Crimes
Parecer entregue à CPI da Covid lista possíveis crimes de Bolsonaro
Grupo é liderado pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior; outros juristas serão ouvidos nos próximos dias
Natália Portinari e Julia Lindner / O Globo
BRASÍLIA - Um grupo de juristas liderado pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior entregou à cúpula da CPI da Covid, nesta terça-feira, um parecer que lista mais de dez eventuais crimes que podem ter sido cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro e integrantes do governo na gestão da pandemia. O documento, ao qual o GLOBO teve acesso, aponta que Bolsonaro cometeu sete crimes: crime de responsabilidade, crime contra a saúde pública, crime de prevaricação e crime contra a humanidade. O texto foi entregue ao relator Renan Calheiros (MDB-AL) e deve embasar juridicamente o relatório final. Outros grupos da área jurídica também serão ouvidos pelos senadores nos próximos dias.
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Além de Bolsonaro, o relatório aponta o possível enquadramento penal de atos cometidos pelo ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, pelo ex-diretor de logística do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias, pelo ex-secretário executivo da Saúde, Elcio Franco, e pela ex-secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro.
Há cinco capítulos no documento, como antecipou a colunista do GLOBO Bela Megale: Crime de Responsabilidade, Crimes contra a Saúde Pública, Crime contra a Paz Pública, Crimes contra a Administração Pública, Crimes contra a Humanidade e Conclusão.
De acordo com os juristas, "o Sr. Presidente da República, por atos normativos, atos de governo e conduta pessoal, conspirou, mormente ao longo de março e abril de 2020, contra as medidas sanitárias ditadas pela ciência, adotadas pelo Ministério da Saúde, até que no final de março, o ministro Henrique Mandetta envia carta ao mandatário em que anuncia o colapso do sistema se não houvesse mudança de atitude".
O relatório afirma ainda que o presidente também "desrespeitou o direito à vida e à saúde de número indeterminado de pessoas, por via de atos comissivos, ao promover aglomerações, ao se apresentar junto a populares sem máscara; ao pretender que proibições de reuniões em templos por via de autoridades fossem revogadas judicialmente; ao incitar a invasão de hospitais, pondo em risco doentes, médicos, enfermeiros e os próprios invasores; ao incentivar repetidamente a população a fazer uso da cloroquina, dada como infalível, hidroxicloroquina e irvemectina, medicamentos sem eficácia comprovada e com graves efeitos colaterais; ao recusar e criticar o isolamento social e as autoridades que o impõe; ao sugerir que a vacina poderia transformar a pessoa em jacaré, desencorajando a população a se vacinar; ao postergar a compra de vacinas; ao ridicularizar os doentes com falta de respiração; ao ter descaso em face da situação trágica de Manaus no início deste ano, dando causa a trágica dizimação."PUBLICIDADE
Os juristas também destacaram que Bolsonaro deixou de cumprir determinação do STF e da própria Constituição para assumir a coordenação do combate à pandemia e ressaltaram que, ao contrário do que vem dizendo o presidente, o próprio Supremo determinou que havia competência comum entre União, estados e municípios.
O relatório aponta ainda crimes cometidos por Bolsonaro: infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, incitação ao crime, prevaricação, crime contra a humanidade.
Segundo Reale Júnior, a recomendação do parecer é pedir o indiciamento de Roberto Dias por corrupção e de Elcio Franco pelo crime de epidemia. Mayra Pinheiro poderia ser acusada de curandeirismo por sua atuação à frente da recomendação pelo uso de cloroquina, droga comprovadamente ineficaz contra Covid promovida pelo Ministério da Saúde.
— Além disso, apontamos fatos que precisam de uma apuração mais efetiva, como aqueles que envolvem empresas intermediárias de vendas de vacinas, por exemplo — diz Miguel Reale Júnior.
Está marcada para esta quarta-feira uma reunião entre esse grupo de juristas e os senadores da CPI logo após a sessão, à tarde. A ideia dos integrantes da comissão é fazer uma série de reuniões com advogados e juristas para antecipar as discussões jurídicas em torno do relatório.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/juristas-entregam-parecer-cpi-da-covid-listando-possiveis-crimes-de-bolsonaro-25197710
Após alta nos crimes, BC limita transferências de Pix
Mudanças do Banco Central visa aumentar a segurança de transações via Pix e de outros tipos de transferências interbancárias
O BC não definiu quando as medidas serão implementadas, mas afirmou que está trabalhando para que isto ocorra "o mais rápido possível".
Conforme mostrou a BBC News Brasil no último dia 20, cidades como São Paulo estão vendo quadrilhas se especializarem em sequestros-relâmpago e roubos envolvendo o Pix — que permite transferir uma grande quantidade de dinheiro num curto período.
Ainda não há dados sobre isso mas, segundo o delegado titular da 3ª Delegacia Antissequestro, da Polícia Civil de São Paulo, Tarcio Severo, os sequestros-relâmpago dispararam desde o início do uso da ferramenta no Brasil, em novembro de 2020.
Entre as principais medidas anunciadas pelo BC está o estabelecimento de um limite de R$ 1.000 em transações com Pix entre pessoas físicas, além de MEIs, no período de 20h da noite às 6h da manhã. O limite vale também para transferências intrabancárias, liquidação de TEDs, e transferências e TEDs através de cartões de pagamento pré-pago e de débito.
Os usuários de Pix já podiam reduzir ou aumentar seus limites através dos aplicativos de bancos com efeitos imediatos, mas agora, esta alteração será efetivada de 24h a 48h desde o pedido — "impedindo o aumento imediato em situação de risco" para um vítima, segundo o banco.
O BC também planeja tornar obrigatório que contas com indícios de uso em fraudes envolvendo o Pix e outras transações sejam registradas por instituições financeiras no Diretório de Identificadores de Contas Transacionais (DICT).
Em teoria, as transações com Pix sempre foram rastreáveis — com os bancos tendo mais controle de quem recebe o dinheiro, diferente de saques em caixa eletrônicos, por exemplo. Mas a BBC News Brasil mostrou que as quadrilhas estão usando contas principalmente de bancos digitais e muitas vezes temporárias apenas para receber as transferências dos assaltos e sacar o dinheiro rapidamente. Esta velocidade dificulta a identificação dos criminosos.
"A gente consegue rastrear onde o saque foi feito, mas muitas vezes não conseguimos chegar a tempo de prender as pessoas. Nos dizem: 'Acabaram de fazer saques em São Mateus (extremo leste da capital paulista)', mas nosso deslocamento é enorme até lá", contou o delegado Tarcio Severo.
Os bancos digitais são usados porque não exigem o comparecimento a uma agência. Isso facilita que criminosos mandem uma foto de documento falso para abrir uma conta — em alguns casos, usam documentos verdadeiros, roubados de vítimas de crimes anteriores. Além disso, os bancos digitais têm a vantagem de fazer transações em valores mais altos.
Em nota, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) orientou que vítimas de assalto ou sequestro-relâmpago obrigadas a fazer um Pix devem "registrar um boletim de ocorrência e procurar imediatamente seu banco através de um de seus canais de atendimento disponíveis para receber as orientações de como deverá proceder".
O ideal é que vítimas também façam um protocolo de reclamação no site do Banco Central.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58364552
Amazônia Real: PCC amplia atuação na Terra Indígena Yanomami
Prisão do foragido Janderson Edmilson Alves, ligado ao PCC, dá pistas para autoridades policiais desvendarem a atuação da facção criminosa nos garimpos. A imagem acima é uma colagem de frames do vídeo divulgado nas redes sociais, atribuído a integrantes do PCC na região do Palimiu
Emily Costa / Amazônia Real
Boa Vista (RR) – A prisão do foragido Janderson Edmilson Cavalcante Alves, de 30 anos, ligado ao PCC, abriu uma nova frente de investigação sobre as atividades criminais que ocorrem dentro do garimpo ilegal na Terra Indígena (TI) Yanomami. Para autoridades policiais de Roraima, membros da facção de São Paulo estão atuando para traficar drogas, servir de segurança para os garimpeiros, ganhar dinheiro com maquinários e realizar os chamados “crimes de mando”, que são homicídios e roubos por encomenda.
A Amazônia Real denunciou, em primeira mão, em 10 de maio, a presença do PCC no garimpo ilegal. A data marca o primeiro de uma série de ataques armados e ações violentas contra a aldeia Palimiu e outras comunidades da TI Yanomami. Os ataques não cessaram desde então. Janderson, recém-chegado ao garimpo, é um dos suspeitos de participar do ataque do dia 10 de maio.
Uma ação conjunta das forças policiais que atuam no combate ao crime organizado em Roraima prendeu Janderson no último dia 9 de agosto, em Boa Vista. Logo após a prisão, as autoridades policiais confirmaram que ele aparece em uma gravação que mostra homens fortemente armados e mascarados navegando pelo rio Uraricoera, que corta parte do Território Yanomami. “Quem manda aqui é nós [sic]. Nós é a guerra, neguinho”, diz o narrador.
As imagens, segundo a PF, foram gravadas antes do primeiro ataque armado à comunidade. Em 10 de maio, dois meninos Yanomami de 1 e 5 anos fugiram pra escapar dos tiros e morreram afogados. No dia seguinte, agentes do Grupo de Pronta Intervenção da PF, que foram à Palimiu, também foram atacados a tiros e revidaram.
DESMATAMENTO E GARIMPO NA AMAZÔNIA
Roney Cruz, chefe da Divisão de Inteligência e Captura (Dicap), órgão subordinado ao Sistema Penitenciário da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania, participou da prisão de Janderson Edmilson. O criminoso era procurado havia anos, inclusive na Venezuela. Em novembro de 2013, ele estava preso por tráfico e associação para o tráfico quando fugiu com outros nove presos da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Boa Vista. Naquela época, o PCC começava a operar em Roraima e ocorriam fugas em massa da penitenciária, construída inicialmente só para presos do regime semi-aberto.
Em entrevista à Amazônia Real, Roney Cruz disse que, após a fuga em Boa Vista, Janderson ficou por alguns anos no país vizinho, onde também teria ligação com o crime organizado. Em dezembro de 2019, Janderson se envolveu em um roubo de 100 fuzis em um quartel do Exército da Venezuela, na Gran Sabana, na região de fronteira, e fugiu para o Brasil.
“Acreditamos que nessa época, para fugir da polícia na Venezuela, ele foi para os garimpos, para onde inclusive também foram levados alguns desses fuzis”, disse Roney, acrescentando que a ida recente de Janderson Edmilson para Boa Vista teve relação com outro crime ocorrido no garimpo.
A Dicap obteve a informação de que houve um conflito entre os próprios criminosos, que resultou no assassinato de um deles, que também estava na ação contra Palimiu. Janderson foi apontado como um dos participantes do crime. Isso o obrigou a abandonar o garimpo, onde estava “protegido”, e acabou sendo preso em Boa Vista.
De acordo com a PF, Janderson Edmilson atuava no tráfico de drogas e realizava escoltas armadas de garimpeiros dentro do Território Yanomami. Em depoimento à PF, Janderson negou ligação com os ataques à aldeia Palimiu, mas confirmou ser “companheiro do PCC”. Ele disse ainda que foi convidado a se batizar na facção quando ainda estava na região de fronteira da Venezuela, mas não quis. Ao ser preso, ele tinha uma pistola 380, 41 munições e mais de 7 mil reais.
O PCC no garimpo
A escalada da violência na TI Yanomami por causa do garimpo foi denunciada na série de reportagens ‘Ouro do Sangue Yanomami’, publicada em 24 de junho. Em quatro meses de apuração, as equipes da Amazônia Real e da Repórter Brasil investigaram como funciona a cadeia do comércio ilegal de ouro no Brasil. Uma das reportagens mostra como o PCC se aproximou de garimpeiros. “O ouro é a melhor forma de lavar dinheiro hoje”, afirmou o procurador da República Paulo de Tarso Moreira Oliveira, da região de Itaituba, no Pará.
“A questão do garimpo é muito complexa. Então existem questões de desavenças, brigas entre eles mesmos e acontecem muitos crimes, roubos e homicídios. Para se ter ideia, levantamos que um foragido também do PCC que morreu em fevereiro deste ano em troca de tiros com a polícia tinha envolvimento com mais de 20 assassinatos no garimpo”, disse Roney Cruz à Amazônia Real.
Segundo o chefe da Dicap, há informações de que o PCC também está levando criminosos para atuarem nos garimpos. “Não é recrutamento para o PCC, porque eles já fazem parte da organização, então o que fazem é dar um apoio para esses criminosos irem para o garimpo”, acrescentou.
Roney Cruz afirmou que o garimpo se tornou um local atrativo para os criminosos pela possibilidade de se manterem escondidos da polícia. “Crimes em área de garimpo dificilmente estão sendo investigados, porque não há condições técnicas. É uma amplitude muito grande. A faixa de terra indígena e de atuação dos garimpeiros é muito grande, o que torna complexa a atuação da polícia”, explicou.
A presença de criminosos atuando nos garimpos da Terra Yanomami não é nova, mas houve um “aumento gigantesco” em 2021, de acordo com Cruz. “Isso começou com foragidos indo por conta própria, e recentemente, passou a acontecer isso de levarem criminosos, de sugerir: ‘Ah, vai sair na Saída Temporária (do sistema prisional)? Dá um tempo da cidade, vamos para o garimpo, não fica no sistema (prisional) não’. Porque como eles dizem o sistema está ‘venenoso’, porque houve uma reorganização do sistema prisional no estado”.
Desde 2019, o sistema prisional do estado está sob atuação da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (Ftip). O foco da intervenção federal é a Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, que após os massacres de 2016 e 2017, passou a concentrar presos ligados ao PCC.
Ameaça em vídeo
A gravação em que Janderson Edmilson aparece tem 14 segundos e mostra 12 homens em um barco do tipo voadeira. Os que usam balaclava estão armados. Eles exibem sete armas, entre elas um provável rifle calibre 32 e uma espingarda 12.
Após exibir as armas, o narrador diz: “Aí, é nós, olha nós, olha nós, olha nós. Mostrar aqui, meu compadre. Essa porra, negócio de índio mandar, quem manda é nós. Quem manda é nós, porra. Hoje nós vamos ver como é que funciona o bagulho. Olha. Olha. Olha. Nós é a guerra, neguinho”. Na cena, ainda é possível ver barcos passando ao fundo.
A gravação foi publicada pelos próprios criminosos em redes sociais e acabou indo parar nas mãos da polícia. O narrador do vídeo foi identificado como José Hilton Bezerra de Oliveira, o ‘Lourinho da Gávea’. Em março de 2020, ele foi preso em flagrante por tráfico de drogas e até agosto estava preso na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, quando foi posto em liberdade pela Justiça.
Outros criminosos vistos no vídeo já foram identificados, exceto aqueles que usavam balaclava para esconder o rosto. “Um deles usa, inclusive, um colete que pode ter sido perdido ou furtado de um policial, pois tem a logo da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública)”, observou Cruz.
Em 10 de maio, os ataques a tiros contra a aldeia também partiram de barcos que passavam pelo rio Uraricoera. Além desse ataque, outras 13 investidas contra aldeias também foram relatadas pelos Yanomami na mesma região entre fevereiro e junho.
Em 31 de maio, a base do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) na Ilha de Maracá, às margens do Uraricoera, também foi alvo de criminosos encapuzados e armados que roubaram diversos materiais, parte deles apreendidos em uma fiscalização recente contra o garimpo ilegal na região.
‘Medo do crime organizado’
“As comunidades já sabem. Essa informação estourou, do crime organizado, e os Yanomami estão preocupados, com medo. A gente traduziu na radiofonia, conversando com as lideranças e eles ficaram com muito medo do crime organizado”, disse Dário Kopenawa Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, à Amazônia Real.
Segundo Dário Kopenawa, há meses os Yanomami vinham relatando a presença de homens “estranhos”, mascarados e armados, mas não se sabia quem eram eles.
“As lideranças fizeram uma denúncia do que ocorre em garimpos maiores como Tatuzão, Waikas e Parima. Eles contratam essas pessoas de segurança lá, entre eles”, disse. “Eles têm maquinários, tem uns colegas que os chefes do garimpo contratam tipo como guarda-costas, para proteção entre eles. É um esquema deles. A gente não sabe como funciona a situação deles, mas esses grupos estão no meio dos garimpeiros locais e dentro da Terra Indígena Yanomami.”
A TI Yanomami é alvo de mineradores, empresários, políticos e garimpeiros de várias partes do Brasil desde a década de 1970. Desde então viveu distintos ciclos de extração ilegal, sempre tendo como consequência uma explosão da devastação da floresta amazônica e um aumento exponencial da população. Hoje, são estimados mais de 26 mil garimpeiros invasores da TI.
Dário afirmou que os garimpos ilegal permanecem ativos mesmo com as operações recentes de forças-tarefas do governo federal. O caos reina e as autoridades se omitem diante de crimes que ameaçam os Yanomami. No fim de julho, em Homoxi, um Yanomami foi atropelado por um avião de garimpo e morreu.
“O garimpo continua crescendo nos rios Uraricoera, Alto Mucajaí, o rio Apiaú e o rio Catrimani. Tem muitos aviões indo para o território, helicóptero, e também barcos. É uma circulação muito grande que só piora. Regiões como Tatuzão, Waikás, Papiu, Homoxi, Xitei, Parafuri, essas regiões são mais impactadas, o garimpo está crescendo rápido nessas regiões. Os Yanomami lá estão sofrendo”, desabafou Dário.
Emily Costa é formada em Jornalismo e mestranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). Iniciou a carreira de jornalista como repórter no portal G1. Consultora em comunicação, se interessa por coberturas relacionadas a migrações, questões humanitárias, povos indígenas e meio ambiente. (emilycosta@amazoniareal.com.br)
Ana Cristina Rosa: Cultura do estupro está até em fala de professor de direito
Banalização da violência contra a mulher é realidade frequente no Brasil
A cultura do estupro e a banalização da violência contra a mulher constituem realidade tão frequente no Brasil que chegaram ao absurdo de virar exemplo ensinado em aula de direito, conforme notícia na imprensa neste fim de semana.
Calcado em argumentos tão frágeis e infundados como o estilo de vestir, um professor de uma faculdade do interior paulista sugeriu que o comportamento da vítima pode interferir na prática do crime de estupro. E arrematou o raciocínio dizendo que mulheres passivas e quietinhas tendem a apanhar menos.
O resultado prático dessa mentalidade machista, misógina e retrógrada, que atribui à vítima a culpa pelo crime, pode ser aferido na verdadeira tragédia traduzida em números no Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A cada oito minutos, uma pessoa é estuprada no país. São 180 estupros por dia, sendo as mulheres a maioria das vítimas segundo as estatísticas feitas a partir de registros em boletins de ocorrência.
O número é assustador por si só, mas se torna ainda mais aterrorizante quando considerado o fato de que muitos casos não são denunciados e, portanto, estão fora das estatísticas. Como estupro é uma questão de poder e subjugação, medo e impotência sustentam a subnotificação.
Quase 30% dos crimes de estupro registrados no anuário foram cometidos contra crianças de zero a 9 anos, das quais mais de 11% eram bebês de até quatro anos. Barbárie é uma palavra que parece adequada para qualificar essa violação de direitos humanos, que atinge a vida, a saúde e a integridade física, causando danos irreparáveis.
Diante de fatos tão graves, deveria ser evidente a existência de apenas um culpado: o estuprador. E isso precisa ser repetido como mantra, divulgado em campanhas de educação sexual, até que seja introjetado no inconsciente coletivo.
Quem sabe assim um dia as conversas e as aulas girem em torno do absurdo de ter havido um tempo em que a culpa pela violência sexual era atribuída às vítimas.
*Ana Cristina Rosa é jornalista especializada em comunicação pública e coordenadora da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPÚBLICA) - Seção Distrito Federal.
Tibério Canuto: Os hagiográficos
Começo este texto com uma longa citação de Roberto Ampuero, escritor chileno que viveu sob três ditaduras: a de Pinochet, a de Honecker, da Alemanha comunista e a de Fidel Castro:
“ Qual retorcido mecanismo mental conduz seres humanos a denunciar o abuso, a tortura, a marginalização, o exílio, o escárnio, o exílio, o assassinato daqueles que pensam de modo diferente sob uma ditadura de direita, mas os faz justificar as mesmas medidas contra aqueles que se opõem a uma ditadura de esquerda... Será que isso se deve à ignorância, à hipocrisia, ao ao oportunismo ou a uma lealdade mal entendida em relação a bandeiras ideológicas, à postergação da realidade em relação à utopia e do indivíduo em relação à massa?
A citação cai como uma luva para tentar entender parte da intelectualidade brasileira que colocam seu talento a serviço da deturpação histórica e para a construção de um mito ao qual endeusam e ficam esperando sua volta, como os fanáticos de Canudos acreditavam no retorno de Dom Sebastião.
Ontem disse que Palocci passaria a ser tratado como o grande traidor. Não deu outra. Os escribas do lulopetismo saíram a campo. Um deles comparou Palocci aos “desbundados dos anos 70” que iam à televisão para renegar a causa que abraçavam e tecer loas à ditadura. Com empáfia conclui: dos desbundados sentiu nojo. Eis aí um belo exemplo de lealdade mal-entendida em relação a bandeiras ideológicas.
Em nome de que causa Palocci deveria manter o silêncio? De um projeto de poder que pretendia fazer da corrupção o caminho mais rápido para o socialismo? E quem ele deveria preservar, o maior traidor dos brasileiros que institucionalizou o assalto aos cofres públicos?
Traiu a quem, aos petistas que se lambuzaram na lama? Ou a quem se aliou com a fina flor do patrimonialismo para obter vantagens indevidas? O que há de ideológico na Omertá petista?
Ainda está para ser escrito o papel nefasto da intelectualidade que pôs a sua pena, ou melhor, o seu teclado, a serviço da construção de um mito, de uma fraude. Não inovam. Na história da esquerda sempre existiram intelectuais dispostos a fazer genuflexão para seus ídolos, adotando uma postura reverencial e escrevendo hagiografias.
Os hagiográficos de ontem reverenciaram Stalin como o Pai de Todos os Povos, como Farol-Guia da humanidade. Idolatraram Dolores Ibárruri, como se ela fosse Nossa Senhora de Fátima. Veneraram o “comandante” Fidel Castro, assim como a Hugo Chávez e ao “companheiro Maduro.”
Como disse Ampuero, protestam contra ditaduras de direita, mas aplaudem as ditaduras de esquerda, como a de Cuba e a da Venezuela. Denunciam a corrupção de governos de direita, mas defendem com unhas e dentes.
Vociferam contra a corrupção quando cometida por governos de direita, mas dão justificativas ideológicas quando ela é cometida pela esquerda.
Mais grave: usam seu intelecto para vender a fraude de que, no caso de Lula e do PT, tudo não passa de uma orquestração da burguesia contra os trabalhadores. Me poupem!
Algum dia os hagiográficos terão de se ver perante a história e prestar contas de sua empulhação.
Quando os crimes de Stalin vieram à tona, Jorge Amado teve a hombridade de reconhecer que deificou um monstro, assim como deificou Prestes.
Não esperem atitude semelhante dos escribas petistas. No frigir dos ovos, eles são mais danosos do que Palocci, pois continuam firmes na sua missão de iludir o povo.
El País: Os rebeldes sem armas emboscados por um agente duplo da ditadura
Em tempos de delação premiada, obra de jornalista retrata o massacre da granja São Bento, de 1973, e traz a história de um dos famosos dedos-duros da ditadura, cabo Anselmo
Quantas pessoas você trairia para se livrar da prisão e de sessões de torturas? Quantas delas entregaria as vidas para assassinos vestidos de fardas e uniformes policiais? José Anselmo dos Santos, ex-marinheiro brasileiro conhecido como cabo Anselmo, foi um dos principais agentes duplos da ditadura militar e delatou ao menos 200. Sendo que cerca de cem perderam suas vidas. Seis delas durante uma chacina no então município de Paulista, em Pernambuco. É a história deste assassinato múltiplo que é retratada no livro O Massacre da Granja São Bento, lançado no último dia 29, em Recife.
Os minuciosos detalhes deste caso, ocorrido em janeiro de 1973, finalmente vieram à tona na obra assinada pelo jornalista e mestrando em antropologia Luiz Felipe Campos. Justamente em um momento em que os delatores são apontados no Brasil como uma espécie de heróis. A diferença, é que nos dias de hoje, eles desvelam casos de crimes de colarinho branco envolvendo a cúpula política e empresarial. Nos anos da ditadura militar, contribuíram para o cometimento de centenas de homicídios e torturas de presos políticos.
No livro, o autor relata como cabo Anselmo articulou uma falsa reestruturação de um grupo revolucionário armado em Pernambuco e os entregou para serem aniquilados por policiais e militares na área rural da então cidade de Paulista. Entre os assassinados estava a mulher com quem Anselmo viveu maritalmente em Recife, a militante paraguaia Soledad Barret Viedma.
Motivado por contar um caso regionalmente conhecido, mas pouco explorado por jornalistas e historiadores nacionalmente, Campos juntou cerca de 2.000 páginas de documentos em cinco anos de investigações que resultaram na obra. Ao menos 50 pessoas foram entrevistadas no período. Os principais relatos foram dados por um dos sobreviventes da chacina, o paraguaio Jorge Barrett, cunhado de Anselmo. “Percebi que essa era uma história que não estava bem contada. Tinha muito da versão oficial, algumas tentativas de desconstruir a versão de que chamava as vítimas de terroristas, mas nada que tentasse juntar todos os elos”, afirmou o jornalista ao EL PAÍS.
No livro, ele vai além: “No caso da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) em Pernambuco, a guerrilha nunca chegou a existir: desde sempre teve suas pernas amputadas e uma sentença de morte sobre as costas. Com os seis mortos foram enterrados também os sonhos de toda uma geração de guerrilheiros que, a seu modo, buscavam uma Sierra Maestra para chamar de sua no Brasil”.
Em um ritmo de thriller policial, a obra orbita em torno do cabo Anselmo. Mostra como ele reuniu no Pernambuco seis militantes contrários à ditadura sob a justificativa de reiniciar a luta armada urbana contra o regime. Segundo essa aprofundada pesquisa que gerou o livro, o ex-militar queria dar um tiro de misericórdia na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e em todo outro grupo que tentasse se articular contra os ditadores. “Em 1971, a luta armada de esquerda estava desmobilizada. Anselmo concordou em ser usado pelo regime para dar esse tiro de misericórdia. Era para passar um sinal para os outros grupos de que a luta armada não valeria a pena”, explica o autor. Um dos “comandantes” de Anselmo nessa trama foi o famoso delegado torturador Sergio Paranhos Fleury, um obstinado perseguidor de rebeldes que atuou no Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo.
As vítimas do massacre da granja São Bento foram Soledad Barret, Jarbas Marques, Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luiz Ferreira de Souza, Pauline Reichtsul e José Manoel da Silva. Todos foram traídos por Anselmo. Por quase um ano articularam maneiras de como unir forças para combater o regime militar. Não conseguiram adquirir uma só arma. Mas morreram identificados como terroristas, conforme estamparam em suas manchetes os jornais Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio, em uma clara adesão à versão oficial.
Entre os dias 7 e 8 de janeiro de 1973, os seis foram presos. Seus corpos foram encontrados crivados de balas nas proximidades da chácara São Bento, no dia 9. Dos 32 projéteis encontrados nos corpos, 14 estavam alojados nas cabeças das vítimas. Diversas armas foram espalhadas ao redor dos cadáveres. A polícia, na ocasião, disse que desbaratou um congresso de militantes da VPR. Trocou tiros com eles. Matou todos. E nenhum policial saiu ferido, nem de raspão.
Uma das razões para a chacina ter ocorrido foi que o jogo duplo de Anselmo começou a ser desvendado. Na antevéspera do massacre, Soledad, a mulher dele, recebeu uma carta em que o comando da VPR que estava exilado no Chile alertava sobre a possibilidade da traição de Anselmo. Ingenuamente, ela mostrou a carta para o ex-militar. Foi sua sentença de morte e dos outros cinco companheiros dela. Assim que o sexteto foi preso, Anselmo deixou Recife da mesma forma que chegou, clandestinamente.
Na obra, o jornalista Campos também relata a luta das famílias em conseguir a reparação do Estado brasileiro e o reconhecimento de que todos foram vítimas da ditadura. Vários conseguiram, mas as marcas deixadas em alguns, jamais foram apagadas.
O LIVRO
O Massacre da Granja São Bento
Autor: Luiz Felipe Campos
Editora: CEPE – Companhia Editora de Pernambuco
Preço: 30 reais
Páginas: 214