmo organizado por pessoas ligadas ao partido Rede Sustentabilidade (Eduardo Bandeira de Mello, candidato à prefeitura, a ex-vereadora Andrea Gouvea Vieira e o economista Ricardo Barboza do BNDES, e prefaciado por Marina Silva, o livro reúne especialistas de diversas tendências, cujo objetivo é encontrar meios de fazer do Rio o melhor lugar para nascer, crescer, criar, trabalhar e envelhecer.

Escreve Marina: “Não é aceitável acreditar que o Rio “não tem jeito”. Cair nessa armadilha é se deixar levar a uma pulsão de morte. O que precisamos agora é de uma vigorosa pulsão de vida para reagir, ir à luta com toda a garra. O princípio básico desse livro é que o foco da reação deve ser o das políticas públicas. (…) Os profissionais que organizaram e escreveram os capítulos desse livro são grandes especialistas nacionais nos diversos temas que afetam a vida da cidade”.

Economistas de diversas tendências avalizam o livro. Fabio Giambiagi. (ligado ao PSDB) “ (…) Como militante do "Partido dos Cariocas", penso que, qualquer que seja o timoneiro deste nosso Rio tão sofrido nos próximos anos, deveria ter este livro permanentemente ao lado, como objeto de inspiração”. Ricardo Paes e Barros (idealizador do Bolsa Família)“O Rio tem um único destino possível: se tornar um centro de inovação tecnológica, científica e artística de dimensão mundial. Laura Carvalho ( ligada ao Psol) “O esforço de diagnóstico de nossos problemas conjunturais e estruturais para a formulação de um novo modelo de desenvolvimento para o Rio é urgente. Esse livro faz tudo isso de forma excepcional, com base em dados e análises técnicas de alguns de nossos melhores pesquisadores nessas áreas”.


Maria Hermínia Tavares: Lava Jato morre agora não como explosão, mas como murmúrio

Ninguém, entre os caciques políticos, verte pela força-tarefa uma furtiva lágrima

A Operação Lava Jato agoniza, sufocada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, sob a aprovação silenciosa do conjunto de partidos e líderes políticos —de A a Z.

Na origem, a força-tarefa encarnou a autonomia do sistema de Justiça em relação ao Executivo, sustentada nos poderes ampliados que lhe conferiu a Constituição de 1988. Tornou-se possível com o advento de uma nova geração de promotores e juízes que já não dependiam da patronagem, mas de seus méritos aferidos em concursos públicos, para ingressar na carreira. Faz sentido que se vissem como guardiões da lei maior ameaçada por um sistema político no seu entender irremediavelmente corrupto.

A Lava Jato trouxe à luz a existência daquilo que, décadas antes, o cientista político americano Gordon Adams tinha chamado triângulos de ferro: arranjos informais e secretos que ligam firmas de prestação de serviços, burocratas de estatais e partidos políticos, em benefício dos envolvidos e em detrimento do interesse coletivo.

De fato, os cruzados de Curitiba revelaram o poderoso triângulo de ferro incrustado na maior empresa pública nacional, a Petrobras, sólido o suficiente para sobreviver ao vaivém de presidentes e coalizões governantes, encabeçadas primeiro pelo PSDB e depois pelo PT.

A Lava Jato não criou a crise política que pulverizou o sistema de partidos e abriu caminho para a ascensão da extrema direita. Mas forneceu o combustível para as campanhas da imprensa e as grandes manifestações de rua, as quais, associadas à crise econômica, à polarização política e ao desmanche da base parlamentar governista, tornaram possível o impeachment de Dilma Rousseff e tudo o que se lhe seguiu.

Os métodos reprováveis a que recorreram promotores e o juiz Sergio Moro —especialmente sua inaceitável proximidade durante a montagem dos processos— tampouco contribuíram para o aperfeiçoamento da aplicação da Justiça e a criação de instrumentos legítimos para reduzir a corrupção política.

No Brasil, o discurso moralista foi componente central de todas as grandes crises políticas sob regime democrático. Apesar do retrospecto, a Lava Jato morre agora não como explosão, mas como murmúrio —e sem ninguém, entre os caciques políticos, a verter por ela uma furtiva lágrima.

Mas os triângulos de ferro do professor Adams sobrevivem a ela. Ativados e operantes, existem em empresas públicas e agências reguladoras. Por isso, a retórica anticorrupção continuará sendo um recurso da luta política. Alimentará o populismo de direita enquanto não ocupar também posição de relevo na agenda dos democratas.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.