crise econômica
Joel Pinheiro da Fonseca: Cercear extremismos desonestos faz bem ao debate público
Sem um chão comum na verdade objetiva, discussão na sociedade perde sua razão de ser
As empresas de redes sociais, bem como os Estados nacionais, têm tomado medidas que na prática limitam o debate público. Negacionismo, cloroquina, desejo de matar ministros; tudo isso vem sendo cerceado. Devemos nos preocupar pela liberdade de expressões tolhida?
A ciência, e o pensamento humano de maneira geral, precisa do contraditório para progredir. A defesa de hipóteses minoritárias, teses ousadas e mesmo dissidentes é benéfica para o conhecimento. Por vezes, a posição minoritária pode estar certa. Mesmo quando errada, pode ter alguns elementos corretos, ter identificado falhas reais na tese dominante. E, mesmo quando a tese majoritária está correta, a necessidade de defendê-la fortalece os argumentos a seu favor.
Uma das características da real discussão de ideias é que ela se dá longe da pressão popular. Seu objetivo é a verdade (nunca plenamente alcançada), e não a popularidade, o dinheiro ou o poder. Ela se dá prioritariamente entre especialistas e outros interlocutores já familiarizados com a fronteira do conhecimento. Esses são sempre poucos, ao contrário do grande público, incapaz de acompanhar o estado atual da discussão.
Muito diferente dessa discussão abstrata é o debate público, que visa persuadir milhões. Aqui, a força da argumentação pura vale menos do que a habilidade retórica de tocar os sentimentos dos leitores e espectadores.E ele está quase sempre ligado às decisões práticas que a sociedade tomará e que trarão impactos reais.O debate público também ganha com a divergência. É no exercício da discussão que as pessoas aprendem a pensar melhor. E como vivemos numa democracia, é o entendimento imperfeito do público que balizará as decisões da gestão pública.
Ele não se presta, contudo, a resolver divergências intelectuais. A opinião da maioria é um péssimo juiz da verdade de qualquer tese minimamente complexa. Assim, trazer a esse público teses dissidentes incapazes de se sustentar perante especialistas, munidas apenas de artifícios retóricos para promover a adesão sentimental da maioria, é uma prática desonesta.
Não há problema nenhum em se fazer um estudo acadêmico sobre a eficácia da cloroquina ou do uso de máscaras no combate à Covid, caso algum pesquisador julgue-o relevante.
Agora, defender aguerridamente a cloroquina ou atacar as máscaras nas redes sociais e em jornais de grande circulação é desonesto e prejudicial.
Se os principais participantes do debate público não se comprometem a se pautar pelo estado atual da discussão entre especialistas, criam mundos paralelos de desinformação.
O único resultado possível é a polarização da sociedade em grupos cada vez mais incapazes de se comunicar. O conhecimento se perde em meio aos ruídos da política.
No plano do conhecimento, da discussão ideias, a liberdade deve ser total. E não há necessidade alguma de chegarmos a consenso; podemos passar a eternidade discordando, sempre com argumentos melhores, com enorme prazer nessa empreitada.
No plano do debate público, contudo, decisões concretas impactarão a todos nós.
A desonestidade é sempre ruim, mas em momentos de calamidade, nos quais uma crença equivocada pode levar a milhares de mortes, torna-se intolerável. O próprio debate público, sem um chão comum na verdade objetiva, perde sua razão de ser. O cerceamento do extremismo desonesto é bem-vindo.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Hélio Schwartsman: Judeus ultraortodoxos apostam na proteção de Deus contra o vírus
'Quantos funerais este funeral irá ocasionar?', pergunta-se uma 'haredi'
Deu no New York Times. Em Israel, religiosos ultraortodoxos representam 12,6% da população, mas respondem por 28% das infecções por Covid-19.
Não é difícil entender as razões físicas para o excesso de contágio. Os ultraortodoxos, também conhecidos como "haredim" (tementes), tendem a constituir famílias numerosas, que dividem habitações de poucos cômodos. Desconfiam profundamente de tudo o que venha do Estado, incluindo recomendações sanitárias. Alguns até usam máscaras, mas fazê-lo está longe de ser a regra.
Talvez mais importante, os "haredim" não renunciam à vida comunitária, cujas práticas frequentemente os colocam em aglomerações. Ironia perversa, dão grande valor aos ritos fúnebres, que exigem que cada fiel abra caminho na multidão para tocar o esquife do morto. "Quantos funerais este funeral irá ocasionar?", perguntou-se uma "haredi" chocada com as cenas de empurra-empurra em um enterro.
Menos sondáveis são as razões metafísicas para a despreocupação com a doença. Há lideranças que afirmam que Deus os protegerá do vírus. A essa altura, porém, a maioria dos fiéis já percebeu que isso não é verdade. Ainda assim, perseveram em seu comportamento.
O motivo tampouco é o desprezo para com a ciência. Ao contrário de muitos grupos religiosos tradicionalistas, "haredim" costumam aceitar a ciência e a tecnologia, que usam de domingo a quinta-feira. O ponto inegociável para eles é que quando ciência e fé se chocam, é sempre a fé que prepondera. E a fé, ao contrário da ciência, não precisa demonstrar suas razões.
O que me intriga é que a melhor hipótese científica para explicar o fenômeno da religiosidade é que ela atuaria como uma espécie de cola social, que favoreceria a sobrevivência de indivíduos que pertencem a grupos coesos. A Covid-19 e epidemias em geral, embora não falseiem a tese, mostram que existem situações em que a coesão pode ser letal.
Pedro Fernando Nery: Para onde vai o dinheiro que o governo gasta com os Estados?
A discussão sobre um novo benefício social é também uma discussão federativa
O valor recebido por habitante em pagamentos federais é três vezes maior no Rio de Janeiro do que no Pará. Os pagamentos do governo federal por pessoa são 50% maiores no Rio Grande do Sul do que no Rio Grande do Norte. O gasto com cada cidadão no Distrito Federal é 25 vezes maior do que no Amazonas.
Na última semana, defendi na coluna a necessidade de reformas que orientem os gastos públicos para os mais pobres. Um ponto de partida é examinar para onde vai o gasto no espaço. Façamos isso para o gasto direto do governo – deixando para a próxima oportunidade a discussão do gasto indireto, as renúncias de impostos.
A maior parte do gasto federal corresponde a algum tipo de transferência, isto é, um pagamento mensal diretamente na conta de uma pessoa física. São salários de servidores, benefícios de regimes de previdência (aposentadorias, pensões), benefícios trabalhistas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (seguro-desemprego, abono salarial) e benefícios assistenciais (Bolsa Família, BPC). O grau de contrapartida desses pagamentos, portanto, varia.
Em 2019, somaram R$ 1 trilhão e 100 bilhões – algo como 80% da despesa primária total do governo federal. Por sua natureza, é mais fácil identificar a distribuição regional desses gastos. Por exemplo, quanto vai para cada Unidade da Federação (UF). Como elas possuem populações muito diferentes em tamanho, é pertinente dividir o gasto em cada UF pela sua população. Daí decorrem os dados do primeiro parágrafo, que apontam para como a União distribui seus recursos em termos per capita e como o dinheiro federal afeta as economias locais.
Se é de se esperar que o gasto federal em cada lugar seja diferente porque cada Estado tem um número de habitantes diferente, não é tão óbvio que o gasto por habitante seja divergente. E talvez seja surpresa para o leitor que, sim, ele é muito divergente. Isso ocorre por diversas razões, algumas mais legítimas (Estados mais envelhecidos possuem mais aposentados) outras nem tanto. É o caso da proteção social muito atrelada ao emprego formal, que resulta em pouco gasto justamente em regiões mais pobres.
É o caso também das despesas relacionadas ao funcionalismo, que geram dispersão nos dados pela desigualdade na distribuição espacial de órgãos federais – já que seus servidores são mais bem remunerados em termos relativos e há um contingente elevado de aposentados e pensionistas que se beneficiou de regras favorecidas de inatividade. Parece haver, por exemplo, uma desproporção de militares das Forças Armadas no Rio de Janeiro.
Assim, os pagamentos anuais por habitante vindos do governo federal são de R$ 65 mil no Distrito Federal (o maior), mas de R$ 2.500 no Amazonas (o menor). Fecham o top 5 Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
Estados mais desenvolvidos parecem ser mais bem servidos de órgãos federais e receber benefícios sociais de maior valor, como da previdência urbana e do FAT, associados ao emprego formal. Regiões menos industrializadas, com maior desemprego e informalidade, recebem pouco deles, se apoiando na assistência – o Bolsa Família é o mais recebido, e de valor bem baixo.
Amazonas e Pará, que são os mais preteridos, destoam de outros Estados pobres por duas razões. Ao contrário de Estados do Nordeste, recebem pouco da previdência rural, que paga benefícios bem maiores que o Bolsa Família, de um salário mínimo. O fato pode se explicar por terem a Floresta Amazônica em seus limites, limitando a economia rural. Isso sem possuir uma vantagem de outros Estados amazônicos: o de serem ex-territórios federais, que contam com o custeio pela União de ex-servidores locais, com salários maiores – fonte relevante de entrada de recursos.
Já o caso do Distrito Federal parece em algum grau condizente com a prosperidade observada em outras localidades administrativas que lideram os indicadores de renda de suas regiões. É assim em condados da Virgínia vizinhos ao Distrito de Colúmbia (que sedia Washington), ou mesmo Bruxelas, base para órgãos decisórios da União Europeia. Pode-se discutir, porém, o tamanho do prêmio salarial do serviço público federal, assim como o nível das contribuições previdenciárias de aposentados e pensionistas (civis e militares).
Com os avanços da tecnologia da informação, poderia ser saudável uma desconcentração maior que a existente hoje de órgãos da administração indireta para Estados pobres, reduzindo a parcela da arrecadação consumida em Brasília e com efeitos positivos sobre essas economias locais, em arranjo mais próximo do europeu.
O experimento do auxílio emergencial questionou nosso modelo de gasto público. Com critérios de pobreza e baseado na ausência de emprego formal, as transferências per capita foram muitíssimo maiores no Nordeste e no Norte. A discussão sobre um novo benefício social é também uma discussão federativa.
*Doutor em economia
Eliane Cantanhêde: E daí, deixar pra lá?
Bolsonaro é contra isolamento, máscara e vacina, mas oferece o que contra a covid-19?
O presidente da Câmara, Arthur Lira, interditou definitivamente a palavra “impeachment” e o do Senado, Rodrigo Pacheco, engavetou indefinidamente a CPI da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro, porém, precisa responder uma pergunta que o Brasil faz e a história ratificará: qual é a política dele para enfrentar a pandemia? Ninguém sabe, ninguém viu.
Sua ojeriza à ciência, à medicina, à pesquisa e às estatísticas é chocante e seu comportamento e suas declarações raiam o patológico. Ele é contra todas as medidas internacionalmente consensuais na pandemia, mas não contrapõe nada, não apresenta uma única proposta no lugar.
Quase um ano, 255 mil mortos e 10,5 milhões de contaminados depois, o presidente ainda trata a Covid-19 como “gripezinha”, anunciou que a doença estava no “finalzinho” exatamente quando ela disparava de novo e é capaz de levar a sério quem chama de “fraudemia” uma pandemia que matou 2,5 milhões de pessoas no planeta.
Todos os países sérios priorizaram o isolamento social, mas Bolsonaro não seguiu estudos do Exército e da Abin e não liderou o Brasil nessa direção. Ao contrário, trabalhou contra, promoveu aglomerações até diante do QG do Exército e ameaça os governadores: quem decretar lockdown que pague o auxílio emergencial. Sem vacinas suficientes, que alternativa eles têm? Lavar as mãos para as mortes?
No domingo, em pleno caos no País, ele postou imagens de um protesto contra medidas restritivas no DF, com 97% das UTIs lotadas. Assim como os bolsonaristas comemoraram o recuo das restrições no Amazonas, que deu no que deu, os filhos do presidente defendem o recuo do DF, que vai dar no mesmo.
E quem explica a guerra de Bolsonaro – ou dos Bolsonaros – até contra máscara? Ele continua abraçando incautos ou áulicos sem ela, no Planalto e em campanha pelo interior, implicou com Roberto Castello Branco, da Petrobrás, porque ele usava e quem vai ao Planalto é constrangido a tirar a sua. Por que isso incomoda tanto Bolsonaro, como as cadeirinhas nos carros? Mistério!
Depois de o presidente lançar fakenews contra máscaras, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta me enviou uma lista de links, em português e inglês, sobre a importância dessa proteção para conter o vírus e as mortes. E, no domingo, nada mais nada menos que 45 entidades médicas alertaram que desacreditar as máscaras só “agrava a situação do País”. Logo, o presidente agrava a tragédia brasileira.
Como esquecer o empenho obstinado de Bolsonaro contra as vacinas? Ele desautorizou o general Eduardo Pazuello ao cancelar a compra “dessa vacina chinesa do Dória” e, quando um voluntário dos testes se suicidou, acusou irresponsavelmente a vacina por “morte, invalidez e anomalia”. Mas o que seria do Brasil sem a Coronavac?
O governo pendurou-se num único fornecedor, a Oxford-Astrazeneca, desdenhou da Pfizer, ignorou a Sputnik, a Moderna, a Janssen... Segundo o presidente, quem quer vender que se mexa e, para mostrar que não é “maricas” e é “imbroxável”, anunciou: “Não vou tomar vacina e ponto final”. Incrível!
Logo, o Brasil sabe que Bolsonaro é contra isolamento, máscara e vacina. O que o Brasil não sabe é como, então, o presidente pretende combater a Covid-19. Essa resposta é fundamental para os brasileiros saberem que saída genial e original ele tem para salvar vidas, o sistema de saúde, a economia e os empregos. Andando de jet-ski?
É isso que 19 governadores, 45 entidades médicas, epidemiologistas e cidadãos querem, e precisam, saber. Aliás, um registro: na foto da reunião de domingo no Alvorada, o capitão e seus generais estão sem, mas Paulo Guedes, Pacheco e Lira estão de máscara. Que recado eles quiseram passar? Que, diferentemente do presidente, são a favor da vida?
Paulo Hartung: A necessária resiliência e os aprendizados em travessias tormentosas
Nas palavras de Albert Camus, ‘a única maneira de lidar com a peste é com decência’
Todo tempo crítico tem ao menos duas “forças” essenciais: aprendizado e finitude. Não há tormenta que dure para sempre e ela será tanto menos danosa, e o mais breve possível, quanto maior for a nossa resiliência, definida como capacidade de suportar, lidar e reagir positivamente a contextos adversos. No caso de uma dramática crise sanitária, com milhares de mortos por dia e sem horizonte claro de fim, essa é uma tarefa ainda mais desafiante.
Em meio à dor e às perdas impostas pela pandemia, no entanto, o Brasil vem registrando movimentos, especialmente no âmbito da sociedade civil, no sentido de produzir saberes e elaborar aprendizados relativamente à tragédia virótica, até para que possamos sair o mais rapidamente dela e um tanto mais habilitados a, efetivamente, nos recompormos social e economicamente no pós-crise.
Nesse aspecto ontem foi lançado um livro muito especial, reunindo reflexões acerca da experiência de tempos tão críticos no tocante a diversas áreas das políticas públicas. Trata-se da materialização de um esforço que merece ser celebrado como uma contribuição ímpar do olhar racional para extrair aprendizados de um ano dessa crise aqui, no Brasil, e em favor de uma nova história a partir dela, até mesmo com o objetivo para nos preparar para outros enfrentamentos de natureza similar no futuro.
Legado de uma Pandemia: 26 Vozes Discutem o Aprendizado para a Política Pública, organizado por Laura Müller Machado, tem quatro partes, tratando de campos específicos: ordem social, ordem econômica, organização do Estado, política e comunicação. O projeto foi viabilizado pelo Insper e pela Fundação Brava.
Na série de quatro eventos online que marcam o lançamento e a oferta gratuita do e-book, amanhã, participamos como comentarista dos cinco capítulos da parte 3, Legado para a organização do Estado, cujos textos serão apresentados por seus autores na ocasião.
Em O legado para a governança colaborativa, Sandro Cabral discute a necessidade impositiva de governos colaborativos, tanto entre si quanto com as organizações da sociedade civil. Pontua que a colaboração exige persistência e decisão política, preconiza pouca vaidade e requer o exercício genuíno da liderança em meio a enfrentamentos agendados por múltiplos fatores e atores.
Em Covid-19, federalismo e a descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual?, Diego Werneck Arguelhes e Natália Pires de Vasconcelos discutem a posição, que consideram pontual, do Supremo Tribunal Federal (STF) de incrementar a competência concorrente de Estados e municípios diante da majoritária jurisprudência de opção pela postura centralizadora e unificadora da Corte.
Marcelo Marchesini da Costa e Gabriela Lotta, em A gestão pública vigilante, expressam que a pandemia trouxe à tona o que chamam de burocracia que se posiciona acerca de decisões das lideranças, seja para enfrentar o que se considera equívoco administrativo-científico, seja para se insurgir contra determinações de possível cunho ideológico. Apesar de apontar os riscos desses comportamentos, que não seriam precípuos da burocracia, o texto sugere que gestões vigilantes podem ser um contrapeso a desmandos.
Em As lições aprendidas com a resposta do sistema de saúde, Francisco Inácio Bastos e Elize Massard da Fonseca pontuam limitações e também ações de alta relevância, em meio a problemas estruturais e fatores políticos perturbadores. Consideram que um dos aspectos mais relevantes da resposta do Brasil à covid-19 foi a capacidade de desenvolver ações de ciência, tecnologia e inovação, permitindo soluções céleres.
Ricardo Paes de Barros e Laura Müller Machado, em A pandemia e o início do fim da invisibilidade, registram que a incapacidade de saber quem são os brasileiros mais empobrecidos e de levar o Estado até eles acabou revelando a invisibilidade de segmentos inteiros da sociedade. Dizem que, para um país que destina 25% do produto interno bruto (PIB) a assegurar direitos sociais, nada justifica a existência de populações sob a escuridão da identidade e o apagão da comunicação com os governos – a não ser uma tendência de manter contingentes à margem das conquistas civilizatórias.
A partir da leitura do livro se incrementa a certeza de que é urgente um esforço amplo de modernização do Brasil, movimento que vai do aprimoramento do pacto federativo, passa pela reforma das estruturas governativas e alcança a desconstrução dos sustentáculos perversos da desigualdade estrutural, que torna inviável qualquer projeto de nação justa, cidadã, inclusiva e sustentável em nosso país.
Esse livro, para além de sedimentar aprendizados valiosos em tempos tão duros, merece ser visto como uma inspiração para novas produções. Afinal, como diz uma das epígrafes da edição, nas palavras de Albert Camus, “a única maneira de lidar com a peste é com decência”, aqui materializada com o melhor da visão de origem científica, o convite à prática da resiliência e da empatia e a valorização imperiosa dos princípios democrático-republicanos a organizar a vida nacional.
*Economista, presidente executivo da IBÁ, membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)
Correio Braziliense: Governo prepara MP para permitir redução de salários e suspensão de contratos
Ministério da Economia avalia reedição de medidas para permitir diminuição temporária de salários e suspensão de contratos de trabalho. Objetivo é dar alívio financeiro às empresas para enfrentar o recrudescimento da pandemia de covid-19
Vera Batista, Correio Braziliense
Uma nova rodada de suspensão de contrato de trabalho e redução de jornada por quatro meses fará parte, em breve, de um pacote do governo para aliviar o caixa das empresas, diante da nova onda de contaminação pelo coronavírus. A proposta é semelhante à do ano passado, com a Medida Provisória (MP 936). O Ministério da Economia confirmou que está em estudo um novo programa de manutenção de emprego e renda. “No entanto, como está em estudo, ainda não há definição sobre seus moldes”, destacou o órgão.
Na prática, o governo terá de reconstruir todo os instrumentos de enfrentamento à Covid-19 lançados no ano passado, na análise do economista Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas. Dentre elas, a concessão de financiamento para o pagamento da folha salarial e o benefício emergencial de manutenção do emprego e da renda. “As medidas são urgentes e ainda mais necessárias neste ano do que em 2020”, observou o economista.
Ele entende que empresários e trabalhadores, sobretudo de alguns ramos do comércio, já sofreram intensamente em 2020 e não têm reservas para suportar novo lockdown sem o apoio do governo. “Com a experiência do ano passado, o governo poderá, inclusive, focar melhor o conjunto de benefícios. Em 2020, de R$ 604,7 bilhões autorizados, foram efetivamente pagos R$ 524,0 bilhões”, afirmou Castello Branco.
Se forem seguidos os parâmetros de 2020, a redução salarial será de 25%, 50% ou 70% por meio de acordos individuais, além de suspensão do contrato por prazo de até nove meses, considerando as prorrogações. Os empresários também poderão negociar acordos para antecipar férias individuais, férias coletivas, banco de horas e home office, conforme ficou permitido durante a vigência da MP nº 927, de março de 2020. Como no passado, a previsão é de que a União entre com contrapartida para complementar a renda dos que tiverem redução de jornada e salários ou contratos de trabalho suspensos.
R$ 15 bilhões
Em 2020, 9,8 milhões de trabalhadores foram afetados pela suspensão de contrato ou corte de jornada. Eles tiveram direito a uma estabilidade provisória no emprego. Em caso de demissão, a empresa precisa pagar uma indenização maior. Para os que tiveram redução de jornada e salário foi dada uma compensação na proporção do valor do seguro-desemprego. A compensação foi de 25%, 50% ou 70% do seguro-desemprego, que varia de R$ 1.045 a R$ 1.813,03
Desta vez, empresários calculam que o gasto ficará em torno de R$ 15 bilhões. Ainda não está definida qual será a fonte de recursos, se o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) ou por meio de crédito extraordinário, com a aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) Emergencial, em tramitação no Congresso.
Desde dezembro, o secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, Bruno Bianco, anunciou que o prolongamento do programa para 2021 estava em estudo. Na época, Bianco reconheceu que havia uma restrição orçamentária.
RPD || Mauro Oddo Nogueira: O Brasil tem jeito - Basta olhar para o BRASIL
Para falar sobre a economia brasileira, com bases reais, é preciso tratar da realidade dos autônomos e empregados informais invisíveis, que o Auxílio Emergencial tornou momentaneamente visíveis – e também, dos autônomos e empregados formais das nano, micro e pequenas empresas (MPEs), avalia Mauro Oddo
Por mais idas e vindas que se apresentem, a vacina não tarda. Então, é hora de refletir sobre como reconstruir o tecido produtivo do Brasil, após uma crise estrutural que se arrastava há 4 anos e à qual se somou o cataclismo da Covid-19. A resposta pressupõe uma reflexão sobre, afinal, de qual Brasil estamos falando? Pensamos somente no Brasil da Avenida Paulista ou incluímos o BRASIL no qual a renda média do trabalhador é de R$ 2.400,00 por mês (com uma mediana bem abaixo disso)?
Vamos, pois, falar um pouco do BRASIL. Ele é composto, basicamente, por dois segmentos de trabalhadores. O primeiro, autônomos e empregados informais, representando cerca da metade dos trabalhadores do país. São os invisíveis que o Auxílio Emergencial tornou momentaneamente visíveis. O segundo, os autônomos e empregados formais das nano, micro e pequenas empresas (MPEs): cerca da metade dos trabalhadores formais. Ou seja, ¾ dos trabalhadores é o contingente que dá forma à desigualdade no Brasil. Portanto, falar de economia brasileira sem falar deste BRASIL é falar de qualquer outra coisa, menos da economia brasileira.
Mas o fato é que só episodicamente essa realidade não foi marginal em nossos projetos de desenvolvimento. Desde a temática econômica da mídia às políticas públicas e às Universidades, com raríssimas exceções, esse mundo passa longe. Longe dos currículos dos cursos de Economia, Administração, Engenharia e Direito, aqueles que conformam o ethos das nossas “elites dirigentes”; das discussões na mídia; e, quando muito, é periférico nas ações governamentais. Não pensamos no BRASIL, pelo fato de o desconhecemos. O Brasil dos debates e das políticas econômicas é e sempre foi o Brasil da Avenida Paulista. O resto é “questão social” …
E o que nos diz o olhar em direção ao BRASIL? Diz, incialmente, que a lenda de “primeiro crescer o bolo para depois dividi-lo” – bordão da ditadura que continuou subjacente à boa parte das políticas econômicas que se seguiram – é uma falácia. Seja porque esse momento “da divisão” nunca chega, talvez seja porque a realidade mostra que a lógica deve ser exatamente a inversa. É pela criação de demanda que a economia se desenvolve. E criação de demanda em nosso país se traduz essencialmente em elevação da renda da população do BRASIL. Temos duas provas recentes disso. A política do salário mínimo conduzida por Lula é uma. A outra é a evidência de que só não ocorreu um colapso econômico por conta da pandemia, graças ao Auxílio Emergencial.
Mas aí caímos em uma outra questão: como elevar a renda dessa população? Não entrarei na questão das transferências e dos programas de renda mínima, tema merecedor de tratamento muito mais atencioso nos debates. Vou me ater à vertente produtiva e o que considero seu conceito chave: produtividade do trabalho. Como dito acima, o BRASIL produz, basicamente, na informalidade e nas MPEs. Apresentarei apenas uma comparação: aqui, a produtividade de um trabalhador de uma pequena empresa formal é 27% daquele de uma grande; e de uma micro, é de 10%.
Na Alemanha, essas relações são de 70% e 68%, respectivamente (dados da CEPAL de 2012). Imagine nas atividades informais! Por favor, não digam que esse trabalhador é, como indivíduo, muito menos produtivo que o alemão. Não! Se colocarmos um desses trabalhadores em um posto de trabalho de uma grande empresa nacional ou de uma microempresa alemã, sua produtividade rapidamente se igualará àquela normal dessa empresa. O problema está no conteúdo técnico do posto de trabalho. Em outras palavras, tecnologias de processo e de gestão.
Fica evidente que não há como aumentar a renda do trabalho sem aumento de produtividade. E não há como aumentar sistemicamente a produtividade sem demanda, isto é, sem renda. Assim, somente um círculo virtuoso de produtividade e renda pode nos levar a superar o atraso econômico e a desigualdade social. E não há outro caminho para tanto senão um investimento maciço por parte do Estado no conteúdo técnico dos postos de trabalho via modernização de processos organizacionais e produtivos das MPEs. Isso pressupõe profunda revisão (ou reinvenção) da arquitetura e dos montantes dos mecanismos de crédito, de apoio em qualificação gerencial e de regulação ora oferecidos para o BRASIL. O que, por sua vez, pressupõe tirar o binóculo da Avenida Paulista e colocar o BRASIL no “centro do prato” das políticas econômicas, deixando de destinar para ele apenas “as migalhas que caem da borda”, via programas sociais de “geração de emprego e renda”.
*Mauro Oddo Nogueira é doutor pela Coppe/UFRJ e pesquisador do Ipea. Autor de Um Pirilampo no Porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil.
Fernando Gabeira: Os caminhos na tempestade
As coordenadas para tirar o Brasil da crise chocam-se com a visão de mundo de Bolsonaro
O foco de nossas discussões hoje no Brasil tem sido o governo: atacar ou defender o que está aí, arranjos para derrubar ou manter Bolsonaro de pé.
No entanto, há uma crise de grandes proporções no horizonte. Não importa quem estiver em Brasília, enfrentará um enorme desafio para simultaneamente amparar os mais vulneráveis e fazer o País andar.
Para o economista Armínio Fraga, é profundo o tamanho do buraco. Ele calcula que será necessário, em recursos, o equivalente a oito pontos do PIB para sairmos dessa.
Nesse ponto é que uma reflexão política pode ajudar. O governo segue dois caminhos perigosos. Ambos tornam a tarefa mais difícil.
A visão atrasada da política ambiental pode ser um obstáculo decisivo, pois consegue, ao mesmo tempo, afugentar investidores internacionais e desvalorizar os produtos brasileiros lá fora. Ou, no limite, até tornar alguns inviáveis.
A política sanitária negacionista completa esse quadro. O desempenho brasileiro no combate ao coronavírus também não ficará barato para a Nação. Pontualmente, o mercado da carne foi atingido. Mas o turismo dificilmente se recupera rápido. O fato de sermos uma região onde o vírus não é controlado significa inúmeros transtornos, que repercutem até na dificuldade do Flamengo de contratar um técnico de futebol no exterior.
A existência de um governo com essas características torna a tarefa de recuperação, com a demanda de recursos que implica, gigantesca, quase impossível.
O ponto central no momento é a reforma tributária. O pulo do gato é um imposto sobre transações eletrônicas, bastante aceleradas sobretudo depois que a pandemia se instalou no País. É uma CPMF adaptada às condições da nova situação criada pelo coronavírus e que, de certa maneira, já se verificava como consequência da revolução digital.
Aí reside outro nó político. Como convencer a sociedade, devastada pela crise sanitária, a pagar um novo imposto, ela que já o recusou em outras circunstâncias?
A única possibilidade de atenuar a resistência será um esforço visível do governo para reduzir os custos da máquina. Nos cálculos de Armínio Fraga, isso poderia representar três pontos do PIB, sem perda de eficácia da máquina.
A própria ordem dos fatores dificulta essa saída. O governo, primeiro, pensa em introduzir um novo imposto. Só depois, possivelmente, falará em reforma administrativa. Mesmo assim, não se conhece em detalhes o que ele pensa sobre isso. Haveria mesmo uma racionalização convincente da máquina, uma certeza cristalina de custos menores pela prestação dos serviços públicos?
A previsão é de que, mesmo sem orçamento de guerra em 2021, o governo seja pressionado a gastar. A dívida no longo prazo torna-se problemática e a tendência será buscar dinheiro com prazos cada vez mais curtos.
Tudo isso é um grande problema no médio prazo. Uma razão a mais para pedir uma verdadeira política ambiental, uma guinada no negacionismo sanitário, uma ampla reforma da máquina administrativa.
Mas que sucesso teriam essas demandas num governo que cultiva o isolacionismo e a negação?
Breve teremos eleições nos Estados Unidos. Existe uma possibilidade concreta de vitória de Joe Biden. Bolsonaro embarcou cegamente na canoa de Donald Trump.
Esse deslumbramento provinciano é inadequado para um presidente do Brasil. Mas agora já aconteceu. Existem quadros na diplomacia brasileira que poderiam atenuar o impacto negativo dessa política. Mas o atual ministro é o símbolo dessa política que vê em Trump a salvação dos valores ocidentais – embora quase todos saibamos que, se dependessem de Trump, os valores ocidentais já estavam destruídos.
Quando articulo todos esses elementos de análise, concluo que dificilmente este governo tem condições de superar a crise no horizonte.
Derrubá-lo num movimento traumático abalaria em muitos dos seus eleitores a confiança na democracia. Daí não vejo outro caminho senão abordar a crise com propostas positivas e, simultaneamente, mostrar aos eleitores bem-intencionados que não há solução com Bolsonaro. As coordenadas para tirar o Brasil da crise chocam-se diretamente com sua visão de mundo.
Quanto mais rápido se completar esse movimento, mais tempo teremos para abordar a crise de forma criativa, aplicando no futuro não só as lições do passado, mas, acima de tudo, aquelas que se tornaram evidentes durante a pandemia.
As diferenças sociais no Brasil não podem apenas ser combatidas com a ideia de que é preciso aumentar o consumo de eletrodomésticos e carros. Existe um consumo de qualidade que pode surgir de um eficaz serviço público: saneamento, educação, sistema de saúde universal e bem equipado.
A enorme potencialidade do Brasil, popular, intelectual, científica, enfim, todos esse fatores que o governo despreza precisam estar juntos de novo não apenas para derrubá-lo, mas para enfrentar seu legado negativo no processo de reconstrução. São dois momentos diferentes, reconheço. Mas deveriam estar, dentro do possível, entrelaçados, pois nunca atravessamos uma tempestade tão perfeita.
Giuseppe Vacca: A crise econômica mundial não decorre só da pandemia
Deixemos de pensar que a espantosa recessão que nos acometeu é só o fruto da pandemia e do Cisne Negro que atormenta este infeliz 2020. Não é assim: a queda do ciclo econômico é, antes de tudo, o resultado da inadequação com que foi enfrentada a crise mundial anterior, a de 2007-2008, quando se evitou discutir as origens da crise e as incoerências do modelo de desenvolvimento, que agora novamente apresentam a conta. É o que afirma com paixão, nesta entrevista a FIRSTonline, Beppe Vacca, que não é economista, mas filósofo da política, ex-deputado do PCI e ex-presidente do Instituto Gramsci, e que, como intelectual de primeira linha que é, está acostumado a pensar alto e a buscar o sentido geral dos diversos aspectos que compõem a realidade e, sobretudo, a não encerrá-la nos estreitos limites domésticos. A pandemia e a crise econômica não podem ser interpretadas só segundo esquemas nacionais, assim como é ilusório pensar num novo “milagre econômico” em termos só italianos.
Para compreender o que está realmente acontecendo, é preciso abrir as janelas sobre o mundo, compreender que a Itália enfrenta o verdadeiro desafio na Europa e que é inútil colocar objetivos excessivamente ambiciosos, porque o governo Conte 2 é “uma coalizão de emergência, não uma aliança reformadora”. Refundar o nosso sistema econômico é certamente necessário, mas não agora. Mas eis como Vacca vê a situação que estamos vivendo, ecoando o que escreveu há alguns meses no seu novo livro O desafio de Gorbachev. Guerra e paz na era global (Ed. Salerno).
Professor Vacca, se a Fase 1 da situação de emergência coronavírus e a Fase 2 do recomeço foram muito difíceis, não menos problemática se anuncia a Fase 3 da retomada econômica: há quem fale de reconstrução da Itália diante de uma recessão epocal, mas, visto que não crescemos há mais de vinte anos, não acredita que seja o momento de elevar as expectativas e visar a uma verdadeira refundação do nosso sistema econômico? Mas em que bases?
Esta pandemia tem um caráter global e, portanto, não consigo imaginar a retomada da economia italiana prescindindo da evolução da pandemia em escala mundial. Aprendendo com a experiência chinesa, em todos os países atingidos as medidas adotadas até agora são medidas de contenção da infecção, não de neutralização do vírus, como se prevê que acontecerá com a descoberta de uma vacina apropriada e sua aplicação na população mundial. Um período de alguns anos, dizem os especialistas. Se a contenção da epidemia na Itália se revelar eficaz, serão mitigadas e a seguir eliminadas as medidas de isolamento, bloqueio das atividades, da circulação, etc. A economia, como se costuma dizer, será desbloqueada; mas não poderemos relançar e muito menos “refundar” o sistema econômico sem considerar a evolução da crise econômica mundial. O tema é amplo demais para abordá-lo aqui. Para mim, bastaria que se deixasse de atribuir a crise econômica mundial à pandemia. Os 25% de desempregos a mais nos Estados Unidos, em um mês, não são só o efeito da pandemia, da ignorância e da demora com que foi enfrentada por Trump. Desde quando houve a “retomada” da economia americana graças às medidas financeiras adotadas em 2008, esperava-se para a primavera deste ano uma nova queda do ciclo econômico mundial devido, antes de tudo, ao fato de que os meios com os quais se deteve a crise de 2007-2008 repropunham o mesmo modelo de desenvolvimento da década precedente, que gerara a grande crise do subprime.
Franco Amatori, o historiador da economia, escreveu recentemente aqui mesmo em FIRSTonline, que a Itália precisaria do seu terceiro milagre econômico depois daqueles do início do século XX e do boom entre os anos 1950 e 1960, mas, para ter a expectativa de um novo milagre, seria preciso um New Deal ou, pelo menos, uma ideia geral do futuro da Itália cuja sombra não se vê: na sua opinião, como se pode preencher um déficit cultural e político deste tipo?
Concordo com o professor Amatori na invocação de um New Deal e vejo com uma ponta de otimismo que, na reconstrução da coalizão Democrática para as próximas eleições presidenciais americanas de novembro, despontem sinais rooseveltianos. Além disso, o impacto da pandemia e da crise global está relegitimando, quase por toda parte, os modelos da economia mista demonizados nos últimos 40 anos. Mas pensar num novo “milagre econômico” não me parece realista em termos puramente nacionais. O “milagre italiano” há 60 anos se verificou no contexto da regulação da economia mundial baseada no padrão dólar, no Plano Marshall e no compromisso dos Estados Unidos de recolocar em pé a Itália, com o fim de conter a presença das potências coloniais europeias, França e Grã-Bretanha, no Mediterrâneo.
Nada deste tipo está à vista hoje. A narrativa global proposta pelos Estados Unidos é a de uma nova guerra fria com a China. É uma narrativa enganadora. A guerra fria dos anos 1950 nasceu da convergência das duas maiores potências pós-bélicas (USA e URSS) para tentar reduzir a uma regulação bipolar um sistema mundial de relações internacionais já então tendencialmente multipolar. No mundo multipolar e interdependente de hoje, o esquema da guerra fria não pode ser proposto. Os desafios entre os grandes players globais devem ser encarados por meio da cooperação multilateral, senão cresce a tentação de uma guerra mundial, que talvez a Covid-19 tenha por ora afastado. De todo modo, antes de falar do mundo, deveríamos olhar para a União Europeia, quando menos porque é a dimensão em que a Itália pode renascer, com seus parceiros iniciais, ou afundar com eles e mais do que com eles.
A suspensão do Pacto de Estabilidade, o surgimento do novo MEE [Mecanismo Europeu de Estabilidade], a atenuação das regras sobre ajudas de Estado e das exigências sobre os bancos, além da nova arma disposta em campo pelo Banco Central Europeu, parecem indicar que desta vez, a despeito do pessimismo instrumental dos soberanistas, a Europa se fez sentir: a seu ver, existem as condições pelas quais, após as primeiras respostas no terreno econômico, a UE possa dar passos à frente também no terreno da unidade política?
Espero não estar errado, mas me parece que as medidas adotadas pela UE e a que fez referência, e sobretudo o Recovery Plan, marcam uma nítida inversão de tendência em relação à interpretação imposta ao Tratado de Maastricht antes e depois da posição assumida pela Europa, em 2008-2011, diante da crise global. O montante dos recursos mobilizados, as inovações de governance anunciadas, os tímidos acenos a um Plano Marshall europeu demonstram, a meu ver, que a União Europeia, diferentemente do que aconteceu há doze anos, não espera ver o que farão os Estados Unidos para depois ir a reboque. Talvez hoje a Europa seja capaz de maior iniciativa e, por outro lado, não se vê o que poderia vir dos Estados Unidos, onde Trump não deixou de demonstrar que não nos considera um aliado, mas, antes, um adversário.
É desejável que a virada se consolide e se afirme, eliminando o bloqueio da projeção mediterrânea da UE que se impôs depois das divisões provocadas pela guerra americana contra o Iraque em 2003. Naturalmente, o contexto é ainda mais turbulento e complexo do que então, porque a China assumiu neste meio-tempo um papel mundial que há quinze anos ainda não tinha, e a Rússia de Putin se recolocou de pé, cultivando uma aliança estratégica com a China depois que a UE barrou-lhe o caminho. Mas, mesmo num cenário tão complicado, o recurso da interdependência pode dar um papel também a países, como a Itália e as potências europeias médias, se souberem jogar em conjunto, como se viu na iniciativa dos 7, que teve um peso relevante na formulação da agenda europeia atual e no favorecimento de uma reorientação da Alemanha.
A Itália talvez deva se resignar à ausência de uma direita liberal e democrática, mas, hoje, mesmo o alinhamento progressista do nosso País não parece ter muitas ideias claras a oferecer: antigamente o PCI organizava os famosos seminários do Cespe [Centro studi di politica economica] ou do Instituto Gramsci, que eram grandes laboratórios de ideias, o PSI falava de “méritos e necessidades” com Claudio Martelli e de reformas com Giuliano Amato, enquanto Ugo La Malfa dialogava com Giorgio Amendola sobre o modelo de desenvolvimento. Será mesmo impossível reabrir na Itália uma nova fronteira do reformismo e de um novo europeísmo?
A ausência de uma direita liberal e democrática de nível europeu na Itália é um problema que se arrasta desde o fim da primeira guerra mundial. Não por acaso, o sistema político da Primeira República [1948-1992] não se baseava na alternância entre direita e esquerda, como nos outros países europeus, mas se sustentava na tensão e no equilíbrio de dois eixos sistêmicos: o antifascismo, que definia a área de legitimação democrática, e o anticomunismo, que delimitava o espaço da legitimação para governar.
Era uma arquitetura cada vez mais anacrônica desde os anos setenta e também por isso a nomenclatura dos seus partidos se engessou nos anos oitenta, aumentando a fragilidade competitiva do País e, caso único na Europa Ocidental, implodiu entre 1989 e 1992, sem ser substituída por uma estruturação mais eficiente e produtiva de uma classe política comparável à dos “trinta anos gloriosos”. Pessoalmente, não tenho nostalgia dos anos que o senhor evoca nem dos “laboratórios de ideias” que menciona. A qualidade da cultura de governo do PCI e do PSI, apesar das suas luzes e propostas inovadoras, mostrou-se no teste da “solidariedade nacional” nos anos setenta e no “duelo Craxi-De Mita” dos anos oitenta.
No entanto, não devemos nos resignar a coisa alguma. Em geral, a polarização tradicional entre direita e esquerda foi substituída por aquela entre europeísmos e antieuropeísmos, ditos correntemente “soberanismos” e “populismos”. Mas os sistemas de partidos são interdependentes e seus atores se influenciam e inovam uns aos outros. O europeísmo deve se renovar e se pôr à altura dos desafios para uma nova ordem mundial, baseada na interdependência multilateral, na cooperação e na reciprocidade. Este é, hoje, o reformismo.
Não se trata de ter nostalgia das ideias que circulavam na Itália nos anos setenta e oitenta, que eram filhas do seu tempo e de um preciso contexto histórico-político, mas, em face do diletantismo e da mesquinhez de boa parte da classe dirigente política de hoje, admitirá que devemos nos recordar da qualidade e da densidade cultural da classe política de então e nos perguntarmos por que caímos tanto. Não pensa assim?
Já temos uma boa historiografia sobre a Primeira República e, portanto, é possível fazer um juízo (mas será compartilhado?) sobre as qualidades e os limites da sua classe dirigente. Sobre a Segunda República não há uma historiografia comparável; de resto, a Segunda República não terminou.
Diante da falta na Itália de um projeto reformador forte e inovador, não o preocupa o viés estatista e assistencialista ao longo do qual o Cinco Estrelas, carente como é de uma verdadeira cultura de governo, tende muitas vezes a empurrar toda a centro-esquerda?
O estatismo é o sinal de economias nacionais frágeis porque periféricas em relação aos centros do desenvolvimento mundial ou, então, golpeadas pelo choque da globalização assimétrica e, enfim, pelas crises econômicas globais. O “estatismo” do Cinco Estrelas me parece outra coisa: mais semelhante a um assistencialismo de Estado próprio do “capitalismo compassivo”, como o que se desenvolveu nos Estados Unidos a partir dos anos oitenta para remediar a crescente fragmentação e fragilidade do mercado de trabalho, bem como a pulverização dos indivíduos na composição demográfica da economia digital, na ausência de um Welfare de tipo europeu que os Estados Unidos jamais alcançaram. As bases do consenso “populista” e “soberanista” na Itália nascem da fragilização do Welfare gerada pela estagnação econômica dos últimos 20 anos e pelo desmembramento do Estado unitário favorecido pela reforma do Título Quinto da Constituição, em 2001, e pelas leis eleitorais da Segunda República [1].
A resposta a estes processos, que, no entanto, estão presentes em medida diversa em toda a Europa, é a construção da soberania supranacional europeia e o realinhamento europeísta dos cidadãos e dos governos. Sob este aspecto o que está acontecendo com o Cinco Estrelas desde as últimas eleições europeias não é coisa banal. O processo político que estamos vivendo na Europa nasce da derrota da direita antieuropeia sustentada por Trump nas eleições do ano passado. A reorientação do Cinco Estrelas começou com a participação decisiva dos seus parlamentares na eleição da nova presidente da Comissão Europeia. Em seguida, graças à incrível e ainda não explicada jogada genial de Salvini, que em agosto rompeu a aliança amarelo-verde [Movimento 5 Estrelas + Liga de Salvini], formou-se a coalizão amarelo-vermelha [Movimento 5 Estrelas + Partido Democrático] que sustenta o atual governo: o primeiro governo nacional fruto da derrota da direita nas eleições europeias.
Mas se trata de uma coalizão de emergência, não de uma aliança reformadora. A primeira emergência era a de evitar a ruptura com a Europa por causa da “Lei Orçamentária do Papeete” e do crescimento despropositado da Liga de Salvini [2]. A esta emergência sobrepôs-se a da Covid-19, administrada mais do que dignamente pelo governo atual, antes de mais nada, no plano europeu. Agora não há uma alternativa neste Parlamento, no qual, de todo modo, o Cinco Estrelas é o partido de maioria relativa e não se pode pedir à coalizão, que sustenta o atual governo, um novo projeto reformador ou mesmo a refundação do modelo de desenvolvimento italiano. É um tema de médio prazo e de grande alcance que, antes de mais nada, interpela as forças de centro-esquerda e europeístas.
Às vezes, porém, a política sabe ser imprevisível e fantasiosa. Quem iria imaginar há um ano o surgimento de uma aliança entre o Cinco Estrelas, Renzi e o PD? Todavia, salvo esbarrões no interior do Cinco Estrelas, é efetivamente difícil pensar em novos equilíbrios políticos nesta legislatura, mas não se segue necessariamente que isso equivalha a uma apólice de seguro para o atual premiê. Não se pode nunca dizer. Pode haver muitos modos de administrar os mesmos equilíbrios políticos.
Se me recorda que “não se pode nunca dizer”, não posso contradizê-lo. Mas gostaria de lembrar que a confusíssima coalizão amarelo-vermelha nasceu porque o PD, ainda que fosse no Parlamento o segundo partido, ficou em apneia durante um ano antes de conseguir fazer um congresso e voltar a campo.
Professor Vacca, na sua famosa intervenção no Financial Times, Mario Draghi lucidamente sustentou que a crise induzida pelo coronavírus fez saltar os velhos paradigmas econômicos, mas que, para enfrentar a recessão e defender o euro, não é importante só oferecer subsídios imediatos às camadas mais frágeis da população, mas é fundamental fazer com que as empresas possam sobreviver e retomar a via do desenvolvimento para não destruir postos de trabalho: parece-lhe que esta advertência tenha se tornado suficientemente presente na Itália?
A advertência de Draghi era sacrossanta e não se dirigia só ao governo italiano, mas tinha e tem uma dimensão global, que põe em questão, antes de mais nada, as orientações da política econômica americana, as insensatas guerras comerciais exasperadas nos últimos anos, os antagonismos entre euro e dólar; numa palavra, a geoeconomia internacional. O caminho tomado pela UE no último mês parece assimilar esta “advertência”, e o mesmo se pode dizer do Decreto-Retomada agora predisposto pelo governo italiano.
A busca de um novo equilíbrio entre Estado e mercado é certamente o desafio mais importante de hoje e ninguém se escandaliza mais se, em circunstâncias particulares, como propôs até a Assonime [a associação entre as sociedades italianas de capital aberto], o Estado entrar temporariamente no capital das sociedades para salvá-las: mas não há o risco de que esta perspectiva, que é realista, termine por alimentar pretensões estatais de gestão, nostalgias fora de tempo, como a ressurreição do IRI [Instituto para a Reconstrução Industrial] ou mesmo nacionalizações insensatas?
Tomados em si, Estado e mercado podem se revelar categorias anacrônicas para julgar, hoje, as orientações e as escolhas políticas e econômicas em nível nacional, europeu e global. Podem criar involuntariamente uma armadilha conceitual e, de um modo ou de outro, desviar a atenção do problema fundamental que temos diante de nós desde o fim do sistema de Bretton Woods e o surgimento do mundo multipolar assimétrico e conflituoso de hoje. Temos o problema de fundo diante de nós há muito tempo, e ele se resume nestas perguntas: 1) como resolver a contradição entre o globalismo necessário ao crescimento econômico em toda e qualquer área do mundo e o nacionalismo/localismo da política?; 2) como adequar os espaços da política aos da economia no mundo atual e, antes ainda, ao nosso modo de perceber seus processos, antagonismos e crises?
Notas
[1] A reforma constitucional de 2001, aqui criticada pelo entrevistado, acentuou o princípio da autonomia local, reforçando as competências e o poder legislativo das Regiões em face das instituições centrais (governo e Parlamento).
[2] Papeete Beach, de Milão Marítima, é um resort habitualmente frequentado por Matteo Salvini, o chefe da Liga e amigo do proprietário. A Lei Orçamentária do governo anterior Liga – Cinco Estrelas foi ironicamente definida como “do Papeete”, por não ser fiscalmente rigorosa e responsável.
Bolívar Lamounier: Pandemia e pandemônio
Regime totalitário da China e desacertos de Trump e Bolsonaro agravaram a situação
Sobre a pandemia que o mundo está vivenciando dúvidas não faltam, mas podemos tranquilamente afirmar que a dimensão que ela alcançou se deve a uma combinação de fatores epidemiológicos e políticos.
Embora pouco protocolar, fez bem o embaixador chinês em Brasília em repreender um parlamentar que se referira ao coronavírus como o “vírus chinês”. De fato, a expressão do referido parlamentar foi infeliz e poderia alimentar a absurda teoria de que a China propositalmente criara e facilitara a propagação do vírus. É, porém, inegável que a China não alertou o mundo no devido tempo. Em meados de novembro do ano passado, a situação na cidade de Wuhan (situada na província de Hubei) já era crítica e o governo central chinês não se empenhou em prestar esclarecimentos ao mundo, de forma solene e oficial, como conviria a um país com as responsabilidades internacionais da China. Com certeza informou à Organização Mundial da Saúde (OMS), em data que desconheço.
Há quem pense que os chineses demoraram a prestar informações à comunidade internacional porque, nas primeiras semanas, nada sabiam, portanto, nada tinham para informar. Começaram a procurar uma vacina, mas tardaram a entender que o vírus sofrera uma mutação, era, portanto, algo novo, e então passaram a interagir com cientistas e médicos de outros países, facilitando o acesso deles aos dados que possuíam.
Os analistas que se apoiam nessa linha de raciocínio geralmente destacam que Beijing pediu cautela a seus especialistas a fim de evitar um alarme perigoso, que poderia até mesmo provocar uma convulsão social. Suponhamos que essa teoria tenha fundamento e que as informações indispensáveis seriam proporcionadas a outros países para que se preparassem no devido tempo. O fato, no entanto, é que o poder central chinês em nenhum momento se pronunciou sobre a matéria de forma ponderada, mas solene e oficial. Organizando medidas preventivas em tempo hábil, milhares de vidas poderiam ter sido poupadas e a aberrante atitude de alguns chefes de Estado que insistiram em minimizar o risco da epidemia durante cerca de três meses poderia ter sido contestada.
O fato, portanto, é que o todo-poderoso Xi Jinping reduziu o problema às esferas provincial e municipal, mesmo após saber que a disseminação do vírus seria extremamente ampla e após a OMS apontar seu caráter pandêmico. Na prática, o trágico aviso foi dado pela Itália, e em seguida pela Espanha, que não se prepararam adequadamente para o gigantesco impacto que receberam.
O caso mais difícil de compreender, um emaranhado que bem merece ser designado como um pandemônio político, é o dos Estados Unidos.
É sabido que o presidente Donald Trump foi alertado com bastante antecedência pelos serviços de espionagem, em particular pela Central Intelligence Agency (CIA), mas recusou-se a tomar providências preventivas, seja por interesse eleitoral ou por acreditar, em seu tosco entendimento, que a pandemia, na realidade, não passava de uma “gripezinha”, ou pela combinação dessas duas razões.
Fato é que o despreparo dos Estados Unidos para efetuar testes era espantoso. Em fevereiro, autoridades médicas federais falavam em testar 1 milhão e meio de pessoas, mas a revista The Atlantic entrou em contato com os secretários de Saúde dos 50 Estados e do District of Columbia (Washington, DC) e mostrou que a capacidade real do país para efetuar tais testes não passava de 2 mil por dia.
Nem testes, nem isolamento social. Se a propagação do vírus se dá por contatos entre pessoas, é óbvio que a medida mais importante, a ser tomada de imediato, é reduzir drasticamente tais contatos. Isso, como já se notou, Trump não faria. Foi só em meados de março que ele relutantemente aceitou a necessidade de quarentenas.
Comparado aos EUA, o Brasil (leia-se: o ministro Mandetta e as entidades e os profissionais de saúde) estão relativamente bem na foto. É, porém, meridianamente claro que não podemos subestimar os desníveis sociais, as diferenças de qualidade dos serviços médicos entre Estados e regiões, a compreensível preocupação dos que temem um efeito arrasador na economia, nem, e mais importante, as contínuas e desastradas intervenções do presidente Bolsonaro, adepto da mesma tosca teoria da “gripezinha” e, ao que tudo faz crer, incapaz de compreender os requisitos básicos do cargo para o qual foi eleito. Se dependesse só dele, decerto não teríamos implantado e não estaríamos mantendo razoavelmente bem a disciplina do isolamento social.
Há quem afirme, principalmente no tocante à Europa, que a ineficácia das medidas adotadas se deveu em grande parte a informações erradas recebidas da China até meados de janeiro, incluída a de que o vírus não seria transmissível entre humanos. Seja como for, parece-me fora de dúvida que fatores políticos agravaram enormemente a gravidade da pandemia: o regime totalitário de Beijing e desacertos infantis cometidos pelos presidentes dos EUA e do Brasil.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Brasileira de Ciências e Paulista de Letras
Míriam Leitão: Precisamos falar sobre os livros
Crise das livrarias pode virar um problema sistêmico e atingir um produto que tem um valor intangível
Há um problema rondando o Brasil, enquanto o país está totalmente dominado por suas muitas emergências e um novo governo está se formando: o risco de uma crise sistêmica na indústria do livro. As duas maiores livrarias estão em recuperação judicial e devem R$ 360 milhões às editoras. Juntas, são 40% do varejo do setor, e a crise estreitou o canal de venda. Restam as redes menores, mas hoje há 600 livrarias a menos do que antes da recessão. Esse setor tem impacto para além da economia e chega ao intangível da vida do país.
— Imagine o fechamento da loja do Conjunto Nacional da Paulista? Seria uma tragédia não apenas econômica —afirma Marcos da Veiga Pereira, do Sindicato Nacional das Editoras de Livros (SNEL), citando a megastore ícone da Livraria Cultura.
Como em todas as crises, não há uma razão só, nem soluções simples. A lista das causas que derrubam o setor é longa. Na Saraiva e na Cultura, houve erros de gestão. Livro tem um giro baixo, e o setor trabalha com pouco capital.
O país viveu nos últimos quatro anos a pior recessão da sua história, as vendas despencaram e só agora começam a subir. A tecnologia e a mudança de hábitos impõem mudanças do modelo de negócios. A venda online é uma realidade e tende a crescer, mas os editores afirmam que descontos agressivos acabaram dando prejuízo a todos.
— A venda online não tem margem e parte do princípio da captura do cliente. Para Saraiva e Cultura, que têm participação grande nessas vendas, isso foi minando o negócio. A própria Submarino, que antes da Amazon entrar era a grande vilã dessa história, saiu do negócio da venda de livros — diz Marcos Pereira.
O SNEL fez a proposta de fixar um limite máximo para o desconto no preço do livro, por um tempo. Isso significa intervenção na era do mercado livre. Eles sabem que é polêmica, mas argumentam que descontos predatórios podem matar o negócio. O consumidor que se beneficiou da queda do preço quer livro ainda mais barato.
O número de livrarias caiu porque o Brasil inteiro sentiu um impacto da recessão, acha Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias, mas o mercado se renova.
— Houve uma queda forte do número de lojas, mas, ao mesmo tempo que algumas fecharam, temos novas livrarias abrindo, a maioria delas por profissionais que começam com proposta nova, às vezes com uma loja única, mas que trazem fôlego renovado — diz Gurbanov.
Ele também define como “absurda” a guerra de preços que levou alguns livreiros a comprar por internet, evitando a editora. “Guerra fratricida”. Ele diz que a livraria é mais do que uma loja:
— Tem que ser um centro cultural, de curadoria, de livros expostos, eventos que podem ser desde lançamentos de livros a debates. Uma volta às origens.
Gurbanov informa que há redes crescendo de forma cuidadosa e cita a mineira Leitura. Contudo, na proximidade do Natal, as duas redes que são 40% do mercado e têm as maiores lojas estão desabastecidas.
Fábio Astrauskas, sócio e diretor da Siegen, especialista em recuperação judicial, diz que isso não é o fim da linha para as duas redes.
— Recuperação judicial tem o objetivo contrário, é para evitar a quebra da empresa, é para recuperar — diz ele.
Os caminhos são poucos. Astrauskas acha que, ao fim, Cultura e Saraiva terão novo dono. Só não sabe se um ou dois.
No filme sul-americano Severina, do diretor brasileiro Felipe Hirsch, a história se passa na Montevidéu dos tempos atuais, mas o clima é atemporal e a conjuntura política é apenas insinuada.
Numa livraria reúnem-se apaixonados por livros para debates e leituras conjuntas. O filme fala da força imaterial do livro. Até que ponto é irreal e romântico imaginar isso num mundo que se torna digital de forma avassaladora? A venda online e os novos hábitos reduzem o número de lojas no mundo. Tudo está em mudança, mas o livro ainda é predominantemente físico. Em qualquer formato, é mais do que mercadoria.
Luiz Schwartz, da Companhia das Letras, lançou dias atrás a sua “Carta de Amor aos Livros” com uma sugestão simples, que não resolve a crise, mas pode ser uma alegria: dar livro como presente neste fim de ano. Enquanto o setor encontra suas saídas, é bom pensar nos livros e seu valor intangível. Sem eles, fechados em bolhas digitais alimentadas por algorítimos, somos presas frágeis no tempo distópico que vivemos.
Roberto Freire: O fantasma ressurgido
As práticas populistas na economia, autoritárias na política e a corrupção sistêmica da esquerda autoritária, em conjunto, geraram a maior crise econômica, política e de valores pela qual o Brasil já passou
“Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa aliaram-se numa sagrada perseguição a esse espectro, o Papa e o Czar, Metternich e Guizot, radicais franceses e policiais alemães”.
O parágrafo acima é de Karl Marx e Friedrich Engels, em O MANIFESTO COMUNISTA, de 1848.
O comunismo, visto como o socialismo real, ruiu em 1989, com a queda do Muro de Berlim. Rondou a Europa por quase um século e meio.
Sobraram poucos países que viveram o socialismo de inspiração marxista, o principal deles, a China.
Este país atualmente vive o capitalismo de estado, avançado, sob uma ditadura do Partido Comunista, que, da origem, conserva apenas o nome.
Restam, aqui e ali, ainda alguns países pequenos que vivem regimes totalitários de inspiração comunista e marxista. Mas representam o atraso, o ontem e não têm condições de prosperar, a não ser se sofrerem profundas transformações em seus modelos autoritários e fechados.
O socialismo marxista, o chamado socialismo real, não progrediu porque carecia de democracia. O totalitarismo do partido único prevaleceu na política, na economia, na cultura e nos valores da sociedade. Não entregou o que prometia, uma sociedade avançada, em humanismo.
O burocratismo, o estatismo, o cerceamento das individualidades também limitou o território, não apenas da cultura, mas da ciência, inovação e tecnologia. Não foram do campo do socialismo real que surgiram as maiores conquistas científicas e tecnológicas da humanidade, embora, em algumas áreas, houve avanços importantes, como na indústria espacial. Eles, os avanços, em parte significativa, entretanto, não se universalizaram até porque a ausência da economia de mercado não criou o caldo de cultura para que prosperassem e fossem testados na realidade do mundo.
O sistema de países socialistas teve o mérito de dar voz a oprimidos e minoritários, de ter contribuído decisivamente para a ruína do sistema colonial e de ter modificado o capitalismo, pela competição e pelas ameaças que representou, caso o sistema da livre iniciativa não houvesse descoberto caminhos para a justiça social e para abrir-se ao novo e as anseios das maiorias e das minorias.
Seria um erro histórico se esquecêssemos a contribuição decisiva do sistema socialista real na derrota do nazifacismo. 3/5 do peso da máquina de guerra de Hitler foi jogado contra a então União Soviética, em busca da escravização de sua numerosa gente e dos vastos recursos naturais, cuja conquista poderia ter invertido o curso da Segunda Grande Guerra e da História.
O desenvolvimento do socialismo real, que chegou a grande parte do Planeta, teve um preço a pagar, inaceitável.
Refiro-me ao cerceamento das liberdades e das iniciativas individuais e no custo da repressão, em milhões de vidas humanas.
A queda do Muro de Berlim fez a humanidade entrar em uma nova era, a da busca da democratização e da regulação do sistema capitalista universalizado.
No Brasil, tem-se produzido um fenômeno na contramão do mundo inteiro.
As práticas populistas na economia, autoritárias na política e a corrupção sistêmica da esquerda autoritária, em conjunto, geraram a maior crise econômica, política e de valores pela qual o Brasil já passou.
Do outro lado do espectro político, em reação, surgiu no quadro político a ultradireita antidemocrática, que resgata valores que a Civilização havia deixado para trás.
Esse espectro extremo fez renascer um fantasma já extirpado do mundo civilizado, o anticomunismo.
“Comunistas”, na visão da ultradireita, são todos os que não pertencem ao seu estrito campo.
“Comunistas”, na visão da ultradireita, é a designação de um conjunto difuso de ideias que vão desde a democracia representativa, a república, a diversidade, o pluralismo.
Seria até engraçada e curiosa a extemporaneidade dessa corrente de pensamento tosca.
Mas é trágica, porque sua entrada no campo político acontece em um momento de crise no Brasil e no mundo, também no plano dos valores civilizatórios.
Pode resultar em tragédia, se a ultradireita prosperar, com a consequente desestabilização da conquista mais cara a todos os brasileiros, nestes últimos anos, o Estado Democrático de Direito, que assegura a liberdade de ser, pensar e agir, em sociedade civilizada.