crise política
Míriam Leitão: STF se enfraquece e vota para evitar crise entre poderes
Mais importante do que o resultado da decisão do Supremo Tribunal Federal na discussão de ontem é constatar o nível de tensão institucional a que o país chegou. O Supremo está dividido, o Senado fez alertas prévios ao STF sobre a natureza do que ele não aceitaria. O relatório em defesa do presidente Temer acusou o Judiciário de se “mancomunar” com o Ministério Público contra os políticos em geral.
Houve um tempo em que se tinha a impressão, na economia, de que o fundo do poço não chegava nunca. O PIB caía em queda livre e não parecia ter piso. Na política, a sensação que se tem é de que a tensão se eleva cada vez mais. Não parece haver teto. Políticos estão se alinhando, por cima até das mais graves divisões, para construir uma coalizão contra as investigações de corrupção.
O deputado Bonifácio de Andrada não tem maior expressão, portanto, o que ele disse no relatório não teria peso se não fosse o fato de que representa também o pensamento do próprio presidente. E lá foi feita a acusação de que o Poder Judiciário conspira com o MP contra os políticos. É mais um dos sinais de esgarçamento da relação entre os poderes.
O que estava em debate ontem era uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, impetrada pelo PP, PSC, Solidariedade, de 2016, sobre o poder de o STF decretar medidas cautelares contra parlamentares sem ouvir o Congresso. Não era o caso Aécio. Mas teria repercussão direta sobre o presidente do PSDB. Por isso, o que estava em jogo era se o Supremo daria, ou não, mais um passo em direção ao confronto com o Senado.
Quando o ex-senador Delcídio do Amaral, então líder do PT, foi preso, o Senado protestou, mas autorizou. Quando o próprio senador Aécio foi afastado em maio, pela decisão do ministro Edson Fachin, houve protestos mas a decisão foi acatada. Em junho, o ministro Marco Aurélio acabou revogando essa decisão de Fachin. Outros episódios foram absorvidos, como o que aconteceu com o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha.
O caso mais estranho de todos foi o da decisão do ministro Marco Aurélio Mello de afastar Renan Calheiros da Presidência do Senado em dezembro do ano passado. Renan desacatou o Supremo, e o STF recuou da decisão na votação do plenário. Naquele momento, como agora, a Corte temia provocar crise institucional e preferiu se dividir e recuar. Naquele episódio, o ministro Marco Aurélio tinha tomado uma decisão sob um argumento cristalino: o presidente do Senado está na linha de sucessão presidencial, um réu não pode ocupar a Presidência, logo, Renan, depois de ter se tornado réu, não poderia mais ocupar o cargo. O STF fez um estranho contorcionismo e optou por mantê-lo na Presidência da Casa, mas retirando dele a possibilidade de vir a ocupar a presidência da República. Fez uma cirurgia impossível nas atribuições do cargo.
Agora em setembro, a primeira turma decidiu novamente pela suspensão do mandato do senador Aécio, seu recolhimento noturno e a apreensão do passaporte. Elevou-se então a tensão com a reação forte do Senado. Em sua defesa, o senador tem dito que na conversa gravada pelo empresário Joesley Batista ele estava apenas negociando a venda de um apartamento. Existem empresas especializadas em vendas de imóveis e corretores para isso, mas mesmo quando se dá uma transação direta não se paga em dinheiro vivo, nem o pretenso vendedor avisa que o intermediário tem que ser um “que a gente mate antes”. Enfim, aquela conversa é absolutamente explícita. Não se trata de um negócio comum entre vendedor e comprador de imóvel. E a imunidade do mandato não pode ser invocada em indícios de crime comum. O mesmo Senado que protege o senador Aécio Neves não protegeu o ex-senador Delcídio do Amaral. A ordem judicial que tem que ser cumprida por qualquer cidadão pode ser desrespeitada se o cidadão se chamar Renan Calheiros.
Mais relevante do que o resultado da votação de um dia no STF é constatar que a interpretação da lei no país muda conforme a pessoa em questão. O STF votou ontem temendo uma crise institucional, e com o voto de minerva da presidente do Supremo. Essa não é a melhor forma de fazer prevalecer o Direito.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Murillo de Aragão: Coragem e covardia
Montaigne, além de escritor e filósofo, foi um jurista e político que viveu no século XVI. Mesmo século de Leonardo da Vinci, Machiavelli e Martim Lutero. De certa forma, ele conheceu alguns brasileiros. Em 1562, Montagne conversou, com ajuda de tradutores, com três índios tupinambás que foram à França a convite do rei. Ao perguntar o que considerava admirável no mundo que estavam conhecendo, os índios responderam que viram uns com muito e outros com nada e os sem nada, complacentes com os ricos. Talvez esse encontro tenha influenciado Montaigne a acerca de seu entendimento sobre coragem e covardia.
Certa feita, invoquei Machiavelli em uma suposta passagem sua por Brasília. Hoje imagino se Montaigne passasse pela Capital Federal. O que iria achar da conduta dos homens púbicos do país em meio à crise institucional que tortura o país frente a que pensava sobre coragem e covardia. Homem rico, gostava de viajar e dedicou-se a passear pela Europa recolhendo as observações que povoam seus famosos ensaios. Brasília certamente seria um lugar de grandes observações.
Montaigne foi muito popular em seu tempo e passou o final da vida escrevendo, cercado de livros. Erudito, amparava afirmações com transcrições de antigos filósofos gregos e romanos, bem como com episódios da Antiguidade. Dono de bom gosto, dizia que a vida só valeria a pena se fosse dedicada aos livros, aos amigos e às mulheres bonitas, de preferência inteligentes.
Um dos muitos temas abordados por ele foi a morte, e como encará-la. Disse ele: “Se a morte fosse um inimigo a evitar, eu aconselharia a empregar as armas da covardia.” Para Montaigne, a morte atinge o covarde e o corajoso, independentemente da atitude frente a ela. Por ser inevitável, para ele seria melhor enfrentá-la com coragem. Não é o que acontece nos dias de hoje no Brasil.
Em Brasília, Montaigne veria muitos que tentam se proteger da queda da casa – literalmente, a casa caiu –, ao invés de enfrentar o problema de frente. O mundo político, por seus vícios e por covardia, se apequena diante de seus equívocos e mal-feitos, da hiperjudicialização e das peripécias de um ativismo judicial desmedido. Caberia às lideranças políticas fazer um mea culpa e tentar tratar de reconciliar institucionalmente o país.
Porém, nada acontece. Falta coragem institucional. Deveriam buscar uma solução institucional. Afinal, estariam todos prejudicados – tanto covardes quanto corajosos. Já que o fim é inevitável, uma morte gloriosa seria o melhor caminho. Mas, como baratas tontas frente aos dribles de Neymar, escondem-se em subterfúgios, tecnicalidades e contradanças. Não vai dar certo. O país não pode ficar sangrando a espera que o tempo a tudo cure.
* Murillo de Aragão é cientista político
Míriam Leitão: relator tucano inocenta Temer, Lula e Dilma
Não bastou ao relator propor a rejeição da denúncia contra Temer. Ele estendeu sua defesa a Lula e Dilma. Disse que não há nada contra nenhum dos três. Culpados, na visão do deputado Bonifácio de Andrada, são apenas o Ministério Público e a Polícia Federal. Formou-se uma grande aliança em que um tucano tenta criar uma barreira de proteção em torno do presidente e dos ex-presidentes.
A se fiar no relatório do deputado Bonifácio, que vem prestando serviços aos governos desde o regime militar, tudo o que o Brasil tem vivido nos últimos tempos são apenas “ações espetaculosas”. Segundo ele, na denúncia, “a Presidência não é tratada com referida deferência que o cargo requer”. Quem não tratou a Presidência com o respeito que o cargo exige foi quem teve com um investigado pela Justiça, Joesley Batista, uma conversa como a que o presidente Temer teve naquela noite. Em mais uma inversão dos fatos, os investigadores é que são acusados de não respeitar a Presidência, e não o ocupante do cargo.
Num dia em que a Segunda Turma do Supremo conduziu uma libertação serial de presos investigados por corrupção, o Ministério Público em São Paulo denunciou os irmãos Joesley e Wesley por informação privilegiada e manipulação de mercado. Com as operações no mercado de câmbio, os irmãos Batista tiveram um ganho de R$ 100 milhões. Com a venda e recompra de ações da sua própria empresa, evitaram um prejuízo de R$ 138 milhões. Eles operaram no mercado logo após fecharem o acordo de delação premiada e durante o vazamento das informações. As denúncias contra diversas autoridades do país, incluindo o presidente da República, eram a própria informação privilegiada, porque sabidamente teria impacto sobre o preço dos ativos, como dólar e ações da própria JBS, de acordo com a denúncia. O dólar teve a maior alta em um dia desde 1999. A denúncia do MP foi apresentada pelos procuradores Thaméa Danelon e Thiago Lacerda Lopes.
Não é a primeira vez que os irmãos Batista aproveitam uma informação no mercado para as suas operações. O mercado sempre esteve cheio de histórias envolvendo o grupo em operações espertas no mercado de câmbio. Essa é a primeira vez que eles são apanhados por isso e que os indícios estão sendo investigados. Só mesmo a sensação de que ficariam impunes mais uma vez é que explica eles terem operado no mercado de câmbio imediatamente antes de circularem as informações de que o presidente Temer fora gravado.
“Assim, sabedores dos impactos que tais informações causariam na economia — quais sejam, uma inevitável queda nos valores das ações da JBS e alta do dólar — os réus resolveram se beneficiar financeiramente da instabilidade econômica que seria ocasionada com a divulgação dos termos de Colaboração Premiada e das provas apresentadas”, dizem os procuradores.
Os dois irmãos quando fecharam o acordo de colaboração eram investigados pela Sépsis, Greenfield, Cui Bono, Carne Fraca, Bullish e Lama Asfáltica. Por isso, Joesley decidiu executar o plano de gravar o presidente e assim negociar a impunidade que buscava. A motivação da pessoa que gravou já se sabe, mas isso não explica por que o presidente Michel Temer decidiu receber fora de hora e agenda uma pessoa que nem precisou se identificar na entrada de um palácio governamental. Além disso, teve com esse visitante noturno uma conversa suspeita.
Enquanto os irmãos Batista ficam um pouco mais cercados, outros começam a se safar devagar da prisão e de acusações. Já o governo continua funcionando apenas em torno do esforço de barrar essa denúncia. É enorme a lista das medidas necessárias para organização do Orçamento que estão paradas na Casa Civil à espera do fim da votação da denúncia: aumento da alíquota previdenciária do funcionalismo, cancelamento do reajuste dos cargos comissionados, limitação da ajuda de custo e auxílio-moradia, adiamento dos aumentos salariais para o funcionalismo.
E como tudo está parado lá, o Ministério do Planejamento não consegue terminar a revisão do Orçamento. O governo ficará este mês de outubro com tudo engavetado para que nada perturbe o projeto do presidente Temer de sobreviver a mais uma denúncia.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Cármen Lúcia: Vinte e nove anos atrás...
Vinte e nove anos depois da promulgação da Constituição, a nação brasileira demonstra igual ânsia para mudar. Quer mudar. Precisa mudar. Quatro horas da tarde de 5 de outubro de 1988. Brasil festivo. Promulgava-se a Constituição da República. Era chamada de nova, mote adotado na campanha indireta para presidente que precedera a convocação da Assembleia. Envelheceu aquela República? Ou a nova não passou de quimera que se gastou e se mostrou alheia ao batuque cívico das praças?
Vinte e nove anos atrás, aquele dia aparecia como página de uma “história abensonhada” (à maneira de Mia Couto): benção e sonho democrático. Um Brasil desabrochado novo na forma da Constituição promulgada.
Naquela tarde, em seu discurso de promulgação da Constituição, Ulysses Guimarães lembrou o início da caminhada constituinte brasileira: “Dois de fevereiro de 1987. Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A nação quer mudar, a nação deve mudar, a nação vai mudar.”
Vinte e nove anos depois, a nação brasileira demonstra igual ânsia para mudar. Quer mudar. Precisa mudar. E como naquele atestado democrático da fala do presidente da Assembleia Constituinte, a nação vai mudar. Mais: impõe mudanças ao Estado, à política nele praticada, à justiça (ainda demorada) nele prestada.
A vida é feita de mudanças. Algumas mostram-se urgentes. Foi assim antes. É assim agora. Andamos, mas os passos foram cambaleantes, nem sempre numa mesma direção, não tão vigorosos quanto a força e o reclame que a vida exigia.
A democracia oferece segurança ao processo transformador. Sem o direito para assegurar a concretização da ideia de justiça, prevaleceria o acervo de compreensões dispersas, impossibilitando-se a convivência entre as pessoas.
Todo mundo quer justiça. Mas o que é justo para um não é necessariamente o mesmo para o outro. Por isso é essencial o Direito. A ideia central de justiça para um povo, em determinado momento histórico, expressa-se em sua Constituição, de cumprimento obrigatório e igual para todos. Essa sua importância como fundamento do Estado e garantia do cidadão. Ela assegura que a nação mude na forma que lhe parecer adequado sem que o Estado impeça a transformação, sem ficar atrás da sociedade nem se lhe adiantar os passos.
O que socialmente maturado não está, juridicamente legitimado também não.
Vinte e nove anos anos depois, nuvens pesadas ensombreiam manhãs e tardes do Brasil. A noite não traz sossego. Tempo de incertezas.
Mas a semente de justiça continua, certa, a germinar nas normas constitucionais para permitir que floresça a dignidade e a identidade da cidadania brasileira.
A Constituição de 1988 tem o ser humano como seu ponto de partida e de chegada. A dignidade humana é seu centro e sua justificativa.
O Supremo Tribunal Federal guarda-a para que se resolvam tensões e turbulências. Para que retornem os tempos dos sonhos possíveis, que somente a democracia propicia. Por isso há que preservá-la. Porque o Brasil vale a pena. O brasileiro mais ainda. Todo ser humano vale. Por isso, zelar pela Constituição é uma benção a garantir os ideais realizáveis. A lembrança daquela tarde vinte e nove anos atrás é alento e desafio. Como a vida. Que poderá ser melhor. Depende de nós!
* Carmem Lúcia é presidente do Supremo Tribunal Federal
Rogério Furquim Werneck: A Lava-Jato e as perspectivas da economia
A 12 meses das eleições e enfraquecido, governo já não tem mais condições de assegurar o avanço da agenda de reformas
Quis o destino que, numa mesma semana de setembro, viessem a público o devastador depoimento de Palocci, sobre Lula, e a nova e desgastante denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o presidente Temer e dois de seus ministros mais próximos. A coincidência permitiu entrever quão complexos têm sido os efeitos da Lava-Jato e operações similares sobre a formação de expectativas acerca das perspectivas da economia.
A esmagadora maioria dos analistas políticos parece não ter dúvida de que, mais uma vez, o Planalto conseguirá bloquear, na Câmara, a denúncia da PGR contra o presidente. Mas, mesmo sustada, a segunda denúncia terá custado muito caro ao Planalto. Temer vem tendo de lidar com uma bancada governista cada vez mais voraz, empenhada em extrair o que pode de um governo patentemente fragilizado, seja por meio de novos esquemas de pilhagem do Erário, seja pela ampliação do seu controle sobre cargos-chave da administração federal.
Basta ter em mente, por exemplo, o novo e indefensável programa de refinanciamento de dívidas fiscais, cuja aprovação avança à revelia das autoridades fazendárias, ou os pleitos da bancada ruralista quanto a dívidas do Funrural. Ou, ainda, a agressividade com que o centrão vem pressionando o Planalto para que o atual ministro da Secretaria de Governo, responsável pela articulação do Executivo com o Congresso, seja substituído por um dos seus.
Por mais seguro que pareça estar sobre sua capacidade de bloquear a segunda denúncia na Câmara, o Planalto não parece disposto a correr riscos. Inclusive para se precaver contra novas delações. Só na terça-feira feira passada, o presidente Temer recebeu em palácio nada menos que meia centena de deputados federais.
A 12 meses das eleições e enfraquecido como está, o governo já não tem mais condições de assegurar o avanço da agenda de reformas fiscais no Congresso. A reforma da Previdência parece fadada a ser deixada para o próximo mandato presidencial. E o que de melhor se pode esperar, a esta altura, é que as contas públicas não se deteriorem ainda mais, na esteira da fragilização do Planalto.
Visto por este ângulo, haveria razões de sobra para que os mercados financeiros se tornassem mais pessimistas acerca das perspectivas da economia. Mas o que se viu nas últimas semanas foi o oposto. Os mercados ficaram mais otimistas.
É bem verdade que, fora do problemático quadro fiscal, as notícias no front estritamente econômico têm sido muito boas. Basta ter em conta, além da persistência de um ambiente externo favorável, o extraordinário sucesso do Banco Central no combate à inflação, a rápida redução das taxas de juros e a percepção de que a recuperação da economia poderá ser bem mais vigorosa do que se esperava.
Mas tudo indica que, por si sós, essas boas notícias não teriam sido suficientes para sustentar a onda de otimismo das últimas semanas, se a incerteza sobre o desfecho das eleições de 2018 ainda estivesse tão alta como estava há poucos meses.
O que parece ter feito enorme diferença foi a súbita e substancial redução desta incerteza, em decorrência de outro efeito importante do avanço das operações de combate à corrupção. O pessimismo quanto às possibilidades da política fiscal, no que resta do governo Temer, foi amplamente compensado pelo relativo otimismo que adveio da reavaliação das perspectivas da candidatura de Lula à Presidência em 2018, após o devastador testemunho do ex-ministro Antonio Palocci.
A incerteza sobre o desfecho da eleição presidencial continua alta. Ainda há muita água para correr debaixo da ponte. Mas a probabilidade de que, afinal, seja eleito um presidente comprometido com a continuidade do esforço de ajuste fiscal tornou-se bem maior do que parecia ser em meados deste ano. E maior ainda se tornará se a recuperação da economia for de fato tão vigorosa como promete.
É a isso que os mercados agora se agarram, ao arrepio do que ainda sugerem as pesquisas de intenção de voto.
* Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio
José Roberto de Toledo: Renovar é impreciso
Será o ‘Fundo Cívico RenovaBR’ o caminho para melhorar a representatividade?
Que melhorar muito a representatividade na política brasileira é a prioridade zero de qualquer reforma que mereça esse nome, não resta dúvida. Em um Congresso cuja renovação a cada quatro anos é a de prenomes (ou a adição de “Jr.”, “Neto” e “Bisneto” ao sobrenome), urgem mecanismos para eleger deputados que não sejam só herdeiros do poder. Será o “Fundo Cívico RenovaBR” o caminho?
Multimilionários do mercado financeiro e da publicidade parecem crer que sim. Prometem investir R$ 30 milhões do próprio bolso para selecionar, treinar e subsidiar 150 candidatos às eleições de 2018 – e, com sorte, eleger uns 50 deles. Deixando a questão legal para os parágrafos à frente, analisemos sua praticidade. A começar pelo que mais importa numa eleição: o dinheiro.
R$ 30 milhões para 150 candidatos é pouco, muito pouco, pouco mesmo. Na média, os 513 deputados eleitos em 2014 declararam (ou seja, caixa 1) ter arrecadado R$ 1,4 milhão. É sete vezes mais do que os candidatos do RenovaBR receberiam, a princípio. Essa diferença não é o único problema dos novatos.
A cada denúncia contra Temer, o presidente abre as portas do palácio (do Planalto, de dia; do Jaburu, à noite) para receber dezenas de deputados. E dos cofres, para os que provam lealdade e votam pela permanência de Temer no cargo. São bilhões de reais para executar emendas dos parlamentares ao Orçamento que viram obras e, logo, publicidade para suas campanhas à reeleição.
Somem-se as outras verbas públicas a que os incumbentes poderão ter acesso: o dinheiro do Fundo Partidário e o do tão sonhado por eles fundo eleitoral, a verba de gabinete da Câmara e funcionários pagos pelo Congresso mas trabalham nos Estados.
Sem contar o apoio dos vereadores, deputados estaduais, prefeitos e governadores de seus partidos. Não é à toa que haja deputados no 10.º mandato consecutivo e que são pais, irmãos, filhos, netos, bisnetos e tataranetos de deputados. São dinastias com cadeira cativa no Parlamento, umas desde Pedro 1.º.
Contra essa máquina do continuísmo os escolhidos pelo RenovaBR terão direito a treinamento em “campanha política, comunicação e autoconhecimento”, além de uma bolsa-candidato para se sustentarem. Uma estrutura comum de “inteligência política”, mídias sociais e assessoria de imprensa lhes prestará serviços. Basta? Obviamente, não.
Os apadrinhados precisarão fazer a sua parte. Devem representar a sociedade civil. Leia-se, vir de movimentos nascidos na esteira das manifestações de 2013 e 2015, como “RAPS”, “Renove”, “Onda Azul”, “Brasil 21”, “Agora!”, “Bancada Ativista”, entre outros. Diferentemente do MBL, cujo objetivo principal era sacar o PT do poder, esses movimentos não têm milhões de seguidores no Facebook nem costumam viralizar suas mensagens com facilidade.
Do que eles vão precisar, então? Dinheiro. De sete a dez vezes mais do que os R$ 30 milhões cogitados inicialmente pelo RenovaBR – se quiserem eleger uma bancada capaz de influenciar a próxima legislatura como Eduardo Cunha ou a JBS influenciaram a formação da atual. É dinheiro demais para ser arrecadado só com contribuições de pessoas físicas. Empresas doarão para o fundo? Ou vale a proibição de pessoas jurídicas financiarem candidatos?
Se renovar é preciso, o modo de fazê-lo é ainda impreciso. Se fosse nos EUA, o Fundo Cívico se chamaria Super PAC (literalmente, Comitê de Ação Política). Os PACs revolucionaram as eleições gringas: consagram e destroem candidaturas. Aqui, um deputado do PT antecipou-se ao lançamento do fundo e pediu que a Procuradoria Geral da República investigue o RenovaBR. Os pais do PAC serão colocados à prova antes de seus candidatos.
Murillo de Aragão: Leviatã
Não criamos o monstro chamado “Estado brasileiro”, cuja missão precípua é se alimentar e crescer para atender às necessidades do crescimento da burocracia. O monstro é que nos criou como nação. Fomos paridos das entranhas de um reino altamente burocratizado. O monstro pariu as capitanias hereditárias, as licenças e os alvarás. As filas e as senhas. Os despachantes. E o pistolão.
O monstro pariu bons empregos com belas aposentadorias e planos próprios de saúde, como aquele da Casa da Moeda, recentemente rompido por ser excessivo aos cofres públicos. O monstro também fez com que as verbas dos fundos de universalização das telecomunicações fossem usadas para pagar serviços odontológicos de funcionários públicos, ao invés de serem direcionadas para a finalidade a que se destinavam.
O monstro criou uma alegoria democrática que nos engana e cujos detalhes estão escondidos sob uma grossa nuvem de opacidade. O monstro pode ser mau e pode ser bom. Depende do ponto de vista. Como nação, transformamos a burocracia, para muitos, em meio de vida. Seja para quem cria a burocracia. Seja para quem facilita a burocracia. Seja para quem está na intermediação da venda de facilidades para contornar as dificuldades. Conforme a Operação Lava-Jato revela.
De acordo com pesquisa do IMD (International Institute for Management Development), o Brasil perde posições – pelo sétimo ano consecutivo – no ranking mundial de competitividade. Ocupamos uma vergonhosa 61a posição. É um país forjado para não ser estruturalmente competitivo. Na verdade, somos competitivos de forma oportunista. Como já fomos durante os ciclos da borracha e do café e, agora, em relação ao minério de ferro e à soja. Mas somos dramaticamente, fundamentalmente, não competitivos.
O dramático reside no fato de que poucos no mundo político enfrentam o Leviatã e muitos na sociedade não se dão conta do perverso domínio a que somos submetidos.
Não proponho a anarquia nem o Estado mínimo, e sim o Estado necessário e eficiente. Critico o Estado voltado para si mesmo em detrimento da sociedade. Ataco o Estado que serve ao corporativismo e sufoca a iniciativa privada e individual. Ataco o Estado hiper-regulado, que patrocina uma carga tributária insana e complexa, os maiores juros do mundo civilizado e uma legislação trabalhista que gera o desemprego.
Quando promovemos maior abertura ao capital privado nas concessões e quando buscamos reduzir a burocracia, estamos apenas arranhando o casco duro do Leviatã. Ainda falta muito para nos livrarmos dessa escravidão.
Critico o Estado voltado para si mesmo em detrimento da sociedade. Ataco o Estado que serve ao corporativismo e sufoca a iniciativa privada e individual.
Fernando Gabeira: Conversa em roda de amigos
Há sempre no ar uma certa nostalgia de um nome, um líder para o processo de renovação
Nas horas de folga, tenho conversado com amigos, quase todos preocupados com o Brasil. Alguns pensam até em se candidatar e contribuir com o processo. Por que não? Em todo o país há um apelo por renovar. Aos que tomam o caminho de concorrer a cargos públicos, lembro apenas que não basta uma troca de nomes. Com as mesmas regras do jogo, o sistema resulta em perversão.
Há ainda os que querem fazer algo, sem deixar o seu trabalho, só como eleitores. O que fazer? Sinceramente a melhor resposta é trocar ideias entre as pessoas que querem fazer algo. Dessa teia de relações, acabam surgindo os rumos e possibilidades.
Há sempre no ar uma certa nostalgia de um nome, um líder para o processo de renovação. No entanto, é é preciso seguir conversando, independente disso. Quanto mais amadurecida estiver a sociedade no seu desejo de renovação, quanto mais tiver clareza do que quer e não quer mais, mais fácil aparecer alguém para liderá-la. Não são necessárias qualidades extraordinárias.
Outra vantagem de uma sociedade mais informada é que pode trocar seus líderes com facilidade. Não depende de um salvador. A recente tragédia da esquerda brasileira foi também ter depositado todas as suas esperanças num líder. Ela não estava preparada para o ocaso de Lula e simplesmente não consegue admiti-lo.
Palocci descreveu, em sua carta, algo que já mencionei em alguns artigos. A necessidade de dar as costas às evidências, a transformação num movimento religioso que cultua o líder e o considera um perseguido apesar dos fatos. Nem sei se a expressão religiosa é adequada. Não faz justiça, por exemplo, ao budismo, que estimula o encontro da iluminação por um caminho próprio e afirma que ela está dentro de cada um.
Na história do budismo, houve momentos em que não havia Buda e, mesmo sem ele, um grupo de pessoas compreendeu todos os ensinamentos por contra própria. São tratados com admiração: os que chegaram ao conhecimento sem a ajuda de um grande mestre.
A política não dispensa lideranças. Mas as virtudes necessárias dependem do momento histórico. O fracasso do populismo de direita abriu caminho para líderes messiânicos de direita.
Lula é uma divindade para os adeptos, Bolsonaro é um mito para os seus. Naturalmente essa emoção domina milhares de pessoas. Mas é crescente o nível de informação da sociedade e, na medida em que amadurece, a tendência majoritária é não acreditar em mitos ou divindades políticas.
Durante alguns anos, presenciei a transformação que o mundo digital nos trouxe. No princípio, a cena política a considerou apenas algo que estava aí, fervilhando, mas correndo em paralelo, sem influenciá-la. Agora, os mecanismos de controle são muito maiores. O próprio governo Temer foi levado a mudar de posições por pressão da sociedade.
Outro fator positivo é o impacto da Lava-Jato. O processo de corrupção pode até continuar, mas hoje se está mais equipado para investigá-lo, e tanto políticos como empresários conhecem o alto risco dessas práticas. Se a maioria moderada conseguir impor um caminho, certamente terá de derrotar o populismo, os futuros luminosos, os amanhãs que cantam, o paraíso prometido. Mais informada e consciente, a sociedade poderá escapar de outras divindades que às vezes se apresentam como absolutas: o mercado e o Estado.
Sem um grande líder messiânico, sem soluções radicais mas apenas um esforço para reerguer o Brasil e deixar que siga os seus passos, a alternativa pode parecer até um pouco monótona. No entanto, não tenho visto ninguém se abalar, nos novos grupos e experiências que, às vezes, mostro na televisão, por ideias fantásticas, fórmulas revolucionárias.
A maioria das pessoas com quem falo está preocupada com a decadência do Brasil, querendo fazer algo para que o país não se derreta no pântano em que foi lançado. São jovens que chegam à política agora, em 2018, com uma grande compreensão de como as pessoas informadas podem influir no processo. Certamente estarão preparadas para concluir que o caminho de consolidar as conquistas será pela educação.
Talvez esteja terminando também, com tantos outras deformações, um tipo de político que não se importa com a educação, que depende de ignorância para se manter na carreira. Reconheço que isso é uma posição otimista: apoiar-se na clássica ideia de que o ser humano pode saber, logo tornar-se livre.
Segundo Karl Popper, existe também o polo contrário: o do descrédito na capacidade humana de achar a verdade. Esses polos estão sempre em confronto e dividem os que querem ampliar a democracia e os que, baseados na sua convicção pessimista, tendem para a busca de uma autoridade forte para evitar o pior. Se estivesse na conferência do general Mourão, aquele que admitiu a possibilidade de intervenção militar, concordaria com suas críticas aos políticos. No entanto, diria apenas que acredito na capacidade de resolvermos nossos problemas, sem recuar na democracia.
O ano que entra é o começo de um novo ato. Um oásis potencial para nossos olhos, voltados hoje para a sujeira do passado e a mediocridade do presente.
Luiz Werneck Vianna: Um imenso tribunal
Banir a atividade política é nos deixar entregues a um governo de juízes ou militar
Em outros tempos bicudos, não tão distantes desses que aí estão, celebrado poeta popular lançou a profecia de que, no andar da carruagem em que nos encontrávamos, iríamos tornar-nos um imenso Portugal. A predição não se cumpriu. Aliás, Portugal está muito bem, e as reviravoltas do destino nos conduziram a um lugar de fato maligno, convertendo-nos num imenso tribunal. Vítimas da nossa própria imprevidência, testemunhamos sem reagir a lenta degradação do nosso sistema político – salvo quando o Parlamento introduziu uma cláusula de barreira a fim de evitar uma malsã proliferação de partidos, a maior parte deles destituída de ideias e de alma, barrada por uma intervenção de fundo populista por parte do Supremo Tribunal.
A política, é lição sabida, quando não encontra nas instituições terreno que lhe seja próprio se manifesta em outros, inclusive naqueles criados para uma destinação que, por origem, não lhe deveriam caber. Recentemente, vimos como a intervenção da corporação militar que pôs fim ao regime da Carta de 1946, ao banir os partidos e as instituições de representação do povo, trouxe para si o monopólio da atividade política em nome da luta contra a corrupção e de uma suposta subversão comunista. Caberia a ela a missão de regeneração ética do Brasil e de assentar novos rumos para a modernização econômica do País.
Mas os militares não eram ingênuos nas coisas da política. Força decisiva na fundação da nossa República, tornaram-se desde então um poder moderador de fato, tendo acumulado longa experiência no trato com a nossa complexa realidade social e política – a trágica intervenção militar em Canudos serviu-lhes de amarga pia batismal e o tenentismo, nos anos 1920, de um processo de seleção dos seus quadros para o exercício do poder que lhe viria, parcialmente, com a revolução de 1930 e de forma plena com o golpe militar em 1964.
Com esse lastro, foram capazes de estabelecer bases sólidas para o regime autoritário que implantaram e alianças políticas que reforçassem seu domínio. Nessas alianças se mantiveram os seus princípios, em particular os que definiam como objetivos nacionais permanentes, não foram principistas, atentos às consequências e à realidade em torno. Sob essa orientação fizeram política com as oligarquias que a eles se associaram e as favoreceram para a realização de tópicos significativos de sua agenda de modernização capitalista do País – no caso, exemplar o agronegócio – e lhes assegurarem bases para sua permanência no poder. Com sua atenção à política, souberam reconhecer a hora da retirada quando seu regime se viu assediado por irrefreável onda de protestos vindos da sociedade civil e da oposição que lhe fazia o MDB no Parlamento, admitindo participar da transição que, mais à frente, nos traria a democracia da Carta de 88, que, por sinal, ora nos cumpre defender das ameaças que a rondam.
Hoje, mais uma evidência do desamor da nossa história pelas linhas retas – nascemos tortos, filhos quasímodos da combinação de uma institucionalidade política modelada nos princípios do liberalismo com a escravidão –, estamos novamente sob o risco de recair no domínio de corporações estranhas à política, no caso as das que se originam no Terceiro Poder, cujo gigantismo entre nós já extrapolou em muito os papéis que o notável jurista Mauro Cappelletti admitia como legítimo nas democracias modernas.
Com efeito, a atual invasão do Poder Judiciário sobre as dimensões da política e das relações sociais não encontra paralelo em outros casos nacionais. A categórica judicialização da política, que até há pouco designava uma patologia mansa, no caso brasileiro perdeu acuidade, pois se vive à beira de um governo de juízes, a pior das tiranias, visto que dela não há a quem recorrer. Não se trata agora de um juiz intervir com leituras criativas da lei em casos singulares, uma vez que seu objeto é a própria História do País que se encontra em tela – o Brasil necessitaria, na linguagem dos procuradores, secundada por vários magistrados, “ser passado a limpo”.
Tal operação, que lembra as malfadadas vassouras de Jânio Quadros, não separa alhos de bugalhos e deixa em seu rastro um território infértil para a política num país de mais de 200 milhões de habitantes que não pode prescindir dela para enfrentar suas abissais desigualdades sociais e regionais. Decerto que a chamada Operação Lava Jato tem produzido efeitos benfazejos e, nesse sentido, precisa ser preservada, desde que expurgada dos elementos messiânicos que a comprometem e têm caracterizado a ação de muitos dos seus protagonistas, inebriados pelos aplausos dos incautos e dos pescadores em águas turvas.
O gênio de Gilberto Freyre já nos tinha advertido de que a especificidade da civilização brasileira se caracterizava em pôr antagonismos em equilíbrio, tópica bem estudada por Ricardo Benzaquen de Araújo em seu belo Guerra e Paz. Aqui, a tradição e o arcaico têm convivido com o moderno e a modernização, e temos sabido tirar proveito dessa ambiguidade para forjar nossa civilização. Somos, pela natureza da nossa formação, compelidos às artes da dialética, e a ética puritana nunca medrou entre nós, que mantemos parentesco com o barroco – tema bem desenvolvido por Rubem Barbosa Filho em Tradição e Artifício (B.H, UFMG, 1998).
Entre nós, equilibrar antagonismos foi operação que coube à política, cenário bem diverso do caso americano, que, no celebrado argumento de Tocqueville, reduziu a um mínimo, pela feliz conformação da sua formação histórica, a intermediação dessa dimensão na vida social, dado que estaria animada desde sua origem por práticas de auto-organização. Banir ou suspender a atividade política a pretexto de moralizá-la é nos deixar no vácuo, entregues a um governo de juízes ou a uma recaída num governo militar, e esse é um desastre com que contamos tempo para evitar.
José Roberto de Toledo: República magistral
O Supremo Tribunal Federal cansou de ver juízes de primeira instância monopolizarem os holofotes. Em dois dias, autorizou ensino religioso em escola pública, desafiou o Senado e rachou em público. Só não se manifestou sobre conflito de interesse evolvendo seus integrantes. Chega de perder manchetes para juízos de primeira, como o que decidiu mandar a julgamento um adolescente que ousou levar câmera fotográfica a protesto.
Tucanaram a prisão do senador? A blague é óbvia, mas imprecisa. A decisão de três ministros da Primeira Turma do Supremo de afastar Aécio Neves (PSDB) do Senado e mandá-lo não sair de casa à noite é – pelo Código do Processo Penal (CPP) – medida cautelar diversa da prisão. Segundo juiz de carreira consultado pela coluna, é sentença “meio sem sentido para o caso em questão, mas não é invenção”. Está tudo lá no CPP.
No inciso 2º do artigo 319: “proibição de acesso ou frequência a determinados lugares (...) para evitar o risco de novas infrações”. No caso, o local de onde Aécio deve permanecer distante não é um estádio de futebol, mas aquele para o qual foi eleito, o Congresso. Afinal, também é prevista a “suspensão de função pública quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais” (inciso 6º).
Parlamentares – e os ministros mais loquazes do próprio tribunal – veem nisso uma usurpação de prerrogativas do Legislativo. Qual seria, então, a alternativa? O Supremo decretar a prisão do tucano? Mesmo irritados, os senadores devem levar o precedente em conta, não só pensando no destino de Aécio, mas na dúzia de colegas alvo de investigações por procuradores da República. Cutucar o STF e descumprir sua decisão pode iniciar uma batalha de represálias da qual muito senador haverá de se arrepender.
Ficar proibido de falar com outros acusados ou suspeitos – para assim não atrapalhar as investigações – também está previsto no artigo 319, inciso 3º (“proibição de manter contato com pessoa determinada”). Bem como entregar o passaporte (artigo 320).
Até a medida que mais provocou piadas na internet – “o que será dos bares do Leblon?” – consta no inciso 5º: “recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos”. E se ele foi afastado do trabalho pela mesma decisão e está, portanto, de folga? Deve ficar recolhido durante o dia também?
Todo comentarista de Facebook tem seu parecer sobre direito constitucional, todo tuiteiro tem sentença a respeito – agora, com o dobro de caracteres. Na magistral república brasileira, todo cidadão foi promovido de técnico de futebol a juiz. As mídias sociais se transformaram em um tribunal permanente – do que não escapam nem os próprios magistrados.
Pode um juiz ser avalista de empresa da qual é sócio em um empréstimo bancário? A questão é pertinente porque a lei da magistratura proíbe quem julga de exercer o comércio – pelas óbvias chances de ele se meter em um conflito de interesses. Por exemplo: cometeria o banco – que, por acaso, é parte em ações na corte onde o avalista atua – a imprudência de executar o aval?
Ou ainda: deve um juiz julgar réu que patrocinou empresa da qual o togado é potencial beneficiário de lucros e dividendos?
Tais questões provocam rebuliço apenas na corte digital. É mais fácil o Supremo comprar uma briga com outro Poder da República do que se debruçar sobre o próprio umbigo. Ministros intrigam-se na imprensa, trocam pescoções verbais em plenário, mas raramente julgam-se uns aos outros. E a condenação do Judiciário pela opinião pública? É pena genérica e coletiva. Não estão nem aí.
Merval Pereira: No último lugar
O que está em jogo é a classe política como um todo. É uma triste coincidência, e ao mesmo tempo uma explicação, que no mesmo dia em que o Brasil ficou em último lugar entre 137 países na confiança do público nos políticos, esses mesmos políticos se vejam às voltas com acusações de corrupção de todos os tipos, tendo chegado ao Palácio do Planalto formalmente a segunda denúncia contra o próprio presidente da República e seus principais assessores.
Também ontem, o Senado estava em polvorosa com a decisão da primeira turma do Supremo Tribunal Federal, que afastou novamente o senador Aécio Neves de suas funções e proibiu-o de sair à noite. O PT, inimigo figadal do PSDB, já anunciou que votará a favor do senador tucano se o Senado se pronunciar sobre a decisão do Supremo. E soltou uma nota que, a pretexto de preservar a Constituição, critica duramente Aécio mas defende que ele não seja afastado do cargo.
Da primeira vez em que o senador Aécio Neves foi punido com o afastamento de seu mandato pelo relator da Lava-Jato, ministro Edson Fachin, o Senado aquietou-se diante das imagens de malas cheias de dinheiro sendo distribuídas, e a voz do senador foi ouvida por todo o país num diálogo nada civilizado com o empresário Joesley Batista.
O choque das imagens e dos diálogos calou o Senado. Mas hoje todos parecem dispostos a se defender, defendendo mesmo que seja um adversário político. A discussão técnica sobre a diferença entre recolhimento domiciliar e prisão é o de menos a esta altura, pois o que está em jogo não é mais uma tecnicalidade para evitar punições dos que têm foro privilegiado, mas sim a classe política como um todo.
Mesmo na discussão técnica, a decisão da primeira turma do Supremo tem respaldo do Código de Processo Penal, que no seu artigo 319 classifica como “medidas cautelares diversas da prisão” o recolhimento domiciliar noturno e em feriados, e o afastamento de função pública quando o acusado pode fazer uso dela para prejudicar as investigações. Não houve nenhuma invenção jurídica no caso, mas a aplicação rigorosa da lei.
O que tem sido revelado nesses mais de três anos de investigação engloba todos os partidos políticos, dos mais importantes aos nanicos, e não há ninguém preocupado em acertar regras políticas de transição que deem uma pequena esperança de solução para o cidadão.
No momento, os políticos estão preocupados em armar uma reforma política que evite atingir seus interesses maiores, e todos se acertam entre si para, unidos, enfrentarem o inimigo comum, que é a Justiça.
O resultado da pesquisa do Fórum Econômico Mundial de Davos faz parte do Índice de Competitividade Global, justamente porque o combate à corrupção e a segurança jurídica quanto às decisões das autoridades políticas são itens fundamentais para medir a capacidade de competição dos países no mercado internacional.
O que as investigações da Lava-Jato estão revelando é que leis são literalmente compradas dentro do Congresso, e vantagens fiscais são negociadas em medidas provisórias que valem milhões de reais, e até de dólares. A questão é tão importante para os negócios que um dos convidados do Fórum de Davos em janeiro foi o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que defendeu a tese de que o combate à corrupção no Brasil vai ajudar a fortalecer a economia.
O contraponto desses movimentos corporativistas que voltam a tentar conter o ímpeto das investigações é a força-tarefa de Curitiba, reconhecida internacionalmente por seu trabalho. Hoje, os procuradores, representados por Deltan Dallagnol, estão no Canadá, pois seu trabalho está entre os três finalistas do prestigioso Allard Prize, que será entregue na Universidade da Colúmbia Britânica.
Há um forte trabalho de grupos de ativistas, brasileiros e internacionais, contra a entrega do prêmio aos procuradores de Curitiba, e os organizadores do prêmio estão impressionados com o movimento. Afirmam que os selecionados passam por comitês avaliadores, e que o teor das mensagens, boa parte em termos agressivos, está preocupando pela radicalização política.
Anteriormente, no ano passado, a força-tarefa da Lava-Jato já havia sido premiada, entre outros, pela Transparência Internacional, que a classificou como exemplo de investigação contra a corrupção estatal no Brasil.
Os últimos dias têm sido pródigos em revelar mais detalhes sobre a corrupção generalizada, e até mesmo recibos de aluguel apresentados à Justiça são suspeitos de manipulação. A carta de Antonio Palocci, ex-homem forte de Lula e Dilma, desligando-se do PT e acusando Lula de ter sucumbido ao que há de pior na política, é o retrato fiel desses tempos.
O Globo: Senadores reagem ao afastamento de Aécio e ministro de STF é acusado de ‘debochar’ do tucano
Senadores da base e oposição acusaram os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que votaram pelo afastamento do senador Aécio Neves (PSDB-MG) do mandato e pelo seu recolhimento domiciliar noturno de “ativismo judicial”, interferência em outro Poder, de ter extrapolado da Constituição e de ter “debochado” do parlamentar ao fazer piada no voto, como no caso do ministro Luiz Fux.
O senador Jorge Viana (PT-AC), da tribuna do Senado, disse que os ministros estão sendo vencidos pela vaidade da transmissão direta das sessões do Supremo pela TV Justiça. A Executiva nacional do PT se reuniu e vai divulgar uma nota se posicionando sobre o caso.
Os senadores cobram que a decisão seja deliberada pelo plenário do Senado, mas negam que seja uma “operação” para salvar Aécio.
— Não estou preocupado em salvar o Aécio, estou preocupado é em salvar a Constituição. Não estou querendo esconder nada — cobrou Jorge Viana, criticando a fraqueza humana dos ministros expostos a transmissão direta das sessões do STF.
Em aparte, o senador José Medeiros (Podemos-MT) acusou o ministro Fux de ter “debochado” de Aécio em seu voto, ao dizer que ele deveria ter se afastado por conta própria e como não o fez, o STF iria dar uma forcinha. Medeiros disse que o Senado tem que se posicionar imediatamente como Poder independente, “nem extrapolando nem diminuindo suas prerrogativas”.
— Não compete ao juiz tripudiar, fazer escárnio, ser debochado. Não é seu papel ser hilário. A lei já é dura o bastante — criticou Medeiros.
O líder da Oposição, Humberto Costa (PT-PE), disse que se houve extrapolação das prerrogativas do Supremo, o plenário do Senado deve se manifestar principalmente se houve descumprimento da Constituição.
— Imagina se nós do Senado decidimos pelo afastamento de alguém do Supremo? Se algum ministro praticar algum crime, pode ser alvo de processo de impeachment no Senado. Do mesmo modo, se um senador cometer um equívoco, ele responderá por isso, mas a lei não fala em afastamento do mandato — cobrou o senador Humberto Costa.
Senadores do PT e do PPS argumentam, entretanto, que se o processo de investigação de Aécio não fosse barrado no Conselho de Ética do Senado, o Supremo não precisaria tomar essa atitude agora.
— Se isso está acontecendo agora é porque o Senado tem sido omisso. Se o Conselho não tivesse barrado o processo contra Aécio, o Senado teria dado uma resposta e o Supremo não precisava de tomar essa atitude agora — disse Humberto Costa.
— Foi um erro o Senado não ter aberto o processo no Conselho. Agora estamos nessa situação — completou o senador Cristovam Buarque (PPS-DF).
Membros da bancada do PSDB no Senado participam de uma reunião na tarde desta quarta-feira para avaliar qual será o posicionamento da legenda sobre a decisão do Supremo.
Ao GLOBO, o senador Eduardo Amorim (PSDB-SE) afirmou que a decisão da Primeira Turma é "decepcionante".
— É difícil, não sou nenhum constitucionalista, mas é preciso ver se é isso mesmo — avaliou. — A bancada vai se reunir e ver qual posicionamento vai seguir. E acredito que não só a bancada, mas o Senado, através do presidente e talvez até da CCJ, deve tomar uma atitude — comentou o parlamentar tucano.