cpi da pandemia
Monica de Bolle: Biden brasileiro?
Nas últimas semanas tenho escrito sobre o que ocorre nos Estados Unidos sob a liderança de Joe Biden. Para quem vive aqui, vê e sente as mudanças, inclusive no cotidiano, a transformação é extraordinária. Em poucos meses, os Estados Unidos deixaram de ser o país com a pandemia mais descontrolada no mundo para estar entre aqueles que, em breve, deixarão para trás os piores temores em relação à saúde pública e à economia. Alguns estados já atingiram a marca de mais de 70% de vacinados com ao menos uma dose dos imunizantes em uso; outros logo alcançarão esse patamar. Em Washington D.C., há uma sensação palpável de alívio: escolas estão reabrindo, as restrições mais duras estão sendo gradualmente removidas, as pessoas sentem que podem voltar a viver. É claro que há hesitação vacinal, um dos motivos que explica a falácia de se pensar em imunidade de rebanho. Mas, apesar desse grupo, em poucos meses o país estará em condições de deixar para trás o pior da pandemia.
Além de ter conseguido entregar esse resultado no tempo prometido, o governo Biden também montou uma agenda notável de reconstrução da economia e do investimento no país. Como expliquei em artigos anteriores, a agenda Biden não rompe com o passado dos EUA, com a tradição do envolvimento do Estado no desenvolvimento de longo prazo do país. Ao contrário, os planos anunciados e parcialmente aprovados resgatam essa tradição, com a novidade de orientá-la para as pessoas, sobretudo as mais pobres e vulneráveis. Como também já escrevi por aqui, não tem sentido afirmar que, por isso, Biden se tornou um radical de esquerda. Na coluna publicada na edição passada apresentei uma reflexão sobre como Biden está reposicionando as disputas políticas em uma democracia madura e fazendo algo que poucos no Brasil conseguem compreender: removendo o protagonismo da economia como definidora do que é ou não democrático e entregando esse papel novamente à política. Enquanto Biden articula sua agenda reconhecendo os conflitos como centrais para o bom funcionamento de qualquer democracia, o partido Republicano se aproxima rapidamente de uma fratura possivelmente irreversível. A expulsão da deputada Liz Cheney — ferrenha opositora de Trump e filha do ex-presidente Dick Cheney — da posição de liderança e prestígio que teve no partido revela aquilo que já se sabia: Trump foi um golpe de misericórdia para os Republicanos.
Em 2022, haverá eleições legislativas. Com o Partido Republicano rachado e a agenda de Biden a pleno vapor, para não falar do sucesso no controle da pandemia e de todas as suas repercussões — notavelmente, a recuperação econômica —, o campo parece aberto aos democratas. Ainda que existam desavenças intrapartidárias sobre várias questões, elas em nada se comparam à crise existencial dos republicanos. E aí está a razão de ser de Biden ter se tornado o 46º presidente americano: as fraturas, o desarranjo, os desmandos de quatro anos de Trump. Mas Trump não é comparável a Bolsonaro, a não ser de forma extremamente superficial. O dano que causou ao Partido Republicano não tem equivalente no sistema político brasileiro. As origens das disputas entre republicanos de diferentes linhagens e democratas não tem paralelos no Brasil.
Não há um “Biden brasileiro”. Insistir nesse raciocínio, com a apresentação de nomes supostamente mais centristas à direita, à esquerda e mesmo ao que, no Brasil, entende-se por centro é uma perda de tempo tremenda.
Esse tempo deveria estar sendo empregado para buscar soluções imediatas, de médio e de longo prazo para um país destroçado.
De acordo com as pesquisas de opinião, Bolsonaro se mantém com cerca de 40% de aprovação. Nas disputas simuladas com outros candidatos presumidos, Bolsonaro mantém a liderança. A exceção? A exceção é aquilo que parte do Brasil se recusa a reconhecer: Lula. Lula, goste-se ou não, não é Bolsonaro. Podem ser polos opostos, porque Lula não é Bolsonaro, e por isso mesmo não se equivalem: insistir em sua equivalência é uma fantasia besta, outra perda de tempo. Por outro lado, se foi o antilulismo que pariu o bolsonarismo, não deixa de ser interessante que a única via que se apresenta como viável hoje seja o caminho contrário.
Antes que cause terror e espanto entre os leitores, explico: o que escrevi é mera constatação daquilo que vejo com o benefício da distância. Não é apoio ou rejeição. É tão somente uma tentativa de eliminar as fantasias que impedem que se veja com clareza em que o Brasil se transformou. Biden brasileiro? Balela.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Fonte:
Época
https://epoca.globo.com/monica-de-bolle/biden-brasileiro-1-25016297
Fernando Gabeira: Anatomia da política de negação
Pode ser que a CPI da pandemia descubra fatos novos, que revolucionem nossa visão do problema. Caso isso não aconteça, e é provável que não aconteça, já é possível, pelo menos, escrever o argumento desse filme, abstraindo os lances e peripécias de um roteiro.
Na base de tudo está a negação da pandemia por Bolsonaro. Esse conceito de negação foi lançado por Freud em 1923. E numa carta de 1937, escrita para um colega, ele cita o rei Boabdil, que ao receber a notícia de que a capital de seu reino, Alhambra, estava sitiada mandou queimar a carta e decapitar o mensageiro.
Bolsonaro não poderia aceitar a pandemia com os problemas econômicos que trazia e, sobretudo, a ameaça de sua reeleição. De certa forma, ele queimou a carta enviada pelos cientistas e decapitou os ministros que insistiam no tema.
Sua tese era de que a economia precisava seguir seu curso. Para fundamentá-la era preciso buscar algo aparentemente científico. A tese da imunização de rebanho foi a tábua de salvação. Todos se contaminariam de um modo ou de outro, pensava Bolsonaro, então que se contaminassem logo para voltarmos à normalidade.
Ele abstraiu o número de mortes implícito nessa escolha. Na verdade, era preciso trazer também a esperança de cura, uma espécie de bala de prata contra a covid-19: a hidroxicloroquina. O remédio era uma resposta simples para um problema complexo. Todos se contaminam, todos se salvam pela hidroxicloroquina
Essa negação, que teve o momento máximo quando classificou a covid como apenas uma “gripezinha”, precisava ir adiante na negação. Se a covid-19 não tinha importância, por que gastar fortunas com vacinas? Numa de suas declarações mais claras sobre o tema, Bolsonaro disse preferir gastar dinheiro com remédio a comprar vacinas.
Mais tarde voltou ao tema, criticando a “vacina chinesa de Doria”, a Coronavac, e terminando por lançar suspeitas também sobre as vacinas que usam a técnica de mensageiro RNA, no caso da Pfizer: se quiser virar jacaré, ou ver mulher de barba ou homem falando fino, tome a vacina.
Ao longo desse tempo, o número de mortos aumentava e Bolsonaro mantinha sua frieza: não sou coveiro. Era algo previsível em sua tática.
Daí o desencontro entre seu comportamento e o que esperava a imprensa. Por que evitar aglomerações, se todos vão mesmo se contaminar? Por que usar essas opressivas máscaras? Se vamos chegar a uma situação de normalidade, é melhor todos se contaminarem rapidamente.
Olhando em torno, no universo particular de seu Palácio do Planalto, a teoria da contaminação de rebanho ia muito bem: 460 funcionários se contaminaram até abril.
A história pode ser contada assim, até mesmo no embate entre Bolsonaro e governadores. Ele quer a volta de todos ao trabalho e está disposto a fazer tudo para conquistar “essa liberdade”.
São duas concepções em jogo. Uma quer que as pessoas se vacinem, não se aglomerem, usem máscaras e lavem as mãos. A de Bolsonaro é a volta ao trabalho, o fluxo pleno da economia.
Quando for concluído o relatório da CPI, é possível fazer como se fez nos Estados Unidos: convidar um grupo de sanitaristas para examinar uma por uma essas decisões, ou mesmo hesitações. Aqui, como lá, também seria possível os especialistas calcularem o número de mortes que poderiam ter sido evitadas com as escolhas corretas.
Portanto, um minucioso trabalho de coleta de dados da CPI e um relatório que articule esses dados ainda serão insuficientes. Será necessário quantificar as suas consequências.
Nesse momento, Bolsonaro pelo menos terá uma defesa. Não têm razão aqueles que o acusam por todas as mortes pela covid-19 no Brasil. Ele teria de responder apenas por uma parte delas.
Quando a CPI encerrar seu trabalho, o número total de mortos no Brasil, segundo uma previsão da Universidade de Washington, será de 600 mil pessoas. Quantas podem ser atribuídas a uma escolha política de rasgar a carta e decapitar o mensageiro?
Ainda faltam detalhes à história. Até que ponto a vacinação no Brasil seguirá em ritmo lento? Até que ponto os atrasos na remessa de IFAs não são uma represália chinesa às declarações de Bolsonaro?
A Coronavac está no braço de 80% dos vacinados no Brasil. Bem ou mal, dependemos dela para uma vacinação em massa, até o momento. Da Índia dificilmente virá alguma coisa, pois a crise lá é profunda e o próprio Instituto Serum está sob forte pressão. A Pfizer fechou um negócio de 1,5 bilhão de doses com a Europa. Vai estar sobrecarregada.
Nesse contexto, provocar um rompimento com a China é apenas o lance final da estratégia de imunização de rebanho, que, na verdade, poderia ser chamada de extermínio de rebanho.
Isso coloca a CPI diante de outra tarefa, mais imediata do que compilar os dados e determinar responsabilidades. É preciso um núcleo de emergência, a busca de algumas medidas que possam salvar vidas enquanto o trabalho transcorre. E isso se vai dar no campo das vacinas, vencida, como parece ter sido, a batalha da hidroxicloroquina.
JORNALISTA
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,anatomia-da-politica-de-negacao,70003714359
RPD || Rogério Baptistini: O populismo e a demagogia amplificam a tragédia brasileira
No mês de abril, o Brasil atingiu a marca de 400 mil mortos pela pandemia de Covid-19. O número de vítimas do coronavírus certamente é ainda maior, dado que desde o início da crise sanitária há relatos de subnotificação e, inclusive, pouco interesse do governo federal no acompanhamento e controle dos casos. Mas o que incomoda é o alheamento do presidente e de seus auxiliares em relação ao sofrimento dos concidadãos. É como se não tivessem responsabilidades para com o povo, o elemento pessoal do Estado. E aqui, o paradoxo de nossa situação.
Bolsonaro chegou ao governo como expressão do populismo, um fenômeno tão antigo quanto a própria democracia. Neste, confluem um líder e um povo mobilizado por um discurso que divide a sociedade política entre um nós e um eles, geralmente uma elite corrupta. A própria condição de mito, atribuída ao ex-deputado do baixíssimo clero reforça a percepção do que seria uma condição atávica de nossa evolução política. Acompanhando Ernst Cassirer, o mito, no populismo, personifica a vontade coletiva e se impõe à Constituição e às próprias instituições. “O que fica é apenas o poder e a autoridade mística do líder e a sua vontade suprema é a lei”. (2003, p. 325)
O passado, como ensinava o historiador Mac Bloch (1886-1944), não é objeto de ciência, mas ilumina o presente. E quando olhamos para trás, verificamos que a absolutização dos conflitos na história brasileira degenerou sempre em regressão na cultura democrática, em que pese o salto para a frente da aceleração econômica e a incorporação dos “de baixo” pela via dos direitos sociais. Estas, as camadas sociais inferiores, são o elemento central da lógica populista, manipuladas conforme a conjuntura, num dualismo de aceitação ou rejeição: mortadelas contra coxinhas, patriotas contra comunistas, cristãos contra destruidores da família.
Pilar do Estado moderno, a noção de povo deriva diretamente do populus romano. Ali, ao lado das famílias presentes no Senado, que representavam o núcleo originário da República, este participava das decisões sobre o destino comum, constituindo o elemento democrático e plural – a civilitas – do conjunto de cidadãos que fundava o corpo social – a civitas. A lei seria a expressão de sua responsabilidade política, traço de urbanidade e o próprio contrato que os uniria. Contraditoriamente, foi o apoio popular ao Principado e, depois, ao Dominado, que encolheu o papel político do povo romano (COLLIVA, 1991), culminando no ocaso de uma civilização e nas trevas do medievo.
Verdadeira presença ausente na democracia, o povo não é uma nulidade. Apesar de não constituir uma massa compacta, ele existe e padece as consequências do populismo. O descaso para com as leis, a corrupção da República e a demagogia como uma perversão que acomete os governos democráticos representam a catástrofe para os populares; o apocalipse medido em mortes e desesperança. E novo alimento para o irracionalismo, para as soluções que apresentam a vida como uma luta inconteste entre o Bem e o Mal. A economia contra a saúde; o mercado contra o Estado; o deus dos fundamentalistas contra o demônio.
No momento mesmo da invenção da política como esfera autônoma, na antiguidade clássica, Platão alertava para os perigos que a manipulação do demos poderia gerar pela ação de demagogos. O risco da implantação da tirania, quando da exploração dos ressentimentos populares por um perverso e o desejo irracional de castigar o levavam a descrer do governo democrático. A agonia do momento presente representa o ápice da demagogia entre nós.
É a atuação do povo como bloco que alimenta o populismo e faz da demagogia uma perversão. Tanto um como outra estiveram em germe, desde a redemocratização, na atividade de líderes e partidos, culminando no autocanibalismo do que se apresentava como o “novíssimo” na política brasileira, “diferente de tudo o que está aí”. A transformação do espaço público como espaço de luta pelo exclusivismo, no qual todo o adversário passou a ser visto como inimigo a ser derrotado trouxe uma vitória de Pirro para os adeptos do conflito, com consequências irreparáveis para uma geração de brasileiros, e a política sendo desviada para a margem dos canais institucionais pacientemente construídos.
Aos democratas, resta lutar nas trincheiras da razão e não ceder aos apelos do dualismo populista que insiste na exploração do desespero popular. A hora é de reconstrução da cultura pública essencial ao exercício da cidadania informada, ativa e plural, capaz pactuar em favor da democracia como caminho para o futuro.
*Rogério Baptistini Mendes é sociólogo, pesquisador do LabPol -Laboratório de Ciência Política da Unesp/FCL-CAr.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Fonte:
RPD || Sergio Besserman: Censo 2021 – Vamos perder mais dinheiro do que será economizado agora
O governo federal anunciou que o Censo 2021, que estava previsto para 2020, será novamente suspenso; desta vez, por falta de recursos no orçamento deste ano. Não há prazo para um novo levantamento. Os prejuízos para implementação de políticas públicas são incalculáveis, especialmente para a população mais pobre.
De certo modo, o Brasil já vive sob apagão estatístico há bastante tempo. A Comissão de Estatística da Organização das Nações Unidas recomenda o censo decenal, de preferência, nos anos de final zero. O objetivo é comparar todos os censos entre si. Países que têm registros administrativos ruins, segundo a ONU, devem realizar, como melhor prática estatística, um minicenso entre os dois censos decenais.
No Brasil, chamávamos de “contagem populacional”, mas o levantamento também fazia outras perguntas. Por razões de economia fiscal, não fazemos esse censo intermediário desde os anos 90. Os registros administrativos brasileiros são ruins. No governo federal, há alguns um pouco melhores, como o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, e dados relacionados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Mas a maior parte é inexistente ou ruim. Nos estados e municípios, a mesma coisa.
Nós vivemos no século da informação e do conhecimento. Ter dados sólidos sobre a real situação dos brasileiros é importante para a implementação de políticas públicas eficazes. O Brasil é um país dinâmico, muda muito, especialmente desde a última década. Perceba-se que 10 anos já é um tempo bastante longo. Áreas fundamentais, como transporte urbano, saúde, educação, segurança pública, sofrem com o atraso no Censo Demográfico por mais de uma década. Prejudica, inclusive, todas as outras pesquisas, pois diversos institutos do setor público e privado utilizam esses dados. Todas as pesquisas perdem em qualidade em razão da ausência de informação censitária atualizada.
Outro ponto a se destacar é que a grande maioria dos municípios depende de Estados e do governo federal para fechar as contas. Esta suspensão afeta diretamente a população mais pobre. Para 80% dos municípios do Brasil, a principal fonte de receita é o Fundo de Participação (FPM). O critério utilizado para a distribuição desses recursos é a população. Anualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) faz uma estimativa da população nacional, por Estados e municípios. Com esse longo espaçamento no tempo, aos poucos, o fundo de participação vai deixando de cumprir um dos objetivos, que é justamente combater a desigualdade. As estimativas não conseguem capturar situações de mudanças dinâmicas em diversos municípios.
Com os dados do censo, teríamos a oportunidade de mapear informações sobre a miséria e a extrema pobreza. Esse, talvez, seja o impacto mais danoso do ponto de vista social. Não teremos as informações e o conhecimento necessário para fazer esse trabalho tão indispensável de reconstrução econômica, social e política do Brasil, que será preciso a sociedade conseguir após 2022.
Destaco, ainda, que a principal conquista histórica do Censo Demográfico foi a consolidação do IBGE como órgão de Estado. Ele foi uma grande conquista democrática. Atravessou ditaduras, sempre mantendo sua característica de órgão de Estado, sem jamais ter sofrido qualquer tipo de intervenção, e sendo, principalmente, reconhecido quanto ao princípio do sigilo das informações obtidas.
Entendo que a decisão de adiar o censo sem sequer anunciar, imediatamente, quando ele seria realizado, foi pautada pelo negacionismo do atual governo, seu desprezo pela informação e pelo conhecimento. Vamos perder muito mais dinheiro com esse adiamento do que aquilo o que será economizado. E quem mais vai perder é o povo pobre.
Muitos países, como Canadá e Estados Unidos, aplicam o Censo a distância – seja pela internet ou mesmo pelos correios. A combinação do censo presencial com melhorias nas informações de registros administrativos e a conexão desses tipos de metodologias remotas deve ser prioridade, e o IBGE está trilhando esse caminho com excelência, como sempre. Afinal, a tecnologia existe e pode muito bem ser integrada com o trabalho dos recenseadores, que serão sempre importantíssimos em um país tão desigual e de proporções continentais como o Brasil.
*Sergio Besserman é economista, é professor do Departamento de Economia da PUC e coordenador estratégico do Climate Reality Project no Brasil. Ex-diretor do BNDES, ex-presidente do IBGE, do Instituto Pereira Passos, e do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (RJ).
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD || Entrevista Especial – Forças Armadas manterão fidelidade à Constituição, diz Santos Cruz
Por Caetano Araújo e André Amado
O Brasil já se encontra no terceiro ano do governo Bolsonaro, a um ano e meio das eleições e em meio a uma CPI que pode ter desdobramento graves. Mas não se pode desviar a atenção do essencial, que é a vacinação da população, da recuperação da economia e o reforço das instituições do país, avalia o gerenal da reserva Carlos Alberto Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria Geral da Presidência da República do atual governo e entrevistado especial desta 31a edição da Revista Política Democrática Online.
“Se de fato estiverem ocorrendo tentativas de recorrer a medidas excepcionais, fora da cartilha democrática, fora da constituição, isso se deve à mais completa falta de noção institucional”, diz Santos Cruz, que também foi secretário nacional da Segurança Pública na gestão do presidente Michel Temer e comandou as missões da ONU no Haiti e na República Democrática do Congo. Para ele, no caso das Forças Armadas, por exemplo, “cujo apoio seria essencial em cenários desse tipo, não vejo a mínima condição de dar respaldo a qualquer proposta extrainstitucional”, completa.
Na entrevista à Revista Política Democrática Online, Santos Cruz também comenta sobre a questão da Amazônia e o meio ambiente, o papel do Brasil no cenário internacional, polícias militares, liberação de armas de fogo, segurança pública, cidadãos armados e o comunismo, o grande inimigo do bolsonarismo. “O problema nosso não é de comunismo. Infelizmente, estão usando isso daí para maniqueísmo. Hoje quem não é amigo é inimigo”, alerta.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista do general Carlos Alberto Santos Cruz.
Revista Política Democrática Online (RPD): Na situação de crise que vivemos, podemos considerar o comportamento do presidente da República como uma ameaça à democracia?
General Carlos Alberto dos Santos Cruz (SC): Antes de mais nada, é preciso contextualizar o momento brasileiro. Há alguns pontos que precisam ser focados. O primeiro deles é a pandemia, um trauma social, que já ceifou mais de 400 mil vidas. Todos nós conhecemos pessoas, famílias, conhecidos, parentes que se foram com a pandemia. Isso está afetando demais a sociedade brasileira. A vacinação é nossa saída, mas ela não está disponível em quantidade suficiente, o que causa enorme apreensão, tanto mais porque os cuidados que todos deveríamos seguir não estão sendo respeitados, por várias razões.
O segundo ponto é a economia, que não passa por um bom momento. Mas o cidadão comum não está ligado nisso. Só os que têm alguma noção de economia sabem que nossa situação não é fácil nem boa. A vacina é a única maneira de restaurar a normalidade das atividades econômicas. Como, então, tratar da pandemia e da economia ao mesmo tempo?
Os mais desassistidos estão sendo duramente afetados. Muitos de nós conseguimos passar bem de algum modo, mas as pessoas que perderam sua atividade econômica, que não têm rendimento garantido, são mais sacrificadas. É preciso destinar recursos federais para esse pessoal. Não adianta só jogar bilhões em emendas parlamentares. A prioridade é para quem está passando fome e outras necessidades.
“Um governo que carece de planejamento, de respeito institucional, pessoal e funcional, tem efeitos graves para a sociedade, efeitos multiplicadores preocupantes”
Já estamos no terceiro ano de governo, a um ano e meio das eleições e em meio a uma CPI que pode ter desdobramento grave. Mas não se pode desviar a atenção do essencial, isto é, a vacina, a economia, a fome. Se de fato estiverem ocorrendo tentativas de recorrer a medidas excepcionais, fora da cartilha democrática, fora da constituição, isso se deve à mais completa falta de noção institucional. As instituições estão carentes de apoio, de planejamento. Por exemplo: o Ibama e o ICMBio, com responsabilidade de fiscalização do meio ambiente, são criticados por ineficiência. A solução tem sido mandar o Exército em apoio. O Exército pode ajudar temporariamente, mas o fundamental é reforçar a estrutura das instituições. Caso contrário, os problemas não estão sendo corrigidos. Outro exemplo: critica-se o STF. Mas o que o Executivo e o Legislativo têm feito para melhorar o Supremo? Quais propostas foram apresentadas para alterar as atribuições, estabelecer novos critérios de escolha, prazos dos mandatos? Não adianta atacar, propor melhorias milagrosas. O objetivo tem de ser aperfeiçoar as instituições e, assim, fortalecê-las.
Nossa democracia corre riscos? Corre alguns riscos, mas não no sistema e, sim, em pontos específicos. Por exemplo, não acredito que uma medida aventureira qualquer venha a ter resposta positiva. Não acredito, pois as instituições, embora fracas e carentes de aperfeiçoamento continuado, existem e não vão aceitar ações aventureiras por parte de governante. No caso das Forças Armadas, por exemplo, cujo apoio seria essencial em cenários desse tipo, não vejo a mínima condição de dar respaldo a qualquer proposta extrainstitucional. Outros riscos decorrem de atos fomentados por grupos de fanáticos. E o desfecho do fanatismo é sempre a violência. O fanatismo é de fato um risco, mas não o vejo capaz de contaminar a sociedade.
RPD: Pode-se entender que a falta de planejamento, de respeito às instituições e de liderança nas altas esferas do governo tenham justificado sua decisão de deixar o Palácio do Planalto?
SC: Não. Era início de governo. Alguns problemas já eram bem nítidos, mas não totalmente caracterizados. Eu fui dispensado da minha função pelo presidente da República, o que é uma prerrogativa daquela autoridade. Não tem nada de errado. Um governo que carece de planejamento, de respeito institucional, pessoal e funcional, tem efeitos graves para a sociedade, efeitos multiplicadores preocupantes. Por exemplo, a conduta de fanáticos, de pequenos grupos de extremistas desqualificados, de baixíssimo nível, cujo linguajar expresso em redes sociais constrange repetir em entrevistas. Essa conduta tem influência e não contribui para conduzir o país a boas soluções.
RPD: Existiriam dois exércitos, duas Forças Armadas que se poderiam posicionar diferentemente em relação a um agravamento da situação conjuntural política brasileira?
SC: Não vejo nenhuma possibilidade disso acontecer. As Forças Armadas têm dentro delas um sistema de liderança que abarca a todos os militares. Individualmente, todos são eleitores e podem votar em quem quiser. Não há problema nenhum. Mas, uma vez de uniforme e dentro da instituição, o militar segue o comando institucional. Isso é uma cultura. Fiquei 47 anos dentro do Exército e nunca vi discussões de caráter político. Zero discussões acerca de política. É cultural. Entrou no quartel acabou a discussão. Você pode ir discutindo no carro. Entrou no quartel, acabou!
Os três comandantes que foram recentemente substituídos, por exemplo, deram poucas declarações sobre a saída. Tomaram posse três outros militares também excelentes. Manteve-se a mesma filosofia. Nada mudou. Nada. Pessoas da mesma cultura, da mesma geração de formação, todos contemporâneos 35, 40 anos dentro da mesma força. Não tem como você quebrar isso. Não adianta. Não será um aventureiro qualquer que vai pegar e quebrar um sistema desses.
“Não é justo generalizar nem supor que os policiais possam ser arrastados para qualquer ação ilegal. Tanto quanto as Forças Armadas, isso não vai acontecer! Vejo as polícias militares com boa liderança”
RPD: Incitação à violência por meio da internet, tentativa de disseminar o acesso a armas sem o controle devido, flerte com reivindicações corporativas da Polícia Militar, essa mistura explosiva pode levar a uma explosão de fato?
SC: Risco sempre existe, mas de pequenas coisas. Até porque nós estamos assistindo a uma festa dos irresponsáveis. A internet é uma ferramenta de comunicação fantástica. Estamos cada um em nossas casas fazendo essa reunião virtual. São recursos maravilhosos. Só que, da maneira como se está observando, é uma verdadeira festa de exageros, oportuna para os fanáticos, para gente sem limites. Já existem providências em defesa da sociedade, no plano legislativo. Por exemplo, a legislação de combate às notícias falsas, as famosas fake news, que alimentam o fanatismo. Não tem nada a ver com liberdade de expressão. Permanecem válidos os crimes de calúnia, difamação e injúria, previstos no Código Penal.
Sobre as polícias militares, é importante frisar que vivemos num modelo federativo. Tanto o governador como as instituições do Estado têm de seguir não só a constituição federal, mas também a estadual. O Legislativo e o Judiciário têm de atuar. Se o governador ou as instituições policiais violarem a lei, eles têm de ser responsabilizados.
Cabe lembrar que as polícias militares têm pessoas muito boas, em geral muito bem preparadas. O nível é bom. Esse pessoal é sensível à cadeia de comando. Eu não tenho dúvida nenhuma. Temos hoje 500 mil policiais militares no Brasil, que estão na rua em contato direto com a população. É um trabalho difícil. Sempre pode ocorrer erros. Em geral, erros pessoais. Isso é muito explorado, mas não é justo generalizar nem supor que os policiais possam ser arrastados para qualquer ação ilegal. Tanto quanto as Forças Armadas, isso não vai acontecer! Vejo as polícias militares com boa liderança.
Sobre o problema das armas de fogo, não tenho dúvida de que a polícia militar e a polícia civil estão insatisfeitas com essa tentativa de liberar armas sem o devido controle. Isso dificulta o trabalho dos policiais. Eles já têm a quem enfrentar, e ainda mais as armas fora de controle na mão de crime organizado, de milícias etc. É um problema essa liberação de armas sem um bom critério. Uma coisa é o comércio regulamentado. Sou a favor do que já existe, e é controlado pela Polícia Federal e o Exército. Só que as medidas de controle e de rastreamentos que o Exército fez dois anos, um ano e meio atrás, foram anuladas pelo presidente. O Exército é um órgão que trabalha só com o interesse técnico. Foi muito ruim anular esse controle.
Existem distorções de concepção. A segurança pública é obrigação do Estado. Não pode um governo estimular as pessoas a se armarem para melhorar a segurança pública. Isso é falta de noção completa, falta de noção das suas obrigações, porque segurança pública é obrigação do Estado e tem de ter um plano nacional de segurança pública. Isso passa pela valorização e treinamento do efetivo da polícia, pelo aperfeiçoamento da legislação, orçamento etc. Todos têm de estar envolvidos – Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público. O governante não pode tentar convencer as pessoas a se armarem para garantir a segurança pública. Isso é loucura. E mais. Considerar que o cidadão armado é uma opção política é um total absurdo. Tanto quanto dizer que o Japão não invadiu os Estados Unidos, na segunda guerra, porque os Estados Unidos tinham não sei quantos milhões de armas nas mãos dos civis. Teoria sem cabimento. Imagina a logística militar que se exigiria do Japão para invadir os Estados Unidos. Tais argumentos animam certo frenesi, uma esquizofrenia política. Tudo isso, sem dúvida nenhuma, significa risco. Se não é risco geral, ao menos localizado, com algumas possíveis iniciativas pontuais. Mesmo nos Estados Unidos, essas maluquices levaram a violências localizadas. Vejo, portanto, também aqui, risco de violência ao menos limitadas.
RPD: O que se pode dizer da versão defendida por alguns setores das Forças Armadas de que, de um lado, propostas de cooperação com comunidade de nações no tocante ao desmatamento da Amazônia podem disfarçar alegada cobiça internacional sobre a região e, de outro, que a ameaça do comunismo para a sociedade brasileira ainda persiste.
SC: Com 15 dias de casado, 44 anos atrás, 1977, cheguei na Amazônia, em Tabatinga e Ipiranga, na beira do rios Solimões e Içá. Fiquei lá um ano e meio, sem telefone celular nem televisão, com a Radiobrás iniciando transmissão com maior potência para competir com as emissões em espanhol provenientes dos Andes.
O pessoal militar tem um sentimento de propriedade da Amazônia, porque ali deixou seu sacrifício. Para mim, não foi sacrifício. Foi grande satisfação. Mas o pessoal tem essa cultura. É normal. A cobiça internacional sobre a Amazônia existe. E isso mexe muito com o brasileiro. Só que o pessoal também tem de entender que existem assuntos que são mundiais. No caso do meio ambiente e do clima, são assuntos mundiais em que estamos inseridos. A Amazônia é nossa, claro. Todo mundo sabe que é nossa. Mas a gente não pode, por causa disso, dizer que “eu faço o que eu quero, não participo de convenção do clima, não participo de discussões de meio ambiente e também não sigo determinados padrões de desenvolvimento”. Não é assim.
Essa é uma questão muito sensível, e o Itamaraty tem condições de ocupar uma posição de liderança por conta de boa formação de seu pessoal, mas tem de seguir a diretriz que é dada pelo governo. Ainda em 2019, logo após a assunção deste governo, busquei contato com o Chanceler e sua equipe, para transmitir-lhes minha visão sobre alguns pontos de política exterior. Sempre tive muita ligação com o Itamaraty. No curso de minhas viagens ao exterior, costumava visitar os embaixadores brasileiros.
Lembro-me de ter comentado que, embora prioridade da política externa, os Estados Unidos não se resumiam a Donald Trump. Sobre meio ambiente e clima, penso que deveríamos tratar da questão com uma perspectiva mais ampla e com finalidade social. Tive oportunidade de falar sobre essa matéria com autoridades francesas, em particular com a agência de desenvolvimento, quando destaquei a importância de investimentos no Brasil, em especial no Nordeste. Depois, saí e não acompanhei mais o assunto.
É uma coisa de loucos… o Brasil está na beira do precipício, e os comunistas estão empurrando para cair no barranco… e tem um Salvador da Pátria que vem do céu ungido por Deus para salvar o Brasil. Não é assim
As riquezas em terras indígenas despertam a cobiça de nações estrangeiras? A perspectiva de bloqueio internacional faz parte dessa estratégia? Sou da opinião de que devemos consolidar uma liderança sobre a matéria e conversar com todos, para angariar a boa vontade da cooperação internacional. Mas fica difícil convencer nossos potenciais parceiros se nem no nosso horizonte geográfico mais próximo, América do Sul, tivemos o impulso de convocar uma reunião sequer do Pacto Amazônico, mesmo sediando em nosso território a secretaria executiva desse órgão multilateral. Poderíamos desenvolver projetos dentro das terras indígenas, por exemplo, promovendo reuniões periódicas em Manaus, Porto Velho e em outras cidades da Amazônia, para demonstrar nosso interesse, nossa liderança, e conquistar boa vontade. Tem de ter orçamento para isso. Traríamos também representantes da França, afinal um país com território na Amazônia.
Quanto ao comunismo, registro que morei na Rússia por dois anos e um ano nos Estados Unidos. Pelo que vi, concluí que o Brasil não aproveitou o que existe de bom nos Estados Unidos e na Rússia. O Brasil poderia ter feito uma boa combinação, mas não fez. O problema nosso não é de comunismo. Infelizmente, estão usando isso daí para maniqueísmo. Hoje quem não é amigo é inimigo. Só os patriotas que andam de verde e amarelo, e os demais são inimigos. É uma coisa de loucos… o Brasil está na beira do precipício, e os comunistas estão empurrando para cair no barranco… e tem um Salvador da Pátria que vem do céu ungido por Deus para salvar o Brasil. Não é assim.
Temos de atuar de maneira mais racional no cenário mundial. A corrupção não tem nada a ver com o comunismo ou não-comunismo. Temos de combater os privilégios e nossas diferenças sociais. Não é possível pagarmos supersalários com dinheiro público. Temos de fazer o que precisa ser feito para melhorar a sociedade brasileira e não alimentar discussões ideológicas e estéreis. Nosso problema básico é fazer o que é melhor para nós. Por conta de postura ideológica, o Ministério das Relações Exteriores quase nos isolou na comunidade internacional. Existem saudosistas comunistas, mas comunismo está ultrapassado, tanto quanto falar de direita ou esquerda. Nessa concepção puramente ideológica, fica tudo muito limitado.
RPD: Num mundo em mudança acelerada, quais as novas tarefas necessárias à defesa nacional?
SC: A defesa nacional hoje não está mais só com as Forças Armadas. Tinha-se a concepção de que a defesa nacional estava nas Forças Armadas. Hoje, não. As Forças Armadas têm a parte de integridade, física, a parte dissuasória. Isso ainda reside nas Forças Armadas. Mas a defesa nacional, como um conjunto, passa pelo desempenho no meio ambiente, na economia, na política.
Quando a gente deixa de ser respeitado internacionalmente na política, isso afeta todos os componentes da defesa nacional. Uma boa economia, sólida, uma sociedade não dividida, harmônica, unida, são fundamentais para a defesa nacional. As Forças Armadas são uma das poucas instituições que fica e tem condições de se manter em locais remotos e ali marcar a presença nacional e apoiar os outros setores, outros Ministérios que, às vezes, têm que fazer alguma tarefa na fronteira, mas não têm estrutura. Mas lá tem as Forças Armadas para acolher e auxiliar. Não adianta desenvolver as Forças Armadas e não desenvolver a economia, o respeito internacional, não desenvolver a união da sociedade e outros órgãos internos que precisam ser desenvolvidos.
“O governante não pode tentar convencer as pessoas a se armarem para garantir a segurança pública. Isso é loucura. E mais. Considerar que o cidadão armado é uma opção política é um total absurdo”
A modernização das Forças Armadas passará também pela política industrial, pela segurança cibernética. Imagina uma interferência no banco de dados do Bolsa Família, da Caixa Econômica, do Banco do Brasil? E que tal uma guerra cibernética como essa ou mesmo uma guerra biológica, com vírus ou qualquer coisa que ainda não se tenha estruturado?
Além das ideias já citadas, imagina o tumulto de uma interferência no banco de dados dos benefícios assistenciais do INSS. Isso deixaria muita gente necessitada sem receber o auxílio. Defesa Nacional é a tranquilidade e a paz social. Ela não depende só das Forças Armadas.
Saiba mais sobre o entrevistado
General Carlos Alberto Santos Cruz
Entrevistado especial da Edição 31 da Revista Política Democrática Online, Carlos Alberto dos Santos Cruz é general de divisão da reserva do Exército Brasileiro, que foi comandante das forças da ONU no Haiti e no Congo, Secretário Nacional de Segurança Pública e ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência do Brasil.
Saiba mais sobre os autores
Caetano Araújo é graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e consultor legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.
André Amado é escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online. É autor de diversos livros, entre eles, A história de detetives e a ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.
Fonte:
RPD || Reportagem Especial: Cursos a distância têm maior adesão do público e ampliam acesso a conhecimento
Cleomar Almeida
Desde o início da pandemia da Covid-19, o mineiro Pedro Auarek, de 28 anos, passou a mergulhar ainda mais em cursos online para diminuir a pressão do confinamento social e navegar por formação a distância, que, antes mesmo da crise sanitária global, já apresentava sinais de crescimento no Brasil. “É um novo desafio, e a gente precisa se adaptar”, afirma.
Graduado em relações públicas, Auarek diz ser fã de aulas presenciais, mas já compreende que “os cursos no formato online vieram para facilitar o acesso ao conhecimento para todo mundo”, apesar dos obstáculos no país, onde o acesso à internet ainda não é universalizado.
Três em cada quatro brasileiros acessam a rede, o que equivale a 134 milhões de pessoas, de acordo com a mais recente pesquisa TIC Domicílios, baseada em dados oficiais de 2019.
O levantamento é o mais importante sobre acesso a tecnologias da informação e comunicação, realizado pelo Centro Regional para o Desenvolvimento de Estudos sobre a Sociedade da Informação (Cetic.br), vinculado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil.
Mesmo com as dificuldades, as formações online têm avançado no país. Em 10 anos, por exemplo, o número de novos alunos em cursos superiores a distância aumentou 4,7 vezes. Saltou de 330 mil estudantes, em 2009, para mais de 1 milhão e meio, em 2019, o que equivale a um crescimento de 378,9%.
Já o índice de ingressantes em graduações presenciais foi ampliado em escala bem menor: 17,8%. Os dados são do Censo de Educação Superior, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Em 2018, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC), uma em cada quatro pessoas no Brasil também não tinha acesso à internet. Em números totais, representava cerca de 46 milhões de brasileiros sem acesso à rede.
Iniciativas inovadoras
Ex-secretário de Educação do Distrito Federal, o especialista Marcelo Aguiar observa que “o Brasil sempre foi um país de desigualdades”. “Mas isso nunca impediu que diversas iniciativas, principalmente na área de tecnologia, surgissem”, diz ele.
“O acesso à internet e aos equipamentos vai se disseminando aos poucos também”, ressalta Aguiar. Com mais de 30 anos de experiência na área da educação, ele é sócio do portal Plugged, uma empresa que oferece a estudantes de todo o Brasil uma plataforma de ensino no modelo homeschooling (educação domiciliar).
Mesmo com as dificuldades enfrentadas no país, na avaliação do especialista, as pessoas não podem ficar de braços cruzados à espera de soluções só por parte do Estado. Segundo ele, “também cabe às instituições privadas fornecer oportunidades de conhecimento para reduzir e superar as desigualdades no Brasil”.
A educação a distância está em constante crescimento. Para ter uma ideia, antes mesmo da pandemia, que fez explodir cursos online, esse segmento já apresentava desempenho positivo. De 2017 a 2018, o país havia registrado aumento de 17% no número de alunos matriculados, segundo a Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed).
MELHORE SEU DESEMPENHO
Veja, a seguir, dicas importantes para otimizar aproveitamento de cursos a distância
1. Não subestime o curso;
2. Seja organizado;
3. Crie uma lista de prioridades;
4. Tenha foco e disciplina;
5. Monte um cronograma de estudos;
6. Evite perder os prazos;
7. Fuja das distrações;
8. Estabeleça objetivos e metas;
9. Tenha um local apropriado para estudos;
10. Evite muito conforto;
11. Tenha equilíbrio;
12. Crie mecanismos de motivação;
13. Tire as suas dúvidas;
14. Seja independente;
15. Conte com a tecnologia;
16. Dicas bônus;
17. Interaja em fóruns de discussões virtuais;
18. Aproveite as tarefas coletivas para aprender;
19. Tenha momentos de descanso.
Capacitação para líderes
Para manter o estímulo à formação a distância no Brasil, a Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília, iniciou, no dia 3 de abril deste ano, o seu mais novo curso com aulas telepresenciais para novos líderes, prefeitos, vereadores e demais gestores filiados ao Cidadania, à qual é vinculada.
Realizado por meio da plataforma Somos Cidadania (somos23.somoscidadania.org.br), o curso Gestão Cidadã tem o objetivo de elevar o padrão das administrações municipais e conta com um time de professores considerados de alto nível.
O presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, diz que o curso reforça a tradição quase secular do partido, destinada a “políticas de formação de quadros”. “A diferença é que, mais do que anteriormente, a capacitação é bem mais fundamental neste mundo porque as transformações da sociedade e os processos de inovação se refletem também na gestão pública”, afirma.
Antes mesmo de começar, os organizadores comemoraram o sucesso do curso de capacitação, que foi iniciado com mais de mil inscrições de pessoas interessadas em adquirir conhecimento para atuar com gestão inovadora e moderna nos diversos municípios do país.
“Volume muito grande”
“A marca de mil inscritos é simbólica. Mostra o volume de pessoas, muito grande, interessadas em se capacitar em gestão pública”, destaca o coordenador do curso e ex-prefeito de Vitória (ES) por dois mandatos (2013 a 2020), o médico Luciano Rezende.
Diretor-geral da FAP e consultor do Senado, o sociólogo Caetano Araújo ressalta que o curso fornece o conjunto de informações necessárias para a gestão pública ser eficiente, a fim de os serviços públicos serem realizados com a maior eficácia possível.
A formação a distância realizada pela fundação, de acordo com Araújo, tem profissionais altamente competentes em suas respectivas áreas. “São pessoas com competência acadêmico-gerencial, conhecidas pelos seus pares e com larga experiência nestes temas”, assevera.
A fundação, desde que foi criada, em 2000, tem atuação bastante forte na formação política, primeiro com cursos exclusivamente presenciais. Depois, a FAP passou a fortalecer suas atividades no segmento de cursos a distância.
Apenas no ano passado, a fundação realizou dois cursos online de formação política, com entrega de certificados para 606 concluintes, no total. A Jornada da Cidadania formou 391 alunos e a Jornada da Vitória, 215.
Além de incluir as duas jornadas na lista de seus cursos de formação a distância, o mineiro Pedro Auarek agora ocupa seu tempo com dedicação ao Gestão Cidadã. “Fiz mais de 20 cursos online, a maioria deles no período da pandemia”, comemora.
GESTÃO PÚBLICA DE EXCELÊNCIA
Confira, abaixo, detalhes do curso a distância Gestão Cidadã
Objetivo geral
Formar novos líderes que agreguem valor às gestões do Cidadania e capacitar filiados, prefeitos e vereadores do partido na área de gestão pública, com a finalidade de elevar o padrão das administrações municipais.
Objetivos específicos
Fornecer bases e conhecimentos para a implementação de gestão pública focada no cidadão e preparar gestores públicos para atuar de forma transparente e eficiente, usando toda a tecnologia disponível (Cidades Inteligentes) na execução de políticas públicas, sem abandonar a responsabilidade fiscal e a austeridade, requisitos fundamentais para administração pública de qualidade.
Metodologia e programação
• Formação presencial online (telepresencial): aulas gravadas, associadas a ambiente virtual de aprendizagem assíncrona, com estudos dirigidos (vídeos/podcast e leitura).
• 6 semanas de curso: aulas às segundas e quartas, das 19h às 20h30.
• Carga horária total: 36 horas
• Aproveitamento: certificado para quem visualizar, por completo, 75% das aulas online que serão gravadas e disponibilizadas na plataforma.
Formato do curso
• Aulas telepresenciais: duas aulas semanais ao vivo de 1h30, com 30 minutos para tirar dúvidas dos alunos.
• Leitura Obrigatória: professor indica artigo ou capítulo de livro para leitura com carga de 45 minutos (tempo estimado).
• Material complementar: professor deve indicar artigo ou capítulo de livro para leitura com carga de 45 minutos (tempo estimado).
Público-alvo
• Prefeitos e vereadores eleitos pelo Cidadania 23.
• Filiados do Cidadania 23 que atuam na gestão pública.
• Simpatizantes do Cidadania 23 que desejam conhecer as boas práticas da administração pública.
Fonte:
RPD || Editorial: Mazelas do presidencialismo
Há poucos dias uma decisão da Justiça conseguiu retirar da gaveta o pedido de instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar responsabilidades pela má gestão de nossa crise sanitária. Formada a Comissão, seus trabalhos passaram de imediato a ocupar o centro do debate político do país. Não pelo ineditismo das revelações dos depoentes, mas pela clareza com que comprovam o que era de conhecimento geral: a responsabilidade do governo, por ação e por omissão, pela situação catastrófica em que nos encontramos.
O quadro que emerge até agora é cristalino. Duas premissas equivocadas, a prevalência da economia sobre a vida e a saúde, de um lado, e a miragem de alguma “imunidade de rebanho”, que desceria sobre os brasileiros de forma inexorável, movida apenas pela operação natural do vírus, de outro, foram o gatilho de uma série de decisões desastrosas. Combater o distanciamento social, a pretexto de preservar a atividade econômica; trabalhar contra o uso de máscaras; desdenhar das vacinas; e investir tempo e recursos públicos na produção e divulgação de medicamentos inócuos contra o vírus, além de prejudiciais à saúde. Contra a ciência, o país enveredou pelo caminho da superstição, a um custo muito alto, em termos de vidas e de caos econômico.
Importa refletir a respeito das consequências políticas dos trabalhos da Comissão. Pelo andar dos acontecimentos, o relatório final apontará com clareza as responsabilidades do Presidente da República pela situação, apesar dos esforços governistas de transferir essas responsabilidades para governadores e prefeitos. Estariam cumpridas, em tese, as exigências legais para deliberação a respeito de sua retirada do governo, por meio de processo de impedimento, e substituição, conforme regra prevista na Constituição.
Ocorre que o presidencialismo é um regime de mandatos definidos e a rigidez desses mandatos termina por constituir um seguro de permanência no cargo, mesmo em situações extremas de inoperância e de ataques permanentes ao ordenamento democrático, como é o caso. O crime de responsabilidade é apenas um, nem sempre o primeiro, dos itens da lista de exigências do impeachment. Para chegar a bom termo, o processo deve contar com a decisão do Presidente da Câmara e a convicção firme, por parte da maioria dos Deputados, da insustentabilidade da permanência do Presidente da República no exercício de suas funções.
Transparecem, em momentos como o atual, as vantagens de regimes parlamentaristas ou mistos, na perspectiva da sua afinidade com o ordenamento democrático, como sobejamente assinalado na literatura pertinente. Vantagens para, em primeiro lugar, prevenir a conquista do poder por minorias radicais em detrimento de maiorias divididas politicamente. Em segundo lugar, para definir responsabilidades claras, para Executivo e Legislativo. Em terceiro lugar, para substituir, com rapidez e assepsia, governos que venham a se revelar disfuncionais em momentos de crise.
Fonte:
Mariliz Pereira Jorge: Wajngarten, o tchutchuca na CPI da Covid
Pelo que vimos nesta quarta (12), bolsonarista é o tipo tigrão nas redes sociais, quando escorado pelo aparato do governo, mas muito tchutchuca quando precisa enfrentar uma CPI. Fabio Wajngarten gaguejou, disse e desdisse, caiu em contradição, suou, tremeu e, sobretudo, mentiu em seu depoimento à comissão que investiga a má gestão da pandemia.
O ex-secretário da Secom sofre do mal que acomete essa turma que chegou ao Planalto com a eleição de Jair Bolsonaro. Cria as suas próprias narrativas, seguro de que pode manipular não apenas a opinião pública mas os fatos. Ignora que uma coisa é alimentar a militância bolsonarista com mentiras, a outra é bancá-las quando o que está em jogo é prisão.
Wajngarten achou que seria uma boa estratégia tentar livrar a barra do presidente ao colocar a culpa no ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, numa entrevista à revista Veja, que tem toda a cara de ter sido concedida exatamente para isso. Faltou combinar com os russos. Os senadores parecem pouco dispostos a tolerar as artimanhas de que Bolsonaro e apoiadores se servem e pelas quais nunca são cobrados .
A Secom, com Wajngarten à frente, fez campanha para o fim do isolamento e contra a obrigatoriedade da vacina, enalteceu o uso da cloroquina e usou o Telegram, famoso entre os bolsonaristas, para disseminar essas informações. O ex-secretário diz que não sabe, não viu, que estava de licença médica, mas o print é eterno. Seria cômico, se não fosse trágico.
A carta da Pfizer, enviada em setembro de 2020, em que a empresa cobra resposta sobre a oferta de vacinas feita no mês anterior, foi ignorada por dois meses, até que Wajngarten foi procurado, segundo ele, pelo dono da Rede TV. Como a vida de milhões passou a depender da conversa entre um dono de uma empresa privada e um secretário de Comunicação para que a negociação da vacina fosse adiante? Que Pazuello explique em seu depoimento.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Vinicius Torres Freire: CPI da Covid tem de chamar mais gente para mentir e deixar o ‘teje preso’ para depois
A CPI da Covid e parte do país parou para discutir se Fabio Wajngarten deveria ser preso por ter mentido em seu depoimento no inquérito parlamentar. O país já deveria ter aprendido a besteira violenta que dá sair prendendo gente a torto e a direito, mas o assunto de interesse mais imediato nem é esse. A CPI não deve ameaçar os depoentes. Deve chamar mais gente para mentir mais ou até contar a verdade. Seja qual for a opção dos inquiridos, o governo Bolsonaro vai ficar exposto, para usar um eufemismo juridicamente seguro.
O general Eduardo Pazuello, ex-chefe do almoxarifado da Saúde, é o próximo da fila do vexame e de um futuro programa de acareações, mas já é uma figura manjada. A fila tem de andar. Por exemplo, quando a CPI vai convocar o general Braga Netto, ora ministro da Defesa e ex-ministro da Casa Civil?
Braga Netto tomou decisões relativas à vacina. Um documento do governo diz que ele liderou o “processo decisório” de adesão do Brasil à iniciativa da OMS (ACT Accelerator) do qual fazia parte a Covax (distribuição de vacinas para países mais pobres). Muito bem. O que ele mais sabe sobre os processos decisórios? A Casa Civil, o ministério da Saúde e o ministério da Economia fizeram reuniões para decidir o que fazer da vacina da AstraZeneca, em 19 de junho de 2020, por exemplo. Os ministros dessas pastas também receberam a célebre carta ignorada em que a Pfizer oferecia vacinas.
Isso consta dos relatórios do “Grupo de Trabalho para a Coordenação de Esforços da União na Aquisição e na Distribuição de Vacinas contra a Covid-19”, que faz também uma lista de instituições que participaram dos debates e ouviram as posições do Ministério da Saúde (associações médicas, Butantan, Fiocruz, conselho de secretários de Saúde etc.). Seriam ótimas fontes de material para as acareações do general Pesadello ou de Wajngarten, pelo menos, dado que não vão poder fundamentar as perguntas para essas criaturas.
Paulo Guedes deveria ser o próximo ministro a sentar no banco do inquérito parlamentar. Além de seu ministério ter participado de decisões ou conselhos relativos à vacina, a Economia também manifestou publicamente opiniões enfáticas a respeito da epidemia. No mesmo dia 17 de novembro em que Wajngarten dizia bater um papinho informal com a Pfizer, a Secretaria de Política Econômica de Guedes afirmava que a possibilidade de “segunda onda” era “baixíssima” no Brasil, entre outras temeridades. Até dezembro, pelo menos, Guedes negava o risco de novo desastre, quando o repique do morticínio já era evidente. Revelou-se outra vez um mestre, quiçá doutor, em avaliação de risco e previsões certeiras (as quais o ministro costuma errar na casa das dezenas de milhões ao trilhão).
O que Braga Netto e mesmo Guedes têm a dizer sobre o fato de o Brasil ter encomendado poucas vacinas da Covax (para cerca de 10% da população, bastantes para pessoas com mais de 80 anos, com comorbidades e trabalhadores de saúde, como argumentou a Saúde)?
Como explicam que a oferta da Pfizer ficou no limbo? Negligência? Levaram a proposta a Bolsonaro? Fizeram alguma coisa? É uma pergunta simples, com respostas simples. Assumem a responsabilidade ou a jogam nas costas de alguém. Não dá nem para mentir.
Ainda falta roteiro de investigação para a CPI. Um quadro de “perguntas sem resposta”, uma planilha de mentiras já registradas, um organograma de responsabilidades a ser preenchido com esses nomes ministeriais e outros.
O “teje preso” é para depois.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Maria Hermínia Tavares: Autobiografia de uma nação
Em um artigo publicado em 1994 no jornal turinês La Stampa, sob o título “Aquela Itália modelo Berlusconi”, o filósofo Norberto Bobbio (1909-2004) se perguntou, com um misto de espanto e tristeza, se o berlusconismo não seria “uma espécie de autobiografia da nação, da Itália de hoje”.
A pergunta vale para o Brasil, embora talvez seja precipitado falar em bolsonarismo para designar, seja os seguidores militantes do presidente —os seus minions—, seja o sentimento difuso de apatia benevolente ou simpatia aberta de quase a metade dos brasileiros em relação ao chefe do desgoverno. A despeito da administração catastrófica da pandemia —responsável por um número decerto elevado de mortes evitáveis e estagnação econômica—, sucessivas sondagens indicam que segue estável o contingente dos que consideram o desempenho de Bolsonaro ótimo ou bom, na casa de 30%, e o dos que lhe atribuem conceito regular (da ordem de 20%).
A constância das opiniões parece dizer muito do estado da nação que seus habitantes construíram sem querer ou perceber. É o país da educação pouca e precária, que abre espaço a explicações estapafúrdias sobre a origem da Covid-19 e as maneiras de enfrentá-la.É onde, diante do imperativo de ganhar a vida e à falta de alternativas para fazê-lo de forma segura, milhões de pobres viraram cativos dos discursos que minimizam o perigo da praga e desprezam as medidas básicas de proteção contra ela.
É a nação que deixou que o crime se apropriasse de extensos territórios urbanos, disseminando o medo, a insegurança e a consequente aceitação das formas mais brutais de reprimir a criminalidade. É o país da favela do Jacarezinho, que toma com naturalidade que suspeitos —até de delitos menores— sejam exterminados com autorização do governador do estado, aplausos de apresentadores de TV e apoio ostensivo do presidente e de seu vice.
É a nação onde as distâncias sociais são tão imensas que as próprias instituições que em outras paragens dão corpo à solidariedade social —previdência, serviços de saúde e transporte coletivo— reproduzem desigualdades e diferenças. Sem estruturas de solidariedade social, os mais bem aquinhoados e protegidos veem os que morrem na porta dos hospitais, quando os veem, como estatísticas, e os abatidos numa favela como suspeitos habitantes de outro planeta, onde a vida é sórdida, abrutalhada e breve.
O crescimento da extrema direita, na última década, com seus movimentos, redes, gurus e porta-vozes, é um lado da autobiografia recente desta nação. Bolsonaro apenas deu-lhe o que tem: uma cara cruel e primitiva.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.Postado por Gilvan Cavalcanti de Melo às 08:55:00 Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Fonte:
Folha de S. Paulo
Bruno Boghossian: Lula retoma territórios, e Bolsonaro se agarra a base mais restrita, aponta Datafolha
A fidelidade da base lulista e a hesitação do eleitorado que aderiu a Jair Bolsonaro (sem partido) em 2018 ajudam a explicar o descolamento entre os dois principais personagens da próxima corrida presidencial.
De volta ao jogo depois que o STF (Supremo Tribunal Federal) anulou condenações que o impediam de concorrer no ano que vem, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) retomou o controle de territórios tradicionalmente petistas, de acordo com números da primeira pesquisa do Datafolha para a disputa de 2022.
Uma fatia da vantagem que o ex-presidente abriu sobre seus adversários aparece principalmente no grupo mais pobre da população —o que sugere que bandeiras petistas como as plataformas de distribuição de renda e redução da pobreza ainda ressoam nesse eleitorado.
Os números indicam que essa faixa é uma trincheira inicial de Lula. Entre eleitores que ganham até dois salários mínimos, o petista aparece com 47% no primeiro turno. Nos demais grupos de renda, ele não passa de 34%. Também está ali sua menor rejeição: 29%, contra mais de 40% em outros segmentos de renda.
Num eventual segundo turno contra Bolsonaro, os mais pobres dariam ao petista uma vitória por 60% a 28%.
A margem de Lula nesse recorte é relevante, no ponto de partida, porque o segmento de baixa renda representa mais da metade do eleitorado brasileiro. Além disso, esses grupos foram alvos de investidas de Bolsonaro ao longo do último ano.
O pagamento das parcelas de R$ 600 do auxílio emergencial, até setembro de 2020, aproximou esse eleitorado da órbita do presidente. O segmento ajudou o governo, em certa medida, a manter sua aprovação estável na pandemia e após a crise com o ex-juiz Sergio Moro, quando Bolsonaro perdeu popularidade em grupos de renda mais alta.
Os índices apresentados pelo Datafolha apontam que o presidente se agarra, agora, a uma base mais restrita. Com uma nova rodada do auxílio em valores menores, Bolsonaro não conseguiu avançar entre os mais pobres. Do outro lado, ele tem seus maiores índices de rejeição em segmentos mais ricos e com escolaridade mais alta.
Embora o presidente tenha consolidado um eleitorado fiel, ele encontra esse obstáculo em sua corrida à reeleição. Brasileiros com ensino superior completo foram alguns dos primeiros grupos a impulsionar a candidatura de Bolsonaro em 2018, abrindo caminho para sua vitória.
Agora, parte deles rejeita o presidente e parece buscar uma alternativa. Nesse segmento, Lula aparece com 30%, contra 22% de Bolsonaro, enquanto outros 36% se dividem entre os candidatos que disputam o rótulo da terceira via: Ciro Gomes (11%), Sergio Moro (10%), João Amoêdo (6%), Luciano Huck, João Doria e Luiz Henrique Mandetta (3% cada).
Esse pelotão, no entanto, não ameaça a vaga de Bolsonaro no segundo turno ou a liderança de Lula em nenhum recorte da população com peso relevante na pesquisa. Pode ser um sinal de que o eleitorado que rejeita os dois principais concorrentes não é tão numeroso quanto gostariam os demais candidatos.
Caso o cenário se cristalize como uma disputa concentrada entre Lula e Bolsonaro, a corrida vai se desenhar ao longo do próximo ano a partir dos movimentos dos dois líderes para preservar redutos, ampliar seus domínios e estimular a rejeição ao adversário.
No numeroso segmento de baixa renda, o desempenho da economia e o uso da caneta presidencial podem mexer nas curvas de intenção de voto. Ainda que os petistas enxerguem um vínculo histórico com esse grupo, a experiência do auxílio emergencial mostrou que parte dos eleitores responde rapidamente a medidas que tenham efeito direto sobre seu bolso.
As discussões no governo sobre a ampliação de despesas, os benefícios prometidos pelo presidente a categorias como caminhoneiros e o enfraquecimento da agenda de cortes do ministro da Economia, Paulo Guedes, indicam que Bolsonaro tem disposição para tomar decisões com potencial eleitoral considerável.
Além disso, auxiliares do presidente esperam que sinais de recuperação econômica e avanços na vacinação, embora extremamente lentos, possam se consolidar até 2022 e ajudar a reduzir a rejeição ao governo pela condução da resposta à pandemia da Covid-19.
A esperança dos bolsonaristas é recuperar, assim, parte do eleitorado que esteve com o presidente em 2018 e que não votaria em Lula no ano que vem. O foco da campanha seria despertar novamente o antipetismo, principalmente em segmentos da classe média e em grupos mais ricos da população.
Na visão de aliados do Palácio do Planalto, se nenhum outro candidato se mostrar competitivo até os meses finais da campanha, parte desse eleitorado poderia se aproximar de Bolsonaro por gravidade para derrotar o PT.
Fonte:
Folha de S. Paulo