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Cristiano Romero: Por que o Brasil não é uma nação?

Fim do auxílio é demonstração de que não há contrato social

O jornalista e escritor Nelson Rodrigues escreveu que o Fla-Flu, o clássico dos clássicos, começou 40 minutos antes do nada. A hipérbole rodrigueana, usada para definir o caráter épico da rivalidade entre dois times de futebol, acabou sendo incorporada como síntese do antagonismo de ideias que caracteriza o debate dos problemas nacionais. Se a discussão de um tema relevante vira um Fla-Flu, é porque não há racionalidade, ou melhor, honestidade intelectual de uma ou das duas partes, uma forma de impedir mudanças que reduzam ou eliminem seus privilégios.

Numa sociedade profundamente desigual, marcada pela prática da escravidão (oficial, fator de acumulação de capital durante quase 400 anos, e dissimulada desde a abolição, em 1888), há poucos consensos, logo, não existe contrato social. Não há pacto social num país onde a maioria negra (56% da população) é discriminada pela minoria não negra.

Não há entendimento social se pouco menos de um quarto da população (50 milhões de pessoas) vive abaixo da linha de pobreza (com menos de dois dólares por dia), e todos conhecemos essa realidade há pelo menos quase 20 anos, afinal, graças a um dos poucos consensos de nossa história, criou-se nesse período um programa de transferência de renda para lidar com o problema - o Bolsa Família é excelente, cuida das consequências de políticas equivocadas que seguem provocando tanta miséria e desequilíbrio entre nós, brasileiros.

Não se pode falar em contrato social se metade dos adolescentes está fora do ensino secundário. Tampouco, é razoável afirmar que estejamos sob uma sociedade pactuada, uma vez que que 35 milhões de pessoas não possuem acesso à água tratada e 100 milhões (de uma população de 210 milhões) não têm coleta de esgotos. O pior: os números, compilados pelo Instituto Trata Brasil a partir de dados oficiais, referem-se apenas às cem maiores cidades.

Sem saneamento básico, não há saúde. Sem saúde, não há cidadania. Junte-se esta precariedade à outra (a baixa qualidade do ensino fundamental público), o que temos? Que futuro aguarda o país com a 5ª população do planeta, habitante do 4º maior território em terras contínuas?

Formadores de opinião espantam-se com a facilidade com que outras nações, não apenas as ricas, respondem prontamente a situações de emergência, como a enfrentada nesta pandemia. "Por que não conseguimos resolver rapidamente questões simples que afligem milhões de nossos compatriotas?", indagam-se os cidadãos de bem.

Não é preciso pensar muito para concluir que nossa dificuldade está no fato de o Brasil não ser uma nação - como a palavra "brasil" não significa coisa alguma (foi tirada de pau-brasil), seu significado depende da construção de uma nação, daí, a insistência do titular desta coluna em chamar este país de Ilha de Vera Cruz, a primeira denominação dada pelos invasores portugueses.

Numa nação, a distância entre ricos e pobres é muito menor, todos (ou quase todos) têm acesso às mesmas oportunidades, a maioria dos cidadãos compartilha dos mesmos valores culturais e aspirações, independentemente de sua renda e origem étnica.

Um exemplo do quão distante este território povoado por 210 milhões de viventes está de ser uma nação: o auxílio emergencial criado em abril para assegurar a sobrevivência de mais de 60 milhões de brasileiros, surpreendidos repentinamente pela parada súbita de seu ganha-pão nesta crise sanitária, expira em 31 de dezembro.

Amanhã, alguns milhões de brasileiros vão brindar a chegada de 2021 e da segunda década do século XXI com champagne e espumante, enquanto outros milhões dormirão sem saber como cuidar da família ou de si próprios no ano "novo". Para estes, 2020 não acaba nessa quinta-feira. Ademais, a segunda onda da covid-19, apesar do silêncio negligente das autoridades, já é uma realidade, cujos efeitos econômicos serão iguais ou piores que os do primeiro surto - não custa lembrar: por causa da pandemia, o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro deve recuar algo em torno de 4,5%, segundo previsão da maioria dos analistas consultados pelo Banco Central.

Ora, virar o ano sem resolver esse grave problema é a prova inequívoca de que não só a classe política mas toda a sociedade não se importam com a crise humanitária que se avizinha. Onde estão os intelectuais das universidades públicas e fora dela, os sindicatos, as centrais sindicais sempre dispostas a parar o país em defesa os trabalhadores, as elites empresariais pensantes (das que só vivem às custas do Estado não se deve esperar nem cumprimento de “bom dia”), as lucrativas instituições financeiras que se "comoveram" tanto com o primeiro capítulo da tragédia pandêmica, os artistas que se mobilizaram para cuidar de seus pares em situação menos favorável, uma vez que o isolamento social lhes tirou a possibilidade de trabalhar? Cadê os manifestantes que foram às ruas em 2013 exigir educação e saúde públicas de qualidade?

No país onde não há carência de problemas a serem resolvidos, o tema mais controverso, o que inflama discursos, provoca cizânia, separa amigos de infância e resulta até em divórcio, não é o racismo estrutural, esta infâmia, ou a situação dos cidadãos sem-auxílio emergencial a partir de 1º de janeiro, mas a privatização, a venda de empresas estatais ao setor privado. Por que a classe média brasileira é tão suscetível à proposta de redução do Estado como produtor de bens e serviços?

Quando estourou o mega-escândalo de corrupção na Petrobras, em 2014, não demorou para que se promovesse um “abraço” na sede da estatal, no Rio. Não houve protesto contra as malfeitorias realizadas, responsáveis por desvio de recursos estimado em R$ 20 bilhões. Não houve sequer mobilização para que o acionista majoritário que nos representa na companhia - a União - melhorasse a governança da maior empresa do país. Por isso, leitor, duvide da palavra "estratégica" quando alguém defender as estatais.


Cristiano Romero: Não há dinheiro para o auxílio emergencial?

Subsídios a grupos consumiram 21,37% da receita em 2019

O país se aproxima de mais uma tragédia anunciada _ o fim do pagamento do auxílio emergencial _ e o que mais se ouve em Brasília é que faltam recursos para bancar a despesa. Diante da pandemia, cujo número de casos e mortes voltou a crescer, trata-se de viabilizar ajuda humanitária a pelo menos 23 milhões de pessoas que, daqui a duas semanas, não terão mais direito a receber um centavo do governo federal.

O governo federal, com a ajuda do Congresso Nacional, reagiu rapidamente à primeira onda da pandemia. O Banco Central foi célere na garantia de liquidez para o sistema financeiro e as grandes empresas. Já centenas de milhares de pequenas e médias firmas sucumbiram, principalmente no setor de serviços, porque a ajuda _ modesta _ demorou a chegar e beneficiou a poucos. Dentro e fora do governo isso foi visto _ e defendido _ como algo inevitável.

Na economia informal, onde atua cerca de metade da força de trabalho do país, a ajuda poderia ter evitado o que se vê neste momento nos grandes centros urbanos: o aumento exponencial dos moradores de rua, cidadãos que se afastam de suas família por vergonha (de não ter emprego) e que não depositam mais nenhuma esperança na própria vida nem no país onde nasceram. Chegar até os informais teria sido muito mais fácil se o Ministério da Economia tivesse acolhido proposta do BC de alcançar esse público por meio das empresas de maquininha.

Trabalhadores que atuam na informalidade correm enorme de risco de mergulhar na miséria absoluta quando sobrevêm crises como a atual. Eles se tornam vulneráveis de forma muito rápida, justamente, por não gozarem dos benefícios assegurados aos trabalhadores regidos pela CLT. A pandemia paralisou subitamente o comércio em geral e colocou nas ruas milhões de pessoas. Estas sequer conhecem seus direitos porque, em geral, morrem antes de completar 65 anos, idade que assegura a brasileiros em situação de indigência requerer do Estado um salário mínimo mensal por meio do programa Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Os cidadãos que fazem das ruas sua morada em momentos como este são, aos olhos não das leis mas sim dos governantes, os invisíveis. Em São Paulo, os moradores de rua fazem parte da paisagem, para a maioria dos transeuntes, como se isso fosse obrigatório, uma espécie de lei da natureza que escolhe os mais fortes entre nós e almadiçoa os fracos, uma predestinação "social" de seres que, por "livre arbítrio", optaram por não estudar e, por essa razão, merecem estar ali, mais vulneráveis do qualquer um de nós à ação implacável do tempo e à violência que campeia nos grandes centros urbanos.

O titular desta coluna conversou com um mendigo que, empurrando uma carroça e acompanhado obedientemente por nove cachorros (a maioria, abandonada à própria sorte nas ruas, como seu "dono"), esperava na porta de uma restaurante caixas de papelão que asseguravam parte de seu sustento. Ele contou que seu destino mudou radicalmente após o advento do Plano Collor, em 1990. A indústria onde trabalhava, fabricante de tintas, não sobreviveu à recessão provocada pelo confisco.

Desempregado aos 26 anos, o rapaz, originário de Minas Gerais, tentou se recolocar no mercado de trabalho nos quatro anos seguintes. O que mais ouviu foi que não havia vagas e que ele já estava "velho" para ser contratado. Em 1994, o ano de lançamento do Plano Real, ele desistiu de procurar emprego e de morar de favor na casa de amigos e conhecidos. Tornou-se, então, habitante das ruas da então 3ª metrópole do mundo. Não deu mais notícia à família, afastou-se dos amigos, porque, para ele e a maioria dos trabalhadores, vergonhoso não é ganhar pouco, mas, não trabalhar.

Indagado sobre a existência do BPC, que a esta altura de sua vida poderia ser um alento para a sua sobrevivência, nosso entrevistado disse que nunca ouvira falar, duvidou de "tamanha bondade" do governo, mas, antes de assoviar para os cachorros e bater em retirada, fez uma pergunta: "Doutor, é preciso ter quantos anos para ganhar esse BP, como é que é mesmo, BPC?". "Sessenta e cinco." "Ah, doutor, eu tenho só 57", disse gargalhando o homem, cuja aparência remetia facilmemente a alguém com mais de 70 anos.

O auxílio emergencial destinado aos brasileiros em situação mais vulnerável nesta pandemia foi instituído em pouco tempo, embora caiba aqui observação: ao escolher o público do programa Bolsa Família (BF) _ cerca de 44 milhões de pessoas _ como o mais elegível, governo e parlamento agiram com um olhar mais na política do que no bem-estar da maioria. Os beneficiários do BF já recebiam seus pagamentos, ainda que a um valor (R$ 150 em média por pessoa) que realmente precisava ser reajustado.

O auxílio foi definido em R$ 600 para o período entre abril e agosto, e de R$ 300 de setembro a dezembro. Além do público do BF, outras 23 milhões de pessoas teriam acessado o auxílio. A partir de janeiro, o pessoal do BF volta a receber R$ 150 e os outros, nada.

Falta dinheiro? Leitor, quando lhe disserem isso, olhe os números do orçamento de perto. O que se vê é que, apenas no ano passado, a União deixou de arrecadar R$ 308 bilhões e, em 2020, R$ 320 bilhões em tributos e impostos federais (ver gráfico). Esta fortuna foi apropriada pelos grupos de interesse específico mais bem representados em Brasília, entre eles, a indústria automobilística, os grandes grupos privados de educação e saúde e as classes média e alta.


Cristiano Romero: Corporações distanciam povo do Estado

Constituição de 1988 fomentou corporativismo

Na saída do regime militar, em 1988, a sociedade brasileira repactuou seu “contrato social” por meio da nova Constituição. Chamada de “cidadã”, esta criou as bases para a fundação de uma nação. O projeto de nação, inscrito na Carta Magna, se caracteriza pela garantia inédita, a cidadãos brasileiros e estrangeiros que residam aqui, de direitos e garantias fundamentas perante o Estado.

Cláusulas pétreas da lei fundamental do Brasil, esses dispositivos constitucionais determinam, entre outras coisas, que, neste pedaço do planeta, não se pode discriminar um cidadão sob qualquer justificativa (etnia, origem, gênero, opção sexual, idade etc); o regime político é a democracia e o sistema econômico, o capitalismo; a censura é terminantemente proibida; a liberdade de expressão está assegurada; o Estado deve oferecer serviço de saúde gratuito a todos e educação obrigatória até o ensino básico.

Para os que maldizem a Constituição com assiduidade e desprendimento, uma palavrinha de um dos nossos maiores constitucionalistas, o professor Oscar Vilhena, diretor da Faculdade de Direito da FGV-São Paulo. “Estou de pleno acordo que, apesar de todas as suas idiossincrasias, a Constituição de 1988 representa nosso maior esforço civilizatório. Também creio que graças à sua resiliência nossa democracia ainda não sucumbiu”, disse ele em mesagem enviada a esta coluna.

A característica comum a qualquer nação é a igualdade de oportunidades, assegurada pelo Estado por meio de políticas que ajudem a formar cidadãos capazes de se inserir numa economia de mercado. Isto demanda a existência de um serviço público que nunca tivemos na Ilha de Vera Cruz. Aqui, o Estado é dominado por grupos de interesse específico, enquanto sua missão constitucional é zelar por interesses difusos.

O serviço público em países da União Europeia e nos Estados Unidos atende muito mais aos interesses difusos do que no Brasil. Nesse aspecto, a Constituição de 1988 abusou na quantidade de equívocos transformados em leis.

Entre outras barbaridades, os constituintes consagraram a estabilidade dos funcionários públicos no emprego, inclusive, dos que haviam ingressado até então sem concurso, e asseguraram o direito dos funcionários ao recebimento de aposentadoria integral. Além disso, estabeleceu a paridade, isto é, a aplicação às aposentadorias do mesmo percentual de reajuste dos salários do pessoal da ativa.

A regulamentação da Constituição nos anos seguintes a 1988 piorou as coisas ao instituir, por exemplo, o Regime Jurídico Único, a isonomia salarial entre as carreiras, como se a natureza do trabalho de um agente da Polícia Federal seja comparável à de um funcionário do Banco Central ou de um auditor fiscal da Receita.

Os incentivos criados definitivamente não melhoraram a qualidade dos serviços prestados pelo Estado brasileiro, mas serviram para afastar o funcionalismo da essência de sua missão, que é ser o anteparo do cidadão perante os inquilinos do poder, um princípio inscrito na Constituição, mas que jamais foi respeitado.

O que se fomentou, com o modelo de serviço público vigente, foi o fortalecimento de corporações voltadas, em geral, para a defesa permanente de seus interesses específicos, como a equiparação salarial com outras carreiras, a concessão de reajustes salariais automáticos com base em anuênios e quinquênios, o recebimento de auxílio-moradia (uma forma disfarçada, logo, ilegal, de complementação salarial), direito a licenças-prêmio (período sabático sem exigência de contrapartida de formação acadêmica ou profissional) etc.

Ora, essa miríade de direitos e vantagens a ser defendida permanentemente desvia qualquer profissional de sua missão primordial. Esse tipo de distorção é visto também no setor privado, especialmente, nos momentos em que há bolhas financeiras - executivos, incentivados pelos generosos bônus atrelados a desempenho das ações das empresas, preocupam-se mais com a alta do papel no curto prazo do que com a sustentação dos resultados adiante; lembremo-nos do estrago que a turma que operava com crédito “subprime” em bancos americanos e europeus provocou na economia mundial na primeira década deste século.

O problema do “subprime” era dos acionistas dos bancos que quebraram e, em última instância, das sociedades americana e europeia. O corporativismo das carreiras do Estado na Ilha de Vera Cruz nos afeta a todos - cidadãos, consumidores, empresas.

Nas sempre ruidosas campanhas salariais e também nos protestos em defesa de direitos que ocupantes do Palácio do Planalto de vez em quando ameaçam extinguir, as corporações alegam que querem proteger, na verdade, o Estado, contra a sanha de empresários interessados em obter benesses - estes existem, mas não estão do outro lado do balcão; são, na verdade, companheiros das corporações na categoria de “donos do poder”.

Não é verdade. A luta das corporações é e sempre será em defesa da própria corporação, nem que essa luta incorra em prejuízo da maioria silenciosa.

Não se trata aqui de demonizar os funcionários públicos porque, na verdade, eles atuam no escopo definido. Os critérios de excelência exigidos pelos concursos públicos criaram uma elite de servidores públicos de alta qualidade, como, talvez, o país jamais tenha visto. Mansueto Almeida, Marcos Mendes, Pedro Jucá Maciel, Waldery Rodrigues Júnior, Nelson Barbosa, Ivan Monteiro, Paulo Caffarelli, Alexandre Abreu, Marcelo Abi-Ramia Caetano, Manuel Pires, entre muitos outros, são quadros de excelência comprada, formados pelo Estado brasileiro.

Mas, só isso não resolve o problema. O corporativismo, atrelado ao fato de que Brasília, uma cidade naturalmente dominada por autarquias, distanciou o funcionalismo do restante do país, tornou o serviço público muito caro. O titular desta coluna não está entre os que comparam salários do setor público aos do setor privado.

A comparação é indevida por várias razões. Não se pode comparar o ofício de um funcionário do Banco Central (órgão regulador do sistema financeiro) com o de um banco privado (regulado), nem de um advogado da União ou de um promotor com o de um advogado comum. O que dizer, então, da comparação entre o que ganha um juiz e o advogado que defende o réu em sua côrte. O problema vai além disso.


Cristiano Romero: A história dos naufrágios mostra que a âncora é fiscal

Saída de Mansueto expõe fragilidade de Paulo Guedes

Quem conhece o economista Mansueto Almeida sabe que ele impôs apenas uma condição para continuar à frente da Secretaria do Tesouro Nacional, a que cuida do dinheiro da Viúva: ter o apoio absoluto do chefe, o ministro da Economia, Paulo Guedes. Mansueto não chegou ao ministério com Guedes, nem mesmo com os dois chefes anteriores - Henrique Meirelles (ministro da Fazenda de maio de 2016 a abril de 2018) e Eduardo Guardia (de abril a dezembro de 2018). Sua primeira passagem pela Fazenda se deu na segunda metade da década de 1990, quando, muito jovem, trabalhou na Secretaria de Política Econômica, na ocasião chefiada por José Roberto Mendonça de Barros.

Foi um privilégio para o promissor técnico do Ipea estar, na hora certa, no centro de comando da economia brasileira. Aquela era a primeira equipe econômica pós-lançamento, em julho de 1994, do real. O ministro era Pedro Malan, e o presidente do Banco Central, Pérsio Arida. Apesar do sucesso inicial do plano, quando a inflação caiu de 47,43% em junho daquele ano para 6,84% em julho e 1,71% em dezembro, a turma levou um susto logo após a vitória, em primeiro turno, do candidato Fernando Henrique Cardoso (PSDB), pai do Real, na corrida presidencial.

Em novembro, o México, sempre o primeiro a mostrar as falhas do receituário usado pelos países latino-americanos a jusante, enfrentou crise cambial e quebrou. Naquele momento, a maioria dos países em desenvolvimento adotou âncoras cambiais (regimes de câmbio fixo) para estabilizar os preços. Como a inflação americana, em dólar, já era muito baixa, as economias atrelavam a taxa de câmbio à moeda dos Estados Unidos. Na Europa, a referência era o marco alemão, que, depois, veio a se tornar o euro.

O câmbio fixo, de fato, nocauteia a inflação. Mas, com o tempo, se nada é feito para aumentar a produtividade e se as contas públicas não se equilibram, o regime se torna frágil como as teses dos terraplanistas. O incremento da produtividade ajuda a produzir mais com menos, o que, por sua vez, contém os custos (a inflação).

Para que a produtividade cresça, é necessário educar a população e treinar bem a mão de obra; ter um sistema tributário simplificado, menos oneroso para as empresas e que não avance tanto sobre a atividade econômica, pelo menos não enquanto o país ainda estiver se desenvolvendo; produzir tecnologia de ponta e facilitar a entrada em nosso mercado de bens de capital modernos, entre outros esforços.

Países como Brasil, México e Argentina têm, por várias razões, produtividade bem inferior à dos EUA e da Alemanha, por exemplo, em quase todos os setores - no agronegócio e em alguns segmentos da siderurgia, a produtividade brasileira supera a americana, mas são exceções à regra. Logo, manter a taxa de câmbio em linha com a flutuação do dólar não é algo sustentável por muito tempo.

No fundo, a âncora das âncoras é de natureza fiscal porque, se o governo gasta muito mais do que arrecada, diminui a poupança disponível para financiar o investimento privado e em algum momento eleva a carga tributária para pagar as contas. Essa pressão sobre a sociedade acaba por gerar baixo crescimento do PIB e inflação.

Para conter a alta dos preços, os bancos centrais aumentam os juros e, num regime de câmbio fixo, isso atrai fluxos de dólares, movimento que, por seu turno, aprecia a taxa de câmbio, isto é, valoriza a moeda nacional em relação ao dólar. Ora, isso diminui a competitividade da economia, uma vez que fica mais caro exportar e, assim, alcançar novos mercados. Por outro lado, o dólar mais fraco estimula as importações, que têm dois efeitos: ao baratear o produto importado, faz as empresas nacionais comprarem máquinas e equipamentos mais modernos, o que na prática lhes dá um ganho de capital; por outro lado, a exposição do mercado doméstico a produtos estrangeiros bem mais baratos, sem que as empresas tenham as mesmas condições de competir, desnacionaliza setores inteiros, tornando o país muito dependente de fornecedores internacionais.

Mantido esse esquema por muito tempo em economias que não conseguem realizar reformas que façam crescer a produtividade, o país começa a acumular déficits crescentes nas contas externas, o que leva o investidor estrangeiro a duvidar da capacidade daquela nação de honrar suas dívidas com o exterior. Nesse momento, os mais acautelados começam a bater em retirada, forçando o governo local a jogar os juros na lua com o objetivo de convencer os investidores a manterem seus dólares aqui.

Como a situação vai se tornando insustentável em vários flancos, embora todos relacionados ao problema da Viúva, isto é, ao déficit público, "hedge funds" (fundos que buscam retornos altíssimos para o capital investido) veem nessa enorme fragilidade a oportunidade de fazer bons lucros. Estes resultam de ataques especulativos às moedas, que, se bem-sucedidos, provocam crises cambiais num curto espaço de tempo.

Quando estudamos as crises passadas, tendemos a achar que elas são de natureza cambial porque este é o sinal visível da turbulência. Com as maxidesvalorizações da moeda, todos ficamos mais pobres da noite para o dia - não só mais pobre em relação a outros países, mas, sim, aqui mesmo, em Cabrália. A gênese de toda crise, porém, está no Tesouro, cujo chefe em Brasília, Mansueto Almeida, avisara no domingo que está de malas prontas. Um mau sinal porque, se ele só deixaria o cargo em caso de falta de apoio do chefe, não se tenha dúvida: esta é a razão da partida de Mansueto, um dos maiores especialistas do país em finanças públicas.

O México assombrou a equipe do Real porque nosso plano caminhava para ancorar-se no dólar por meio de um regime de câmbio fixo. O curioso é que, nos primeiros seis meses do plano, o câmbio flutuou. Como o Banco Central dispunha de um volume razoável de reservas cambiais para conter ataques especulativos e havia excesso de liquidez nos mercados globais, a flutuação se deu para baixo, criando a falsa sensação de que a nossa moeda era mais forte que o dólar. Mas, em março de 1995, no início do primeiro mandato, adotou-se o câmbio fixo.

O México caiu em 1994 e, em 1997, feito dominó, sucumbiram várias economias asiáticas, os antigos "tigres". Depois, vieram Rússia, Brasil e Argentina. A história continua…