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O Globo: Falta de oxigênio vista em Manaus pode se alastrar pelo país, dizem especialistas
Há risco de escassez do produto se repetir na Região Norte e em outras localidades com limitações na infraestrutura de transporte. Doações crescem, mas insumo pode levar dias para chegar por barco ou avião
Bruno Rosa e Ivan Martínez-Vargas. O Globo
RIO E SÃO PAULO — A falta de oxigênio nos hospitais em Manaus com a escalada de casos de coronavírus é um alerta para o restante do país, na avaliação de especialistas. Para eles, há risco de novas falhas no abastecimento, em especial na Região Norte. O drama registrado na capital do Amazonas reflete a combinação da falta de uma ação planejada com a indústria — que agora se desdobra para elevar rapidamente a produção — e uma complexa estrutura de escoamento, que pode levar dias para entregar um produto que precisa ser reposto em caráter imediato. Industriais da região afirmam que as doações se avolumam, mas o oxigênio não chega a tempo.
Entrevista: Manaus é um alerta do que pode acontecer com o resto do Brasil, diz infectologista da Fiocruz
Na primeira onda de Covid-19, no ano passado, o consumo de oxigênio era de 30 mil metros cúbicos em Manaus, patamar muito acima do registrado antes da pandemia. Agora, segundo a White Martins, empresa que tem a maior fatia do mercado, a demanda já chegou a 70 mil metros cúbicos diários, quase três vezes a capacidade de produção da empresa na cidade.
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A White Martins produz 25 mil metros cúbicos diários e está ampliando esse patamar para 28 mil metros cúbicos, além de deslocar oxigênio de outras sete fábricas do país. A empresa recebeu autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para reduzir temporariamente o percentual de pureza do oxigênio de 99% para 95%, o que facilitaria o aumento da produção.
Transporte e tanques
Há uma multiplicação de gargalos para fazer chegar o oxigênio de outros estados. Ele pode ser transportado nas formas líquida ou gasosa, por barco ou avião. O transporte, a pouca oferta de tanques de armazenamento para o produto na forma líquida e o impacto da crise econômica, que reduziu a produção em cerca de 30% no ano passado, segundo a consultoria R S Santos, são alguns dos entraves.
O oxigênio pode ser usado tanto para a indústria quanto na medicina. Segundo o consultor Ronaldo S Santos, diante da redução no ano passado, não haveria um problema de capacidade para elevar a produção de oxigênio para os hospitais. Mas pondera que a falta de planejamento público explica o quadro atual:
— Deveria ter sido pedido um plano de ação das empresas para fornecimento ao longo do ano passado.
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Para o professor de Gestão de Cadeia de Suprimentos do Insper Vinícius Picanço, o que está acontecendo em Manaus, com a nova cepa, pode se repetir em outras localidades com limitações na infraestrutura de transportes, em parte do Nordeste e no interior, o que evidencia a importância do planejamento.
— Não dá para dizer que era imprevisível a escassez. Por mais que a demanda tenha um comportamento exponencial, existem modelos matemáticos para isso. A questão envolve logística e previsão de estoque — disse. — Houve teve tempo na pandemia de posicionar os estoques adequadamente, de armazenar insumos em regiões estratégicas.
Segundo Jorge Nascimento, presidente da Eletros, associação de produtos eletroeletrônicos, desde a semana passada, as grandes indústrias do estado doaram seus estoques de oxigênio para ser convertido em oxigênio medicinal, usado na rede pública de saúde, mas não foi suficiente. Ao menos 20 grandes fabricantes com operações na Zona Franca de Manaus, se dispuseram a ajudar, segundo ele.
Mas, para isso, é preciso que os cilindros voltem para a usina de oxigênio. O produto usado na área hospitalar requer percentual maior de pureza. A partir daí, foi necessário buscar fora do estado.
Segundo Nascimento, o grupo de Convergência Empresarial da Amazônia, que reúne empresários do estado, tem reunido doações:
— Demora para chegar. Uma encomenda que saiu de uma fábrica de aço do Maranhão vai demorar no mínimo cinco dias para chegar porque tem de fazer parte do trajeto de barco. A Força Aérea Brasileira (FAB) tem operado voos a partir de Guarulhos, mas há limitação de quantidade do produto para transporte por via aérea porque é carga perigosa, nem toda aeronave está adaptada — afirmou.
Santos destaca outros problemas que vão além da demora no transporte, a falta de tanques para transportar o produto no estado líquido:
— Não temos grande produção, as empresas importam da Índia e da China. E a maior parte dos hospitais recebe esse oxigênio líquido em tanques, já que os cilindros têm volume menor. Muitas empresas têm realocado os tanques da indústria, mas não é rápido.
Para os especialistas, pode haver falha na oferta de oxigênio em outras partes do país a depender do aumento de casos, mas o tempo de reação seria menor do que em Manaus.
Segundo Jorge Mathuiy, diretor comercial da MAT, maior produtora de cilindros do Brasil, a maior preocupação é com outros estados da Região Norte, onde não há produção local de oxigênio. Ele já se prepara para demanda maior:
— Estamos aumentando a produção de 22 mil cilindros por mês para 25 mil com um novo turno. Estamos preparados para o aumento da demanda.
A White Martins tenta importar oxigênio da Venezuela. Em nota, explica que colocou à disposição o envio de 32 tanques criogênicos que estão em São Paulo aguardando para serem transportados para Manaus. Além disso, seguem rumo ao estado 23 carretas criogênicas (caminhões com megatanques na forma líquida).
A Fiam, federação das indústrias do estado, diz que o cenário é de caos e que o governo do estado fala em licitar 11 minifábricas de oxigênio para hospitais, segundo Antônio Silva, presidente da entidade. Grandes empresas do setor financeiro, consumo e aéreo estão doando equipamentos e cilindros, a maior dificuldade, porém, é fazer a ajuda chegar.
Agência Lupa: Em live no pior dia de Manaus, Bolsonaro mente sobre Covid no Brasil
Presidente e ministro da Saúde insistiram no tratamento precoce com hidroxicloroquina e questionaram uso de máscara; veja checagem da Lupa
Na quinta-feira (14), enquanto Manaus vivia crise com a falta de oxigênio nos hospitais, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) realizou uma transmissão ao vivo junto com o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Na live, os dois repetiram informações falsas sobre a doença, como a existência de um “tratamento precoce” contra a Covid-19.
Bolsonaro também chegou a dizer que há três vacinas em análise pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mas foi corrigido pelo ministro. A agência vai se pronunciar no domingo (17) sobre dois imunizantes, produzidos pela Fiocruz e pelo Butantan.
A Lupa analisou algumas das declarações de Bolsonaro e do ministro, que foram procurados para comentar as checagens, mas não responderam até a publicação.
“Qual outro país do mundo disponibilizou o auxílio emergencial? Alguém lembra aí Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela, México, Angola, Itália?”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
FALSO Pelo menos cinco —Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela e Itália— dos sete países citados pelo presidente Jair Bolsonaro disponibilizaram um auxílio emergencial para sua população durante a pandemia similares ao brasileiro.
A Argentina criou o “Ingreso familiar de emergencia” em março de 2020, com valor de 10 mil pesos, pouco mais de R$ 600. No Paraguai, o programa Pytyvõ — ajudar, em guarani — ofereceu G. 548.210 (R$ 419). A Venezuela criou, em março, o #QuedateEnCasa, mas o governo não informa o valor mensal que cada beneficiário recebe.[ x ]
Na Itália, o “Bonus Covid” foi disponibilizado temporariamente de março a maio. Nos dois primeiros meses, era de € 600 (cerca de R$ 3.800) e no terceiro e último mês, passou para € 1.000 (cerca de R$ 6.000). No final de 2020, jornais brasileiros repercutiram um escândalo de corrupção envolvendo o bônus: cinco deputados receberam indevidamente o auxílio.
O Uruguai criou, em abril, o Fundo Coronavírus, a partir do corte de salários de servidores públicos. Segundo o governo, o fundo usou cerca de US$ 625 milhões em 2020 em medidas de combate ao coronavírus. Desse montante, US$ 120 milhões foram para abonos de famílias e cestas básicas.
“O PSOL entrou com uma ação na Justiça de Porto Alegre para que o município não entregue o kit de tratamento precoce para os portadores de Covid-19”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
VERDADEIRO No dia 12 de janeiro, a bancada de vereadores do PSOL de Porto Alegre ingressou com uma ação, endereçada à Vara da Fazenda Pública, pedindo que a prefeitura da cidade “se abstenha de distribuir, utilizar e/ou adquirir medicamentos de eficácia não comprovada, especialmente a ivermectina e a hidroxicloroquina, para utilização na rede pública de saúde do Município de Porto Alegre”.
Em 4 de janeiro, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), flexibilizou as medidas restritivas de combate à pandemia e determinou a disponibilização de “tratamento precoce” contra a Covid-19 à população. O termo é usado por negacionistas científicos para se referir a medicamentos como hidroxicloroquina ou ivermectina, que não têm eficácia no tratamento contra o novo coronavírus.
Na manhã de quinta-feira (14), em encontro com apoiadores, o presidente citou a mesma ação, mas se confundiu, afirmando que o PSOL havia entrado na Justiça proibindo todos os prefeitos do país de distribuírem medicamentos sem eficácia científica contra a Covid-19.
“O uso da máscara, o afastamento social, as medidas de isolamento (...), isso tudo nós temos muita dificuldade de encontrar o que deu certo e o que deu errado.”
Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, durante live com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
FALSO Pesquisa publicada em junho na revista The Lancet indicou que o uso de máscaras reduz o risco de infecção por Covid-19 em 85%. Pesquisadores canadenses revisaram 172 estudos observacionais sobre medidas protetivas realizados a partir das características do novo coronavírus e de outras doenças respiratórias, como a síndrome respiratória no Oriente Médio (Mers).
O estudo mostrou que as proteções hospitalares têm um grau maior de efetividade (96%), enquanto as máscaras caseiras eram consideradas 67% efetivas. Dessas, as que mais protegiam eram as que tinham duas ou mais camadas e quando corretamente ajustadas ao rosto.
Outras duas pesquisas, ambas publicadas na revista Nature, também confirmaram que medidas de isolamento social são eficazes em reduzir a disseminação do vírus. A primeira, publicada em junho por pesquisadores do Imperial College London, no Reino Unido, concluiu que essas “intervenções não farmacêuticas” evitaram 3,1 milhões de mortes em 11 países europeus na primeira onda da pandemia.
Outra, realizada por pesquisadores da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, concluiu que a implantação de medidas restritivas de locomoção reduziram a velocidade de contágio do vírus em seis países analisados.
“O tratamento precoce é preconizado pelos conselhos federais [...], se mostrou eficaz em todas as cidades e estados do Brasil”
Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, durante live com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
FALSO De acordo com instituições internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NHI, na sigla em inglês), não há, até o momento, medicamentos que comprovadamente reduzem o risco de infecção pela Covid-19.
No Brasil, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não recomenda tratamento precoce com qualquer tipo de medicamento. “Os estudos clínicos randomizados com grupos de controle existentes até o momento não mostraram benefício e, além disso, alguns destes medicamentos podem causar efeitos colaterais”, diz a SBI, em comunicado no Twitter na quinta-feira (14).
Em parecer publicado em abril do ano passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) diz que não há evidências sólidas de efeito de medicamentos como a cloroquina ou hidroxicloroquina no combate à Covid-19. No entanto, “diante da excepcionalidade da situação”, o CFM diz ser possível a prescrição do medicamento em pacientes infectados com o vírus. A decisão, entretanto, deve ser conjunta, entre médico e paciente. O profissional fica obrigado a relatar ao doente “que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga” para o tratamento da Covid-19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso.
Diversos estudos publicados já comprovaram que não há eficácia da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. O Recovery Trial, coordenado pela Universidade de Oxford, suspendeu testes em junho com o remédio ao notar que ele não mostrou benefício no tratamento da doença. Em julho, foi a vez do Solidarity Trial, coordenado pela OMS, encerrar testes com a hidroxicloroquina. Um estudo brasileiro, publicado em novembro no periódico New England Journal of Medicine, também comprovou que a hidroxicloroquina é ineficaz no tratamento de casos leves e moderados da Covid-19.
Em setembro de 2020, a Escola de Medicina Perelman, da Universidade da Pensilvânia (EUA), testou o efeito profilático da hidroxicloroquina para aqueles que ainda não foram expostos à Covid-19. Os resultados mostraram que a ingestão diária da droga não reduziu o risco de infecção. A pesquisa foi publicada na Jama Internal Medicine e analisou 125 profissionais de saúde que atuam na linha de frente de combate ao novo coronavírus. Em agosto, um outro estudo clínico, publicado no The New England Journal of Medicine, mostrou que essa medicação, fornecida por quatro dias, não foi capaz de reduzir a taxa de infecção por Covid-19 nos 14 dias subsequentes ao seu uso, quando comparada com placebo.
“[O número de] Jovens entre 5 e 19 anos (...) sem comorbidade, que perderam a vida ano passado: 36. (...) É uma prova de que os jovens poderiam estar estudando [presencialmente]”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
INSUSTENTÁVEL O Ministério da Saúde não tornou públicas as informações de mortes por Covid-19 com o recorte de faixa etária e existência de comorbidades. Levantamento feito pelo G1 apontou que das 141 vítimas com até 19 anos que morreram de Covid-19 até o dia 26 de maio do ano passado, pelo menos 18 não tinham comorbidades. De acordo com dados do Poder 360, até 27 de junho de 2020, 380 pessoas com menos de 19 anos já haviam morrido no Brasil em função da doença ― no entanto, não há informações sobre comorbidades.
Mesmo que os números apresentados por Bolsonaro estivessem corretos, o que a Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta é que os jovens, ainda que não desenvolvam a doença, podem transmiti-la para pessoas mais velhas e mais vulneráveis. O diretor da OMS para o Pacífico Ocidental, Takeshi Kasai, explicou que, justamente por serem muitas vezes assintomáticos ou apresentarem sintomas leves, os jovens acabam transmitindo a doença.
No entanto, a própria OMS afirmou em setembro que a volta às aulas deve ser prioridade no processo de reabertura das economias. O argumento é que escolas fechadas por muito tempo significa crianças mais expostas à violência física e emocional, vulneráveis ao trabalho infantil e a abusos, além de dificultar quebrar o ciclo da pobreza. A OMS divulgou um guia com recomendações para a volta às aulas.
“Tenho uns 40 processos de impeachment. Alguma acusação de corrupção? De improbidade? De abuso de autoridade? Não, não tem”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
FALSO Informações obtidas pela Lupa via Lei de Acesso à Informação (LAI) junto à Secretaria Geral da Mesa Diretora da Câmara mostram que até esta sexta-feira, 15 de janeiro, havia 55 pedidos de impeachment em tramitação contra o presidente. Vários desses pedidos referem ao Inquérito 4831, sobre suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. Neste inquérito, o presidente é investigado por tentativa de influenciar investigações feitas pela instituição.
Um dos pedidos de impeachment, por exemplo, foi apresentado pelo deputado federal Alessandro Molon (PSB-RJ) e outros congressistas em 29 de abril de 2020. O texto fala em “tentativa de interferência ilegal na Polícia Federal, obstrução de justiça, advocacia administrativa, coação no curso do processo”.
Outro pedido, apresentado pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) em 21 de maio, acusa Bolsonaro de utilizar “poderes inerentes ao cargo com o propósito reconhecido de concretizar a espúria obtenção de interesses de natureza pessoal, objetivando o resguardo de integrantes de sua família ante investigações policiais”, em referência ao Inquérito 4831.
O inquérito foi aberto no STF para apurar as acusações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro de que o presidente da República tentou interferir na autonomia da PF para proteger familiares e aliados. Em novembro, o ministro Alexandre de Moraes prorrogou o inquérito por 60 dias, logo depois de o presidente ter informado que não iria depor no caso. Agora, o Supremo vai decidir se Bolsonaro pode depor por escrito ou se precisa comparecer pessoalmente para ser ouvido pelos investigadores. A decisão está marcada para 24 de fevereiro.
“Se fosse um remédio que não fizesse mal comprovadamente, não tivesse efeito colateral, nem assim, eu (...) ia obrigar a tomar aquele medicamento, quem dirá algo emergencial que não foi devidamente comprovado”
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
CONTRADITÓRIO Durante a pandemia da Covid-19, Bolsonaro recomendou diversas vezes o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina como formas de tratamento contra o novo coronavírus. Contudo, essas drogas não têm eficácia comprovada para essa infecção e é comprovado que o paciente pode sofrer efeitos colaterais com o seu uso. Como explicado acima, há diversos estudos que mostram que esse remédio é ineficaz no tratamento contra o novo coronavírus.
Em nota, a Sociedade Brasileira de Arritmia Cardíacas (Sobrac) informou que a hidroxicloroquina pode ocasionar alterações cardíacas e pode ter tanto um efeito antiarrítmico quanto provocar o surgimento de arritmias graves. A bula do medicamento recomenda cautela para o seu uso em pacientes com disfunções hepáticas (do fígado) ou renais (dos rins), ou que estejam tomando medicamentos capazes de afetar esses órgãos. Além disso, o uso é contraindicado para grávidas e crianças menores de seis anos.
“Tem dado certo. A hidroxicloroquina, a azitromicina, ivermectina, a Anitta, zinco, vitamina D têm dado certo [no tratamento da Covid-19]
Presidente Jair Bolsonaro (sem partido), durante live em seu canal no YouTube em 14 de janeiro de 2021
FALSO É falso que os medicamentos citados por Bolsonaro tenham efeito comprovado no tratamento da Covid-19. A Lupa já mostrou que o uso da cloroquina em pacientes internados com a doença não trouxe benefícios, como a redução na letalidade ou no tempo de internação. Além disso, efeitos colaterais como a arritmia cardíaca vêm sendo observados em muitas pesquisas, levando a Associação Médica Americana a emitir um comunicado pedindo que o uso da cloroquina fosse limitado a estudos clínicos e dentro de hospitais, sob rigoroso controle.
A azitromicina é um antibiótico que pode ser usado contra infecções bacterianas secundárias em casos de Covid-19, mas não atua diretamente contra o vírus causador da doença.
Também não existe comprovação científica que sustente a recomendação de ivermectina, uma medicação usada contra piolhos, como prevenção ou tratamento da Covid-19. A epidemiologista e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Ana Luiza Curi Hallal, explica que existe uma diferença entre o uso de medicamentos como a cloroquina e a ivermectina pré-exposição, ou seja, quando se toma para evitar contágio, e o uso como tratamento precoce, ou seja, por pessoas que tiveram contato com alguém que testou positivo para a doença e busca uma terapia para evitar que a infecção evolua para um quadro mais grave.
“Em ambos os casos, estudos mostraram que não existem vantagens em usar cloroquina ou ivermetcina. O conhecimento evoluiu ao longo dos últimos meses e as dúvidas que tínhamos lá em abril e maio não são as mesmas. Na época, os estudos estavam começando e hoje evidenciam que esses medicamentos não previnem a Covid-19 e nem fazem com que a doença evolua menos”, afirma.
Como explicado pela Lupa, a ivermectina passou a ser disseminada como possível tratamento da doença depois que um estudo, publicado na Antiviral Research, indicou que a droga foi capaz de inibir a replicação do Sars-CoV-2 in vitro. Apesar disso, a OMS excluiu a ivermectina do projeto Estudo Solidariedade, uma iniciativa co-patrocinada para encontrar um tratamento efetivo para COVID-19, porque “estudos sobre ivermectina tinham um alto risco de viés, muito pouca certeza de evidências, e as evidências existentes eram insuficientes para se chegar a uma conclusão sobre benefícios e danos.”
Anitta é o nome comercial da nitazoxanida. Não há nenhum estudo publicado em revista científica que comprove a eficácia da ivermectina ou nitazoxanida contra Covid-19, assim como não há comprovação sobre o zinco ou a vitamina D.
Chico Marés , Ítalo Rômany , Marcela Duarte , Natália Leal e Nathália Afonso
Benito Salomão: Crescer, Estabilizar, Preservar e Distribuir
Este é o meu primeiro artigo de 2021 e também o meu primeiro artigo desta década que se inicia agora. Para mim simbólico porque em 2020 completei 10 anos desde meu primeiro artigo de jornal publicado em 22 de setembro de 2010. Ao contrário do que imaginava quando eu me lancei neste desafio de dialogar com o público sobre os grandes temas nacionais, os desafios do Brasil se ampliaram em muito. Na passagem da década de 2000 para a de 2010, o Brasil não apresentava os agudos problemas fiscais, ou a exacerbação das desigualdades e era a 6ª economia mundial. Era ainda considerado uma potencia ambiental e uma nação capaz de influenciar decisões internacionais como as missões de pacificação no Haiti e as negociações sobre o programa nuclear do Irã.
Dez anos se passaram e o Brasil é hoje a 12ª economia mundial e tem a difícil missão de reverter a trajetória de exacerbação das desigualdades, da pobreza, da miséria e da fome em um contexto de estabilização fiscal. As soluções perpassam por uma conciliação política aparentemente distante de se alcançar sobre a infeliz liderança de Jair Bolsonaro.
O título deste artigo resume bem os desafios a serem enfrentados nesta década que se inicia.
Crescer porque ao longo da década passada a taxa média de crescimento da economia brasileira foi próxima de 0%, o que indica um per capita negativo. O Brasil tem hoje um PIB per capta de igual magnitude ao que tinha em 2007, ou seja, todos (ou quase todos) se tornaram mais pobres. A melhor literatura que estuda o desempenho de longo prazo das economias atribui esta capacidade ao formato institucional. As instituições criam incentivos e os incentivos estimulam os agentes econômicos a pouparem e, portanto, acumularem capital (físico ou humano) e o processo de acumulação de capital dirige, ao lado dos aumentos de produtividade, o desempenho das economias. Para que o país volte a crescer é preciso que volte a poupar e para tanto é preciso de instituições estáveis que deem previsibilidade e segurança às relações econômicas.
Estabilizar porque, antes de mais nada, as instabilidades macroeconômicas desestimulam a poupança e o investimento. O Brasil tinha uma dívida pública de 51% do PIB em dezembro de 2013, em 2020 este endividamento segue para 92% do PIB. Esta trajetória de dívida pública que praticamente dobrou em 7 anos tornam as incertezas quanto a solvência do governo ainda mais fortes. Não se pode vislumbrar um futuro de médio prazo que não contemple volatilidade na taxa de câmbio; pressões inflacionárias; elevações da carga tributária e também da taxa de juros.
Preservar devido às características do capitalismo do século XXI. Por várias razões. Primeiro, os setores industriais de grande produtividade e de fronteira científica são, por definição, sustentáveis. Isto porque são setores relacionados a energias renováveis (baixo carbono, telecomunicações, inteligência artificial, nanotecnologia que dão escala à produção, poupando recursos. Investir em um padrão de desenvolvimento poluente é insistir em uma economia de segunda revolução industrial, de baixa produtividade e alto custo. Se o Brasil não for capaz de abandonar o padrão tradicional de crescimento e adentrar na quarta revolução industrial, conciliando isto com um padrão ambiental rigoroso, não será possível recuperar o crescimento perdido.
Por fim distribuir. Em uma análise retroativa de longo prazo, o padrão de desenvolvimento do milagre econômico (anos 1970) foi calcado no crescimento com concentração de renda. A partir da promulgação da Constituição dita cidadã, o padrão foi deslocado para a distribuição sem crescimento. O desafio desta década é crescer e distribuir simultaneamente. A distribuição aqui precisa assumir uma conotação mais ampla do que a simples mitigação da fome e da pobreza. Para tanto é preciso mais do que políticas de transferência de renda aos moldes do Bolsa Família ou do Auxílio Emergencial, é preciso educar centenas de milhares de brasileiros. É preciso dar a eles a possiblidade de um futuro melhor do presente, com melhores empregos, melhores condições de vida o que só será possível investindo pesadamente em educação de base.
Mas como distribuir em um cenário de insuficiência de recursos públicos por esgarçamento da situação fiscal do país? É preciso rever privilégios, sobre isto, retomo em artigo futuro. No momento desejo a todos um feliz ano novo e uma década nova mais promissora do que a que vivemos até aqui.
*Benito Salomão é economista.
Ribamar Oliveira: Um país viciado em subsídios
Só com o setor automotivo, o gasto será de R$ 5,9 bi
O lamentável comunicado da empresa Ford, de que vai encerrar suas atividades produtivas no Brasil depois de mais de um século, recoloca uma questão essencial para os dias de hoje, em que o setor público está quebrado, como informou o presidente Jair Bolsonaro, referendado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Até quando a sociedade brasileira vai conviver com um nível tão elevado de subsídios ao setor produtivo, estimados pela Receita Federal em R$ 307,9 bilhões neste ano, pouco abaixo de 4% do Produto Interno Bruto (PIB). Somente com o setor automobilístico, a previsão que consta da proposta orçamentária de 2021 é de um gasto de R$ 5,9 bilhões.
O gasto tributário ocorre quando o Poder Público concede anistia para determinada empresa ou setor, quando adia o pagamento de impostos ou contribuições, quando concede isenções de caráter não geral, quando reduz a alíquota de um tributo ou muda sua base de cálculo para conceder um tratamento preferencial a um grupo de contribuintes específico. Nestes casos, há uma renúncia de receita. Ou seja, o governo deixa de arrecadar.
Bolsonaro disse que a Ford não informou o verdadeiro motivo de sua saída do Brasil. Segundo o presidente, a empresa americana deixou o país porque o governo não aceitou dar a ela mais subsídios. Ele afirmou que, ao longo do tempo, a empresa recebeu R$ 20 bilhões dos cofres públicos sob a forma de incentivos. A verdade é que, desde que a indústria automobilística se instalou por aqui, ela fez pressão contínua sobre os dirigentes do país por benefícios tributários e creditícios que lhe garantissem a rentabilidade.
Dados da Receita Federal mostram que, de 2011 a 2020, o gasto tributário com o setor automotivo alcançou R$ 42,5 bilhões em valores correntes ou R$ 50,2 bilhões a preços de dezembro de 2020. Se a previsão para este ano for incluída na conta, o total sobe para R$ 48,5 bilhões, em valores correntes, ou R$ 56,1 bilhões, a preços de dezembro de 2020. O valor é quase duas vezes o que o governo gasta por ano com o programa Bolsa Família, que atende mais de 14 milhões de famílias carentes.
As empresas do setor automobilístico de qualquer região podem usufruir do programa Rota 2030, que prevê a dedução do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) do valor correspondente à aplicação da alíquota do IRPJ e da CSLL sobre até 30% dos dispêndios realizados no país, desde que sejam classificáveis como despesas operacionais e aplicados em pesquisa e desenvolvimento. Adicionalmente, podem realizar, com isenção, a importação de partes, peças, componentes, conjuntos, subconjuntos, acabados e semiacabados, e pneumáticos, todos novos e sem capacidade de produção nacional equivalente, destinados à industrialização de produtos automotivos.
As empresas montadoras e fabricantes de veículos automotores instaladas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste fazem jus a crédito presumido do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) como ressarcimento do PIS/Pasep e da Cofins, desde que apresentem projetos que contemplem novos investimentos e a pesquisa para o desenvolvimento de novos produtos ou novos modelos.
Vale lembrar que esses são apenas os gastos tributários federais. Muitas dessas empresas receberam vultuosos benefícios estaduais e municipais, desde vantagens relacionadas ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) até doações de terrenos para a instalação de suas unidades produtivas.
A montanha de subsídio não foi suficiente para evitar a atual crise por que passa o setor automobilístico brasileiro. Ao contrário, como disse ontem o economista Marcos Lisboa, em entrevista à “Folha de S. Paulo”, a crise no setor vem de longa data e era previsível que várias unidades se tornariam inviáveis. “Só não eram antes pela quantidade de subsídios, então ficamos reféns de dar incentivos para preservar a produção de algo não eficiente no país”, afirmou.
O setor automotivo não é, no entanto, o único a receber uma enxurrada de subsídios. Na verdade, nem sequer ocupa as primeiras posições. Há benefícios tributários em profusão para todos. Medicamentos, produtos farmacêuticos e equipamentos médicos recebem subsídios, assim como embarcações, aeronaves, gás natural, todos os produtos da cesta básica, biodiesel, motocicletas e água mineral, para citar alguns. São subsídios com prazos indefinidos e, a maior parte deles, sem avaliações conhecidas sobre os seus resultados.
O gasto com benefícios tributários passaram de 2% do PIB, em 2003, para 4,5% do PIB em 2015. De lá para cá, o governo tem obtido pequenas reduções, pois eles ficaram em 4,3% do PIB em 2018. Para 2021, o governo estima que eles fiquem pouco abaixo de 4% do PIB, embora ainda não tenha explicado como isso ocorrerá.
Desde 2018, os parlamentares tentam forçar o governo a definir uma estratégia de redução dos subsídios. A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2019, por exemplo, determinou que o governo apresentasse um plano de revisão dos subsídios, com um cronograma de redução de cada benefício para, no prazo de dez anos, diminuir a renúncia de receita para 2% do PIB. O plano foi apresentado ao Congresso, mas, até hoje, não foi divulgado oficialmente.
Celso Ming: A desistência da Ford
As condições para esse desfecho vêm do excessivo protecionismo, da incapacidade de competir no mercado internacional e do alto custo Brasil
O fechamento das três fábricas da montadora americana Ford, depois de mais de cem anos de presença no Brasil, é um Boeing que despenca. Outros desastres o precederam. Em outubro do ano passado, a mesma Ford fechou a fábrica de caminhões de São Bernardo do Campo. E, em dezembro, a alemã Mercedes-Benz encerrou as atividades de sua montadora de automóveis em Iracemápolis, interior de São Paulo.
A indústria automobilística do Brasil sofre ainda mais do mesmo mal de que sofrem as montadoras dos Estados Unidos. Ficaram para trás em tecnologia, enfrentam custos excessivos, são mal administradas e dependem demais do balão de oxigênio fornecido pelos governos.
Já em 1990, o então presidente Collor se referia ao setor no Brasil como “produtores de carroças”. Bolsonaro agora está dizendo que a Ford quer tetas por onde se dependurar. Pelas contas do Ministério da Economia, em dez anos, as montadoras do Brasil foram alimentadas pelo governo federal em nada menos que R$ 43,7 bilhões. A essa conta precisam ser acrescentados outros favores velhos de guerra: isenções e créditos de ICMS, doações em terrenos e infraestrutura, proteção alfandegária, acordos comerciais que atuam como reservas de mercado...
Vejam o que o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama escreveu no seu último livro (Uma terra prometida) sobre as matrizes das montadoras lá instaladas: “O mal que aflige as três principais fabricantes americanas de automóveis (Ford, GM e Chrysler) é má administração, produtos medíocres, concorrência estrangeira, planos de aposentadoria com mais passivos do que ativos, custos altíssimos com saúde, dependência excessiva na venda de SUVs, com alta margem de lucro e grande consumo de gasolina”.
E não para por aí. Lá pelas tantas, deixa escapar um curto lamento: “Não consigo entender por que é que Detroit (capital da indústria de veículos nos Estados Unidos) não consegue produzir um maldito Corolla”. Se a situação por lá é essa, o que não dizer das filiais brasileiras?
Essas e outras razões explicam por que uma única montadora moderna, a Tesla, dos Estados Unidos, que só vendeu 500 mil carros elétricos em 2020, tem um valor de mercado superior ao de todas as montadoras do mundo reunidas, cálculo que inclui a japonesa Toyota, a sul-coreana Hyundai e também as três tradicionais americanas que se dedicam à tecnologia convencional de carro a combustão.
Não é a queda do consumo em consequência da covid-19 nem a concorrência agressiva dos modelos japoneses, chineses e sul-coreanos que derrubaram a Ford no Brasil. Esse é um enfarte programado há anos e que não vai parar apenas nesse caso. É de uma inutilidade atroz o que disse o vice-presidente Hamilton Mourão: que a Ford poderia esperar um pouco mais para tomar essa decisão. É pretender que a agonia seja prolongada.
Tem razão o governador da Bahia, Rui Costa (PT), quando afirma que o Brasil está virando um fazendão, querendo com isso advertir que a indústria de transformação, e não só a de veículos, está ameaçada.
Costa culpa a política industrial dos últimos cinco anos, querendo disso isentar o período petista no governo. Mas as condições para esse desfecho vêm de há mais tempo. Vêm do excessivo protecionismo, da incapacidade de competir no mercado internacional e, também, do alto custo Brasil: do sistema tributário escorchante, da infraestrutura insuficiente em rápido processo de sucateamento.
Se o diagnóstico é esse, o que teria de vir em seguida é claro. É preciso rumo. O País precisa saber o que quer. Se quer continuar a ter uma indústria que vive de espasmos graças a favores fiscais (estratégia que se mostrou fracassada); ou se quer uma indústria competitiva, capitalizada e independente. E têm de vir as reformas e a construção de um ambiente saudável, e não a artificialidade que está aí.
Ascânio Seleme: O Brasil de Bolsonaro afunda
País vive sob o comando de um alucinado
Os sinais estão espalhados por todos os lados. Só não vê quem não quer. O Brasil de Jair Bolsonaro desmorona. Todos os erros cometidos ao longo dos dois primeiros anos de seu mandato começam a ser cobrados. O problema é que a conta será paga por todos, inclusive por aqueles que têm pavor da figura presidencial, como você e eu.
Na terça-feira, o francês Emmanuel Macron expressou um sentimento com que a maioria dos líderes europeus concorda, o Brasil de Bolsonaro não é um país confiável. Como não se obtém um compromisso em favor do meio ambiente e da Amazônia, muito menos medidas nesse sentido, Macron propôs um boicote à soja brasileira. E sugeriu que se plante soja em solo europeu. Para Macron, continuar dependendo da soja brasileira seria “endossar o desmatamento da Amazônia”.
Talvez o presidente francês não ignore que os grandes produtores de soja brasileiros não cortam uma árvore nativa nem acendem um palito de fósforo nas florestas brasileiras há pelo menos 20 anos. Que os incêndios e as derrubadas de matas são feitas hoje em dia por madeireiros, garimpeiros, grileiros e pequenos produtores rurais, muitos deles de assentamentos de sem-terra. Mas há um símbolo nisso que precisa ser mantido.
Macron ataca esse símbolo, a política governamental brasileira que aceita e incentiva esses desmatadores, mesmo que sua contribuição para a economia nacional seja mixuruca perto da riqueza que geram os grandes produtores rurais. Estes, que já estavam sob enorme pressão graças a nosso bolsonarismo ambiental, agora ouvem do presidente de um dos dois maiores países agrícolas da Europa que é hora de reagir contra a soja nacional.
O relatório anual da Human Rights Watch (HRW), divulgado ontem, também ataca o frouxo combate do governo brasileiro ao desmatamento e às queimadas. Para os terraplanistas que cercam ou seguem cegamente sua excelência, a entidade deve ser ignorada porque é uma “ONG esquerdista”. Sobre Macron, devem fazer referência a sua mulher, como as que o nosso misógino presidente um dia fez, por isso ele também não deve ser levado em conta.
Agora, perguntem aos produtores rurais o que eles acham disso. O Ministério da Agricultura divulgou uma nota vaga dizendo que Macron estava enganado, que a soja brasileira é produzida de modo sustentável. Não foi assinada pela ministra Tereza Cristina e não se referiu ao relatório da HRW.
De outro lado, a Ford anunciou sua saída do Brasil. As razões devem ser as alegadas, por reposicionamento global da empresa, pelo movimento do mercado etc. Mas é evidente que o ambiente de negócios sob Bolsonaro não estimula qualquer argumento contrário. Macron, que está do outro lado do Atlântico, percebeu que este não é um país sério. Imagine, então, o que pensam os dirigentes da montadora que operam aqui dentro.
Se até o Banco do Brasil, joia do Estado nacional, orgulho provinciano de muitas gerações de brasileiros, anunciou um plano de demissão voluntária para acertar suas contas, pense como estão os outros bancos, as outras empresas que operam em solo pátrio, debaixo da incompetência governamental que conhecemos. Quem puder pular fora vai pular. Mesmo com algum prejuízo, a contabilidade mais adiante pode comprovar o acerto da saída.
Além das muitas deficiências nacionais (falta de infraestrutura, sobretudo ferroviária, produtividade baixa, barafunda tributária), o país agora vive sob o comando de um alucinado que só se ocupa de política. Pior, do lado escuro e sombrio da política. O mesmo relatório da Human Rights Watch acusou nominalmente Bolsonaro por tentar sabotar as medidas contra a Covid-19. A ONG afirma ainda que o governo mais espantoso que o país já viu incentiva a violência policial e desrespeita os direitos das mulheres, dos índios e de pessoas com deficiência.
O Brasil de Bolsonaro afunda no modo acelerado. Tudo o que ele puder fazer para jogar o país para baixo, vai fazer. A herança que deixará será maldita, essa sim. Para lá de maldita.
Ricardo Noblat: Bolsonaro deve preparar-se para colher o que plantou
A saída da Ford. Presidente francês quer soja europeia para não depender da brasileira
O ministro Paulo Guedes, da Economia, soube pela imprensa do fechamento das fábricas da Ford no Brasil e da retirada da empresa do país depois de mais de 100 anos. Foi a primeira montadora de automóveis a se estabelecer por aqui.
Guedes caiu na mais irresistível tentação que acomete os homens públicos – mentir ou exagerar. A primeira coisa que disse foi que o encerramento das atividades da Ford no Brasil destoa da forte recuperação econômica que vive o país.
Foi mais fundo o governador Rui Costa (PT), da Bahia, que sedia uma das fábricas que será fechada: “Não há planejamento. O que pensaram nos últimos cinco anos para aumentar os investimentos em tecnologia e industrialização? Nada.”
E concluiu com uma frase de efeito, mas não distante assim da realidade: “Estamos satisfeitos em nos tornarmos uma grande fazenda”. Bolsonaro preferiu criticar a Ford e esconder que seu governo aumentou os subsídios dados às montadoras.
No momento em que mais o governo hostiliza a China, o maior parceiro comercial do Brasil, chamando a Covid-19 de vírus chinês, desancando a vacina CoronaVac e rejeitando a tecnologia chinesa para o 5G, a quem ele pensa recorrer no caso da Ford?
O Ministério da Economia já entrou em contato com outras montadoras sobre a possibilidade de elas assumirem as fábricas da Ford que serão fechadas em Camaçari (BA), Taubaté (SP) e em Horizonte (CE). E uma das montadoras é a Chery, chinesa.
Quando a necessidade aperta, às vezes o realismo prevalece mesmo em governos ineptos. O céu não é de brigadeiro, nem mesmo de paraquedista afoito capaz de saltar para a morte só porque lhe mandaram saltar, e ele se vê como um herói.
A Ford vai embora porque atravessa uma crise empresarial faz anos dentro de uma crise maior que atinge outras marcas famosas de veículos. Só falta o governo brasileiro imaginar que se Donald Trump tivesse sido reeleito isso não aconteceria.
O amigo dileto de Bolsonaro nada fez pelo Brasil enquanto presidente dos Estados Unidos – por que faria caso tivesse derrotado Joe Biden? E por que Biden socorreria o Brasil se Bolsonaro apoiou Trump e justificou a invasão do Capitólio?
No início do seu governo, Biden pretende convocar uma reunião da Cúpula das Democracias. Haverá lugares nela para Bolsonaro e outros chefes de Estado marcadamente autoritários? É de duvidar que sejam convocados. Seriam estranhos no meio.
O mundo dito civilizado não gostou do que viu nos primeiros dois anos de governo Bolsonaro e perdeu a esperança de que os próximos dois anos sejam diferentes. O presidente brasileiro prepara-se para começar a colher o que plantou.
Emmanuel Macron, presidente francês, outro governante destratado por Bolsonaro que chamou sua mulher de feia, deu uma ideia do que possa vir quando disse, ontem, em Paris durante a cúpula sobre a defesa da biodiversidade:
– Continuar a depender da soja brasileira seria endossar o desmatamento da Amazônia.
Aperte os cintos, Bolsonaro.
A responsabilidade do governo nas mortes pela Covid-19
A mentira que custa vidas
Fora a vacina, não há tratamento precoce para a Covid-19. Quando o presidente Jair Bolsonaro diz que há, mente, e sabe que mente. Como mentem todos os seus acólitos que repetem o que ele diz. Simples assim. Mas parece que não cansam de mentir.
As mais recentes digitais da mentira governamental responsável por tantas mortes estão em ofício encaminhado à Prefeitura de Manaus, na última sexta-feira, onde o Ministério da Saúde pede para visitar as Unidades Básicas de Saúde da cidade.
Qual seria o propósito da visita? Difundir “o tratamento precoce como forma de diminuir o número de internamentos e óbitos decorrentes da doença”. Mas tratamento com base no quê? Está dito no ofício publicado pelo jornal Folha de S. Paulo:
“Aproveitamos a oportunidade para ressaltar a comprovação científica sobre o papel das medicações antivirais orientadas pelo ministério, tornando, dessa forma, inadmissível, diante da gravidade da situação, a não adoção da referida orientação”.
As medicações defendidas pelo governo não têm eficácia no tratamento do vírus. Mas, e daí? Na nota informativa 17/2020, o Ministério da Saúde sugere um combinado de cloroquina ou hidroxicloroquina com azitromicina.
O ofício enviado à Prefeitura de Manaus é assinado por Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e da Educação da Saúde. Ela tornou-se conhecida em 2013 por ter hostilizado cubanos que participavam do curso do programa Mais Médicos.
Em julho de 2020, Mayra escreveu nas redes sociais que os governadores e prefeitos de São Paulo eram os responsáveis pelas mortes por coronavírus que aconteceram em suas regiões por dificultarem “o acesso às medicações para tratamento da doença.”
Bolsonaro avalizou, ontem, a posição de Mayra e culpou o governador do Amazonas e o prefeito de Manaus pelo aumento de mortes por lá:
“Mandamos o nosso ministro da Saúde [ao Estado]. Estava um caos. Não faziam tratamento precoce. Aumentou assustadoramente o número de mortes. E mortes por asfixia, porque não tinha oxigênio. Deixaram o oxigênio acabar”.
Pedro S. Malan: 2021, ano 2 da era Covid, ano 3 da era Bolsonaro
É difícil imaginar o que seriam mais quatro anos do mesmo a partir de 2023
É Eduardo Giannetti quem aponta a importância de distinguir as três modalidades fundamentais de catástrofes humanas. Duas são bem conhecidas: os desastres puramente naturais, como terremotos e tsunamis, e as calamidades que o ser humano impõe ao próprio ser humano, como guerras e ataques terroristas. A terceira categoria é feita dos eventos que resultam da ação humana, mas não da intenção humana. Este artigo se propõe a discutir uma vertente deste último tipo de catástrofe: os desastres provocados por consequências não intencionais de ações e omissões de governos, combinados com excesso de complacência e desinteresse pela coisa pública por parte expressiva da sociedade.
Nos EUA, o húbris de Donald Trump encontrou sua nêmesis em Joe Biden. A arrogância, imoderação, ganância e audácia excessiva de Trump perderam a eleição para Biden, que personifica o oposto simétrico dessas características: ausência de arrogância e ganância, moderação, audácia sem excessos. Mas Trump resta um fenômeno cuja compreensão justifica esforço detido. Seus quatro anos culminaram, em 6 de janeiro, com a inacreditável invasão do Congresso por uma turba por ele insuflada. Bolsonaro, também ele um fenômeno, perde agora seu ídolo e modelo político. Talvez tenha registrado o repúdio claro das instituições norte-americanas ao inédito desvario de Trump e seus fiéis, cujo comportamento mostra absoluta falta de espírito democrático e deixa clara a propensão ao autoritarismo. Que poderia funcionar, como já funcionou, em dezenas de países desprovidos de freios, filtros e contrapesos institucionais, e de uma mídia profissional independente, como há nos EUA. E como esperamos manter no Brasil, apesar de tudo.
Nos últimos três quartos de século o Brasil teve, antes de Bolsonaro, oito presidentes eleitos diretamente pelo voto popular: Dutra, Getúlio, Kubitschek e Jânio, antes do regime militar, e depois deste, Collor, Fernando Henrique, Lula e Dilma. Desses oito, quatro não concluíram o mandato para o qual haviam sido eleitos. O placar está em 4 x 4 e será em algum momento desempatado por Jair Bolsonaro. Dos presidentes mencionados, apenas três (JK, FHC e Lula) transmitiram o cargo a outro presidente também eleito diretamente pelo voto popular. Apenas um (Lula) não só recebeu, como passou o cargo a alguém também eleito (eleita, no caso) pelo voto popular.
Dores do processo de consolidação de uma jovem democracia, dirão. Mas essa instabilidade, e a própria eleição de Bolsonaro, tem raízes profundas, que cumpre identificar, quanto mais não seja para tentar evitar em 2022 a reedição da polarização que se viu em 2018, na qual tanto se empenham Bolsonaro e seus seguidores fiéis, incluindo a ativa e agressiva militância das redes sociais.
Repetidas vezes comento neste espaço as aspirações do eleitorado e da sociedade desta que é a terceira maior democracia de massas urbanas do mundo. São demandas por infraestrutura física e humana (saúde, educação) e, crescentemente, por combate à pobreza e à desigualdade de renda e de oportunidades. A capacidade do poder público de oferecer respostas a todas essas demandas é sempre insuficiente. Nesse espaço de frustração, populistas e demagogos apresentam suas promessas eleitorais, fadadas ao descumprimento.
Marcus André Mello refere-se ao “lado da oferta” desse descompasso: a medida em que a capacidade de atender às aspirações e expectativas é limitada por problema político-institucional fundamental. A saber, a combinação de presidencialismo forte, multipartidarismo fragmentado, federalismo robusto e partidos fracos, que dificulta sobremaneira ao Poder Executivo qualquer esforço voltado para a construção de base de sustentação parlamentar capaz de aprovar sua agenda. A tarefa já é momentosa quando o governo federal é capaz de se coordenar internamente para, então, dialogar com o Congresso. Quando nem isso consegue, acentua-se a incapacidade de dar respostas adequadas. Aqui estamos, e é difícil imaginar o que seriam mais quatro anos do mesmo, a partir de 2023.
Em seu belo artigo de final de ano, Desafios para 2021 e depois, na Folha de S.Paulo, Arminio Fraga externou um pingo de otimismo: “As deficiências são tantas que há um amplo espaço para melhorias. Um (outro) governo, com visão e capacidade de execução, poderia acelerar bastante o crescimento”. Tendo a concordar. Mas para tal seria necessário que o eleitorado brasileiro estivesse preparado em 2022 para, pelo voto, tornar aquele o último ano da era Bolsonaro.
Como fez o eleitorado norte-americano ao barrar o ano 5 da era Trump. Desfecho alcançado a duras penas, em larga medida pela desastrosa condução do combate à covid-19. Até então Trump estava em marcha batida para a conquista do segundo mandato. Havia razões para crer que lograria êxito: o bom desempenho da economia, seu inegável apelo político-eleitoral e, não menos importante, as divisões do campo adversário, até a tardia consolidação em torno de Biden. Para países obrigados a lidar com aqueles que têm Trump como modelo, há relevantes lições a extrair. Ainda há tempo – mas não muito.
*Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC
Cláudio Gonçalves Couto: Como destruir um país
Se há algo que o Brasil bem fazia, era vacinar
A agenda do combate à corrupção culminou, em 2018, na eleição de Jair Bolsonaro. Trata-se de agenda negativa pois, mais do que propor um programa de governo, alardeia a necessidade de limpar o país. Um dos equívocos dessa agenda (não o único) está na suposição de que, feito isso, o resto se resolve sozinho, ou quase.
Contra “a roubalheira do PT”, o que alguns definiram como uma “escolha difícil” foi, para outros, uma decisão fácil: “Bolsonaro e os militares, pelo menos, não são corruptos”, diziam. Que o republicanismo não é atributo dessa turma já ficou evidente na tour de force em defesa do clã Bolsonaro e suas rachadinhas, bem como nas benesses concedidas a militares pela atual gestão - por exemplo, ganharam um novo plano de carreira, enquanto outros foram agraciados com a reforma previdenciária; e asseguraram um cabideiro de empregos federais suficiente para toda a seção de roupas da Riachuelo. Claro, sem esquecer do casamento tardio com o Centrão, apesar de todas as invectivas bolsonaristas e militaristas contra o que se chamava de “velha política”. Foi noutro dia que o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, cantarolou: “E se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão...”.
Se o combate à corrupção definitivamente não é objetivo desse governo, o que lhe resta? Talvez a agenda liberalizante de Paulo Guedes, diriam. Quanto a essa, durante o primeiro ano, o que avançou em termos de reforma se deveu não ao Executivo (que, quando muito, não atrapalhou), mas ao Congresso e, em especial, à coalizão legislativa liderada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Um número interessante diz respeito ao plano de privatizações: o governo Bolsonaro, com Salim Mattar à frente, privatizou menos do que a gestão petista de Lula, no mesmo espaço de tempo. Isso significa.
Se não é corrupção, nem economia, é preciso procurar noutros lugares. Certamente o governo levou adiante seus objetivos nas áreas ambiental (com a devastação promovida por Ricardo Salles), cultural (com o desmonte das políticas e a captura ideológica e sectária dos órgãos do setor), da violência (com a facilitação do armamento popular e a dificultação do rastreio de armas e munições), da política externa (com a transformação do Brasil num pária internacional e a multiplicação por mais de 17 vezes do gasto em publicidade governista no exterior), de direitos humanos e participação cidadã (com o desmonte dos órgãos participativos na administração federal, assim como o ataque a políticas de ação afirmativa e proteção a grupos vulneráveis), na educação (com o vilipêndio da autonomia universitária, nomeando-se dirigentes estranhos ao processo legal de escolha) e na saúde, pela sabotagem a políticas de combate à pandemia e pelo aparelhamento militarista do Ministério e da Anvisa.
Nota-se que temos, portanto, um governo que em vez de promover uma agenda positiva de políticas e reformas institucionais, opera para destruir o que foi longamente edificado. Não digo aqui construído desde o início da redemocratização, pois mesmo políticas e instituições geridas anteriormente a ela, obras inclusive dos governos da ditadura militar, têm sido devastadas.
Tendo em vista a situação que vivemos, em meio à pandemia, um aspecto merece destaque. O ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, acompanhado na pasta por seu exército de Brancaleone, tem conseguido a proeza de perturbar o funcionamento de uma das políticas sanitárias mais bem sucedidas do mundo em desenvolvimento e, por isso mesmo, uma das iniciativas mais longevas e positivas dos governos militares: o Programa Nacional de Imunizações (PNI), que remonta ao governo de Ernesto Geisel (aquele presidente que considerava Bolsonaro um “mau militar”).
O PNI foi edificado a partir da bem-sucedida Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), que operou sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde (OMS, esse órgão “globalista”, no léxico olavista do chanceler Ernesto Araújo) e da Organização Pan-americana da Saúde (Opas, um órgão que bolsonaristas creem estar a serviço da Cuba comunista). Essa campanha visava retirar o Brasil da condição de último país das Américas em que a varíola ainda era endêmica e foi levada a cabo pelo presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro mandatário do regime militar.
Embora artífice de uma ditadura fardada, Castelo e seus companheiros percebiam a importância de cooperar com organismos internacionais e combater doenças por meio da vacinação. Hoje, Bolsonaro, Pazuello e seus colegas de armas sabotam diuturnamente a vacinação. Ora pelas dúvidas lançadas pelo presidente sobre a necessidade ou a segurança de imunizantes desenvolvidos pela comunidade científica mundo afora; ora pela barbeiragem logística capitaneada por Pazuello, incapaz de adquirir seringas e agulhas para mais do que 2% da necessidade. E há ainda as declarações do presidente, afirmando que não se vacinará, ou do general da saúde, afirmando que não é preciso ansiedade diante de uma doença que (em conta subestimada) já dizimou 200 mil brasileiros e, nos últimos dias, abate mais de mil cidadãos a cada 24 horas.
Tendo em vista nosso histórico, expertise e estrutura (assegurada a partir de 1988 pelo SUS) em políticas de imunização, o Brasil deveria estar entre os primeiros países do mundo a iniciar a vacinação de seus habitantes. É difícil imaginar que qualquer um dos concorrentes de Bolsonaro em 2018 fosse capaz de tamanha proeza: procrastinar deliberadamente o início da vacinação num país que, desde os anos 1970, é exemplo internacional de boas políticas nessa área.
Em consonância com a agenda destruidora nos demais setores (apontados acima), a desconstrução que se opera na saúde, de forma geral, e nas políticas de imunização, particularmente, é o que melhor caracteriza o governo de Bolsonaro e seus generais.
Não se trata apenas de incompetência, embora se trate também dela; o que vemos levado a cabo por esse governo é um claro projeto de destruição.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
Zeina Latif: Levanta, sacode a poeira...
Desafio das instituições democráticas é evitar nova década perdida no País
A crise atual é grave, mas será ainda mais perversa se não tirarmos lições dos erros e também dos acertos.
Começando pelos acertos, o Legislativo não ficou paralisado. Além das medidas anticrise, foram aprovadas reformas – marco do saneamento básico, lei de licitações, nova lei de falências – e outras tantas avançaram – lei do gás, marco legal de cabotagem e independência do Banco Central.
A Câmara, liderada por Rodrigo Maia, teve importante papel em frear centenas de iniciativas irresponsáveis, que iam desde suspender o pagamento de contas de consumo à proibição de cobrança de juros pelos bancos. Medidas que desorganizariam a economia e pesariam nas contas públicas. Agravariam a crise e deixariam um rastro de insegurança jurídica.
O Congresso tampouco deu ouvidos a recomendações equivocadas de política econômica, como a de permitir o financiamento dos gastos públicos com emissão monetária. A PEC do orçamento de guerra proveu maior poder de ação ao Banco Central de forma prudente. A aceleração recente da inflação serve de alerta contra propostas inadequadas para um país emergente com graves problemas fiscais.
Houve muitos acertos do Banco Central, no timing e no desenho das medidas para injetar liquidez no sistema monetário e, de forma inédita, elevar substancialmente a capacidade de empréstimo dos bancos, medida que ultrapassou R$ 1,5 trilhão. Além disso, teve participação nas políticas de socorro a empresas. Também merece destaque o avanço da agenda estrutural, como o lançamento do Pix – desconhecido por Bolsonaro. O prêmio internacional de “presidente de Banco Central do ano” recebido por Roberto Campos Neto diz muito.
Os bancos contribuíram para o bom funcionamento do mercado de crédito. O setor reagiu bem às políticas governamentais. Houve expressivo aumento da repactuação de dívidas e do chamado crédito direcionado, que inclui as medidas de socorro governamental, com destaque para o crédito a micro, pequenas e médias empresas.
Na recessão anterior, os bancos foram muito conservadores. A frágil situação das empresas foi agravada pela falta de crédito, aprofundando a crise. Lições foram aprendidas. O aumento do estoque de crédito livre em novembro estava em 17% na comparação anual (25% na pessoa jurídica), ante recuo de 3% no biênio 2016-17 (queda de 12% na PJ).
Moral da história: aqueles muitas vezes vistos como “vilões” tiveram importantes acertos. Congresso, Banco Central e bancos foram parte da solução.
Já os erros foram bastante discutidos ao longo do ano, a começar pela gestão da saúde, que deixa uma sensação de que 2020 não acabou. Sem vacinação, a incerteza da recuperação da economia é grande, com graves consequências sociais. As medidas de socorro a indivíduos e empresas expiram, mas a doença, não.
O baixo crescimento torna a economia mais vulnerável a choques. Não convém se iludir com a projeção de crescimento de 3,4% em 2021 das instituições financeiras. Ela embute um quadro de estagnação, pois a cifra reflete basicamente o que os economistas chamam de carrego estatístico – uma combinação de base de comparação baixa (a média de 2020) e ponto de partida mais elevado por conta da recuperação no último semestre.
Do lado fiscal, as falas do presidente revelam grande incômodo com as restrições orçamentárias e, ao mesmo tempo, indisposição para avançar com reformas estruturais, mesmo em meio à crise, que costuma ser estímulo para enfrentar o custo político de reformas. Aumentou a chance de “furo” do teto de gastos, o que implicará mais incertezas, ainda que não a ponto de haver um choque de juros pelo BC este ano.
Apesar dos riscos para 2021, essa não é a maior preocupação, mas, sim, um governo que, ao não agir à altura dos desafios, coloca a cada dia mais um tijolo na construção de outra década perdida.
Impedir esse cenário é o grande desafio das instituições democráticas, contendo retrocessos, promovendo o debate público, reconhecendo erros e acertos e construindo alternativas políticas para o futuro.
*Consultora e doutora em economia pela USP
William Waack: Autoridade perdida
Bolsonaro está se empenhando para se tornar cada vez menos respeitado
Entre um país que está quebrado (Bolsonaro, na terça) ou que está uma maravilha (Bolsonaro, na quarta) há uma enorme diferença. Ela é igual ao tamanho da perda de credibilidade de quem faz essas afirmações de forma tão inconsequente. Um presidente que se gaba num dia de ter poder para quase tudo, e no outro declara que não pode nada.
Por achar que para governar bastava ser engraçadinho com a claque à qual se dirige na porta do Alvorada – além de animador de auditórios virtuais –, Bolsonaro arriscou a credibilidade e perdeu a autoridade. Do ponto de vista formal (do relacionamento entre os poderes, por exemplo), a autoridade do presidente já vinha sendo encurtada desde o primeiro dia de mandato pela incapacidade dele de liderar e se articular frente ao Legislativo e ao Judiciário.
Em outras palavras, a caneta do presidente tem menos tinta hoje do que há dois anos. Mas a autoridade política, subjetiva, se deteriorou mais rápido ainda com a pandemia. Uma coisa é ser falastrão diante de desafios da política, como os de levar adiante reformas estruturantes, desatar os nós da economia, derrubar o governo da Venezuela, peitar os críticos internacionais das políticas ambientais, prometer maravilhas e por aí vai.
Outra coisa completamente diferente é ser falastrão diante de uma crise sanitária sem precedentes na memória de qualquer geração atual, em escala planetária. Cabe não confundir autoridade com popularidade, embora em ocasiões uma coisa tenha influência sobre a outra. A autoridade de Bolsonaro que foi embora é preciosa: é aquela atribuída a quem se confia ser capaz de ajudar a resolver uma crise aguda de vida ou morte para milhares de pessoas.
Ao tratar assuntos (pandemia), pessoas (adversários políticos), instituições (chefes de outros poderes), eventos externos (eleições em outros países) com declarado desprezo ou desrespeito, pelos fatos e pela ciência, o presidente brasileiro em boa parte incentivou a atmosfera atual, na qual a ele se dá pouco respeito. De novo, estamos diante de um fator político difícil de quantificar, mas palpável: a ridicularização do personagem político, como acontece hoje com Bolsonaro, é um indício claro de perda de autoridade.
Dela ele precisará bastante se for capaz – há uma aparente unanimidade no mundo político de que ele não será – de proceder às difíceis escolhas que tem pela frente para, por exemplo, equilibrar as contas públicas ao mesmo tempo garantindo uma renda mínima e uma alta taxa de investimentos. Bolsonaro vacilou diante de qualquer decisão abrangente até aqui, uma característica detectada pelo apurado olfato das feras do Centrão, em que está depositada no momento o que existe de autoridade política do presidente.
Não se pode criticar políticos, como Bolsonaro, que confundem índices de popularidade com autoridade. De fato, é difícil governar sem uma ou sem outra, em qualquer lugar. São fatores reais no mundo da política. Da mesma maneira, não se pode condená-los simplesmente pelo comportamento tão normal assumido por eles, que é aderir ao curto prazo deixando a visão de longo alcance para um eterno “depois”.
Bolsonaro sacrificou autoridade em busca de popularidade efêmera e volátil. Corre o gravíssimo risco de acabar ficando sem as duas.
Paul Krugman: Como o Partido Republicano se tornou selvagem
Democracia dos EUA está sob ameaça de um tribalismo malévolo
Sempre houve pessoas como Donald Trump: egocêntricas, inclinadas à autopromoção, convictas de que as regras se aplicam apenas ao povinho, e de que aquilo que acontece ao povinho não importa.
Mas o moderno Partido Republicano não se parece com qualquer coisa que tenhamos visto no passado, pelo menos na história dos Estados Unidos. Se ainda existe alguém que não está totalmente convencido de que um dos nossos dois grandes partidos políticos se tornou inimigo não só da democracia, mas da verdade, os acontecimentos transcorridos depois da eleição deveriam bastar para eliminar quaisquer dúvidas.
Não é só porque a maioria dos republicanos da Câmara e muitos senadores republicanos estão apoiando os esforços de Trump para reverter sua derrota eleitoral, embora não existam provas de fraude ou de irregularidades generalizadas. Veja a maneira pela qual David Perdue e Kelly Loeffler estão conduzindo sua campanha no segundo turno das eleições para o Senado na Geórgia.
Eles não estão fazendo campanha em torno das questões políticas ou mesmo de aspectos reais do histórico pessoal de seus oponentes. Em lugar disso, afirmam, sem qualquer base nos fatos, que os oponentes são marxistas ou estão “envolvidos no abuso de crianças”. Ou seja, as campanhas para reter o controle republicano do Senado se baseiam em mentiras.
No domingo, Mitt Romney execrou as tentativas de Ted Cruz e de outros republicanos do Congresso de reverter o resultado da eleição presidencial, questionando: “Será que a ambição eclipsou os princípios”? Mas que princípios Romney acredita que o Partido Republicano defende, nos últimos anos? É difícil ver qualquer coisa que embase o comportamento recente dos republicanos a não ser a busca de poder de qualquer que seja a maneira.
Em 2003, escrevi que os republicanos haviam se tornado uma força radical, hostil aos Estados Unidos em sua forma atual, e que potencialmente ambicionavam criar um Estado de partido único no qual “as eleições sejam apenas uma formalidade”. Em 2012, Thomas Mann e Norman Ornstein alertaram que o Partido Republicano “não se deixa influenciar pelo entendimento convencional dos fatos” e “desconsidera a legitimidade da oposição política”.
Quem se surpreende diante da avidez de muitos integrantes do partido por reverter os resultados de uma eleição com base em acusações especiosas de fraude simplesmente não estava prestando atenção.
Mas o que propele a queda dos republicanos à escuridão?
Será uma reação populista à elite? É verdade que existe ressentimento com relação à mudança na economia, que privilegia as áreas metropolitanas com populações de nível de educação elevado, em detrimento das áreas rurais e das cidades pequenas; Trump recebeu 46% dos votos, mas venceu a eleição em condados que representam apenas 29% do PIB (Produto Interno Bruto) dos Estados Unidos. Existe uma forte reação adversa dos brancos à crescente diversidade racial do país.
Mas os últimos dois meses representam uma lição prática sobre até que ponto a ira das “bases” na verdade é orquestrada pelas lideranças. Se uma grande parte da base republicana acredita, sem qualquer fundamento, em que a eleição foi roubada, isso acontece porque os líderes do partido vêm repetindo essa acusação. Agora os políticos mencionam o ceticismo generalizado quanto aos resultados da eleição como motivo para rejeitar o resultado –mas foram eles mesmos que conjuraram esse ceticismo, do nada.
E o que é notável, se estudarmos os antecedentes dos políticos que fomentam o ressentimento contra as elites, é o quanto muitos deles são privilegiados. Josh Hawley, o primeiro senador a declarar que objetaria à certificação dos resultados da eleição, protesta contra a elite, mas se formou na Universidade Stanford e na Escola de Direito de Yale. Cruz, que hoje lidera os esforços para subverter a eleição, tem diplomas de Princeton e Harvard.
O ponto não é que eles sejam hipócritas, e sim que não se trata de pessoas que tenham sido maltratadas pelo sistema. Assim, por que parecem tão dispostos a derrubá-lo?
Não acredito que seja apenas por serem cinicamente calculistas, ou que estejam fingindo para satisfazer as bases. Como já afirmei, na verdade é a base que está seguindo orientações da elite do partido. E a loucura dessa elite não parece ser apenas fingimento.
Meu melhor palpite é de que estamos contemplando um partido que se tornou selvagem –que cortou o contato com o resto da sociedade.
As pessoas comparam o Partido Republicano ao crime organizado ou a um culto, mas para mim os republicanos se parecem mais com os meninos perdidos de “O Senhor das Moscas”. Eles não recebem notícias do mundo externo, porque suas informações vêm de fontes partidárias que simplesmente não reportam fatos inconvenientes. Não estão sujeitos a supervisão adulta, porque, em um ambiente polarizado, há poucas disputas competitivas.
Assim, eles cada vez mais olham apenas para si mesmos, e se engajam em esforços cada vez mais absurdos para demonstrar sua lealdade à tribo. O partidarismo deles não se relaciona a causas, ainda que o partido continue comprometido com o corte dos impostos dos ricos e com punir os pobres; o objetivo é afirmar o domínio daqueles que estão por dentro, e punir quem fica de fora.
A grande questão é por quanto tempo os Estados Unidos na forma que conhecemos serão capazes de sobreviver diante dessa tribalismo malévolo.
A atual tentativa de reverter o resultado da eleição presidencial não terá sucesso, mas já se estendeu por muito mais tempo e atraiu muito mais apoio do que qualquer qualquer pessoa previa. E a menos que alguma coisa aconteça para romper o domínio das forças inimigas da democracia e da verdade sobre o
Partido Republicano, um dia elas terão sucesso em matar o experimento americano.
* Paul Krugman é prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.
Tradução de Paulo Migliacci