crise economica
Revista online | Mercado informal e a recuperação fiscal
Eduardo Rocha*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)
A pandemia da covid-19 provocou tragédias humanas que afetaram os municípios, os estados e a União de forma sem precedentes com a rápida transformação da emergência sanitária numa crise econômica e social de grandes proporções. Isso provocou recessão econômica; queda do investimento, produção e consumo; fechamento de empresas; aumento do desemprego e precarização nas relações de trabalho; ampliação da economia informal; agravamento do endividamento, inadimplência e calotes de pessoas físicas e jurídicas; ampliação da vulnerabilidade financeiro-social das famílias; aumento dos gastos públicos, queda da arrecadação tributária e piora do desequilíbrio estrutural e conjuntural das contas públicas.
O avanço da vacinação durante 2022 contribuiu para amenizar e retomar positivamente alguns indicadores econômicos, mas o desafio fiscal ainda persiste e a sua superação exige, além da necessária reforma tributária, o enfrentamento da informalidade no Brasil.
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Mais claramente coloca-se a questão de como trazer para o mundo fiscal formal o gigantesco mercado informal, que, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 2019 as transações de bens e serviços operadas dentro da economia informal movimentaram R$ 1,2 trilhão. O montante é equivalente a 17,3% do PIB brasileiro. Valor este superior ao PIB das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Fica claro, assim, que essas transações informais de bens e serviços representam uma gigantesca perda de arrecadação fiscal para os três entes federativos, cujos atuais mecanismos arrecadatórios não as abraçam fiscalmente, além de provocar enormes prejuízos sociais e financeiros aos trabalhadores.
Em relação ao mercado de trabalho, o Brasil registrou uma taxa de informalidade de 39,7% no trimestre até agosto de 2022. Ou seja, o país atingiu o recorde de 39,307 milhões de trabalhadores atuando na informalidade no período, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), apurada pelo Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE).
Confira, abaixo, galeria de imagens:
O IBGE considera como trabalhador informal aquele empregado no setor privado sem carteira assinada, o doméstico sem carteira assinada e o que atua por conta própria ou como empregador sem CNPJ, trabalhadores por conta própria sem CNPJ, além daquele que ajuda parentes em determinada atividade profissional. Este trabalhador informal atua à margem do mundo formal sem beneficiar-se das garantias constitucionais, como, por exemplo, 13º salário, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) ou benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), como auxílio-doença, salário maternidade, Seguro-Desemprego etc.
A retomada sustentável no plano nacional exige medidas inéditas diante dessa crise inédita e a União, estados e municípios podem e devem tomar iniciativas que desenhem um ambicioso e abrangente plano de reativação de sua economia que pressupõe. Dentre outras variáveis macroeconômicas, a recuperação da saúde fiscal dos entes federativos (municípios, estados e União) e a elevação da renda pessoal disponível. E, para tanto, é preciso encontrar as vias para trazer ao mundo fiscal formal as transações de bens e serviços que se dão no mercado informal.
Todos sabem da fragilidade fiscal dos entes federativos (União, estados e municípios) seja para realizar investimento público para estimular o crescimento seja para ampliar a concessão de subsídios/benefícios fiscais ao setor privado – essa receita é impraticável nos curtos e médios prazos.
Portanto, é preciso criar uma nova relação quantidade/qualidade dos gastos públicos. Isto é: fazer mais e melhor com menos recursos, aumentando, assim, a eficiência e eficácia da gestão pública que promovam iniciativas inéditas que, combinadas às ações de saúde e defesa da vida, possibilitem criar de imediato as bases da retomada do crescimento e do desenvolvimento e articular os agentes econômicos nacionais e internacionais para criar um mecanismo de financiamento ao desenvolvimento, instrumento que será proposto e descrito à frente.
A saúde das finanças públicas é um grande desafio para a retomada do investimento público e privado, crescimento, emprego, renda, melhoria dos serviços e desenvolvimento no Brasil. É claro, também, que a obtenção da saúde fiscal demanda a realização de uma justa reforma tributária nacional, que recomponha a capacidade financeira dos três níveis do Estado brasileiro através de ações que potencializem a arrecadação, fortaleça e aprimore a gestão administrativa do aparato fiscal no combate à sonegação de tributos – estimada pelo Banco Mundial em 13,4% do PIB.
Para tanto, é preciso criar alternativas financeiro-fiscais inéditas que permitam, de um lado, a elevação das receitas públicas sem tirar mais um centavo de imposto do já espoliado, cansado e insatisfeito contribuinte, e, de outro, recompensar e valorizar cidadãos e empresas, ou seja, CPF e CNPJ, que terão alívio e retorno financeiro. Nos próximos artigos, apresentaremos as linhas gerais de uma proposta para trazer ao mundo fiscal formal boa parte das transações de bens e serviços que se dão na economia informal.
Sobre o autor
*Eduardo Rocha é economista pela Universidade Mackenzie, com pós-graduação em Economia do Trabalho pela Unicamp.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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O risco de as Forças Armadas fazerem uma estimativa paralela dos resultados eleitorais
Guilherme de Queiroz-Stein*, Brasil de Fato
Qualquer concessão a uma “apuração paralela” das eleições de 2022 pelas Forças Armadas representa um grande risco à democracia. Primeiro, é preciso deixar claro que não se trata se uma “apuração paralela”, mas de uma estimativa de resultados eleitorais, que, se feita por amostragem, provavelmente chegará a resultados distintos da apuração oficial, mesmo que dentro de um intervalo de confiança. No pior cenário, em que o cálculo da amostra é feito de forma inadequada, a estimativa paralela pode chegar a números complemente distorcidos. Em ambos os cenários, poderão afetar a credibilidade do sistema eleitoral. Além disso, é uma ação totalmente desnecessária, representando um gasto inócuo de recursos públicos pelas Forças Armadas, pois nunca se registrou casos de fraudes nas urnas eletrônicas brasileiras. Quando questionadas em 2014 pelo PSDB, a auditoria feita pelo próprio partido não encontrou qualquer indício de fraude. Neste ano, diversas entidades da sociedade brasileira, incluindo algumas das melhores universidades brasileiras, auditaram seu código-fonte e atestaram a segurança do sistema. Portanto, é uma medida extremamente duvidosa quanto a sua pertinência.
Também, é uma ação questionável em sua legitimidade. Primeiro, porque as Forças Armadas não têm essa atribuição institucional e nem competência técnica para essa avaliação. Segundo, ao longo da história brasileira, as Forças Armadas foram responsáveis por violações institucionais com drásticas consequências, envolvendo assassinatos, torturas, prisões, exílios e crises econômicas. Ou seja, não são guardiãs de nossa democracia. Pelo contrário, devem ser civilmente monitoradas e controladas. Terceiro, não são neutras. Estão subordinadas ao Presidente da República, que é uma das partes interessadas nesse processo eleitoral. O caráter político dessa demanda se expressa no seu ineditismo. Ao longo de três décadas de democracia brasileira, as Forças Armadas nunca se envolveram na apuração eleitoral, pois, como já dito, não é uma atribuição institucional. Neste momento, em que estão subordinadas a um político que questiona o sistema eleitoral, decidem agir. Ou seja, é basicamente uma ação política. Dessa forma, não é adequado o TSE convidar as Forças Armadas para incidir no processo eleitoral, indo além de suas atribuições relacionadas à logística e à garantia da ordem pública. Por si só, essa interferência passa a ser um fator de desconfiança, instabilidade e imprevisibilidade nas eleições.
De todo modo, é importante salientar que, caso os militares façam uma estimativa paralela dos resultados eleitorais, é preciso exigir o controle civil sobre o processo, antes, durante e após as votações. É preciso auditar a “auditoria”, designando representantes da sociedade civil para integrar a comissão responsável por essa avaliação, de preferência formando maioria nessa comissão, com ampla participação, também, de representantes de partidos de oposição. Além disso, é preciso ter ampla transparência em relação a quem serão os militares que integrarão essa comissão, os critérios de escolha e a definição de cada etapa da estimativa, com especial atenção para a definição da amostra de urnas. Vale reforçar que, a depender de como será feita a amostragem das urnas, é possível ter distorções significativas nos resultados das estimativas. Portanto, a construção dessa amostra e de todas as demais etapas deve ser supervisionada por órgãos com efetiva competência técnica, como o Conselho Federal de Estatística e a Associação Brasileira de Ciência Política e estar aberta a todas outras entidades da sociedade civil que desejarem fiscalizar o trabalho dos militares. Afinal de contas, como funcionários públicos, todas suas ações devem estar sujeitas ao escrutínio público. Sem isso, qualquer resultado dessa estimativa pode ser distorcido e destinado exclusivamente a colocar em xeque a democracia brasileira, favorecendo a perpetuação daqueles que atualmente ocupam o poder.
*Texto publicado originalmente no portal do Brasil de Fato.
Dorrit Harazim: A arte de viver
Parece que viramos a página: ficou escancarado em 2020 que, sem o outro, não somos nem seremos
Individualmente, nunca se saberá quem mais sofreu neste soturno ano de 2020. Coletivamente a resposta é fácil: foi a arte. Mas qual delas? Aquela que independe de qualquer genialidade ou talento específico para existir: a arte de viver. Para quem teve o privilégio de não estar entre as quase 2 milhões de pessoas levadas pela Covid, sobreviveu com medo, aceitou perdas, adequou-se ao vazio e ao silêncio, reinventou-se como pôde no confinamento abrupto. Sempre fomos moldáveis na arte de viver para conseguirmos sobreviver e dar sentido à espécie. 2020 quase nos tirou do prumo através de seu cortejo fúnebre. Mas parece que viramos a página: ficou escancarado que, sem o outro, não somos nem seremos.
Se viver é a maior das artes, a poesia vem logo atrás. Ela tem o poder de libertar as profundezas do possível, de restaurar zonas entumecidas. Ser alcançado por um poema de Armando Freitas Filho na hora certa é um choque transformador, libertador.
Em meio à clausura mundial de 2020, nada mais atual do que a meditação sobre a saga humana feita por John Donne 400 anos atrás. Donne, um dos maiores poetas de língua inglesa de todos os tempos, estava seriamente enfermo quando escreveu em prosa a “Meditação XVII” :
— Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é parte de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai por quem os sinos dobram; eles dobram por vós.
Donne foi homem de fé. Fé absoluta em Deus e convicto de que a humanidade só avança se compartilhada. O escritor americano Ernest Hemingway foi o oposto: era ateu roxo, ímpio por opção e incréu pelo que vivenciou. O que não o impediu de recorrer a Donne para o preâmbulo e título de uma de suas obras mais famosas, “Por quem os sinos dobram” (1940), romance sobre o fracasso humano na Guerra Civil espanhola.
Outro poeta-monumento, o galês Dylan Thomas, ao ver o pai moribundo e sem amparo da fé, criou um poema de resistência. “Não entres nessa noite acolhedora com doçura/ Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia/ Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura...”, dizem os 19 versos que convidam a não nos dobrarmos pacificamente ao inevitável. “Do not go gentle into that good night”, publicado em 1951, tornou-se um tesouro da língua inglesa, uma ode à tenacidade do espírito humano. Vem muito a calhar neste início de 2021.
Difícil saber no que se agarrar. Se o otimismo é uma forma alienada de fé, e pessimismo é uma forma alienada de desespero, como defende um grande humanista dublê de psicólogo, resta a fé racional no espírito humano. Simone de Beauvoir descreveria essa fé como esperança, “contrapeso lúcido e musculoso ao otimismo cego... esperança de que a verdade possa ser usada”.
Tempos atrás, quando a espécie humana ainda procurava se reconciliar com as ruínas da Segunda Guerra, a NPR, sigla da rede de rádio pública dos EUA, convidou 80 famosos e anônimos a sintetizarem seu credo pessoal de como tocar a vida. As narrativas, porém, precisavam caber em 100 palavras, proposta radical para tempos em que o mundo não girava em torno de 140 caracteres. Entre os participantes, uma vendedora de enciclopédias de porta em porta e John Updike, uma ajudante hospitalar e Eleanor Roosevelt. Havia, sobretudo, Thomas Mann, Nobel de Literatura e autor do colossal romance “A montanha mágica”.
Mann começa constatando que, apesar de a vida ser possuída por uma tenacidade assombrosa, nossa presença sempre será condicional. “Somente por este motivo acredito que a vida tem um valor e charme vangloriados em excesso”, escreveu. Sua crença maior, e no que depositava maior valor, era justamente o caráter perecível dessa presença: “A transitoriedade é a própria alma da existência. Ela dá valor, dignidade, interesse à vida. A transitoriedade cria o tempo... E, ao menos potencialmente, o tempo é a dádiva suprema, a mais útil. Sem começo ou fim, nascimento ou morte, também o tempo inexiste”. Sobraria um nada estagnado.
A cada um sua arte de viver. Da recomendada por John Donne há séculos à entoada com urgência por Emicida, hoje vamos de “AmarElo”: “Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro”.
José Pastore: Vacina, coronavoucher e a nova década
Mais de 65 milhões de pessoas recebem o auxílio emergencial. Será que o mercado de trabalho terá condições de absorver boa parte desse universo logo no início de 2021?
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, defende apoiar a vacinação em lugar de prorrogar o auxílio emergencial. Para ele, a retomada em V da economia permitirá a absorção no mercado de trabalho dos brasileiros que estão parados. Dali para a frente eles poderão viver da renda do trabalho, e não da renda do coronavoucher.
Tudo indica, porém, que a tão desejada sincronia vai demorar algum tempo. Mais de 65 milhões de pessoas recebem o auxílio emergencial. Será que o mercado de trabalho terá condições de absorver boa parte desse universo logo no início de 2021?
Grande parte da retomada em V deveu-se ao sucesso dos programas de redução de jornada e suspensão do contrato de trabalho que manteve 10 milhões de empregos formais e propiciou dados positivos no Caged. Outra parte deveu-se ao próprio auxílio emergencial de R$ 600 e, depois, de R$ 300.
Mas esses programas terminam hoje. Noticia-se a possível prorrogação da redução de jornada e suspensão dos contratos, o que é animador. Mas, até o fechamento deste artigo, nada se falou sobre a prorrogação do coronavoucher. Lembremos que para cerca de 23 milhões dos beneficiados sua única renda é a do auxílio emergencial.
Na ausência do coronavoucher e com o fechamento de muitas atividades econômicas em razão da segunda onda da pandemia, antecipa-se um vácuo de renda para milhões de famílias exatamente na hora em que a inflação castiga os mais pobres.
Outra preocupação refere-se ao retardamento da vacinação dessas pessoas. Para cumprir a escala de prioridades – idosos, pessoas com comorbidades, profissionais da saúde, professores e indígenas –, será grande o número dos que ficarão sem vacina, sem trabalho e sem auxílio emergencial por um bom tempo. É um cenário muito preocupante.
Sei que o problema fiscal é gravíssimo. Mas quem tem coragem de deixar idosos, adultos e crianças passando fome? O governo terá de agir, como de resto vem sendo feito em vários países que já prorrogaram ajudas às empresas e às famílias em vista da renitência da pandemia. Os estragos no equilíbrio fiscal terão de ser consertados ao longo da década que hoje se inicia.
Para o médio prazo, há sinais alentadores de geração de emprego e renda. A reativação da construção de casas populares é um deles. No campo da energia, a implantação de 2 mil quilômetros de linhas de transmissão e subestações até aqui concedidas vai demandar muito trabalho, sem falar na expansão das fontes de energia eólica. As concessões já aprovadas pelo Ministério da Infraestrutura (várias rodovias, ferroviárias da Malha Oeste e Sul, incentivo à cabotagem, privatização de 16 aeroportos e das Docas de Santos e outras) implicarão muitas obras que têm grande potencial de empregos por vários anos. A pujança do agro, apesar de bastante mecanizado, gera muito emprego no comércio e nos serviços locais – e as perspectivas são de crescimento. A melhoria da mobilidade urbana e a reestruturação dos locais de trabalho nas zonas suburbanas após o alastramento do home office são ricas fontes de emprego. As necessidades nos campos da educação e da saúde são imensas, incluindo aqui o atendimento de idosos.
Enfim, quando se observam o quanto está para ser feito e o gigantesco potencial deste enorme país, o Brasil pode se transformar numa grande usina de empregos ao longo desta nova década. Para chegar lá, é claro, teremos de promover as benditas reformas e nem pensar em nova década perdida!
* Professor da FEA-USP, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Fecomércio-SP, é membro da Academia Paulista de Letras
Ana Carla Abrão: Novos mandatos, velhos problemas
Problemas estruturais continuam presentes em todos os municípios – e os novos prefeitos precisarão enfrentá-los
Há o que comemorar nos resultados das eleições municipais. Se comparadas às eleições anteriores, tão marcadas pela intolerância e pela agressividade, fica claro que uma brisa de temperança dominou. Com ela, ressurgiu a ideia de que há caminho no centro e uma sensação de que a população se vê menos inclinada a mitos, radicalismos e extremos. Tudo isso a conferir, mas algum alento veio das notícias da última noite de domingo.
Mas isso infelizmente não significa que a vida será mais fácil para os novos prefeitos. Apesar das folgas de caixa geradas pelos socorros do governo federal, cujos números foram levantados pelo economista Marcos Mendes e publicados pelo Estadão em matéria de Adriana Fernandes, problemas estruturais de sempre continuam presentes (e maiores) em todos os municípios – e precisarão de coragem dos novos prefeitos para enfrentá-los.
O tamanho do desafio se reflete no Ranking de Competitividade dos Municípios, recém divulgado pelo Centro de Liderança Pública – CLP e elaborado em parceria com a Gove. O relatório com indicadores de 405 municípios serve de guia para os novos gestores entenderem onde estão e o quanto há para fazer se quiserem melhor atender e servir a população das suas cidades. E é o que se espera deles. Afinal, toda nova eleição tem algo de otimismo, de expectativa de melhora, de uso de capital político recém-conquistado para que se faça o que é preciso. Quiçá seja assim desta vez.
O ranking de municípios é um filhote do ranking dos Estados, há anos publicado pelo CLP em conjunto com a Tendências Consultoria e a The Economist Intelligence Unit. A avaliação abrange municípios com população acima de 80 mil habitantes e se baseia em 55 indicadores, organizados em 12 pilares e 3 dimensões. As informações coletadas se referem a 2019, não incorporando, portanto, os efeitos da pandemia nem tampouco dos recursos recebidos e aplicados ou não no seu combate.
A primeira dimensão analisa as instituições do município, focando nos pilares de sustentabilidade fiscal e funcionamento da máquina pública. A segunda olha para o atendimento à sociedade, composta pelos pilares de saúde e educação, avaliando tanto acesso quanto qualidade, além de saneamento e meio ambiente. Por fim, indicadores de inserção econômica, inovação, dinamismo, capital humano e serviços de telecomunicação compõem o terceiro pilar, de avaliação econômica.
A concentração no Sudeste é consequência do corte mínimo de 80 mil habitantes, mas quase 60% da população brasileira está abrangida pelo conjunto de municípios avaliados. Os resultados dizem o que já sabemos – e sentimos no dia a dia: há cidades brasileiras cujas avaliações relativas são positivas e que apresentam bons indicadores. Mas, no absoluto, a totalidade delas tem uma agenda de avanços a cumprir se de fato os novos gestores quiserem melhorar a vida dos seus eleitores e munícipes. O ranking atual mostra o município de Barueri no topo da lista, seguido de perto por São Caetano do Sul (SP) e na sequência as capitais São Paulo, Florianópolis e Curitiba. Na lanterna surgem cinco municípios do Pará: Marituba, Tucuruí, Abaetetuba, Tailândia e Moju. Os destaques dos primeiros são as mazelas dos últimos, com educação, saúde e saneamento como os grandes heróis e também os maiores vilões.
São Paulo, maior e mais rico município do País, se encontra em posição de destaque graças a alguns dos indicadores que medem as dimensões de economia e a qualidade das suas instituições. Nas avaliações de funcionamento da máquina pública e desempenho fiscal, como tudo é relativo, a capital paulista figura na 4.ª posição na primeira, mas está medianamente posicionada na segunda, ocupando a 31ª colocação. Essas dimensões representam, respectivamente, 10,7% e 8,0% de peso no índice geral e medem questões como dependência fiscal, taxa de investimento, despesas de pessoal e endividamento na dimensão fiscal e custo da função administrativa, tempo para abrir uma empresa e qualificação do servidor como critérios de avaliação da máquina. Em alguns desses, como taxa de investimento e nível de endividamento, a capital não brilha.
Mas é na dimensão de atendimento à sociedade que a capital surpreende negativamente – e muito. São Paulo não só não aparece entre os cinco melhores avaliados em nenhum dos indicadores de educação, saúde, segurança ou saneamento, como ocupa uma injustificável 72.ª colocação no ranking geral dessa categoria.
Esse é um excelente ponto de partida para o prefeito eleito, Bruno Covas, cujas juventude e renovadas energias poderão levar adiante esse que é o maior dos mandatos conquistados nas urnas: o de cuidar das pessoas. Para isso, há pedras a serem quebradas, dentre elas uma mudança estrutural no funcionamento da máquina municipal, cujas qualidades têm de estar voltadas para o cidadão e não para si própria.
Paulo Hartung: 2020, o ano que não termina
Desafios desta dúzia de meses atormentados ecoarão firmemente no correr dos dias de 2021
Hoje é o primeiro dia do último mês do ano. E o fim não parece próximo. É evidente que no continuum dos dias, dos meses, enfim, da vida compartimentada em calendários, nada nunca termina abruptamente, tudo transborda limites. Mas esta passagem de ano terá ainda menos ares de virada dado o acúmulo de questões a resolver no futuro próximo, em volume e significação inéditos.
Em múltiplos campos, temos questões surgidas ou incrementadas neste 2020 cujas repercussões já pautam atenções, decisões e desfechos nos dias de 2021. Ainda estamos em plena travessia da pandemia do novo coronavírus, pois enquanto não houver vacina disponível não haverá um ponto final possível para esta tragédia humanitária que assola o planeta.
Além de impor reveses dramáticos ao convívio social, a pandemia desligou a economia planetária, com variações de gravidade diretamente proporcionais à capacidade e à racionalidade dos gestores nacionais. Salta aos olhos o desempenho extraordinário de duas mulheres, em nações democráticas, a chanceler alemã, Angela Merkel, e a primeira-ministra da Nova Zelândia, reeleita em plena pandemia, Jacinda Ardern. Esse fato alentador pode e deve chamar a atenção para a impositiva oxigenação na seara das lideranças, hoje tão esvaziada de boas novidades e carente do vigor de olhares diferentes sobre a existência humana.
A relevância da diversidade e da inovação nessa área aumenta ainda mais quando se tem em conta que, com o almejado efetivo controle da covid-19, o mundo precisará debruçar-se sobre uma verdadeira tarefa de reinvenção, imposta por fatores como a piora das desigualdades socioeconômicas, o terremoto na esfera produtiva, especialmente nos modos de trabalhar e na extinção de atividades, e o empobrecimento das populações, via desemprego e recessão, entre outros.
Mas não é só de repercussões desafiantes deste ano que viverá o próximo. Ainda que dinamizados por deveres de casa árduos e complexos, movimentos promissores se colocaram em 2020 e projetam um ano com alguns toques de relevantes novidades. Ao menos três âmbitos estão com luzes amarelas à frente, tendendo fortemente ao sinal verde, nesta travessia anual: o fortalecimento do multilateralismo, a busca da sustentabilidade no planeta e as vastas experiências da digitalidade.
A eleição de Joe Biden nos Estados Unidos acena com uma mudança crucial para a vida em bases civilizadas. A caminhada política é cheia de desvios, obstáculos e surpresas, mas com a nova presidência estadunidense ao menos retomamos o rumo da lucidez. Impôs-se um freio de arrumação na marcha da insensatez que estava guiando o planeta para o precipício de nacionalismos radicais, obscurantismos tantos e negação da ciência, a mesma que rapidamente conseguiu sintetizar conhecimentos sobre uma doença desconhecida e em menos de um ano dotou a humanidade de vacinas capazes de nos livrar da maior crise sanitária em um século.
Também ganham energia com esta mudança política o multilateralismo e todos os seus preceitos de democracia, enfraquecendo a onda global de populismo conservador. Da mesma maneira, a preservação do planeta e a qualidade de vida das futuras gerações se fortalecem com a anunciada decisão norte-americana de voltar ao Acordo de Paris e suas premissas de mitigação das mudanças climáticas. Mas temos de estar atentos ao fato de que continuaremos a testemunhar a disputa de hegemonia entre China e EUA, prejudicial por diminuir o dinamismo econômico mundial, e ainda num cenário de países mais endividados no pós-pandemia.
A remediação da covid-19 via isolamento social, que tantos males tem provocado às relações humanas, acabou incrementando como nunca a migração digital. Educação, trabalho, consumo, medicina, entre tantos outros aspectos da nossa vida, ganharam novos modos de fazer, abrindo-se ainda um universo de oportunidades de acesso a serviços e de melhorias na vida urbana, entre outras.
Mas vale lembrar que esse movimento também ampliou o espaço para verdadeiras pragas, como as fake news e as trevas da intolerância, potencializando o animalesco que habita o humano, cujos instintos só se freiam por limites civilizatórios assumidos como organizadores dos laços sociais. É um desafio sociopolítico investir na apropriação humanística das mais dóceis técnicas jamais inventadas, como salientou o saudoso geógrafo Milton Santos.
Como se vê, ainda que o ano acabe oficialmente na virada de 31 de dezembro para 1.º de janeiro, desafios desta dúzia de meses atormentados ainda ecoarão firmemente no correr dos dias do novo ano. Assim, que sejamos capazes de enfrentar um 2021 com uma certa cara de 2020, com aprendizados, com a esperança da mudança sempre possível e a certeza de que a História não tem destino prescrito. Que sigamos inspirados rumo à experiência das possibilidades e à superação das demandas postas em meio a um tempo trágico, mas que, como toda crise, terá efetivo fim, porta lições, abre caminhos.
*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)
Jamil Chade: Em 2021, crise humanitária no planeta será a maior desde a 2ª Guerra Mundial
ONU prevê que 235 milhões de pessoas no mundo serão afetadas por uma crise humanitária. Entidade vai precisar de pelo menos US$ 35 bi para sair ao socorro de milhões de pessoas diante da covid-19, conflitos e mudanças climáticas. Cenário na América do Sul é de tensão social, perda de renda e instabilidade política. Recuperação prevista para economia mundial não será suficiente para impedir que mundo tenha número inédito de pessoas em situação de vulnerabilidade
Se 2020 foi o ano da pandemia, 2021 será o momento de descobrir a dimensão de seu impacto social. De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), há um risco real de que a vacina contra a covid-19 chegue apenas para uma parcela rica do planeta e que milhões de pessoas ainda tenham de esperar meses ou anos para serem imunizados. Enquanto isso, a crise humanitária deve se aprofundar e vai atingir um número recorde de 235 milhões de pessoas, exigindo um esforço inédito na história da organização.
A operação de resgate vai precisar de US$ 35 bilhões para sair ao socorro de um verdadeiro exército de famintos, destituídos e abandonados em locais como Síria, Venezuela, Paquistão, Haiti, Afeganistão, Iêmen, Colômbia, Ucrânia e outros países.
Se projeções do FMI, Banco Mundial e de outras instituições apontam para o início da recuperação da economia mundial em 2021, a ONU relembra que a crise de 2020 terá seu impacto prolongado entre os grupos mais vulneráveis e populações que já viviam em uma situação delicada.
"Conflitos, mudanças climáticas e a covid-19 geraram o maior desafio humanitário desde a Segunda Guerra Mundial", alertou o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres.
Os dados apontam que o número de pessoas afetadas por crises humanitárias é 40% superior aos dados de 2020. O total é quase três vezes maior que em 2015. No total, 56 países precisarão de ajuda internacional, inclusive o Brasil, para lidar com os venezuelanos na região norte do país.
"Se todos aqueles que precisarem de ajuda humanitária no próximo ano vivessem num país, seria a quinta maior nação do mundo, com uma população de 235 milhões de habitantes", diz a ONU, que espera implementar uma operação para alimentar e dar abrigo para 160 milhões de pessoas em 2021.</p><p>
Num raio-X do planeta publicado nesta terça-feira, a entidade aponta que a vida das pessoas em todos os cantos do mundo foi abalada pelo impacto da pandemia. "Aqueles que já vivem no fio da navalha estão sendo atingidos de forma desproporcionalmente dura pelo aumento dos preços dos alimentos, queda dos rendimentos, programas de vacinação interrompidos e fechamento de escolas", diz.
América do Sul e maior tensão sociopolítica
Um dos focos da atenção internacional é a situação na América do Sul onde, segundo a ONU, "a pandemia secou as economias informais, diminuindo os meios de subsistência e o acesso aos alimentos e aumentando os riscos de proteção".
Para ONU, 2021 "irá sem dúvida exigir uma concentração ainda maior de esforços de resposta humanitária adaptáveis, dados os efeitos a longo prazo da pandemia sobre as várias crises na região".
Citando a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe, o informe prevê que 231 milhões dos 656 milhões de habitantes da região estarão em situação de pobreza no início de 2021. Esse será o pior patamar desde 2005.
"O impacto generalizado das economias deprimidas conduzirá a mais migração, insegurança alimentar e preocupações de saúde e proteção no meio de elevadas vulnerabilidades a riscos naturais, redes de segurança governamentais em tesão e potenciais agravamentos de tensões sócio-políticas profundamente enraizadas", alertou.
Décadas de progressos sociais sob ameaça
"O mundo rico pode agora ver a luz ao fundo do túnel", disse o chefe humanitário da ONU, Mark Lowcock. "O mesmo não se passa nos países mais pobres. A crise da covid-19 mergulhou milhões de pessoas na pobreza e fez disparar as necessidades humanitárias", alertou. "No próximo ano precisaremos de US$ 35 bilhões de dólares para evitar a fome, combater a pobreza, e manter as crianças vacinadas e na escola", disse. "Temos uma escolha clara diante de nós. Podemos deixar que 2021 seja o ano em que 40 anos de progressos sociais serão desfeitos; ou podemos trabalhar em conjunto para garantir que todos encontraremos uma saída para esta pandemia", disse. Para ele, "seria cruel e insensato" da parte dos países ricos "desviar o olhar" diante dessa realidade. "Os problemas locais tornam-se problemas globais, se os deixarmos", disse.
Fome e pobreza em alta
Pelo mundo, um dos aspectos que mais preocupa é a volta do aumento dos índices de fome e de pobreza. "A covid-19 desencadeou a recessão global mais profunda desde a década de 1930", indicou o informe. "A pobreza extrema aumentou pela primeira vez em 22 anos, e o desemprego aumentou dramaticamente. As mulheres e os jovens entre os 15 e os 29 anos que trabalham no setor informal estão sendo os mais atingidos. O fechamento das escolas afetou 91 por cento dos estudantes em todo o mundo", apontou.
Outra constatação é que os conflitos políticos são mais intensos e estão causando um impacto pesado à população civil. "A última década assistiu ao maior número de pessoas deslocadas internamente pelo conflito e pela violência, com muitas presas nesta situação por um período prolongado", diz. "Estima-se que haja 51 milhões de deslocados internos novos e existentes, e o número de refugiados duplicou para 20 milhões", alerta.
Um dos pontos mais preocupantes se refere à fome aguda, que atinge 77 milhões de pessoas em 22 países. "Até ao final de 2020, o número de pessoas em situação de insegurança alimentar aguda poderá ser de 270 milhões", indica. "Os impactos da pandemia e das alterações climáticas estão afetando seriamente os sistemas alimentares em todo o mundo", diz a ONU. Apenas para lidar com essa realidade, a entidade faz um apelo por US$ 9 bilhões, quase o dobro do que era necessário em 2015.
Mudanças climáticas e pandemia
A avaliação da ONU é de que, uma vez mais, as mudanças climáticas terão um impacto real na vida de milhões de pessoas. Segundo a entidade, os últimos 10 anos foram os mais quentes desde que os registros começaram a ser feitos e, ao mesmo tempo, catástrofes naturais estão exacerbando as vulnerabilidades crônicas em diferentes partes do mundo. Para 2021, esperam-se alterações climáticas adicionais por conta do fenômeno La Niña. Se a situação internacional já não era das mais fáceis, a pandemia da covid-19 ampliou a crise de maneira inédita. "Os surtos de doenças estão aumentando e a pandemia tem dificultado os serviços de saúde essenciais em quase todos os países", diz o raio-x do planeta.
Para a entidade, a realidade é que os avanços sociais conquistados durante décadas estão ameaçados. "Mais de 5 milhões de crianças com menos de 5 anos de idade enfrentam as ameaças da cólera e da diarreia aguda", diz. "A pandemia pode acabar com 20 anos de progresso na luta contra o HIV, tuberculose e malária, duplicando potencialmente o número de mortes anuais", indica. Cerca de 24 milhões de crianças, adolescentes e jovens estão em risco de não regressar à escola em 2020, incluindo 11 milhões de meninas e mulheres jovens.
Falta de dinheiro
O dilema, segundo a ONU, é como lidar com a crise sanitária e seus desdobramentos diante da falta de recursos. "A crise está longe de ter terminado", diz o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres. "Os orçamentos para a ajuda humanitária enfrentam déficits terríveis à medida que o impacto da pandemia global continua a agravar-se", reconhece. Ele pede, porém, que governos mobilizem recursos e e que sejam solidários com as pessoas "na sua hora mais negra de necessidade".
Em 2020, os doadores internacionais deram um montante recorde de US$ 17 bilhões. Mas, como as necessidades estão aumentando, o financiamento continua a ser menos de metade do que a ONU e organizações parceiras pediram.