Crise humanitária
Marcos Terena: “Povos isolados estão ameaçados de holocausto indígena”
João Rodrigues, da equipe da FAP
No início desta semana, o governo federal declarou emergência em saúde pública no território Yanomami. A região sofre com desassistência sanitária, enfrenta casos de desnutrição severa e malária. De acordo com o Ministério dos Povos Indígenas, 99 crianças yanomamis entre um e quatro anos morreram em 2022. O avanço do garimpo ilegal na região é a principal causa das mortes e da destruição das áreas yanomamis.
Com a presença do escritor e líder indígena Marcos Terena, o podcast Rádio FAP desta semana analisa a crise humanitária que atinge os yanomamis. Terena foi um dos articuladores dos direitos indígenas na formulação da Constituição de 1988 e já representou o Brasil em diversos grupos de trabalho da Organização das Nações Unidas (ONU).
O genocídio do governo Bolsonaro em relação a tragédia humanitária dos yanomamis, os desafios do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas e a importância da preservação dos direitos dos primeiros habitantes do país também estão entre os temas do programa. O episódio conta com áudios do Jornalismo TV Cultura e TV Brasil.
O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google Podcasts, Anchor, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues.
RÁDIO FAP
Jamil Chade: Em 2021, crise humanitária no planeta será a maior desde a 2ª Guerra Mundial
ONU prevê que 235 milhões de pessoas no mundo serão afetadas por uma crise humanitária. Entidade vai precisar de pelo menos US$ 35 bi para sair ao socorro de milhões de pessoas diante da covid-19, conflitos e mudanças climáticas. Cenário na América do Sul é de tensão social, perda de renda e instabilidade política. Recuperação prevista para economia mundial não será suficiente para impedir que mundo tenha número inédito de pessoas em situação de vulnerabilidade
Se 2020 foi o ano da pandemia, 2021 será o momento de descobrir a dimensão de seu impacto social. De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), há um risco real de que a vacina contra a covid-19 chegue apenas para uma parcela rica do planeta e que milhões de pessoas ainda tenham de esperar meses ou anos para serem imunizados. Enquanto isso, a crise humanitária deve se aprofundar e vai atingir um número recorde de 235 milhões de pessoas, exigindo um esforço inédito na história da organização.
A operação de resgate vai precisar de US$ 35 bilhões para sair ao socorro de um verdadeiro exército de famintos, destituídos e abandonados em locais como Síria, Venezuela, Paquistão, Haiti, Afeganistão, Iêmen, Colômbia, Ucrânia e outros países.
Se projeções do FMI, Banco Mundial e de outras instituições apontam para o início da recuperação da economia mundial em 2021, a ONU relembra que a crise de 2020 terá seu impacto prolongado entre os grupos mais vulneráveis e populações que já viviam em uma situação delicada.
"Conflitos, mudanças climáticas e a covid-19 geraram o maior desafio humanitário desde a Segunda Guerra Mundial", alertou o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres.
Os dados apontam que o número de pessoas afetadas por crises humanitárias é 40% superior aos dados de 2020. O total é quase três vezes maior que em 2015. No total, 56 países precisarão de ajuda internacional, inclusive o Brasil, para lidar com os venezuelanos na região norte do país.
"Se todos aqueles que precisarem de ajuda humanitária no próximo ano vivessem num país, seria a quinta maior nação do mundo, com uma população de 235 milhões de habitantes", diz a ONU, que espera implementar uma operação para alimentar e dar abrigo para 160 milhões de pessoas em 2021.</p><p>
Num raio-X do planeta publicado nesta terça-feira, a entidade aponta que a vida das pessoas em todos os cantos do mundo foi abalada pelo impacto da pandemia. "Aqueles que já vivem no fio da navalha estão sendo atingidos de forma desproporcionalmente dura pelo aumento dos preços dos alimentos, queda dos rendimentos, programas de vacinação interrompidos e fechamento de escolas", diz.
América do Sul e maior tensão sociopolítica
Um dos focos da atenção internacional é a situação na América do Sul onde, segundo a ONU, "a pandemia secou as economias informais, diminuindo os meios de subsistência e o acesso aos alimentos e aumentando os riscos de proteção".
Para ONU, 2021 "irá sem dúvida exigir uma concentração ainda maior de esforços de resposta humanitária adaptáveis, dados os efeitos a longo prazo da pandemia sobre as várias crises na região".
Citando a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe, o informe prevê que 231 milhões dos 656 milhões de habitantes da região estarão em situação de pobreza no início de 2021. Esse será o pior patamar desde 2005.
"O impacto generalizado das economias deprimidas conduzirá a mais migração, insegurança alimentar e preocupações de saúde e proteção no meio de elevadas vulnerabilidades a riscos naturais, redes de segurança governamentais em tesão e potenciais agravamentos de tensões sócio-políticas profundamente enraizadas", alertou.
Décadas de progressos sociais sob ameaça
"O mundo rico pode agora ver a luz ao fundo do túnel", disse o chefe humanitário da ONU, Mark Lowcock. "O mesmo não se passa nos países mais pobres. A crise da covid-19 mergulhou milhões de pessoas na pobreza e fez disparar as necessidades humanitárias", alertou. "No próximo ano precisaremos de US$ 35 bilhões de dólares para evitar a fome, combater a pobreza, e manter as crianças vacinadas e na escola", disse. "Temos uma escolha clara diante de nós. Podemos deixar que 2021 seja o ano em que 40 anos de progressos sociais serão desfeitos; ou podemos trabalhar em conjunto para garantir que todos encontraremos uma saída para esta pandemia", disse. Para ele, "seria cruel e insensato" da parte dos países ricos "desviar o olhar" diante dessa realidade. "Os problemas locais tornam-se problemas globais, se os deixarmos", disse.
Fome e pobreza em alta
Pelo mundo, um dos aspectos que mais preocupa é a volta do aumento dos índices de fome e de pobreza. "A covid-19 desencadeou a recessão global mais profunda desde a década de 1930", indicou o informe. "A pobreza extrema aumentou pela primeira vez em 22 anos, e o desemprego aumentou dramaticamente. As mulheres e os jovens entre os 15 e os 29 anos que trabalham no setor informal estão sendo os mais atingidos. O fechamento das escolas afetou 91 por cento dos estudantes em todo o mundo", apontou.
Outra constatação é que os conflitos políticos são mais intensos e estão causando um impacto pesado à população civil. "A última década assistiu ao maior número de pessoas deslocadas internamente pelo conflito e pela violência, com muitas presas nesta situação por um período prolongado", diz. "Estima-se que haja 51 milhões de deslocados internos novos e existentes, e o número de refugiados duplicou para 20 milhões", alerta.
Um dos pontos mais preocupantes se refere à fome aguda, que atinge 77 milhões de pessoas em 22 países. "Até ao final de 2020, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar aguda poderá ser de 270 milhões", indica. "Os impactos da pandemia e das alterações climáticas estão afetando seriamente os sistemas alimentares em todo o mundo", diz a ONU. Apenas para lidar com essa realidade, a entidade faz um apelo por US$ 9 bilhões, quase o dobro do que era necessário em 2015.
Mudanças climáticas e pandemia
A avaliação da ONU é de que, uma vez mais, as mudanças climáticas terão um impacto real na vida de milhões de pessoas. Segundo a entidade, os últimos 10 anos foram os mais quentes desde que os registros começaram a ser feitos e, ao mesmo tempo, catástrofes naturais estão exacerbando as vulnerabilidades crônicas em diferentes partes do mundo. Para 2021, esperam-se alterações climáticas adicionais por conta do fenômeno La Niña. Se a situação internacional já não era das mais fáceis, a pandemia da covid-19 ampliou a crise de maneira inédita. "Os surtos de doenças estão aumentando e a pandemia tem dificultado os serviços de saúde essenciais em quase todos os países", diz o raio-x do planeta.
Para a entidade, a realidade é que os avanços sociais conquistados durante décadas estão ameaçados. "Mais de 5 milhões de crianças com menos de 5 anos de idade enfrentam as ameaças da cólera e da diarreia aguda", diz. "A pandemia pode acabar com 20 anos de progresso na luta contra o HIV, tuberculose e malária, duplicando potencialmente o número de mortes anuais", indica. Cerca de 24 milhões de crianças, adolescentes e jovens estão em risco de não regressar à escola em 2020, incluindo 11 milhões de meninas e mulheres jovens.
Falta de dinheiro
O dilema, segundo a ONU, é como lidar com a crise sanitária e seus desdobramentos diante da falta de recursos. "A crise está longe de ter terminado", diz o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres. "Os orçamentos para a ajuda humanitária enfrentam déficits terríveis à medida que o impacto da pandemia global continua a agravar-se", reconhece. Ele pede, porém, que governos mobilizem recursos e e que sejam solidários com as pessoas "na sua hora mais negra de necessidade".
Em 2020, os doadores internacionais deram um montante recorde de US$ 17 bilhões. Mas, como as necessidades estão aumentando, o financiamento continua a ser menos de metade do que a ONU e organizações parceiras pediram.
El País: Maduro fecha fronteira da Venezuela com Brasil para barrar ajuda humanitária
Presidente da Venezuela estuda tomar medida similar em relação à Colômbia, por onde está previsto começar a entrar a ajuda humanitária
O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, ordenou o fechamento da fronteira de seu país com o norte do Brasil, em meio à escalada da tensão pela iniciativa dos países que não o reconhecem mais como presidente, entre eles os EUA e próprio Brasil, impedindo-os de entregar medicamentos e alimentos aos venezuelanos numa operação planejada para começar no sábado, 23 de fevereiro. Inicialmente, o presidente venezuelano havia afirmado que a medida entraria em vigor às 20h da Venezuela (19h no horário de Brasília), mas acabou fechando a entrada seis horas antes do previsto, segundo o governador de Roraima, Antonio Denarium (PSL). O Governo Bolsonaro ainda não se pronunciou.
A tentativa de enviar ajuda humanitária aumenta a disputa entre Juan Guaidó, presidente interino e reconhecido por mais de uma centena de países, e Maduro, que já havia elevado o alerta militar nas fronteiras e agora decreta o fechamento completo do limite de 2.200 quilômetros que separam a Venezuela e o norte brasileiro. O mandatário "avalia", além disso, tomar uma medida semelhante em relação à Colômbia. "A partir de hoje fechamos a fronteira com o Brasil, [e tomamos] todas as medidas de segurança e até segunda ordem", afirmou."Quero que seja uma fronteira dinâmica e aberta, mas sem provocações, sem agressão, porque sou obrigado como chefe de Estado, chefe de Governo e comandante em chefe da FANB a garantir paz e tranquilidade", afirmou.
A situação de Roraima
A medida foi anunciada um dia depois que a vice-presidente da Venezuela, Delcy Rodriguez, anunciou o fechamento da fronteira aérea e marítima com as Antilhas Holandesas e afirmou que Caracas colocou "sob revisão" as relações com esses países. Colômbia, Brasil e Curaçao acumularam toneladas de ajuda humanitária enviadas para a Venezuela, que está passando por uma profunda crise econômica com escassez de alimentos e remédios que levou pelo menos três milhões de venezuelanos a emigrarem, segundo dados da ONU. Maduro se opõe à entrada da ajuda humanitária, que ele descreveu como "uma armadilha", com o argumento de que é uma estratégia dos Estados Unidos e aliados para violar a soberania da Venezuela.
O principal ponto de entrada da ajuda, no plano da oposição, é pela Colômbia. Guaidó viajou nesta quinta-feira em direção à fronteira de seu país com a divisa colombiana para comandar o operação de ajuda, marcada para o sábado. O presidente interino se juntará a uma caravana de ônibus com centenas de pessoas e até um show na cidade de Cúcuta, a principal da fronteira, está marcado em apoio à resistência a Maduro.
Na fronteira com o Brasil, mais precisamente no Estado de Roraima, também haverá movimentação. O Governo brasileiro também vai disponibilizar medicamentos e alimentos com recursos próprios para a população da Venezuela. Segundo o porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, a ajuda será disponibilizada nas cidades de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, e em Boa Vista, ambas em Roraima, o Estado que mais recebe venezuelanos no país. Entre 2017 e 2018, o Brasil recebeu 111.000 venezuelanos. De acordo com o Governo federal, entram por hora no país 33 venezuelanos, em média. Aproximadamente, 800 por dia.
El País: As meninas em uma crise humanitária
Reconhecer o direito à vida digna de uma menina nômade é reconhecer como sua sobrevivência depende da proteção de seus direitos sexuais e reprodutivos
Por Débora Diniz e Giselle Carino, do El País
Quando falamos em crise humanitária, nossa imaginação é curta para ter a América Latina e o Caribe no mapa global. A lista tem tsunamis na Indonésia ou conflito armado na Síria. Não há Haiti pós-terremoto, Nicarágua em conflito armado, Porto Rico ainda no chão após o furacão Maria ou os milhares de caminhantes venezuelanos que atravessam a fronteira do norte da Colômbia todos os dias. As crianças aprisionadas na fronteira entre o México e o Estados Unidos foram as que ascenderam à comoção internacional, sem que a elas seja concedido o título de vítimas de uma tragédia humanitária. Um dos principais desafios para 2019 é incluir a América Latina e Caribe na geopolítica global das crises humanitárias.
Nomear uma crise humanitária exige pensar as causas, antecipar soluções e apresentar-se às suas vítimas. As tragédias ambientais ou políticas recebem nome, como foi o furacão Maria ou o populismo na Venezuela, mas as vítimas são aglomeradas em estatísticas populacionais. São mais de mil caminhantes os que atravessam a fronteira da Venezuela e da Colômbia diariamente em Alta Guajira — a cena é de um desamparo inesquecível. Muitas são famílias indígenas Wayuu que carregam o que podem pelo nomadismo sem fronteiras. Nem tanto venezuelanos ou colombianos, os indivíduos transitam entre um lado e outro à espera que sejam protegidos ou reconhecidos por um ou outro país. Se estima que metade dos caminhantes diários sejam indígenas.
Os caminhantes são o corpo do desamparo imposto por uma crise humanitária. É gente que antes tinha teto, trabalho, nome e sobrenome. Peregrinam para sobreviver — por isso, caminham. Os caminhantes da Venezuela são nômades que atravessam a fronteira da Colômbia ou do Brasil. Os que escolhem a região andina seguem marcha até o Chile e Argentina, mas alguns param pelo caminho. Os que arriscam o Brasil vivem em campos de confinamento, em um país pouco cuidador aos refugiados ou desalojados forçados. Tomamos a missão como um fardo ou favor.
Os campos de refugiados são espaços complexos à imaginação política nacionalista que não reconhece os caminhantes como gente em busca de amparo existencial. Essas pessoas são definidas como “sem estado, ou seja, vivem em uma espécie de purgatório terrestre, como se ninguém tivesse o dever de reconhecê-las ou protegê-las. Na multidão nômade das crises humanitárias, há populações mais vulneráveis que outras. Uma delas são as meninas e mulheres — são as que mais tardiamente iniciam a fuga dos espaços de risco e quando migram seus riscos são semelhantes aos contextos de conflito armado, em que a violência e o estupro são práticas comuns. Conhecemos mulheres na ponte da travessia em Alta Guajira, na Colômbia, que, no trajeto sem rumo, engravidavam e batiam à porta de nossas clínicas para realizar um aborto legal por estupro. Conhecemos outras milhares que chegaram em busca de anticoncepção, escapando da fome e da desesperança, imaginando um futuro sem rumo.
A dramática conexão entre migração, gênero e saúde foi descrita em um relatório recente da prestigiosa revista acadêmica The Lancet. No marco de crises humanitárias de migração forçada, refugiados e desalojados podem se diferenciar pelas causas que provocam o deslocamento, mas se assemelham na insegurança vivida para sobreviver típica dos peregrinos involuntários. Somente na região conhecida como o triângulo norte da América Central (El Salvador, Guatemala e Honduras) se estima que 215.000 pessoas se puseram em marcha no primeiro semestre de 2017, um número que aumentou em 2018. Ainda sabemos pouco como sobrevivem as meninas nesta multidão de gente que caminha, como fazem para sobreviver ao trauma de um estupro ou de uma gravidez forçada.
Se ignoramos que há crise humanitária em nossa região, somos incapazes de imaginar quais vítimas são mais vulneráveis. Se a todos os peregrinos involuntários as causas da crise podem ser compartilhadas — como mudanças climáticas, corrupção política ou violência do Estado — as formas de cuidado e enfrentamento do desamparo são específicas às mulheres e meninas em nomadismo forçado. Reconhecer o direito à vida digna de uma menina nômade é reconhecer como sua sobrevivência depende da proteção de seus direitos sexuais e reprodutivos. Não é um corpo que caminha, é uma menina que carrega consigo o desamparo prévio imposto pela desigualdade de gênero que define os efeitos das crises humanitárias em nossa região.
El País: Nações Unidas apontam aumento dramático da desnutrição na Venezuela
É o país das Américas que teve o maior aumento de desnutrição, segundo novo relatório da FAO apresentado na última semana
Por Alonso Moleiro, do El País
A Venezuela é o país latino-americano que teve os maiores aumentos em matéria de fome e desnutrição no biênio 2016-2018. É o que indica o novo estudo apresentado na última semana pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) juntamente com o Programa Mundial de Alimentos e a Organização Pan-Americana da Saúde.
A Bolívia e a Argentina são os outros dois países que acompanham a Venezuela neste quadro, que integra o tóxico coquetel de subnutrição, má nutrição e obesidade. A República Bolivariana responde por 1,3 milhão do total de 1,5 milhão de pessoas com novos problemas estruturais em sua ingestão cotidiana de calorias. O estudo mostra que, em termos gerais, os quadros de desnutrição aumentaram em média de 5% a 6% da população dos países latino-americanos e caribenhos no período de 2015 a 2018. Haiti, Antígua e Barbuda, Bolívia e Granada são as nações com maiores níveis de desnutrição em relação ao total de suas populações.
O novo relatório da FAO sobre a segurança alimentar na Venezuela reflete um dos muitos paradoxos da crise econômica atravessada pelo país caribenho. Em 2012, com Hugo Chávez ainda vivo, a mesma organização havia feito um reconhecimento público ao Governo venezuelano por seus avanços na quantidade e na qualidade do consumo diário de calorias. A instituição parabenizava a Venezuela “por ter alcançado antecipadamente a meta número um do Objetivo de Desenvolvimento do Milênio: reduzir pela metade a proporção de pessoas que sofrem de fome em 2015”.
Durante aquele 2012 em que Chávez foi reeleito, o Governo bolivariano orquestrou com o certificado da FAO uma poderosa campanha de propaganda para alcançar seus objetivos. Na época, a economia venezuelana continuava crescendo na esteira dos altos preços do petróleo, a inflação não chegava aos brutais índices de hoje e o Governo, diante dos imperativos eleitorais, havia elaborado um ambicioso sistema de distribuição de alimentos baratos, expressado sobretudo nos estatais Mercados de Alimentos (Mercal) e nas Casas de Alimentação. Durante um tempo, ambos os programas tiveram uma inquestionável penetração nas zonas populares e empobrecidas do país.
O período compreendido entre a doença e a morte de Chávez e a chegada ao poder de Nicolás Maduro veio acompanhado de uma grave crise cambial que gerou uma sangria de divisas no país. Os programas sociais do Mercal declinaram e desapareceram entre as propinas e a corrupção desenfreada. Muitos alimentos importados começaram a apodrecer na alfândega e nos portos. A decisão de Maduro de radicalizar o modelo político chavista produziu a histórica derrubada da economia venezuelana, que se traduziu numa contração de 44% do PIB entre 2014 e 2018. Algumas organizações especializadas, como a Fundação Bengoa e o Centro de Estudos do Desenvolvimento da Universidade Central da Venezuela, questionavam havia tempo o pronunciamento da FAO, alertando quanto à piora violenta das condições sociais da população e ao crescimento da fome no país – um dos aspectos sobre os quais o chavismo considera que tem conquistas concretas para mostrar. Nem os líderes do governista Partido Socialista Unido da Venezuela nem o gabinete de Maduro se pronunciaram sobre o novo relatório da FAO.
A desnutrição e a fome, embora jamais tenham deixado de ser um problema que gera inquietudes e polêmicas, historicamente não haviam ocupado um lugar de destaque no radar das preocupações imediatas do venezuelano médio, segundo as pesquisas de opinião. Nos melhores tempos de Chávez, esse ponto inclusive tinha desaparecido da lista de preocupações imediatas dos habitantes, afetados tradicionalmente por outros assuntos, como a segurança cidadã, os serviços públicos e o desemprego.
Hoje, a ingestão de alimentos, a escassez de produtos e o aumento de preços estão no topo de todas as respostas da população nas consultas feitas pelos institutos de pesquisa.
Reportagem da FAP apresenta, em vídeos, fotos e textos, detalhes do maior êxodo da América Latina
Equipe de reportagem da revista Política Democrática faz uma imersão no país de Nicolás Maduro e mostra os dramas enfrentados pelos venezuelanos em sua luta pela sobrevivência
No lançamento de sua versão totalmente digital, a revista Política Democrática destaca o drama de imigrantes oriundos da Venezuela que peregrinam no maior êxodo da história da América Latina. Em vídeos, fotografias e textos, também conta histórias de quem atravessou a fronteira com o Brasil, em busca de sobrevivência. Repórteres da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), que produz e edita a publicação, viajaram a Caracas para mostrar, ainda, os reflexos do colapso político e socioeconômico que assola o país presidido por Nicolás Maduro.
Veja aqui a reportagem especial sobre a crise humanitária na Venezuela
Na viagem à capital da Venezuela, a equipe de reportagem de Política Democrática faz uma imersão no país presidido por Nicolás Maduro e conta aos internautas como é a luta pela sobrevivência, principalmente entre a classe média e os mais pobres. Com título “Um país à beira do abismo”, a reportagem mostra ainda a dificuldade de denunciar problemas no país, já que o governo venezuelano proíbe jornalistas de tirarem fotos ou fazer vídeos.
Com conteúdo estritamente jornalístico, a manchete da revista mescla análise do contexto político com relatos de pessoas que ainda vivem na Venezuela. Além disso, apresenta, de forma didática, uma cronologia da crise que assola o país e a proposta de Nicolás Maduro para tentar estancar a sangria humanitária.
A segunda parte da reportagem, intitulada “Um grito por humanidade”, conta a dificuldade dos imigrantes que já saíram da Venezuela e atravessaram a fronteira com o Brasil, em Pacaraima, a 215 km de Boa Vista (RR). Em média, de acordo com a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), 500 pessoas fazem esse percurso todos os dias. No total, desde o agravamento da crise, em 2015, mais de 2 milhões de pessoas já deixaram o país vizinho.
Na página 13 da revista, os internautas poderão acessar a cronologia da crise, entendendo, sobretudo, a repercussão da queda do preço do petróleo no dia a dia da população venezuelana. Em seguida, em vídeo, deputados da oposição contam como é difícil viver no país, principalmente depois que Maduro dissolveu o poder da Assembleia Nacional, em 2017.
Em vídeo, a reportagem também mostra, na página 14, os poucos detalhes do Plano de Desenvolvimento Nacional, divulgado pelo presidente venezuelano, no dia 15 de outubro. Na página seguinte, o internauta também poderá assistir a um minidocumentário com depoimentos de imigrantes que já chegaram ao Brasil. Além disso, está disponível para o público uma arte com detalhes dos locais para onde essas pessoas estão sendo encaminhadas dentro do país.
Vídeo do minidocumentário:
https://www.youtube.com/watch?v=GkUldPLo5HI
Confira a Galeria de fotos
FAP lança revista Política Democrática digital
Totalmente on-line e com design responsivo, publicação tem acesso gratuito e traz análises, entrevista e reportagens especiais
Em celebração aos 30 anos da democracia e a quatro dias do segundo turno das eleições no Brasil, a Fundação Astrojildo Pereira (FAP) lança, nesta quarta-feira (24), a revista Política Democrática em formato totalmente on-line e com design responsivo. A publicação contempla análises de renomados articulistas, entrevista exclusiva e reportagens especiais, as quais poderão ser acessadas, de graça, pelos internautas.
Nesta edição de lançamento do formato digital, Política Democrática destaca o drama de imigrantes oriundos da Venezuela que peregrinam no maior êxodo da história da América Latina e conta, em vídeos, fotografias e textos, histórias de quem atravessou a fronteira com o Brasil, em busca de sobrevivência. Repórteres da FAP viajaram a Caracas para mostrar, ainda, os reflexos do colapso político e socioeconômico que assola o país presidido por Nicolás Maduro.
Além disso, a revista também reservou, assim como para outras análises, um espaço para entrevista com a economista Monica de Bolle, única mulher latino-americana a integrar a equipe do Peterson Institute for International Economics, nos Estados Unidos e diretora do Programa de Estudos Latino Americanos da Johns Hopkins University, em Washington, D.C. Na avaliação dela, a agenda fiscal deverá ser prioridade do novo presidente.
Objetividade
Com o propósito de entregar conteúdo de altíssima qualidade para o público em seu novo formato, a revista reuniu um time de profissionais capazes de fazer análises do contexto brasileiro, de forma mais objetiva possível, especialmente das eleições de 2018. “O critério de seleção foi a alta capacidade profissional e interpretativa dos jornalistas e acadêmicos que assinaram as matérias, convicção que, estamos certos, justificará plenamente o título de Política Democrática”, diz o diretor da revista, André Amado.
Em relação às análises, André avalia que a publicação mostra opiniões baseadas em reflexões acadêmicas ou em experiências pessoais, que, por isso, segundo ele, “ganham legitimidade além do marco habitual e distorcido dos maniqueísmos ideológicos”. “Seu lançamento, entre os dois turnos das eleições, incorpora apreciação dos resultados da primeira volta e afina as perspectivas para a reta de chegada das candidaturas, apesar do clima visceral com que se vêm desenrolando as campanhas de um e de outro”, afirma o diretor, referindo-se aos candidatos do PT, Fernando Haddad, e do PSL, Jair Bolsonaro, à Presidência da República.
» Para acessar a revista, clique na imagem acima ou no link abaixo:
http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2018/10/24/revista-politica-democratica-online/
Relevância e agilidade
O período eleitoral, de acordo com o editor da revista, Paulo Jacinto Almeida, faz com que a revista sirva como palco de debates sobre os projetos propostos para o país. “É de extrema relevância neste momento em que estamos escolhendo o próximo presidente da República”, destaca ele. “É a continuidade de um projeto existente desde o início do século, que vem debatendo política, democracia, esquerda e cultura na conjuntura brasileira e se torna fundamental ao auxiliar o internauta com informações e análises sobre este momento decisivo em nossa história”, acrescenta.
O editor ressalta que a publicação digital poderá ser acessada em qualquer plataforma, como celular, tablet ou desktop, e a qualquer momento. Segundo ele, a nova revista poderá otimizar um fator cada vez mais importante na sociedade do conhecimento: o tempo. “Ele (internauta) ganha agilidade e praticidade para se manter informado e acessar análises de temas cruciais para o nosso país”, diz Paulo.
A seguir, confira a relação de conteúdos da revista e seus respectivos autores:
*Lições do primeiro turno (Caetano Araújo)
*O que esperar de Jair Bolsonaro (Creomar Lima Carvalho de Souza)
*O que esperar de Fernando Haddad (Creomar Lima Carvalho de Souza)
*A verdade do oráculo digital (Sergio Denicoli)
*Quadrinhos (JCaesar)
*Reportagem de capa: Um país à beira do abismo (Cleomar Almeida e Germano Martiniano)
*Um olhar crítico sobre a democracia (João Batista de Andrade)
*Por quem os sinos dobram (Alberto Aggio)
*Ameaças à democracia (Elimar Pinheiro do Nascimento)
*Entrevista com Monica de Bolle: Agenda fiscal terá de ser prioridade do próximo presidente (André Amado, Caetano Araújo, Creomar de Souza e Priscila Mendes)
*Fernando Gasparian e a morte do nacional-desenvolvimentismo (Jorge Caldeira)
*Yuval Noah Harari investiga as inquietações do presente em “21 lições para o século 21” (Dara Kaufman)
*Atropelado pelas Emergências (Sérgio C. Buarque)
José Aníbal: O Brasil e a tragédia humanitária na Venezuela
As rápidas transformações pelas quais passa a sociedade contemporânea têm feito muitos acreditarem em soluções salvacionistas ou miraculosas. Mas não nos faltam exemplos pelo mundo das consequências do populismo radical, dos quais o mais ilustrativo, dramático e próximo de nós é a Venezuela.
Nossos vizinhos têm vivido em um estado de calamidade humanitária que preocupa todas as pessoas comprometidas com os valores da liberdade, da democracia e dos direitos humanos.
Não bastasse a arbitrariedade do regime bolivariano, que mantém pelo menos 566 presos políticos, usurpou o poder do Parlamento com a convocação de uma Assembleia Constituinte sem legitimidade e cuja repressão é diretamente responsável por mais de 100 mortes desde abril, o país enfrenta uma grave crise de escassez e privação de direitos básicos.
E a resposta do governo Maduro ao povo com fome foi: criem coelhos!
Seria apenas patético, se não fosse trágico. O pseudoplano do regime para que os venezuelanos passassem a consumir coelhos domésticos para suprir a falta de carne para o dia a dia lembra os brioches sugeridos por Maria Antonieta aos franceses famintos e revoltados pelo alto custo dos pães.
A diferença é justamente o aprendizado que a Revolução Francesa e os mais de dois séculos subsequentes propiciaram à humanidade para se buscar soluções para calamidades desse tipo.
A resposta não está mais em bastilhas nem em movimentos revolucionários, mas no diálogo, no respeito à democracia e à liberdade individual e no desenho de instituições consistentes.
A comunidade internacional – e cabe ao Brasil ter papel ativo nesse sentido – deve aumentar a pressão sobre Maduro e o regime ditatorial que hoje oprime o povo venezuelano e o condena a uma tragédia como nem o mais fantástico realismo marcante da literatura latino-americana seria capaz de imaginar.
Simultaneamente ao uso dos meios diplomáticos para criticar a ditadura bolivariana e incentivar a Venezuela a recuperar o caminho da democracia, temos uma importante tarefa humanitária no sentido de apoiar o povo do país vizinho e amparar os flagelados que, sem outra saída, procuram refúgio em terras brasileiras.
O acesso a dados e a realização de estudos e pesquisas sobre as condições sociais da população venezuelana são dificultados pela arbitrariedade, mas estima-se que o chavismo elevou em 20 pontos porcentuais o contingente de pobres e miseráveis no país.
Hoje, 4 em cada 5 venezuelanos estão abaixo da linha da pobreza. É o exemplo mais dramático da tragédia provocada pelo radicalismo e pela irracionalidade de uma ideologia levada ao extremo.
Que o exemplo extremado da Venezuela nos sirva de alerta aos riscos dos radicalismos – e que fique claro, não só os radicalismos à esquerda. Também as posições fundamentalistas à direita culminam em absurdos como a restrição das liberdades de expressão, artísticas e culturais. Aliás, também no Brasil surgem alguns sinais preocupantes de intolerância.
Não é de hoje que os gritos dos radicais cativam ingênuos e incautos, transformando-os em massa de manobra para personalidades autoritárias e antidemocráticas travestidas de libertários ou emancipadores dos oprimidos.
A Venezuela tornou-se exemplo da tragédia em que pode mergulhar um povo conduzido de forma tão irresponsável e velhaca. As democracias das Américas têm o dever de ajudar os venezuelanos a se livrar do abismo ao qual foram condenados pelo bolivarianismo.
Denis Lerrer Rosenfield: A democracia totalitária bolivariana
Nada do que está hoje acontecendo na Venezuela deveria surpreender. Presenciamos o desenvolvimento lógico-político de instauração do socialismo naquele país, tendo começado com Chávez e encontrado o seu desfecho na abolição da democracia e no assassinato de mais de uma centena de pessoas nas ruas em poucas semanas.
Espanta, contudo, o cinismo de alguns políticos que teimam em dissociar a “democracia” de Chávez da “ditadura” de Maduro, como se fosse possível separar as premissas da conclusão. Neste sentido, o elogio do indefectível Lula a Chávez — quando considerou que aquele país tinha “excesso de democracia” e não falta, acompanhado de apoio financeiro do contribuinte brasileiro através do BNDES — mostrou coerência com sua sustentação do ditador Maduro. O apoio atual do PT a este, com manifestações de sua presidente no Foro de São Paulo, segue uma mesma lógica, cuja única virtude consiste em expor a faceta totalitária do partido.
Qual democracia está em questão: a democracia representativa, com todas suas limitações e contrapesos, ou a democracia totalitária, com sua ilimitação e projeto de destruição do próprio sistema representativo?
A democracia totalitária é um conceito elaborado por um célebre cientista político, J. L. Talmon, em sua obra “Origens da democracia totalitária”. Recorrendo aos filósofos do século XVIII, porém atento ao fenômeno totalitário comunista do século XX, destaca ele o surgimento de uma ideia democrática, fundada na soberania do povo, entendida como guia de uma atividade política que desconhece limites. Em nome da vontade popular, tudo seria possível, inclusive o desrespeito à lei e à Constituição ou, mesmo, a abolição das duas.
Em nosso país, por exemplo, quando políticos de esquerda procuram cancelar os seus crimes, dizendo que as eleições absolvem os que violaram as leis, estão dizendo com isto que processos eleitorais são os únicos capazes de julgar os políticos, por mais criminosos que sejam. Não seriam os tribunais os juízes, mas as eleições, na medida em que seriam expressões da vontade popular. É o mesmo argumento que está sendo utilizando por Lula e os seus apoiadores, forçando de qualquer jeito a sua candidatura, para, uma vez eleito, escapar de qualquer condenação em curso. É a faceta totalitária.
Em sua vertente totalitária, a democracia é reduzida a eleições, como se essas fossem os únicos processos decisórios válidos. Constituição, separação de poderes e respeito às leis são desconsiderados como se não fizessem parte, senão subsidiariamente e aparentemente, do conceito mesmo de democracia. O que fez Chávez?
Conquistou o poder por intermédio de eleições e nele permaneceu através de referendos que o legitimavam. A esquerda latino-americana e a brasileira, em particular, ressaltaram continuamente este aspecto com o intuito de mostrar a reconciliação do socialismo com a democracia. A imagem socialista-totalitária seria coisa do passado.
Uma vez no poder, Chávez começou a enfraquecer, senão a abolir, as instituições representativas. Primeiro, o Judiciário foi manipulado, com a substituição de juízes por ideólogos e militantes que obedeciam às orientações do Líder Máximo. Ministros foram presos por não seguirem a nova linha de conduta. O Supremo, porém, continuou funcionando em sua nova roupagem totalitária, tendo como função referendar as orientações governamentais. A esquerda clamava, então, que as leis estavam sendo respeitadas por decisão da mais Alta Corte do país. A pantomina era total.
Segundo, o Poder Legislativo foi completamente investido pelos “socialistas”, passando a ser um mero referendador das ordens de Chávez. Transferiu a ele, inclusive, o poder de legislar, investindo-o de “leis delegadas”, de tal maneira que, por atos administrativos, poderia editar e promulgar leis.
Assim sendo, concentrou em sua pessoa o poder de julgar, legislar e governar, abolindo, de fato, a separação de poderes. Fingiu respeitar a democracia, pervertendo-a completamente. Na verdade, aproveitou-se de instrumentos democráticos, como eleições, para subverter a democracia. Eis a novidade do “socialismo do século XXI”.
Para bem assegurar o seu poder, tomou conta das Forças Armadas através do seu aparelhamento por oficiais submissos ao novo regime. A ideologia apoderou-se dos militares, obrigados a jurar “socialismo ou morte”. A bem da verdade, o socialismo está levando à morte de jovens nas ruas de Maduro. Não satisfeito, utilizou a expertise totalitária de Fidel Castro e de seu irmão Raúl, importando especialistas cubanos para, com seus serviços de inteligência, fortalecer os laços “socialistas” das Forças Armadas.
Como se não fosse ainda suficiente, pois o controle deveria ser total, lançou mão da criação das milícias bolivarianas, corpo paraestatal, diretamente armado e controlado por ele, tendo como função aterrorizar a população. Seguiu o exemplo das SA de Hitler, disseminando o medo e a violência entre os cidadãos. Ora, são essas mesmas milícias que estão agora, sob a direção de Maduro, assassinando os manifestantes e os opositores venezuelanos.
O que faz Maduro? Segue os ensinamentos de seu mentor. Ele é apenas um novo elo da mesma lógica totalitária. A diferenciação reside em que a violência tornou-se explícita. A farsa de uma Assembleia Constituinte suprime o Poder Legislativo ainda vigente, que tinha se revigorado por eleições ainda permitidas. A população está na miséria, os supermercados estão desabastecidos, o PIB cai vertiginosamente, a inflação está nas alturas, e o novo governante agora o que mais teme é um processo eleitoral, um referendo. Uma vez tendo sido a democracia subvertida, até o véu cai, com eleições não sendo mais necessárias para a conservação do poder.
A democracia representativa está morta. Maduro prestou homenagens a Fidel em sua tumba. Foi coerente com o assassinato que perpetua de manifestantes. Em seus féretros jaz o socialismo.
* Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Alberto Aggio: Venezuela rumo ao totalitarismo
Há três anos eu começava a publicar artigos de opinião no jornal O Estado de São Paulo. O primeiro artigo tinha como título "O impasse venezuelano". A situação era complicada mas havia uma expectativa de que o chavismo garantiria os mínimos espaços de democracia, com alternância de poder. Há um ano, o chavismo perdeu as eleições para a Assembléia Nacional. Apoiada em massivas manifestações, a oposição esperava que aquele seria o primeiro e um importante passo para alcançar o poder democraticamente.
Passado esse tempo, o chavismo, liderado agora por Nicolas Maduro, consuma um golpe com a eleição fraudulenta da Assembléia Constituinte, faz a sua instalação e anuncia mais do que um regime autoritário. Pelas informações que se tem, a questão da "dualidade de poderes" já foi resolvida em favor do chavismo. Não há mais nenhum impasse na Venezuela.
A conquista de um "poder constituinte" acaba com a Assembleia Nacional, reafirma a escalada contra qualquer questionamento no poder Judiciário (muitos juízes já estão buscando asilo no Panamá, Chile e EUA) e instaura um conjunto de medidas de cunho abertamente totalitário: cancelamento de passaportes, regularização de documentação apenas para os favoráveis à Revolução Bolivariana, imposição de medidas extraordinárias a todos os bens particulares de todos os venezuelanos, haverá nova moeda nacional (o Sucre) e será presa a pessoa que estiver com moeda estrangeira; além disso, estarão suspensas a internet e as pessoas terão que registrar seus aparelhos eletrônicos nas instituições competente do Estado, e assim por diante.
Está claro o resultado: a democracia foi cancelada na Venezuela; sequer há o que podemos chamar de autoritarismo, que via de regra regula fortemente os espaços públicos; com o chavismo nessa nova fase, instaura-se o totalitarismo, já que o controle revolucionário vai atingir violentamente a vida privada das pessoas; não haverá mais nem autonomia e muito menos liberdade para os indivíduos diante do Estado Chavista que sairá dessa Assembléia Constituinte.
Em tempos de globalização, pode-se divisar que a Venezuela terá um regime mais radical do que foi o cubano; terá algo parecido com a Revolução Cultural chinesa, nos idos dos 60, ou algo como a Coreia do Norte. É ai que chegamos. Esperamos que os democratas latino-americanos possam compreender essa situação e mobilizar esforços, com realismo e consenso, para enfrentar o totalitarismo chavista que, sem dúvida, romperá com qualquer perspectiva de unidade ou colaboração do conjunto da América Latina.
Caos perto da Europa
A situação na Síria e Líbia torna mais convulsivas as fronteiras da UE
Em apenas 48 horas, entre segunda-feira e terça-feira passados, as patrulhas de resgate que operam no Mediterrâneo resgataram 10.655 migrantes e refugiados. Viajavam em barcos precários e superlotados. Ninguém que não esteja desesperado se joga ao mar em condições aterrorizantes. Quando os sobreviventes abandonavam os navios, o chão estava coberto com os cadáveres dos asfixiados, tal era a superlotação imposta pelas máfias. Estes números não só representam o drama de uma crise humana sem precedentes; também mostram a dimensão e a gravidade da situação de caos e destruição que ocorre às portas da Europa.
A UE aprovou nesta quinta-feira enviar à Bulgária o primeiro contingente da nova polícia de fronteira da Europa, mas pouco servirá este instrumento, se nada for feito sobre as causas do êxodo. A quebra da trégua na Síria continua alimentando uma diáspora que atingiu seu pico em 2015, mas que está longe de terminar. Na ausência de expectativas de poder voltar para seu país, muitas famílias que passaram anos vivendo pessimamente em campos de refugiados turcos ou libaneses fazem o caminho para a Europa, mesmo sem garantias de chegar ou de serem bem recebidos. Enquanto isso, na Líbia se concentram dezenas de milhares de migrantes procedentes de vários países africanos. Alguns fogem de conflitos, outros da miséria. Após viagens longas e perigosas, ficam presos sem possibilidade de voltar. Na situação perigosa de desgoverno que vive a Líbia, muitos são vítimas de abusos, trabalho forçado e estupro. Correr o risco de uma travessia incerta é para eles o mal menor.
Até agora este ano já chegaram à Europa através do Mediterrâneo mais de 300.000 migrantes — 166.000 através da Grécia, 130.000 pela Itália — e se afogaram ou desapareceram mais de 3.500. Desde que há seis meses foi assinado o acordo com a Turquia, o fluxo através do Egeu foi reduzido, mas agora é a Itália que recebe a maior pressão. Devemos celebrar a resposta muito positiva por parte de seu Governo, que não reduziu os esforços e mantém a política de acolhida. O mesmo deve ser dito da Grécia, apesar da falta de solidariedade do resto da UE, que se mostra incapaz de cumprir sequer com seus próprios acordos. Agora faz exatamente um ano que foi aprovado o plano que devia distribuir 160.000 refugiados entre os diferentes membros da UE. Na metade do prazo previsto, apenas 5.651 foram realocados, só 3,5%. O resto continua aí. A má gestão deste problema leva a Europa cada vez mais para posições que violam não só seus princípios fundadores, mas também suas leis. A pressão sobre suas fronteiras não vai diminuir por mais que olhemos para o outro lado.
Fonte: brasil.elpais.com