Crimes

Nas entrelinhas: Vandalismo isolou extrema direita, mas sociedade segue polarizada

Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense*

Os atos de vandalismo ocorridos em 8 de janeiro isolaram a extrema direita, porém, a sociedade continua polarizada. A pronta resposta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contra os sediciosos e a dura reação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes contiveram a escalada golpista. A pesquisa divulgada ontem pelo Ipec mostra que 54% dos brasileiros confiam no petista. Por outro lado, 41% disseram que não confiam e 4% não responderam ou não opinaram.

A maior parte dos que confiam no presidente são homens (59%), com mais de 60 anos (63%), que possuem escolaridade até o ensino fundamental (65%) e que moram na região Nordeste (77%). O índice dos que não confiam é maior entre as mulheres (45%). Elas são jovens de 25 a 34 anos (46%), com ensino superior (49%) e moradoras da região Sul (53%). O dado mais positivo foi o fato de que 55% dos entrevistados acreditam que o governo Lula será bom ou ótimo. Já para 21% será ruim ou péssimo. Os que consideram que a gestão será regular são 18%. Essa expectativa não pode ser frustrada.

Será um erro confundir o isolamento da extrema-direita com o de Jair Bolsonaro (PL). Nas redes sociais, permanece o dispositivo montado para manipular a opinião pública e coordenar as ações bolsonaristas, apesar de todas as medidas tomadas até agora contra os propagadores de fake news e financiadores do que houve no domingo. As narrativas construídas nas redes bolsonaristas atribuem a depredação do Palácio do Planalto, do Congresso e do STF à ação de provocadores, desvinculando-as de Bolsonaro, que foi para Miami exatamente para que isso fosse possível. Insistem na tese da fraude eleitoral.

Entretanto, o presidente Lula saiu fortalecido, as instituições também. Duas variáveis foram decisivas para demover o ex-presidente Jair Bolsonaro de assinar o tal decreto de “estado de emergência” contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A primeira, foi a ostensiva atuação dos presidentes dos Estados Unidos, Joe Biden, e da França, Emmanuel Macron, contra qualquer tentativa de golpe. Os militares brasileiros são sensíveis a esse posicionamento, porque são estudiosos da geopolítica e sabem que o governo Bolsonaro se tornara uma ameaça para o mundo, por causa da questão do desmatamento da Amazônia e da aproximação de Bolsonaro com o presidente da Rússia, Vladimir Putin. A segunda, a união dos Três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – em repúdio ao vandalismo e defesa da democracia.

Do ponto de vista da sua legitimidade, o governo Lula está blindado. Entretanto, a governança e a governabilidade são ainda um dever de casa. A primeira depende da competência dos ministros, de suas iniciativas num cenário de escassez de recursos, que exige criatividade e ações de alto impacto e baixo custo. Os titulares das diferentes pastas, principalmente as recém-criadas, ainda estão arrumando as gavetas; aguardam a demissão dos integrantes da equipe de Bolsonaro, inclusive de 8 mil militares em cargos comissionados, prevista para o próximo dia 24 de janeiro, para organizar suas equipes.

Terceira via

É aí que a questão da governabilidade passará pelo primeiro teste, porque uma parte desse pessoal é ligada aos generais que garantiram a posse de Lula, outra, aos partidos que estiveram com Bolsonaro e agora se dispõem a dar sustentação a Lula no Congresso. A reeleição dos atuais presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), são favas contadas, mas o sistema de alianças que se estabelecerá como hegemônico nas duas Casas tende a ser mais conservador. Pelo andar da carruagem, Pacheco será um aliado de Lula; Lira, um adversário ladino e perigoso. O prestígio de Lula na opinião pública terá um peso igual ou superior à capacidade de cooptação da administração federal, que como se sabe é muito grande.

Não se deve invocar o nome do povo em vão. A pesquisa IPEC mostrou que a desconfiança em relação ao governo Lula está na faixa de 41% dos eleitores. Bolsonaro teve 49,1% dos votos no segundo turno. Lula venceu com 50,9%, uma margem muito estreita. Esses números mostram a resiliência dos opositores do petista e são uma tentação para os que acham, equivocadamente, que Bolsonaro é um cachorro morto.

Por exemplo, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que assume o comando do PSDB com o firme propósito de ampliar a federação com Cidadania em direção ao eleitorado bolsonarista. O novo parceiro seria o Podemos, que incorporou ao PSC. Isso lhe garantiria uma bancada de 40 deputados na Câmara, que poderia dar muito trabalho ao governo Lula e garantir sustentação à sua candidatura.

O projeto de Leite é açodado, mas vai ao encontro de setores da opinião pública, agentes econômicos e líderes políticos frustrados pelo fato de que Marina Silva (Rede), ministra do Meio Ambiente, Geraldo Alckmin (PSB), vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, e Simone Tebet (MDB), ministra do Planejamento, estão no governo e dão a ele um caráter de ampla coalizão democrática. Os órfãos da terceira via estão em busca de um candidato para chamar de seu. Não combinaram com Bolsonaro, cuja resiliência eleitoral é maior do que alguns imaginam. Por razões políticas e até antropológicas, sua liderança carismática e reacionária continua enraizadas na sociedade.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-vandalismo-isolou-extrema-direita-mas-sociedade-segue-polarizada/

"Sem anistia": Atos golpistas devem ser contidos com punição severa, declara jurista

Brasil de Fato*

“Estamos diante de uma crônica de terrorismo anunciando, tornado público nas redes sociais e vangloriado por aqueles que diziam que iam invadir os poderes”. A afirmação é do advogado, ex-presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, ao comentar os atos classificados como terroristas, que ocorreram em Brasília no decorrer da tarde do domingo (8).

Membro honorário vitalício da OAB, Britto considerou que a intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal, anunciada pelo presidente Lula, foi necessária. “Se você anuncia que vai praticar um ato de terror e a Segurança Pública não coíbe, ela se torna cúmplice, então a intervenção é necessária, é um ato de sobrevivência da democracia. Se o terrorismo anunciado não é combatido, se torna terrorismo instaurado e o Estado deve promover a segurança”.

Cezar Britto nomeou categoricamente os atos como terroristas. “Não foi um ato tentado, é crime de terror realizado, por isso se justifica a intervenção e a promessa de punição imediata”.

O jurista destacou ainda que a punição deve ser direcionada a quem financia, executa e a quem faz apologia ao crime e que é necessária uma punição severa e sem anistia. “Há muito tempo que os bolsonaristas e fascistas têm pedido a intervenção militar, tem pedido o golpe militar. O ato deste domingo é a concretização de uma promessa. Tem que evitar que esses atos se repitam, é necessária uma punição severa, sem anistia”, observou.

“Ninguém ficará impune”

Em pronunciamento realizado na noite de domingo (8), o presidente Lula nomeou Ricardo Cappelli, como o interventor da Segurança Pública no Distrito Federal, até o dia 31 de janeiro. “Ninguém ficará impune. O Estado Democrático de Direito não será emparedado por criminosos”, destacou o interventor em rede social.

Prisões

Na noite deste domingo (8), a Polícia Civil do Distrito Federal informou que 260 pessoas foram presas. “Os procedimentos policiais estão sendo finalizados pelas unidades do Departamento de Polícia Especializada (DPE) da PCDF. Todos são suspeitos de participar dos atos criminosos praticados contra as sedes dos Poderes da República”, informaram na rede social.

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.


scritório de Direitos Humanos/Anthony Headley Crianças passam por veículos destruídos durante o conflito em Bucha, na Ucrânia

Chefe de direitos humanos da ONU fala de impacto arrasador da guerra na Ucrânia

O alto comissário de Direitos Humanos da ONU encerrou, nesta quarta-feira, uma visita de quatro dias à Ucrânia. Em Kyiv, Volker Turk, participou de uma entrevista a jornalistas.

Ele se disse preocupado com a chegada de um “inverno longo e sombrio” no país e destacou o impacto arrasador da guerra nos direitos humanos.

Falta de alimentos

Turk disse que nestes quatro dias, com temperaturas abaixo de zero, ele testemunhou “os horrores, o sofrimento e o preço diário que esta guerra da Rússia contra a Ucrânia” tem sobre o povo.

Ele alertou que cerca de 17,7 milhões de pessoas precisam de assistência humanitária e 9,3 milhões de assistência alimentar e subsistência. Um terço da população foi forçado a fugir de suas casas. Cerca de 7,89 milhões deixaram a Ucrânia, a maioria mulheres e crianças, e 6,5 milhões de pessoas estão deslocadas internamente.

O chefe de direitos humanos disse que, todos os dias, seu Escritório recebe informações sobre crimes de guerra, um aumento no número de civis que são atingidos, além dos danos e da destruição, que incluem hospitais e escolas, como ele mesmo viu em Izium.

Volker Turk ressalta que, durante o inverno, isso tem consequências terríveis para os mais vulneráveis, que estão lutando contra apagões, sem aquecimento ou eletricidade, que duram horas.

Ataques a civis

Na segunda-feira, durante a visita, Volker Turk precisou passar um tempo em um abrigo subterrâneo, quando pelo menos 70 mísseis foram lançados na Ucrânia, novamente atingindo a infraestrutura essencial e desligando a energia.

O representante também alertou que continuam surgindo informações sobre execuções sumárias, tortura, detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados e violência sexual contra mulheres, meninas e homens.

O alto comissário conversou com as famílias dos prisioneiros de guerra, ouviu a dor dos pais daqueles que estão na linha de frente e soube da situação de pessoas com deficiência e idosos que não conseguem chegar a um abrigo seguro quando as sirenes de ataque aéreo disparam.

Turk visitou o local onde ficava um prédio de apartamentos que foi bombardeado em Izium, em Kharkiv, deixando mais de 50 pessoas enterradas sob os escombros. Ele também conversou com uma senhora que mostrou o prédio onde morava, agora destruído. Todos os seus vizinhos morreram.

Crimes de guerra

O chefe de Direitos Humanos da ONU afirma que os prisioneiros de guerra devem ser sempre tratados com humanidade desde o momento em que são capturados, e que esta é uma obrigação clara e inequívoca sob o direito humanitário internacional.

A missão de Monitoramento dos Direitos Humanos da ONU na Ucrânia, chefiada por Matilda Bogner, divulgou nesta quarta-feira, um relatório que detalha as mortes de civis. O documento retrata o destino de 441 civis em partes de três regiões do norte, Kyiv, Chernihiv e Sumy, que estavam sob controle russo até o início de abril. Bucha foi a cidade mais atingida.

Volker Turk disse que seu escritório está trabalhando para validar as alegações de mortes adicionais nessas regiões e em partes das regiões de Kharkiv e Kherson, que foram recentemente retomadas pelas forças ucranianas. Ele afirma que “há fortes indícios de que as execuções sumárias documentadas no relatório constituem o crime de guerra de homicídio doloso”.

Ataques à rede elétrica

A situação humanitária na Ucrânia foi tema de uma sessão no Conselho de Segurança da ONU na terça-feira.

O subsecretário-geral de Assistência Humanitária, Martin Griffiths, disse que mais de 14 milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas por causa do conflito.  Deste total, pelo menos 6,5 milhões se tornaram deslocadas internas e 7,8 milhões fugiram para outros países da Europa.

Desde o início da invasão da Rússia à Ucrânia, em 24 de fevereiro, 17.023 civis perderam a vida e 1.148 menores foram mortos ou feridos, mas o número real pode ser ainda mais alto.

Uma das maiores preocupações, é com a chegada do inverno e as temperaturas que devem baixar para -20°C, enquanto os ataques à infraestrutura do país continuam. Griffiths disse que as ofensivas às redes de energia elétrica do país por forças da Rússia criaram um novo nível de necessidade no conflito.

Texto publicado originalmente na ONU News.


Magistrada avalia que intolerância cresce a olhos nus no DF e no país

 Arthur de Souza*, Correio Braziliense

Juíza substituta do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT), Paula Ramalho foi a entrevistada de ontem do programa CB.Poder, parceria entre Correio e TV Brasília. À jornalista Ana Maria Campos, ela destacou o aumento nos casos de racismo e de injúria racial no Distrito Federal, além de comentar sobre uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que acabou com a prescrição para o segundo tipo de crime.

Questionada sobre sobre a atitude agressiva de um policial militar com um negro, durante uma abordagem ocorrida neste fim de semana, em Planaltina, a magistrada disse que existe "uma ideologia disseminada e muito enraizada, não só no ambiente policial, mas na sociedade como um todo, que construiu a imagem do 'negro perigoso'."  

A gente publicou uma reportagem na semana passada mostrando que o número de casos de injúria racial e de racismo tem crescido no Distrito Federal. A senhora consegue constatar isso no dia a dia do seu trabalho?

Sim. Na verdade, tenho atuação predominante na área criminal e, ao longo desses oito anos em que desempenho a função de juíza no TJDFT, a gente tem se deparado com processos que chegam até nós envolvendo denúncias, seja relativas ao crime de injúria racial, seja relativo ao crime de racismo. Nos últimos tempos, a reportagem demonstra bem que houve um aumento do número de casos. E isso não é só no DF. Embora os números daqui causem um certo espanto, me parece ser um cenário nacional. Recentemente, foi publicado no Anuário de Segurança Pública, dados de 2021 e 2022 — consolidados em agosto — indicando que, no Brasil como um todo, houve um aumento expressivo dos casos de racismo.

Primeiro explique, por favor, qual é a diferença entre a injúria racial e o crime de racismo?

A injúria racial é um crime em que o que é atingido é a honra de alguém, é aquela apreciação subjetiva que a pessoa tem a respeito de si mesma perante a coletividade. Então, na injúria racial existe uma ofensa a uma pessoa determinada ou a um grupo de pessoas e, nessa ofensa, são utilizados termos e/ou palavras que digam respeito a sua cor, a sua raça, a sua etnia. Enquanto que os crimes de racismo têm previsão em uma lei específica, que é a Lei nº 7.716/1989. Essa lei traz vários tipos de crime de racismo que envolvem, na maioria das vezes, negar ou dificultar acesso a determinado bem, serviço ou produto. Por exemplo, há uma previsão de que se você negar matrícula ou dificultar a matrícula de alguém em estabelecimento de ensino por conta de cor, raça, etnia ou procedência nacional, isso configura um crime de racismo. A gente tem um passado de praticamente mais de três séculos de comércio escravagista. O Brasil foi o país que mais recebeu pessoas escravizadas vindas do continente africano e, mesmo após a abolição, a gente teve uma abolição formal, mas, do ponto de vista material, não foram dadas às pessoas negras as condições para que elas tivessem sua cidadania e sua dignidade garantidas pelo estado brasileiro.

A decisão do STF (sobre os crimes de injúria racial) foi importante. Explica para gente como foi isso?

Foi uma decisão dada em um habeas corpus, que é um processo que busca proteger a liberdade de locomoção de uma pessoa, e o ministro relator foi o Edson Fachin. É um caso que veio do DF, inclusive. A pessoa estava sendo acusada de injúria racial e o que ela dizia, em sua defesa, era que tinha passado o tempo do estado apurar e punir essa conduta ou, em termos jurídicos, houve a prescrição. O Ministério Público falou que não houve prescrição, porque a injúria racial, assim como o racismo, deve ser tida por imprescritível, já que a nossa constituição repudia o racismo e ela mandou que a lei considerasse o racismo crime inafiançável e imprescritível. Essa tese do Ministério Público acabou sendo acolhida pelo ministro Fachin quando ele diz que, tanto os crimes de racismo previstos na lei especial quanto a injúria racial prevista no código penal, são espécies de um mesmo fenômeno que é repudiado pela constituição, que é o fenômeno do racismo. Então, existe uma vinculação muito próxima entre essas duas figuras e, para que o racismo seja extirpado, ambas as figuras devem ser tratadas com rigor, e foi esse o entendimento que acabou acolhido por maioria no Supremo Tribunal Federal.

Essa decisão tem efeito de repercussão geral?

Ela foi dada em um processo que a gente chama de processo subjetivo ou individual, que é o habeas corpus. Mas, como foi uma decisão do plenário que, inclusive, faz referências a outros processos que o STF decidiu em sede de controle concentrado, ela tem uma força persuasiva muito grande, embora ainda não conte com esse efeito vinculativo.

A senhora considera essa decisão um avanço, em termos da legislação?

Com certeza. Aqui no DF, a gente tem, de certa forma, uma vantagem, porque o nosso tribunal é reconhecido pela sua celeridade. Dificilmente, casos de injúria racial, ainda que se considere prescritível, dificilmente prescrevem, porque a atuação da Justiça aqui é relativamente célere. Mas, infelizmente, essa não é a realidade do país como um todo. Assim, considerar a injúria racial prescritível, significa dizer que muitos casos deixarão de ser apurados e punidos porque passou muito tempo e a justiça não agiu de modo célere e, com essa decisão, isso não acontece mais, a qualquer tempo, essa prática poderá ser punida.

A senhora acha que algumas pessoas cometem esse tipo de crime por acreditarem que elas vão ficar impunes, que isso não acarreta uma pena ou uma punição?

Acredito que a incerteza ou a garantia da impunidade, sem dúvida alguma, atua como fator que serve como estímulo ou, pelo menos, deixa de inibir as pessoas que tenham esse tipo de conduta ou esse tipo de pensamento. Nos tempos atuais, temos visto uma compreensão muito "elástica" da liberdade de expressão, como se fosse um direito absoluto. Então, sem dúvida alguma, a falta de punição em relação a esse tipo de situação, pode servir como estímulo para que essa prática se perpetue, e que as pessoas se vejam no mínimo não desestimuladas a expressar esse tipo de pensamento.

Qual é a pena para esses tipos de crimes?

Para a injúria racial, que tem previsão no código penal, a pena mínima é de um ano, e a máxima é de três anos de reclusão, que é um tipo de pena privativa de liberdade. Já na 7.716/1989, que tipifica os crimes de discriminação racial, a gente tem pena variáveis, porque são cerca de 17 figuras criminais. Aí tem penas que variam de um a três anos, assim como a injúria racial, e tem umas que vão de dois a cinco anos, que é a maior das penas previstas nessa lei específica. Mas, pela quantidade de penas, a verdade é que, muito dificilmente, alguém iria cumprir essa pena presa. Muitas vezes, quando a pena não supera os quatro anos, pela nossa lei, o autor tem o direito de cumprir penas alternativas. Então, quando há a condenação, muitas vezes a pena é: prestar serviços para a comunidade, fazer o pagamento de prestação pecuniária para algum tipo de entidade que a justiça indique ou assinale. Então, a rigor, muito dificilmente a prisão vai ser a resposta do estado, que vai se dar por meio de outras penas, na maioria das vezes.

Por que a sociedade não avança no sentido de reduzir esse tipo de crime?

Essa é uma pergunta muito complexa e a resposta para ela, evidentemente, não é das mais simples. Vários pensadores intelectuais destacam que o racismo é um fenômeno estrutural na sociedade brasileira, que não se revela apenas nessas condutas individuais, em que alguém ofende a outra pessoa ou alguém, por exemplo, num restaurante, deixa de atender ou atende mal um cliente por conta de sua cor. O racismo, na verdade, é uma ideologia que está tão arraigada na sociedade brasileira, que faz com que as pessoas vinculem características da população negra a coisas negativas, não desejáveis ou não valorosas. Desarticular todo esse sistema e estrutura racista, em que se funda o estado brasileiro, é algo que demanda realmente muito tempo. Se a gente parar para ver, voltando rapidamente para a questão histórica, faz pouco tempo que o estado brasileiro começou a se movimentar para poder desarticular essa estrutura. A gente tem, por exemplo, uma lei de política afirmativa de cotas, tanto na parte educacional quanto no serviço público, que veio a completar 10 anos recentemente. A própria lei que criminaliza essas condutas de descriminação racial é de 1989, ou seja, completou pouco mais de 30 anos anos de vigência. A injúria racial mesmo, foi incluída no código penal em 1997, pouco mais de 20 anos. Então, se a gente pega três séculos em que o discurso racista foi incutido na sociedade brasileira e pega o período de tempo em que isso vem sendo desmontado ou desarticulado, acho que isso nos ajuda a entender o porquê de não ter havido ainda tantos avanços em relação a isso. E, de fato, a impressão que a gente tem no momento é que realmente há retrocesso, e acho que esse retrocesso está um pouco ligado ao tensionamento que há no tecido social brasileiro. A gente, nos últimos tempos, tem visto a olhos nus um crescimento da intolerância. E aí, os grupos mais vulneráveis são justamente, negros, mulheres, população LGBTQIA .

Como é que a senhora avalia essa política de cotas e de ações afirmativas para colocar e dar oportunidade para as pessoas de evoluírem, estudarem e crescerem?

Sou nordestina, minha família é de Alagoas. Quando tomei posse na magistratura, meus pais vieram e, à época, na cerimônia em si a gente tinha um desembargador negro. Aí eu lembro que um outro dia, conversando com meu pai, ele falando sobre esse tema de polícia de cotas, ele falou sobre esse desembargador e disse: "tá vendo? quem quer e se esforça, consegue!". Então, existe dentro da população, de um modo geral, esse senso comum de que com o esforço e com dedicação, as pessoas conseguiriam romper esses obstáculos causados por uma estrutura racista. Só que o ponto é que não é justo que pessoas por conta de sua cor, da sua raça, de sua procedência nacional e de sua etnia, tenham que enfrentar tantos obstáculos partindo de condições desiguais se comparadas às pessoas de pele branca, por exemplo. Assim, vejo a política de cotas como política de compensação, o estado brasileiro está compensando todos os danos que causou à população negra, historicamente falando, e também está buscando criar condições de igualdade de partida. Por mais que a gente encontre figuras que furam esse bloqueio, digamos assim, são poucas ainda.

A senhora acha que esse momento de embate eleitoral, muito pela polarização política, também pode incentivar esse atrito de racismo e descriminação?

Sim e, nesse caso, não se trata de uma mera opinião. A gente tem dados que confirmam aumento expressivo dos chamados crimes de ódio, que envolvem racismo, xenofobia e misoginia, nesse período eleitoral. Existe uma associação civil que recebe denúncias, digamos assim, de fatos ocorridos no ambiente virtual. E essa associação, em matéria divulgada até no site do Senado, indicou que neste ano de 2022 houve um aumento de cerca de 65% nas denúncias de situações, no ambiente virtual, envolvendo racismo, intolerância, preconceito, racismo contra as religiões de matriz africana e ofensas dirigidas às mulheres. Tudo isso cresceu bastante, até porque, se olharmos o cenário eleitoral como foi delineado, a gente viu que um determinado candidato — o que se sagrou vencedor — tinha um voto majoritariamente de pessoas negras e de mulheres. Isso acabou fazendo com que, no embate eleitoral, muitas vezes houvesse ofensas pautadas nesses marcadores: raça, gênero e procedência nacional, como no caso dos nordestinos. E tudo isso realmente ficou muito intensificado, dada a violência verbal que marcou todo esse período eleitoral, infelizmente.

A gente teve um caso nesse fim de semana (no DF), de um policial militar que foi agressivo com uma pessoa negra durante uma abordagem. Como se pune um caso como esse?

Existe uma ideologia disseminada e muito enraizada, não só no ambiente policial, mas na sociedade como um todo, que construiu a imagem do negro perigoso. A pessoa suspeita e que recebe as abordagens mais truculentas da polícia, em geral, tem cor, tem um perfil, e esse perfil é justamente da população negra, em especial do homem negro, que é muito vitimado por essas ações e abordagens ilegais, da maneira como são feitas, pelo menos, por parte da polícia. É claro que a gente não pode dizer que isso é um problema desse policial, em específico. Na verdade, o problema é estrutural e o combate a ele demanda atuação enérgica, não só dos órgãos de controle da polícia, como o Ministério Público — que tem por função também controlar e exercer a fiscalização da atividade policial —, como também um trabalho interno de educação antirracista dentro das próprias polícias, fazendo com que esses policiais, desde o seu ingresso na polícia, compreendam que existem protocolos a serem seguidos durante a abordagem, e que o motivo da abordagem jamais pode ser simplesmente essa fundada suspeita baseada na cor, no jeito de vestir, no jeito de andar e no local onde a pessoa está, de maneira isolada.

*Matéria publicada originalmente no Correio Braziliense


A lei Maria da Penha estabelece que, após o registro de boletim de ocorrência por violência doméstica, o caso deve ser remetido ao juiz em no máximo 48 horas | Foto: Folhapress

Bolsonaro cortou 90% da verba de combate à violência contra a mulher

Thiago Resende,* Folha de São Paulo

O presidente Jair Bolsonaro (PL) cortou em 90% a verba disponível para ações de enfrentamento à violência contra a mulher durante sua gestão.

O dinheiro destinado ao Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos para proteção das mulheres caiu de R$ 100,7 milhões, em 2020 —primeiro Orçamento inteiramente elaborado por Bolsonaro—, para R$ 30,6 milhões no ano passado. Neste ano, sobraram apenas R$ 9,1 milhões, de acordo com dados da pasta.

Para 2023, o governo enviou ao Congresso uma proposta de Orçamento que prevê uma leve recuperação dos recursos, atingindo R$ 17,2 milhões. Na comparação com 2020, no entanto, ainda há uma queda acentuada (83%).

Essa verba é usada nas unidades da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres, que atendem vítimas de violência doméstica, com serviços de saúde e assistência. Além disso, tem o objetivo de financiar programas e campanhas de combate a esse tipo de crime.

Num esforço de tentar reduzir a rejeição do presidente no eleitorado feminino, a campanha de Bolsonaro tem dado destaque a ações do presidente nesta área —como a sanção de leis de interesse do público feminino.

Em materiais de campanha, Bolsonaro também tem prometido que vai ampliar os recursos para enfrentar a violência contra mulheres, caso ele seja reeleito. A proposta orçamentária reflete essa promessa, embora os valores ainda sejam distantes da verba destinada a essas ações no início do governo.

Além disso, as restrições de recursos presentes no projeto de Orçamento indicam que, no próximo ano, pode haver paralisação do serviço Ligue 180 —canal de denúncias de violência doméstica. A proposta prevê apenas R$ 3 milhões para a Central de Atendimento à Mulher.

Em média, são necessários R$ 30 milhões por ano para esse canal, que funciona 24 horas por dia e em 16 países, além do Brasil.

O Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos justifica a redução de recursos com o argumento de que adota políticas transversais (que englobam diversas áreas). Por isso, afirma a pasta, ações setoriais como de igualdade racial também beneficiam mulheres.

No entanto, iniciativas da pasta, como promoção da igualdade racial, fortalecimento da primeira infância e educação em direitos humanos, já existiam desde o início do governo e mantiveram um patamar de próximo de R$ 2 milhões para cada área.

Jair Bolsonaro (PL), em cerimônia no Palácio do Planalto em homenagem ao Dia Internacional das Mulheres, em março deste ano - Pedro Ladeira - 8.mar.22/Folhapress

"O governo federal acredita que promove e articula políticas públicas universais de direitos humanos, com especial atenção às mulheres", disse a pasta.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre março de 2020, início da pandemia no país, e dezembro de 2021, foram registrados 2.451 casos de feminicídios e 100.398 de estupro e estupro de vulnerável com vítimas do gênero feminino.

O Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) ressalta que, no caso das Casas da Mulher Brasileira, que fazem o atendimento às vítimas, o corte na verba pode prejudicar o acompanhamento dado às mulheres, que muitas vezes precisam ser afastadas do seu agressor.

"Deveriam ser investidos mais recursos para que se reduza a violência e também para que as vítimas sejam atendidas. Essa política foi rapidamente desmontada nesse governo", disse Carmela Zigoni, assessora política do Inesc.

"O Bolsonaro vem tentando disputar o voto feminino, mas o machismo dele não é só no gesto, nas palavras, mas também nas prioridades orçamentárias do seu governo", disse a deputada federal e líder do PSOL na Câmara, Sâmia Bomfim (SP).

O partido fez um estudo do histórico das políticas para mulheres e concluiu que Bolsonaro foi o primeiro presidente a "não propor um programa específico que explicite o combate à violência contra a mulher" –os recursos para essa finalidade foram unificados ao programa de promoção e defesa de direitos humanos para todos.

Procurado, o Palácio do Planalto não se manifestou sobre o corte nos recursos para as medidas de enfrentamento à violência doméstica.

A primeira-dama, Michelle Bolsonaro, tem ganhado cada vez mais protagonismo na campanha para tentar melhorar a imagem do presidente no público feminino.

A ideia é tentar minimizar a imagem machista do presidente dando voz a Michelle, que desde a convenção para oficializar a candidatura à reeleição faz discursos com apelo religioso e troca demonstrações de carinho com o marido.

Mas, no discurso, em Brasília, durante o 7 de setembro, o presidente, em cima de carros de som, pediu voto, reforçou discurso conservador e deu destaque a Michelle, com declarações de tom machista.

Em peça publicitária da campanha, o PL apresentou feitos de Bolsonaro às mulheres em seu mandato, como a sanção das leis Mariana Ferrer (que proíbe que vítimas de crimes sexuais e testemunhas sejam constrangidas durante audiências e julgamentos) e da violência psicológica.

Mas essas iniciativas foram propostas pelo Congresso —coube ao presidente apenas sancionar (confirmando a proposta do Legislativo).

"Se para alguns parece estranho que Jair tenha feito tanta coisa pela proteção das mulheres é porque não conhecem o presidente", disse Michelle em vídeo produzido na corrida eleitoral.

A locutora do vídeo também tenta suavizar a do presidente imagem ao dizer que "não é com discurso que o Jair demonstra respeito com as mulheres, é com realizações".

*Texto publicado originalmente no portal da Folha de São Paulo.


Escadaria da rua Cristiano Viana zona oeste de São Paulo, amanheceu com lambe-lambe em homenagem à vereadora Marielle Franco, morta a tiros no Rio (Foto: Danilo Verpa/Folhapress)

O que é violência política de gênero e saiba como denunciá-la

Geledés*

O crime de violência política de gênero foi criado em agosto de 2021 na Lei 14.192, uma vitória da bancada feminina no Congresso. A legislação estabelece regras para prevenir, reprimir e combater a violência política contra mulheres, alterando o Código Eleitoral, a Lei dos Partidos Políticos e a das Eleições.

A eleição de outubro 2022 é a primeira em que é considerado crime assédio, constrangimento, humilhação, perseguição e ameaça de uma candidata ou a uma política já eleita. Ainda estabelece que é ilegal atuar com menosprezo ou discriminação à condição de mulher, sua cor, raça ou etnia.

A punição é de até quatro anos de prisão e multa. Se a violência ocorrer pela internet, a pena é mais dura, podendo chegar a seis anos.

O que é violência política de gênero? Qualquer candidato ou político pode ser vítima de violência política, um ato que tenta minar uma candidatura com ameaça e intimidação, de forma organizada ou não. A segmentação do gênero, entretanto, foi resultado dos debates sobre igualdade de gênero na política e os efeitos da violência em candidaturas femininas, bem como nas da população LGBTQIA+, de negros e indígenas.

A lei brasileira considera a violência política contra a mulher “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher”.

Ela garante, também, que sejam cumpridos os direitos de participação política da mulher, “vedadas a discriminação e a desigualdade de tratamento em virtude de sexo ou de raça”.

A lei se enseja a movimentos internacionais como a Declaração sobre a Violência e o Assédio Político contra as Mulheres, assinada em 2015 pela Organização dos Estados Americanos.

Esse documento diz que a violência política contra as mulheres inclui ação, conduta ou omissão baseada em gênero que venha “minar, anular, impedir, dificultar ou restringir seus direitos políticos, violar o direito a uma vida livre de violência e de participar na vida política em condições de igualdade com os homens”.

Quais os tipos de violência política? Segundo o Observatório de Violência Política Contra a Mulher, que dispõe de cartilha sobre o tema, há a violência física e a não física, que pode ser simbólica, moral, econômica e psicológica.

Nesse caso, podem configurar atos que ameacem, amedrontem ou intimidem mulheres e seus familiares, e “que tenham por propósito ou resultado a anulação dos seus direitos políticos, incluindo a renúncia ao cargo ou função que exercem ou postulam”.

Também são considerados atos de violência crimes já previstos, como difamação, calúnia, injúria ou qualquer expressão “que rebaixe a mulher no exercício de suas funções políticas, com base no estereótipo de gênero, com o propósito ou o resultado de minar a sua imagem pública”.

A cartilha ainda cita casos específicos, como a “não destinação de recursos públicos destinados às campanhas femininas de acordo com o regramento em vigor, por parte do partido”, bem como “apresentação de candidaturas de mulheres somente para fins de preenchimento da cota prevista em lei, com o sem consentimento delas”.

O Ministério Público Eleitoral acrescenta que representam formas de violência política de gênero a ofensa da dignidade de mulheres “por meio de palavras, gestos ou outras formas, imputando-lhes crimes ou fatos que ofendam a sua reputação, bem como violar a sua intimidade, divulgando fotos íntimas ou dados pessoais, e questionar suas vidas privadas”.

A quem se aplica? Apesar de não estar explícito na lei, especialistas entendem que será levado em conta o gênero, não o sexo biológico, a fim de incluir mulheres trans, as mais ameaçadas e desqualificadas no debate público. A jurisprudência, nesse caso, deve seguir exemplo da determinação do STJ (Superior Tribunal de Justiça) em relação à aplicação da Lei Maria da Penha.

Qual a diferença entre o crime de violência política, também criado em 2021, e o de gênero? O crime de violência política, levado ao Código Penal pela Lei 14.197, em setembro do ano passado, é considerado um dos crimes contra o Estado Democrático de Direito —lei que revogou a antiga Lei de Segurança Nacional.

Ele considera violência política “restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

A pena, assim como o crime ligado à Justiça Eleitoral, pode ser de reclusão de até seis anos.

A principal diferença é que o crime de gênero diz respeito à Justiça Eleitoral e o mais genérico, que também pode ser aplicado em casos de vítimas mulheres, na Justiça comum.

“Se uma mulher sofrer ataques que dificultem sua campanha será possível, eventualmente, inferir dois crimes ao agressor. Não temos como antever como a jurisprudência vai lidar com isso. Um crime será julgado pela Justiça Eleitoral e o outro pela justiça comum”, avalia o advogado Fernando Neisser, especialista em direito eleitoral.

COMO DENUNCIAR

  • É possível denunciar no site do Ministério Público Federal e nas páginas das Procuradorias Regionais Eleitorais
  • O Fale Conosco da Câmara dos Deputados é um canal para mulheres já eleitas. Outra alternativa é Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados
  • É mais importante que as vítimas coletem e guardem a URL da ofensa nas redes sociais, como prova, do que os prints (que são importantes em casos que ocorrem em aplicativos de mensagem)
  • As plataformas digitais também têm canais de denúncia contra racismo, preconceito e discurso de ódio

*Texto publicado originalmente no Geledés.


O antirracismo na prática | Foto: digitalskillet /Shutterstock

O antirracismo na prática e o tratamento diferenciado às pessoas brancas

Geledés*

Se você é uma pessoa branca e ainda não leu Grada KilombaSueli Carneiro, Lélia GonzalezCida BentoÂngela Davisbell hooks ou Frantz Fanon talvez você esteja longe de exercer seu antirracismo de modo pleno e consciente. Por outro lado, entendo que apenas ler essas autoras e autores não faz de ninguém antirracista automaticamente, até porque, para este tipo de luta, é preciso bem mais que um envolvimento intelectual, mas acredito que ao lê-los, há grandes chances de você, pessoa branca, compreender com mais profundidade as nuances e sutilezas do racismo e, assim, captar as camadas dos argumentos e ações racistas com mais precisão.

Toda vez que vemos episódios de racismo ganhar espaço nas redes e nas grandes mídias geralmente são casos emblemáticos, como xingamentos e agressões racistas. Raramente vemos associados à outras cenas menos explicitas, mas tão violentas quanto. Digo isso, porque as “micros violências” que negros e negras são submetidos todos os dias não ganham relevância nem destaque. Por isso que, para além de denunciarmos esses casos nefastos de racismo explicito, é necessário também um aprofundamento nessa questão e que passa pela leitura dos autores e autoras que citei no início desta coluna.

Dias atrás, veio à tona mais um desses episódios assombrosos de racismo explícito. O caso envolvendo os filhos dos atores Giovana Ewbank e Bruno Gagliasso, rendeu aplausos e apoio público, principalmente à Giovana que partiu para cima de uma senhora racista, em Portugal. Aliás, muito simbólico que este caso tenha acontecido em terras portuguesas, o que demonstra que o país também precisa discutir com mais profundidade e urgência as questões raciais. Creio que Giovana fez o que tinha de ser feito: disse tudo que uma racista deve ouvir. O que evidencia uma postura ética de quem de fato não aceita o racismo de forma alguma.

Portanto, não há dúvidas de que Giovana exerceu o antirracismo na prática, tanto nas palavras, quanto nas ações. Foi de certo modo uma atitude bem didática de como pessoas brancas podem agir diante do racismo. Além disso, o fato de o episódio envolver crianças gerou ainda mais comoção e indignação. Em poucas horas a internet sacudiu com elogios à Giovana e mensagens de apoio. Lembrando também que essa não foi a primeira vez que o casal passou por situações parecidas como essa, por causa de seus filhos negros.

O fato é que o tratamento de apoio dado à Giovana também revela o quanto o privilégio branco incide até nestes momentos de denúncia, porque mostra o quanto esse mesmo privilégio pode mascarar a luta antirracista. Isto significa dizer que, pessoas brancas e famosas como é o caso de Giovana e Bruno, expõe uma sociedade que reconhece com mais facilidade e empatia a luta contra o racismo quando os protagonistas dessa luta são brancos. Essa constatação, por outro lado, não invalida e nem deve servir para inibir outras pessoas brancas de agirem com firmeza diante do racismo.

Pois a questão que se coloca aqui é a de que não há uma igualdade de tratamento entre brancos e negros mesmo quando estão do mesmo lado na luta antirracista. Porque não esqueçamos que homens e mulheres negras são vítimas dessas violências todos os dias, mas dificilmente ganham adesão e apoio popular nesta proporção. Isso quando não são qualificados como agressivos ou que não sabem dialogar. Em outras palavras, uma pessoa branca pode dizer o que quiser diante de um racista, pode pôr o dedo na cara sem qualquer receio de retaliação, ou de ser acusada de barraqueira, o que muito provavelmente não aconteceria com uma mulher negra na mesma situação.

Reforço que acho bastante positivo que Giovana tenha tido essa postura diante de um episódio de racismo e que se utilizou do seu lugar de privilégio e de prestígio para a luta antirracista. No entanto, não percamos de vista que ainda estamos longe, muito longe de uma igualdade racial no Brasil.

*Texto publicado originalmente no Geledés.


Protesto contra assédio | Foto: reprodução/ Flickr

Revista online | Vistos como tabu, casos de assédio no trabalho se alastram

Especial para a revista Política Democrática online (45ª edição: julho/2022) 

“Tudo começou com uma série de pedidos para que eu estendesse o meu expediente de trabalho. Se eu não aceitasse, [o patrão] insinuava que iria descontar na avaliação de desempenho. Virou um inferno. O estopim foi o dia em que ele me disse para acompanhá-lo em um evento fora da empresa e, no meio do caminho, disse que me faria surpresa. Me levou para o motel. Gritei muito dentro do carro”.

O desabafo é de uma engenheira de alimentos, de 45 anos, que pediu para ter o nome mantido sob sigilo. Moradora de Brasília, ela mudou de emprego, mas carrega consigo as memórias de um passado recente que classifica como “terror”. “O assédio parece uma peste, está impregnado. No meu caso, assim que ele [patrão] parou no semáforo, abri a porta do carro e saí correndo. No outro dia, registrei a denúncia na polícia e na empresa. O processo ainda está tramitando na Justiça”, afirmou.

Veja todos os artigos desta edição da revista Política Democrática online

De acordo com casos julgados na Justiça, os exemplos de assédio moral e sexual são incontáveis: um elogio constrangedor, imposição de metas desproporcionais em relação ao prazo de cumprimento delas, uma piadinha de cunho sexual ou uma investida do chefe ou colega dentro do ambiente de trabalho. 

O Tribunal Superior do Trabalho (TST) entende que é assédio sexual no trabalho todo tipo de gesto, conversa ou insinuação de natureza sexual feita sem consentimento e que provoque constrangimento na vítima. O órgão define assédio moral, por sua vez, como “a exposição de pessoas a situações humilhantes e constrangedoras no ambiente de trabalho, de forma repetitiva e prolongada, no exercício de suas atividades”. 

No Brasil, todos os dias, multiplicam-se situações muito parecidas com as que foram relatadas por funcionárias da Caixa Econômica Federal, envolvida no maior escândalo de assédio moral e sexual no mês passado e que provocou, em 29 de junho, a demissão do seu então presidente, Pedro Guimarães, alvo de investigação do Ministério Público Federal (MPF). Já são 60 denúncias registradas no órgão desde a saída dele. 

Confira, abaixo, galeria de imagens:

Assédio sexual no trabalho | Foto: Kmpzzz/Shutterstock
Pessoa pressionada por multidão | Foto: AlejandroCarnicero/Shutterstock
Protesto contra assédio | Foto: reprodução/ Flickr
Assédio sexual no trabalho
Processo por assédio
Pessoa pressionada por multidão
Assédio moral em ambiente de trabalha
Assédio sexual no ambiente de trabalho
Palma da mão escrita não
Invasão de privacidade
Formulário de assédio sexual
Protesto contra assédio
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Assédio sexual no trabalho
Processo por assédio
Pessoa pressionada por multidão
Assédio moral em ambiente de trabalha
Assédio sexual no ambiente de trabalho
Palma da mão escrita não
Invasão de privacidade
Formulário de assédio sexual
Protesto contra assédio
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“Ciclo vicioso”

Casos de assédio se repetem em outros locais de trabalho. No mesmo dia da demissão de Pedro Guimarães da Caixa, um servidor do Ministério Público de São Paulo (MPSP) suicidou dentro do órgão, no centro da capital paulista. Denúncia feita ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em 1º de julho, diz que ele tinha depressão e indica que sofria assédio moral no trabalho.

Segundo o documento, o analista jurídico do MPSP tinha 48 anos e viu um colega do órgão ser demitido “a bem do serviço público’. Por isso, em razão da doença, achou que teria o mesmo fim. “Constantemente, os servidores sofrem assédio moral sem ter onde pedir amparo. Pouquíssimos são os que têm coragem de relatar os fatos. É um ciclo vicioso instalado”, afirma um trecho da denúncia.

Em nota, o MPSP lamentou "o triste episódio" no mês passado e manifestou "condolências à família e aos amigos do servidor, cuja ficha funcional era impecável, não restando, portanto, qualquer óbice quanto ao seu desenvolvimento na carreira." O órgão disse que o bem-estar de membros e servidores é uma preocupação central da atual gestão e que as ações desta área são focadas no Centro de Gestão de Pessoas.

Justiça

Os assédios também se alastram em grandes empresas privadas. A 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10), em Brasília, condenou o banco Santander a pagar R$ 274,4 milhões em indenização por danos morais coletivos, por causa de assédio moral cometido contra funcionários. A decisão é de segunda instância e foi publicada em 15 de julho. O banco disse que vai recorrer ao Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Dados do TST apontam que, somente em 2021, foram ajuizados, na Justiça do Trabalho, mais de 52 mil casos relacionados a assédio moral e mais de 3 mil relativos a assédio sexual em todo o país, o que, segundo especialistas, mostra que as violências são numerosas no mundo do trabalho.

Por outro lado, o desfecho dos processos nem sempre é a punição dos assediadores. De acordo com levantamento da Controladoria-Geral da União (CGU), dois em cada três processos de investigação por assédio sexual na administração pública federal, por exemplo, terminaram sem qualquer penalidade.

No período de 2008 até junho de 2022, foram instaurados 905 processos correcionais para apurar casos de assédio sexual. Desse total, 272 ainda estão em andamento, e outros 633 foram concluídos. Destes, 432 terminaram sem punição, o que representa 68% do total. As demais resultaram em advertência, suspensão ou demissão do agressor.

Preocupação

No caso do funcionalismo público federal, a situação é ainda mais preocupante por não ter um canal centralizado para receber denúncias específicas de assédios moral e sexual, conhecidos pela natureza mais sensível que outros tipos de queixas. Essa falta de estrutura pode afastar e até calar as vítimas.

Essa é a conclusão da advogada e consultora para equidade de gênero Myrelle Jacob em sua dissertação de mestrado. O estudo, que deve ser concluído em novembro, começou há dois anos como um trabalho de consultoria para o Banco Mundial e analisou os mecanismos de denúncias adotados por estados da federação. O objetivo do estudo avança agora para o Executivo Federal.

A pesquisadora explica que o estatuto que regulamenta a parte disciplinar dos servidores federais, a lei 8.112/90, não prevê o assédio como infração e nem como conduta passível de punição. Apesar disso, há diversos canais para denúncias espalhados por órgãos federais. Isso, porém, é um problema, de acordo com a advogada, já que não serve para analisar os casos como um todo.

Veja, a seguir, galeria de fotos:

Foto: SurfsUp/Shutterstock
Foto: Alphavector/Shutterstock
Foto: Dragana Gordic/Shutterstock
Foto: Paulo Pinto/AGPT
Foto: H_Ko/Shutterstock
Foto: My Ocean Production/Shutterstock
Foto: Reprodução/Spirit Fanfics e Histórias
Foto: Reprodução/A Folha Torres
Foto: Reprodução/Jornal do Comércio do Ceará
Foto: Tinnakorn Jorruang/Shutterstock
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Sala de cirurgia

Em outro caso recente, a Polícia Civil e o Ministério Público investigam o presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), Clóvis Bersot Munhoz, por suposto caso de assédio sexual contra uma técnica em enfermagem. Ele chegou a ser indiciado pelo crime, em inquérito sigiloso encaminhado ao Ministério Público, que pediu mais diligências à polícia.

O assédio teria ocorrido em uma sala de cirurgia de um hospital privado da Zona Sul do Rio. Em depoimento, a mulher disse que Munhoz afirmou que ela era "muito quente” e que precisava ter mais relações sexuais por ter se casado muito cedo. Uma testemunha confirmou o caso à polícia. Ela contou que ele colocou a mão no pescoço dela e chegou a perguntar se ela tinha interesse em trair o marido.

No dia 21 deste mês, o Cremerj anunciou, na página e nas redes sociais da entidade, o afastamento de Munhoz do cargo. O conselho informou que a decisão da diretoria preza pela “lisura e pelo comprometimento com a transparência” e que vai abrir uma sindicância contra o médico para apurar a denúncia sobre assédio sexual.

Conhecida por ajudar a combater assédio moral no trabalho, a médica Margarida Maria Barreto já viajou por todo o país divulgando e incentivando discussões sobre a questão que afeta inúmeros trabalhadores. Ela já foi responsável por um site que recebia cerca de 300 denúncias por dia. 

A médica lembra que o assédio moral configura casos que expõem trabalhadores a situações vexatórias, constrangedoras e humilhantes durante o exercício de sua função, de forma repetitiva e prolongada ao longo da jornada de trabalho. Segundo ela, a batalha é levar o foco da discussão para a área do direito, pois o assédio moral não é uma doença do trabalho e não pode ser atribuído à personalidade e sensibilidade do assediado.

“Tabu nas companhias”

Não existe estatística geral sobre o número de casos. No entanto, quem atua diretamente com vítimas afirma que é crescente a procura de profissionais – mulheres ou homens, jovens ou não – por ajuda e aconselhamento para lidar com a questão. “Assédio sexual e moral é um tabu nas companhias”, afirma Raimundo Sabino, consultor de carreira há 20 anos.

“As empresas estão completamente despreparadas para lidar com esse problema, que é histórico e não pode ser visto meramente como ‘cultural’, porque isso não é cultura. É um crime que precisa ser combatido todos os dias, inclusive com punição por omissão estendida aos superiores que fecham os olhos e ignoram o problema na frente deles”, afirma a defensora pública Gabriela Soares, que atua há mais de 20 anos com vítimas desse tipo de crime. 

A engenheira de alimentos que chegou a ser levada para o motel pelo chefe sem o consentimento dela disse que ainda não tem previsão para o julgamento do seu caso na Justiça. Hoje, ela disse que tem dedicado parte de seu tempo a auxiliar pessoas a escolher melhor as empresas para trabalhar.

“Diversas questões hoje devem ser observadas por um profissional antes de aceitar um emprego, apesar de as oportunidades estarem escassas, mas sempre destaco para as pessoas não aceitarem propostas que vão tirar a saúde mental delas ou que vão acabar em perseguição e assédio no trabalho”, ressaltou a engenheira.

Consultores indicam estratégias para combater assédio no trabalho

No Brasil, 52,64% das denúncias registradas por funcionários se referem ao relacionamento interpessoal, categoria que considera as chamadas “práticas abusivas”, de acordo com ampla pesquisa divulgada no início deste mês pela ICTS Protiviti, consultoria especializada em gestão de riscos, compliance e segurança. As queixas de assédio representam 31%. Os dados são de um estudo realizado a partir de 125.412 registros feitos nos canais de denúncias de 563 empresas no país. 

“Num meio competitivo como o corporativo, com suas metas de eficiência, discursos repetitivos de meritocracia e bônus, é tênue a linha que demarca o fim do rigor extremo e o início do assédio moral. Sufocados, funcionários humilhados veem a produtividade desabar, criando um círculo em que os ataques se sucedem até que o funcionário é afastado ou fique doente no hospital, com contínuas crises”, afirmou o CEO e consultor de empresas Richard Lemos, que atua no mercado há 30 anos.

A advogada e consultora Danielle Soares Mota, que atua com Direito Empresarial, disse que tem observado aumento no número de pedidos de demissão por parte de funcionários. “São muito comuns algumas negociações de rescisão de contrato de trabalho que já incluem não apenas o cômputo das horas extras, mas também acordos monetários para indenizar casos de assédio moral”, afirmou ela.

De acordo com Richard Lemos, para evitar problemas, primeiramente, as empresas precisam especificar o que esperam em termos de comportamento e reforçar esses detalhes junto aos funcionários. Depois, segundo ele, as pessoas precisam ficar muito à vontade para entender que existe um lugar em que elas podem reportar abusos. “É fundamental criar essa confiança. Não adiantar o profissional denunciar, e os gestores jogarem para debaixo do tapete e fingirem que o problema está resolvido”, alertou.

Consultores de mercado destacam três pontos que consideram importantes para boas práticas. O primeiro é chamado de balanço de consequência. Quando uma denúncia acontece, é preciso que a empresa mostre que não vai aturar situações desse tipo e que medidas punitivas serão tomadas imediatamente. “Isso vai fazer com que mulheres e homens se sintam mais seguros por um lado e, também, vai desestimular os assediadores”, ponderou Lemos.

O segundo pilar é a questão do report. As pessoas têm que ter confiança no repórter, saber que serão ouvidas e que suas denúncias serão levadas em consideração. “Isso nos leva para o terceiro ponto, que é a apuração: as funcionárias precisam saber que a denúncia está sendo investigada e que essa investigação será levada a cabo. O canal de denúncia não pode ser apenas um repositório de queixas”, acrescentou o CEO.

*Título editado.

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Bolsonaro e embaixadores: vexame internacional e atentado à democracia

Roberto Freire, presidente nacional do Cidadania*

Entre atônitos e perplexos, embaixadores de dezenas de países assistiram a um espetáculo tão deprimente quanto ridículo protagonizado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, que perdeu qualquer compostura que ainda pudesse ter pelo cargo que ocupa.

Bolsonaro expôs o Brasil e os brasileiros diante do mundo. Colocou abaixo de seus interesses mais paroquiais a pátria que no seu slogan estaria acima de todos. Tal desequilíbrio se explica pelo verdadeiro pavor que tem de ser preso pelos crimes que, no íntimo, sabe ter cometido.

As urnas eletrônicas que deram a ele e a seus filhos diversos mandatos tirarão de Bolsonaro em outubro não apenas o cargo, mas o foro especial por prerrogativa de função. E o poder e a influência que hoje detém sobre os órgãos de controle.

Mas isso não exime o Congresso Nacional de cumprir o seu papel e abrir um processo de impeachment. Senão pelo conjunto da obra, pelos crimes contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais e contra o livre exercício dos Poderes constitucionais praticados hoje aos olhos do mundo.

Bolsonaro está usando o poder federal para impedir a livre execução da Lei Eleitoral e incitando militares à desobediência à lei e à infração à disciplina. Os presidentes da Câmara e do Senado precisam evitar a mais completa desmoralização não de Bolsonaro, essa já consumada, mas do Brasil.

*Nota oficial publicada originalmente no site Cidadania


Bolsonaro e Moraes chegaram a se cumprimentar durante evento | Imagem: reprodução/Brasil de Fato

Nova ofensiva de Bolsonaro contra Moraes amplia abismo entre Poderes

Alex Mirkhan, Brasil de Fato*

queixa-crime apresentada por Jair Bolsonaro contra o ministro Alexandre de Moraes, nesta segunda-feira (16), deflagrou uma nova crise na sua já conturbada relação com o Superior Tribunal Federal (STF). Embora a alegação de abuso de autoridade tenha sido rechaçada apenas dois dias depois, o clima continua tenso entre os dois poderes da República, trazendo ainda mais preocupação com os rumos das eleições majoritárias deste ano.

Nesta quinta-feira (19), o presidente manteve o tom beligerante ao reclamar de “interferências indevidas” do STF durante um evento no Rio de Janeiro. Para a oposição e juristas ouvidos pelo Brasil de Fato, o ataque faz parte da estratégia de Bolsonaro para desestabilizar as instituições democráticas, criar uma “cortina de fumaça” sobre problemas mais graves para o país e uma batalha de versões sobre o sistema eleitoral.

Frente ao rolo compressor bolsonarista, que reverberou a ofensiva contra Moraes, principalmente, membros da principal Corte do país saíram em defesa do colega. Como já era esperado, nesta quarta-feira (17), o ministro Dias Toffoli, sorteado para apreciar a denúncia feita pelo presidente, rejeitou as cinco justificativas apresentadas por Bolsonaro. 

“Não há nenhum fato concreto que permita ao Bolsonaro dizer que o Alexandre de Moraes está agindo com abuso de autoridade. O que ele quer, na verdade, é afastar o Alexandre de Moraes de todos os seus processos; alegar depois que há uma inimizade pessoal do ministro contra ele, o que o tornaria suspeito para julgar qualquer processo”, afirma Felippe Mendonça, advogado especialista em Direito Constitucional.

A reação de Bolsonaro, então, foi levar os argumentos de sua tese contra Moraes para seus discursos e também replicar o mesmo processo na PGR, órgão que também foi acionado nesta quarta pela ministra do STF Rosa Weber. Na contramão do presidente, a juíza encaminhou um novo pedido de investigação de condutas do presidente feita pelo deputado federal Israel Batista (PSB-DF).

Batista cobra a apuração de falas de Bolsonaro contra as urnas e o sistema eleitoral feitas durante o evento "Ato Cívico pela Liberdade de Expressão", realizado em abril no Palácio do Planalto. Na oportunidade, o discurso presidencial contou com sugestão para as Forças Armadas realizarem uma “apuração paralela” das eleições e a acusação de que os votos totais são contabilizados pelos ministros do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) dentro de “uma sala secreta”.

“Nós estamos acompanhando todas as falas do presidente, estamos anotando as falas do presidente, e adicionando à notícia-crime”, disse Batista com exclusividade ao Brasil de Fato. “O presidente já passou há muito tempo dos limites constitucionais. Ele anuncia que não pretende reconhecer o resultado da eleição. E isso por si só já precisa ser julgado, tratado com toda urgência.”

Unificação de processos no STF encurrala Bolsonaro e militares

Após conceder indulto ao deputado Daniel Silveira, em meados de abril, afrontando condenação decidida pelo próprio Moraes, a nova empreitada de Bolsonaro foi motivada pela unificação de dois inquéritos que o atingem frontalmente: um que apura a ação de milícias digitais, e outro que trata de notícias falsas sobre o sistema eleitoral, divulgadas pelo presidente durante uma live em 29 de julho de 2021.

A decisão de Moraes atende a um pedido da PGR, que alegou a necessidade de agrupar os dois inquéritos antes de tomar uma decisão sobre se procede, ou não, com a abertura do processo. A fundamentação também se baseia em informações obtidas durante investigação da Polícia Federal sobre o uso de instituições públicas para buscar informações e efetuar ataques contra as urnas e adversários políticos. 

“É importante lembrar que o STF não age por conta própria, e sim a partir de estímulos. Por isso, a conduta do Moraes está totalmente em conformidade à lei”, ressalta Mendonça. O jurista também considera acertada a estratégia jurídica de somar os dois processos para tentar aumentar seu alcance e impacto. “Como são casos que se conectam, de fato é melhor que seja apurado tudo junto, analisado em conjunto, não separadamente”.

Já o advogado Cláudio Vilela, especialista em direito eleitoral, desaprova a unificação dos inquéritos. “Pela minha experiência, é possível que se perca o foco, que o enquadramento legal acabe ficando mais frágil. Acredito que você só pode unificar quando existe uma conexão absoluta, o que não vejo nesse caso, que além de tudo é complexo e envolve as mais altas autoridades do país”, defende. 

Evidências apontam para crimes continuados praticados por “milícias digitais”

Para juristas, são vastas as provas colhidas sobre os casos, que também colocam na mira da PF outras autoridades do mais alto escalão do governo, como os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência da República) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional).

Outros nomes que passam a ser ameaçados são os de Alexandre Ramagem, ex-diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), do atual ministro da Justiça, Anderson Torres, e do coronel do Exército Eduardo Gomes da Silva, que também participa na live.

“A grande tarefa do inquérito que analisa essa questão é realmente mostrar o vínculo entre esses elementos e de dar nomes aos bois. De fato compreender, no caso das milícias, de onde parte essa estrutura, a mando de quem, com qual estratégia. No âmbito das fake news, de que forma isso é disseminado, se é de forma estratégica”, pontua Vilela.

A participação da Polícia Federal foi fundamental para expandir o alcance do processo de relatoria de Alexandre de Moraes. Em relatório assinado pela delegada Denisse Ribeiro, são apontados ganhos não apenas político-ideológicos, mas também monetários. 

“Quanto mais polêmica e afrontosa às instituições for a mensagem, (...) maior o impacto no número de visualizações e doações, reverberando na quantidade de canais e no alcance do maior número de pessoas", diz o relatório.

Para políticos da oposição, Bolsonaro quer melar as eleições

O embate entre os poderes Executivo e Judiciário atende à estratégia governista de “criar fantasmas” para desviar de problemas que certamente trariam prejuízos na campanha de Bolsonaro à reeleição. É o que pensa parte da oposição que se manifestou sobre o assunto nas redes sociais.
 
O senador Fabiano Contarato (PT-ES) considera a ação por abuso de autoridade contra Moraes uma denuncia caluniosa, passível de punição. Ele também acredita que a desconfiança com as urnas é nutrida por paixões e pelo sequestro do debate racional. 

“É sintomático que o principal eixo da campanha de Bolsonaro seja questionar os resultados: é como se passasse recibo antecipado da ruína de seu Governo, que será devidamente julgado e condenado pelas urnas em outubro”, afirma.

Já o deputado federal Bira do Pindaré (PSB-MA) enxerga os ataques ao STF como uma nova “cortina de fumaça”. “Enquanto o povo brasileiro enfrenta o desemprego, a fome e a miséria, o presidente da República insiste em criar um clima de beligerância, de ataque às instituições, para animar a sua claque e desviar dos verdadeiros problemas”, ataca.

*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato (Título editado)


CPI da Covid: o que pode acontecer com Bolsonaro após a divulgação do relatório

Caso o relatório seja aprovado pela maioria da comissão na próxima semana, essas acusações contra o presidente serão analisadas em três órgãos

  • Mariana Schreiber / BBC News Brasil

O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, apresentado nesta quarta-feira (20/10) pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), recomenda que o presidente Jair Bolsonaro seja investigado e, eventualmente, responsabilizado em três frentes devido à gestão do seu governo na pandemia de coronavírus: por crimes comuns, por crimes de responsabilidade e por crimes contra a humanidade.

As suspeitas de crime comum serão encaminhadas à Procuradoria-Geral da República (PGR), que avaliará uma possível denúncia criminal contra Bolsonaro. Já as de crime de responsabilidade vão para análise da Câmara dos Deputados, para possível abertura de processo de impeachment. Por fim, as acusações de crimes contra a humanidade serão enviadas ao Tribunal Penal Internacional (TPI), onde o presidente poderia sofrer um processo.

No entanto, juristas ouvidos pela BBC News Brasil consideram que os três caminhos oferecem obstáculos hoje para que o presidente de fato venha a ser punido por possíveis crimes durante a pandemia de coronavírus, doença que já matou mais de 600 mil pessoas no Brasil desde março de 2020.

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Durante viagem ao Ceará, enquanto Calheiros lia seu relatório na CPI, Bolsonaro negou qualquer responsabilidade nas mortes.

"Como seria bom se aquela CPI tivesse fazendo algo de produtivo para nosso Brasil. Tomaram tempo de nosso ministro da Saúde, de servidores, de pessoas humildes e de empresários", criticou o presidente.

"Nada produziram, a não ser o ódio e o rancor entre alguns de nós. Mas sabemos que não temos culpa de absolutamente nada, fizemos a coisa certa desde o primeiro momento", disse ainda.

Entenda a seguir o que pode acontecer concretamente contra o presidente, caso o relatório seja aprovado pela maioria da CPI, nos três tipos de crimes que Bolsonaro é citado no texto de Calheiros.

1) Acusações de crimes de responsabilidade

Calheiros ressalta em seu relatório que, entre os crimes de responsabilidade previstos na legislação brasileira, está o ato de atentar contra o exercício dos direitos sociais e contra a probidade na administração.

Além disso, ele destaca que o direito à saúde é previsto como um dos direitos sociais no artigo 6º da Constituição, enquanto o artigo 196 estabelece que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

Relatório de Renan Calheiros ainda precisa ser aprovado por maioria da CPI; votação ocorre na próxima semana. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Na avaliação de Calheiros, porém, a investigação da CPI mostrou que a gestão de Bolsonaro agiu em sentido contrário: ao invés de proteger a vida dos brasileiros da covid-19, o presidente teria contribuído para o agravamento da pandemia ao demorar a comprar vacinas, incentivar o uso de medicamentos sem comprovação científica, promover aglomerações, entre outras posturas.

"A minimização constante da gravidade da covid-19, a criação de mecanismos ineficazes de controle e tratamento da doença, com ênfase em protocolo de tratamento precoce sem o aval das autoridades sanitárias, o déficit de coordenação política, a falta de campanhas educativas sobre a importância de medidas não farmacológicas, o comportamento pessoal contra essas medidas, e, por fim, a omissão e o atraso na aquisição de vacinas e a contratação de cobertura populacional baixa do consórcio da OMS foram algumas das condutas do Chefe do Poder Executivo Federal que incontestavelmente atentaram contra a saúde pública e a probidade administrativa", diz trecho do relatório.

Apesar das duras acusações do relator, porém, hoje parece pouco provável que elas gerem abertura de um processo de impeachment contra Bolsonaro. O único que pode iniciar esse procedimento é o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que atualmente mantém boa relação com presidente.

E, a partir dessa aliança com Lira, o Palácio do Planalto construiu uma base de apoio entre os deputados do chamado Centrão (siglas de centro-direita de comportamento mais fisiológico), sustentada pela distribuição de cargos para indicados desses parlamentares e pelo envio de verbas federais para investimentos em seus redutos eleitorais. Com isso, hoje o presidente parece reunir o mínimo de 172 votos na Câmara necessários para barrar a aprovação de um processo de impeachment.

Outro elemento que reduz as chances desse processo ser iniciado é o fato de os protestos de rua realizados ao longo desse ano pedindo a cassação do presidente não terem reunidos um público tão grande quantos os atos que pressionaram pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) em 2016.

Já as pesquisas de opinião têm indicado que o governo Bolsonaro é reprovado pela maioria da população, mas ainda é bem avaliado por cerca de um terço dos brasileiros — patamar de aprovação superior ao que Dilma tinha quando foi cassada.

2) Acusações de crimes comuns

Para Calheiros, as condutas de Bolsonaro também podem ser enquadradas em sete crimes comuns, previstos no Código Penal.

São eles: epidemia com resultado de morte (por suspeita de propagar o vírus); infração de medida sanitária preventiva (por realizar aglomerações e não usar máscara); charlatanismo (devido ao incentivo de uso de medicamentos sem eficácia), incitação ao crime (por incentivar aglomeração e o não uso de máscara); falsificação de documento particular (por ter apresentado uma falsificação como sendo um documento oficial do Tribunal de Contas da União que provaria haver um excesso na contabilização de mortes por covid-19); emprego irregular de verbas públicas (por uso de recursos públicos na compra de medicamentos ineficazes); e prevaricação (por supostamente não ter mandado investigar denúncias de corrupção na compra de vacinas).

Caso o relatório seja aprovado, os elementos que baseiam essas acusações serão encaminhadas à PGR, pois o procurador-geral da República, Augusto Aras, é a única autoridade que pode apresentar uma denúncia criminal contra o presidente no Supremo Tribunal Federal (STF).

Aras é visto como aliado de Bolsonaro e hoje parece improvável que o denuncie, já que a PGR tem arquivado diversas queixas-crimes que já foram apresentadas solicitando a investigação criminal de Bolsonaro por sua conduta na pandemia.

A PGR, por exemplo, já arquivou pedido de investigação devido ao não uso de máscara por entender que isso configura infração administrativa, sujeita a multa, e não um crime.

O órgão também recusou pedido de investigação por causa das aglomerações provocadas pelo presidente. Segundo a PGR, Bolsonaro só poderia ser processado por disseminar coronavírus se estivesse contaminado com a doença e contrariasse ordem médica para se isolar.

Por outra lado, a PGR já abriu inquérito para investigar se Bolsonaro prevaricou ao não tomar providências após ser informado pelo deputado Luiz Miranda (DEM-DF) de supostas ilegalidades no contrato para compra da vacina indiana Covaxin. A investigação está em andamento.

Quanto a suspeitas de crimes pelo incentivo de Bolsonaro ao chamado "tratamento precoce" (uso de medicamentos sem eficácia contra covid-19), Aras informou ao STF em junho que havia iniciado uma apuração preliminar para avaliar a abertura de investigação. Críticos de Aras, porém, o acusam de usar esse tipo de procedimento para responder a pressões para investigar Bolsonaro sem de fato adotar medidas concretas contra o presidente.

Para o criminalista Pierpaolo Bottini, professor da Universidade de São Paulo (USP), é difícil cravar que Aras não dará qualquer encaminhamento as acusações do relatório da CPI.

"Não é só uma avaliação política, tem uma avaliação jurídica que ele terá que fazer. Ele vai ter que motivar (justificar juridicamente) seja qual for a decisão dele. Se tiver muito subsídio (sustentando as acusações), também é difícil ele deixar de dar qualquer encaminhamento", acredita.

Segundo Bottini, há um outro caminho jurídico para Bolsonaro ser denunciado no STF. Em caso de omissão da PGR, ou seja, se o órgão demorar para dar alguma resposta ao relatório da CPI, as próprias vítimas da pandemia poderiam processar o presidente por meio de uma ação penal privada subsidiária da pública.

A Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico) disse à BBC News Brasil que de fato analisa essa possibilidade. A organização apresentou em junho à PGR um pedido de investigação contra Bolsonaro, mas a análise desse pedido tem transcorrido em sigilo e a própria Avico enfrenta dificuldades para obter informações sobre seu andamento.

Eventual apresentação de uma ação contra Bolsonaro pelas vítimas da pandemia seria algo inédito. Segundo Bottini, provavelmente o STF faria uma primeira avaliação de admissibilidade (decidir se a ação está dentro dos requisitos jurídicos necessários) e depois encaminharia a denúncia para análise da Câmara dos Deputados.

O professor ressalta que a Constituição só permite que o Presidente da República seja processado após aval de 342 deputados (mesmo número necessário para abertura de um processo de impeachment).

Mulheres protestam contra Bolsonaro. Foto: EPA/MARTIAL TREZZINI

3) Acusações de crimes contra a humanidade

Calheiros também defende em seu relatório que Bolsonaro seja investigado no Tribunal Penal Internacional (TPI), Corte sediada em Haia, na Holanda, que julga graves violações de direitos humanos, como genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.

No entanto, são poucas as denúncias recebidas pelo Tribunal que de fato geram investigações - e, quando isso ocorre, os casos se alongam por muitos anos, explicou à BBC News Brasil o juiz criminal e professor da USP Marcos Zilli, estudioso do funcionamento do Tribunal Penal Internacional.

Em tese, diz ele, o TPI pode condenar criminosos a penas de 30 anos de prisão e até a prisão perpétua, mas essas punições máximas nunca foram aplicadas pela Corte.

A intenção inicial de Calheiros era acusar o presidente de crime de genocídio contra populações indígenas, mas essa ideia foi abandonada devido à oposição de outros membros da CPI. Com isso, a proposta do relator é enviar ao TPI duas acusações de crimes contra a humanidade por parte do presidente.

Esses crimes estão previstos no Tratado de Roma, incorporado ao direito brasileiro desde setembro de 2002.

Uma das acusações propostas por Calheiros sustenta que Bolsonaro cometeu crime contra a humanidade a praticar "ato desumano que afete gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental". Isso teria ocorrido, segundo o senador, quando vidas humanas foram usadas como "cobaias" em estudos fraudulentos para aplicação de tratamentos sem eficácia contra covid-19.

Ele cita, por exemplo, a promoção do "tratamento precoce" pelo Ministério da Saúde durante a crise de falta de oxigênio em Manaus, no início de 2021. Outro argumento usado pelo senador foi o uso em massa de hidroxicloroquina pelo plano de saúde Prevent Senior. Resultados de um suposta pesquisa da empresa atestando a eficácia do remédio contra covid foram divulgados por Bolsonaro - no entanto, o estudo não havia sido autorizado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e ex-médicos da Prevent Senior acusaram o plano de fraudar os resultados.

A outra acusação é de crime contra a humanidade devido à postura do governo Bolsonaro em relação aos povos indígenas. O relatório destaca a decisão do STF de determinar em julho de 2020 a adoção de um plano emergencial pelo governo de apoio a essas populações durante a pandemia "diante das muitas falhas na política de enfrentamento à pandemia junto aos povos indígenas e da preocupação com a rápida interiorização da doença, que prenunciavam um desastre".

Ainda segundo o parecer de Calheiros, "esta CPI identifica o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro como o responsável máximo por atos e omissões intencionais que submeteram os indígenas a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição dessa parte da população, que configuram atos de extermínio, além de privação intencional e grave de direitos fundamentais em violação do direito internacional, por motivos relacionados com a identidade do grupo ou da coletividade em causa, que configura atos de perseguição".

O relatório final da CPI da covid foi lido no Senado nesta quarta-feira. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Segundo o professor Marcos Zilli, essas acusações, caso sejam realmente apresentadas pela CPI ao TPI, passarão por um longo processo de análise e não necessariamente vão gerar investigações internacionais contra o presidente brasileiro.

Todas as representações criminais feitas ao TPI são analisadas pela Procuradoria da Corte, órgão responsável por realizar investigações de forma independente. Um filtro inicial da procuradoria descarta casos em que os crimes denunciados claramente não são de competência do Tribunal.

Se a representação passar dessa etapa, ela é submetida a um exame preliminar, em que a Procuradoria avalia a presença dos elementos necessários à instauração de uma investigação formal. Nesse momento, é analisado, por exemplo, a gravidade dos crimes apontados na representação e se há omissão da Justiça nacional em apurar esses delitos.

"A experiência que nós temos no Tribunal Penal Internacional revelam que os casos demandam muitos anos de investigação, caso uma investigação seja instaurada, e muitos anos de processo também, caso o processo seja aberto", explica Zilli.

Na sua avaliação, a acusação envolvendo populações indígenas é a que teria mais potencial de prosperar no TPI, devido ao contexto mais amplo de ações da gestão Bolsonaro relacionadas a esses povos, como a redução da proteção aos seus territórios e falas recorrentes do presidente defendendo a exploração econômica das terras indígenas.

O TPI, inclusive, já recebeu algumas acusações contra Bolsonaro, envolvendo tanto os povos indígenas como a conduta na pandemia. Por enquanto, apenas uma relacionada aos indígenas, apresentada em 2019, avançou para a etapa de análise preliminar pela procuradoria.

Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58990125


'Rede do ódio' bolsonarista age para atacar CPI da Covid e desqualificar relatório

Em dia de recorde de menções negativas a Bolsonaro nas redes, aliados se articulam para desacreditar Renan e tirar o foco de crimes

Vinícius Valfré / O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA — A apresentação do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, nesta quarta-feira, 20, provocou forte reação de apoiadores do governo de Jair Bolsonaro nas redes sociais. A mensagem disseminada em páginas bolsonaristas e difundida à exaustão era clara: atacar diretamente o relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), e desqualificar o texto que atribui crimes graves a integrantes do governo e seus aliados. Uma transmissão ao vivo do senador Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ), em que chamou Renan de "vagabundo" e enumerou supostos crimes do político de Alagoas na condução dos trabalhos deu o tom da reação organizada nas redes.

Monitoramento da consultoria AP Exata indicou que no dia da apresentação formal do relatório as referências negativas ao presidente Jair Bolsonaro chegaram a 77%, o maior patamar dos últimos 15 dias. Os bolsonaristas reagiram e, ao buscar tirar o foco das acusações da CPI, sustentaram que Renan não teria envergadura moral para atribuir crimes a membros do governo. Os ataques também ganharam redes como Facebook, Instagram e Telegram.

O documento apresentado pelo relator é resultado de um acordo com o grupo majoritário da CPI, o chamado G-7, e deve ser aprovado sem dificuldades na próxima terça, 26. Em seguida, providências jurídicas contra os citados dependerão do Ministério Público nos Estados e da Procuradoria-Geral da República.

Bolsonaro não mencionou a CPI nas redes sociais, nesta quarta-feira. No entanto, endossou insultos a Renan feitos por apoiadores durante evento oficial no Ceará. Ao ouvir gritos de "Renan vagabundo", o presidente disse que "a voz do povo é a voz de Deus".

Ema. Para reprovar o parecer do relator da CPI, páginas governistas dedicadas a informações falsas e enganosas contra adversários influenciaram o debate público. Uma delas disseminou a versão de que Renan incluiu até uma ema, ave que habita os jardins do Palácio da Alvorada, entre os indiciados. "Nem a ema do Palácio da Alvorada escapou da sanha de Renan 'vagabundo' Calheiros", diz a publicação enganosa.

Na verdade, em um parágrafo sobre a defesa equivocada de Bolsonaro a remédios sem eficácia, o texto citou o episódio em que ele foi fotografado mostrando uma caixa de hidroxicloroquina a uma ema.

Apontado como líder do "gabinete do ódio" do Palácio do Planalto, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), que teve o indiciamento sugerido por incitação ao crime na disseminação de notícias falsas, também atacou Renan e a "CPI do Lula" nas redes sociais. O vereador usou um vídeo fora de contexto no qual o filho do senador – o governador de Alagoas, Renan Filho – falava em "deixar a cloroquina à disposição do uso médico". Com isso, reclamou do não indiciamento do governador. A declaração, porém, é anterior aos estudos conclusivos sobre a ineficácia do remédio.

"Certamente existem outras dezenas de exemplos (de más condutas praticadas por membros e aliados da CPI) a serem expostos, o que desmascara facilmente qualquer ilação mencionada no relatório dos amigos de Lula e da 'terceira via'. Todo, absolutamente todo processo, desde seu início, tem método", postou Carlos.  

O pastor Silas Malafaia, retirado na véspera da lista de indiciados, chamou de "cretino", "inescrupuloso", "covarde" e "frouxo" o relator da "CPI da Safadeza". Já o deputado Carlos Jordy (PSL-RJ), que teve o indiciamento pedido sob acusação de incitação ao crime, anunciou que vai processar o relator por abuso de autoridade, a exemplo do que Flávio Bolsonaro prometeu fazer. O deputado ironizou a CPI: "Circo tem malabarismo, mas esse é muito amador".

Ao longo dos quase seis meses de investigação, governistas compararam a CPI a um circo em várias oportunidades. Bernardo Kuster, um dos indiciados por incitação ao crime na disseminação de fake news, voltou a usar o termo após a divulgação do relatório. "A CPI do Circo pedirá o meu indiciamento. Ser acusado por um tipo como Renan Calheiros é um privilégio para poucos. Orgulho da família", afirmou. 

O governo marcou para o mesmo dia da última sessão da CPI o lançamento da campanha "Respeitável Circo", por meio da Secretaria Especial da Cultura, voltada a artistas circenses. O secretário Mário Frias negou qualquer referência à comissão parlamentar de inquérito. “Valorizamos demais os valorosos artistas do circo para tratá-los de forma depreciativa”, escreveu ele.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,rede-do-odio-bolsonarista-age-para-atacar-cpi-da-covid-e-desqualificar-relatorio,70003875052