cpi da pandemia

Brigar com vice é mau negócio. O Brasil não precisa de mais esse rolo

Elio Gaspari /O Globo

Em apenas dois meses, Bolsonaro ameaçou não realizar eleições, insultou senadores da CPI, disse que faltou maconha nos protestos contra seu governo e queixou-se da Receita Federal por ter ido “com muita sede ao pote” num projeto que não é dela, mas do ministro da Economia do seu governo. É compreensível que uma pessoa capaz de acreditar que a cloroquina remedeia a Covid-19 e que as vacinas são experimentais acredite em bizarrices. Ex-aluno da Academia Militar das Agulhas Negras, somou -4 com +5, obteve um +9 e viu no desempenho econômico do seu governo “um milagre”: “É inacreditável”.

Atitudes inacreditáveis, porém pontuais, são uma coisa, mas presidente atacando seu vice publicamente é coisa perigosa, que, além de tudo, traz falta de sorte. Bolsonaro disse que seu vice, Hamilton Mourão, “por vezes atrapalha”. Comparou-o a um cunhado: “Você casa e tem de aturar (...), não pode mandar o cunhado embora”. Ao contrário do que acontece com seus cunhados, quem escolheu Mourão para vice foi ele. Aturá-lo faz parte da ordem constitucional.

Fernando Henrique Cardoso e Lula tiveram nos vices Marco Maciel e José Alencar colaboradores exemplares. Nos últimos 50 anos, dois presidentes encrencaram com seus vices: Dilma Rousseff e João Baptista Figueiredo. Ambos se deram mal. Ela foi retirada do cargo, e Michel Temer tomou-lhe o lugar. Figueiredo saiu do palácio por uma porta lateral, enquanto o vice Aureliano Chaves tomava posse no ministério escolhido por Tancredo Neves. Indo mais longe, Jânio Quadros não se dava com João Goulart e renunciou achando que ele não seria empossado. No mínimo, brigar com vice não dá sorte.

Mourão foi escolhido às pressas (o preferido era o príncipe Luiz Philippe de Orleans e Bragança ) e acreditou que teria uma função relevante no governo, talvez cuidando da infraestrutura. Esqueceu-se da lição de Stanislaw Ponte Preta, o inesquecível personagem do jornalista Sérgio Porto: “Vice acorda mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada”.

Mourão está acima da média da equipe de Bolsonaro e poderia ter ajudado em tarefas mais meritórias do que embarcar para Angola numa missão municipal. Ademais, ele só foi colocado na chapa porque traria consigo um apoio militar. Fosse qual fosse o tamanho desse apoio, também não dá sorte perdê-lo. Sobretudo numa fase durante a qual, para um militar, a associação com Bolsonaro pode trazer vantagens, mas cobra prestígio.

O pior que pode acontecer a um país com mais de 550 mil mortos numa pandemia e 14,7 milhões de vivos desempregados é ter um capitão na Presidência desentendido com um general na Vice. Mourão e Bolsonaro não conseguiram criar uma relação parecida com as dos dois presidentes da ditadura que tiveram vices militares. O almirante Rademaker (vice de Emílio Médici) e o general Adalberto Pereira dos Santos (vice de Ernesto Geisel) dormiam até tarde e foram felizes para sempre.

É sabido que o presidente e seu vice afastaram-se. Contudo uma separação pública de Bolsonaro e Mourão conduzirá inevitavelmente a um reflexo no meio militar. Quando esse veneno entra nos quartéis, a desintoxicação custa caro e demora anos para cicatrizar.


Democratas liberais, em quem votar em 2022?

Augusto de Franco / Democracia Política e novo Reformismo

Democratas liberais não esperam que as mudanças sejam feitas de cima para baixo a partir de um líder escolhido para chefiar o governo. A democracia liberal não é propriamente sobre governo e sim sobre controlar o governo a partir da auto-organização da sociedade.

Por isso, o que nós - os democratas liberais - desejamos é um chefe de governo que assegure um ambiente democrático para que a sociedade, diretamente e por meio de seus representantes eleitos, introduza inovações políticas que, salvaguardada a democracia que temos, permita a continuidade do processo de democratização para que alcancemos as democracias que queremos.

Dito isto, fica claro que a opção dos democratas para chefiar o governo não pode ser manter ou recolocar na presidência um populista, seja um populista-autoritário de extrema-direita (como Bolsonaro), seja um neopopulista de esquerda (como Lula). Líderes populistas, pela sua alta gravitatem, são espécies de buracos negros que introduzem perturbações no campo social, engolindo as energias da sociedade.

Pela sua própria natureza, caudilhos e condutores de rebanhos populistas, desarmam continuamente a sociedade democrática para que ela não possa cumprir o seu papel de controlar o governo e de realizar mudanças moleculares que permitam a continuidade do processo de democratização. Sua busca constante por hegemonia se contrapõe aos legítimos desejos de autonomia de pessoas e comunidades.

Também fica claro, por razões semelhantes, que não se pode entregar a chefia do governo a qualquer líder antipolítico, que pretenda implantar cruzadas de limpeza (como Moro). Nenhuma cruzada de limpeza - seja étnica, ética, religiosa ou nacional - resultou em mais democracia. Pelo contrário, essas iniciativas, em geral moralistas e punitivistas, em qualquer lugar do mundo ou época da história em que foram tentadas, constituíram-se como antessalas de governos mais autoritários.

Via de regra toda antipolítica de limpeza - como o restauracionismo robespierriano - exige a terra arrasada para começar de novo, separando os bons dos maus e com isso sacrificando as liberdades em nome da pureza ou da segurança.

Afastada essas três tentações messiânicas, qualquer candidato que não seja populista ou punitivista - que se comprometa a manter a democracia realmente existente, sem tentar enfrear a continuidade do processo de democratização - é bem-vindo.

Não é necessário que tal candidato seja um democrata radical (quer dizer, liberal - no sentido democrático original do termo). Pode ser um democrata eleitoral ou liberal formal que não queira dar um golpe de Estado (rápido, com tanques nas ruas, ou lento, por erosão da democracia).

Pode ser qualquer um que não queira transformar nossa democracia eleitoral em uma autocracia eleitoral ou mesmo paralisar o processo de democratização para que nossa democracia eleitoral não chegue a ser uma democracia liberal.

Pode ser qualquer um que não queira usar seu cargo para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado por um partido ou por algum movimento para se delongar no governo.

Pode ser qualquer um que não queira, a partir do Estado, educar a sociedade.

O melhor é que não seja alguém muito carismático, que ocupe excessivamente a cena pública com seu protagonismo, sufocando os demais atores e suas iniciativas.

O ideal é que seja alguém discreto, que cumpra suas funções constitucionais e que seja como aquele juiz que pouco aparece numa partida. Governos existem para servir a sociedade e não para tomar o seu lugar.

Sendo assim, não estaríamos mal-servidos com (em ordem alfabética) Amoedo, Doria, Eduardo Jorge, Huck, Leite, Maia, Mandetta, Marina, Meirelles, Roberto Freire, Rossi, Tasso, Tebet - entre outros. Ou até, como última alternativa, com Ciro (ainda que isso possa significar ter que assinar um contrato temporário com o século 20).

*Consultor, palestrante e escritor


O terrível cenário revelado pela CPI

Míriam Leitão / O Globo

A CPI encontrou rastros de movimentação financeira atípica no montante de R$ 50 milhões ao analisar os documentos resultantes das quebras de sigilo. São, segundo o senador Alessandro Vieira, transações entre empresas do empresário Francisco Maximiano, da Precisa, e com pessoas físicas. Segundo o senador, são “movimentações sem lastro na realidade, compatíveis com processos de lavagem de dinheiro”.

Vieira acha que não há como fugir da convocação do ministro Braga Netto. “Ele fazia parte da cadeia de comando”. O relatório final da Comissão pode ser enviado ao Tribunal Penal Internacional.

Eu entrevistei o senador Alessandro Vieira, membro suplente da CPI, e que está em vários grupos temáticos que têm trabalhado durante o recesso. A entrevista foi ao ar na Globonews, no meu programa de segunda, às 23h30. perguntei a ele sobre Airton Cascavel, o personagem cuja história foi contada no programa Conexão Globonews.

Airton Cascavel é uma figura meio estranha. Negociava com governadores de estado a compra de equipamento, liberava dinheiro público do combate à Covid, reuniu-se com parlamentares, trabalhou durante dois meses sendo apresentado como o principal assessor pelo próprio ministro Pazuello e nunca fez parte dos quadros do Ministério da Saúde. O senador admite que a CPI tem limitações e precisa evitar perder-se no cipoal que sempre se forma nos casos de corrupção.

— É um risco. A CPI não pode fazer busca e apreensão, interceptação telefônica ou negociar delação premiada. Isso tudo dificulta investigação de maior complexidade. Por outro lado, o foco da comissão é investigar as ações e omissões do governo federal na pandemia. Os erros e as protelações na compra de vacinas e insumos, e a falta de uma campanha de comunicação provocaram centenas de milhares de mortes e isso está provado e documentado. Quando a gente investiga a corrupção é para saber as motivações para os erros. Dois grupos, um de militares da reserva e outro vinculado ao centrão, brigaram nas entranhas do Ministério da Saúde buscando vantagens financeiras. É nessa etapa que a CPI se encontra, mas ela não pode perder o foco, que são as vidas que nós perdemos.

A CPI formou um grupo de juristas que vai preparar um estudo para “dar um encaixe dos fatos e a tipificação penal”, segundo o senador. O professor Miguel Reali chefia o grupo de juristas. Perguntei ao senador o que será feito com o relatório quando ficar pronto:

— Os crimes de responsabilidade devem ser encaminhados à Câmara, os crimes comuns à Procuradoria Geral da República e, eventualmente, os fatos podem ser levados ao Tribunal Penal Internacional, para avaliar o cometimento de crime contra a humanidade. É muito grave o que aconteceu no Brasil e o que ainda acontece, nessa gestão totalmente descolada daquilo que a Constituição exige, que é o respeito à vida.

O senador lembrou que existe uma cadeia de comando clara, que vai do ex-secretário executivo do Ministério da Saúde coronel Élcio Franco, o general Pazuello, e ministros Braga Netto e Ramos e o próprio presidente da República.

— Não dá para fugir (na hora da responsabilização) da cadeia de comando. Alguns temem fazer a convocação do ministro Braga Netto por conta da posição que ele ocupa agora como ministro da Defesa. Mas ele fazia parte da coordenação da resposta brasileira à pandemia e o resultado foi desastroso. A gente precisa ouvir essas pessoas e, se for o caso, responsabilizá-las sem nenhum tipo de preocupação com a questão de farda. No Brasil, ainda se tem muito medo dos generais, mas quando ele ocupa um cargo civil eu não posso dar um tratamento diferenciado.

Sobre o presidente, o senador disse que ele “testa os limites da democracia”, e o país não pode esperar “até outubro de 2022 para saber se vai ter golpe ou não”. Por isso ele entrou com uma interpelação judicial de Bolsonaro junto ao Supremo para que ele diga que provas tem de fraude eleitoral.

— O ataque diário é preparação para um auto golpe. Ele mente com foco, com organização. Usa a mentira como método. E tem objetivos. O principal é atacar a democracia. Não dá para tolerar dois anos de mentiras e ataques ao sistema de eleição.

Segundo Alessandro Vieira, a CPI revelou que no Ministério da Saúde atuavam o centrão e o “centrão de fardas”.


Lula joga parado e Bolsonaro erra o passe

Enquanto petista administra placar, presidente faz faltas em si mesmo

Andrea Jubé, do Valor Econômico

No futebol, “o craque é decisivo”, escreveu Nelson Rodrigues. O time é indispensável, mas o que leva público ao estádio e faz bilheteria é o craque. “No time de Pelé, só ele existe, o resto é paisagem”, sentenciou.

Parafraseando o cronista, na política nacional, até agora, dois políticos dominam a bola: os veteranos Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro.

Faltam 15 meses para as eleições, a política é como nuvem e tudo pode mudar. Mas na partida de hoje, a terceira via é paisagem.

A frase de Nelson Rodrigues sobre a importância do craque aparece em uma crônica de 1966, na célebre coluna “À sombra das chuteiras imortais”, na qual ele repercutiu uma entrevista do técnico alvinegro Admildo Chirol, crítico das “estrelas solitárias do futebol”. Para Chirol, o “personalismo” era inconcebível no futebol, que deveria ser marcado pelo “coletivismo”.

Rebatendo Chirol, o cronista ponderou que, historicamente, o coletivo não empolga as multidões. “Ninguém admite uma fé sem Cristo, ou Buda, ou Alá, ou Maomé. Ou uma devoção sem o santo respectivo. Ou um exército sem napoleões... No futebol, a própria bola parece reconhecer Pelé ou Garrincha e só falta lamber-lhes os pés”, argumentou Nelson Rodrigues. Para o autor, o torcedor - e quiçá, o eleitor - exige o “mistério das grandes individualidades”.

A premissa rodriguiana vale para a política nacional, historicamente marcada pelo culto a personalidades, como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, que nem chegou a tomar posse, mas entrou para o imaginário afetivo do eleitor. Lula e Bolsonaro despontam como os craques contemporâneos da política nacional, já que, segundo vários institutos de pesquisas, detêm a maioria expressiva das intenções de votos para a disputa presidencial.

Ainda na esteira da tese da individualidade dos craques, é sintomático que o presidente da República, que quer a reeleição, nem esteja filiado a um partido há meses, desde o rompimento com o PSL. Seu partido é o “bolsonarismo”, que se contrapõe ao “lulismo”.

Desde que a pré-campanha esquentou, com Lula em ascensão nas pesquisas e a terceira via ainda fazendo água, petistas e aliados se dividem sobre a estratégia de jogo. A leitura predominante é de que Lula está jogando parado, enquanto Bolsonaro comete faltas em si mesmo.

O presidente persiste no erro na condução da pandemia, ao insistir no negacionismo das máscaras e na recomendação de medicamentos sem eficácia contra a covid-19. Bolsonaro chuta as próprias canelas ao proferir ataques quase diários a autoridades dos demais Poderes e às instituições, como a Justiça Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal.

Há cerca de 15 dias, Lula ouviu de um interlocutor que para chegar à eleição na liderança das pesquisas, deveria simplesmente fazer o que já está fazendo: jogar parado.

“Eu disse a ele: o cavalinho está se aproximando arreado, devagarinho, e vai passar na sua porta, pronto para o senhor montar”, relatou à coluna este interlocutor de Lula. “Não faça nada”, recomendou.

A exemplo de um meio-de-campo experiente, Lula administra a vantagem de até 20 pontos, em alguns cenários de segundo turno, sobre Bolsonaro. Cadencia o jogo. Não aceita provocações dos adversários, evita as bolas divididas e não parte desesperado para o ataque, para não sofrer um contra-ataque fatal aos 45 do segundo tempo.

É um estilo de jogo que nem sempre enche os olhos da torcida, mas que tem se mostrado eficiente para prolongar o placar elástico sobre Bolsonaro. Lula joga parado, como se dissesse, fiel à velha máxima futebolística: “quem corre é a bola” (ou os adversários, no caso).

O estilo cauteloso vai se repetir na viagem ao Nordeste, remarcada para a primeira quinzena de agosto. Lula visitará seis Estados: Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão. Fará poucas agendas, fechadas, ou restritas a um público pequeno, no protocolo da pandemia. Além de se reunir com lideranças locais, estão previstos compromissos pontuais, como visitas a escolas, ou alguma obra relevante, que seja cartão-postal do governador aliado.

Há no PT, entretanto, quem discorde desse modelo de jogo e cobre mais movimentos de Lula. “Quem joga parado, no futebol, precisa distribuir o jogo. Ou seja, colocar o time em movimento para chegar ao gol”, argumenta um decano do PT.

Para este petista, “é tempo de organizar a equipe, definir as posições de cada um e partir para o ataque”. Alerta para o risco de se restringirem à “visão romântica do diálogo”, prática de eleições passadas, num cenário de vale-tudo eleitoral.

Este petista acredita que o momento urge porque “o adversário, temporariamente enfraquecido, tenta reorganizar-se e alterar a tática”. De fato, Bolsonaro num momento de derretimento nas pesquisas, reorganizou o time e deve colocar o seu camisa 10, o senador Ciro Nogueira (Progressistas-PI), na Casa Civil.

O vice-presidente nacional do PT e um dos organizadores da viagem de Lula ao Nordeste, deputado José Guimarães (CE), reclamou dos “intérpretes do pensamento alheio” dentro do partido e afirmou à coluna que o ritmo de Lula nessa etapa de pré-campanha está calibrado.

“Lula não está discutindo eleição, está preocupado com os problemas do país”, afirmou o dirigente petista. Segundo Guimarães, nas reuniões que fará durante a viagem pelos seis Estados nordestinos, Lula quer retomar a agenda de desenvolvimento regional, discutir a fome que voltou a se alastrar e denunciar a escassez de vacinas contra a covid-19, cujo estoque esgotou-se em várias capitais.

Para Guimarães, a metáfora que se aplica ao jogo eleitoral não é futebolística, é musical. “O ritmo do Lula é a pisadinha democrática, com diálogo e mantendo a liderança da frente ampla contra Bolsonaro”.

“Pisadinha” é o novo forró, o ritmo mais popular, que arrebatou o nordestino nos últimos tempos. Dança ou futebol, a verdade é que a metáfora não importa. Porque jogador que é bom de drible, faz o rival dançar em campo.


O governo abre a porta para quem quiser surfar na onda do Centrão

Cargos, dinheiro para obras em redutos eleitorais e outras vantagens inconfessáveis. É pegar ou largar

Blog do Noblat / Metrópoles

Quer só ter uma ideia do que será a ocupação do governo pelo Centrão desde que o presidente Jair Bolsonaro decidiu entregar a chefia da Casa Civil ao senador Ciro Nogueira (PP-PI)?

Só no recriado Ministério do Trabalho, agora com o nome de Ministério do Emprego e Previdência, o ministro Onyx Lorenzoni (DEM-RS) terá 202 cargos a preencher com indicações políticas.

Indicação política é aquela feita em nome de um partido que apoia o governo. Ou feita por um deputado, senador ou governador que apoia o governo ou que mediante isso se propõe a apoiar.

Há indicações cruzadas. O atual ministro da Cidadania, João Roma, é do PL, mas foi ACM Neto, presidente do DEM, quem o indicou. ACM nega que apoie o governo.

O DEM tem seus próprios ministros no governo, como Teresa Cristina na Agricultura, mas quando cobrado, responde que foram escolhas pessoais de Bolsonaro. Assim procedem outros partidos.

Fábio Faria, ministro das Comunicações, é do PSD, presidido por Gilberto Kassab, ex-prefeito de São Paulo. O PSD terá candidato próprio à sucessão de Bolsonaro ou então apoiará Lula.

O MDB já teve um ministro. Parte de sua bancada na Câmara quer aproveitar a chegada de Nogueira (foto em destaque) ao governo para indicar outro. A direção nacional ameaça expulsar quem aceite o convite.

Ide a Bolsonaro, o Messias, todos que precisem de acolhimento e de ter seus desejos saciados. O orçamento secreto serve para isso.


Cerco a Conrado Hübner Mendes

A truculência é coordenada e tem o propósito de intimidação e censura

Cristina Serra, Folha de S. Paulo

Às vésperas da Páscoa, o vírus se espalhava com fúria entre nós. Março havia fechado com 320 mil brasileiros mortos, quase 4.000 por dia. E o que fez o ministro do Supremo Tribunal Federal Kássio Nunes Marques? No Sábado de Aleluia, atendeu pedido de uma associação de juristas evangélicos e liberou a presença dos fieis em templos. Dias depois, o plenário derrubou a liminar.

Na época, a decisão do ministro foi criticada em artigo de Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da Universidade de São Paulo (USP) e colunista desta Folha. Hübner Mendes tem sido observador atento de desvios e falhas do Judiciário, em especial do STF, prestando serviço inestimável aos leitores, ajudando-nos a entender o funcionamento do mais opaco dos Poderes.

Sabe-se agora que Sua Excelência não gostou do texto e pediu investigação criminal ao procurador-geral da República, Augusto Aras, que já persegue Hübner Mendes por contrariedade com outras publicações do colunista, inclusive postagens em rede social. Aras entrou com uma ação na Justiça Federal e com representação no Conselho de Ética da USP. A truculência é coordenada e tem o propósito de intimidação e censura.

Autoridades deveriam entender que a submissão ao escrutínio público é inseparável do exercício do poder. Não é o caso, obviamente, do ministro e do procurador-geral, que agem como instrumentos do bolsonarismo. Ambos desconhecem —ou fingem desconhecer— que a liberdade de expressão é direito consagrado na Constituição e reafirmado pelo Supremo.

O cerco a Conrado Hübner Mendes fere também a autonomia universitária. A representação contra ele está parada no âmbito da Reitoria da USP. Investidas autoritárias têm que ser enfrentadas sem medo e hesitação. O corpo docente precisa ter a certeza de que a universidade está do seu lado contra qualquer tentativa de silenciamento.


Governo militar do Centrão

Carlos Andreazza, O Globo

Braga Netto, ministro da Defesa (e um dos grandes salários de Brasília), mandou avisar que, sem o “voto eletrônico auditável”, não haverá eleições em 2022. O recado destinara-se ao presidente da Câmara. Assim informou o Estadão; que também descreveu a forma como Arthur Lira recebera a mensagem: movimento grave, em função do qual procurou Bolsonaro para lhe dizer que iria até o fim com o presidente, mesmo que para perder a eleição, mas que não contasse com ele para qualquer ato de ruptura institucional.

A leitura do episódio propõe fotografia fácil: o presidente da Câmara impondo limites ao general golpista. (Voltaremos a isso.)

As reações à publicação da notícia a confirmaram. Lira, que em off negava a ameaça, publicamente ensaboava-se de nem-nem para declarar que, independentemente de qualquer intimidação, votaremos no ano que vem — um velho expediente de quem não quer ser desmentido. A foto estava boa para o deputado. A nota de Braga Netto a nos comunicar que ele, assumindo-se como agente político, move-se de maneira ainda mais ostensiva, que não precisa de intermediários para falar a outros Poderes e que é isto mesmo, asseverado por escrito: à vontade para disparar manifestos políticos e fazer carga sobre o Parlamento, com o peso de quem controla o paiol, por uma pauta — do populismo autoritário bolsonarista — que atribui ao governo federal e que, não havendo mais fronteiras entre Planalto e instituições impessoais de Estado, estende às Forças Armadas. Uma demonstração de musculatura. Estava bom para o general.

Braga Netto é o panfleto circunstancial a defender uma compreensão viciada que circula desde o tuíte em que o general Villas Bôas advertiu o Supremo (à véspera de o tribunal deliberar sobre habeas corpus de Lula, em 2018), que contaminou o Exército e que avança por Aeronáutica e Marinha: que as Armas, autorizadas por leitura doente da Constituição, comporiam espécie enviesada de poder moderador — a serviço de Bolsonaro para tutelar Legislativo e Judiciário.

O subserviente Braga Netto expressa o comando golpista do presidente. Bolsonaro não manda recado por terceiros e está diariamente dizendo, a quem quiser ouvir, que, sem a contagem de votos como deseja, não haverá eleições. (Como é intelectualmente desonesto e depende do conspiracionismo para existir, o bolsonarismo acusará fraude de qualquer maneira, com ou sem voto impresso.) Nada pode ser mais grave; o general sendo somente mais um estafeta muito bem aquinhoado para dispor as Forças Armadas aos interesses autoritários do mito.

Voltemos a Arthur Lira. Saiu bem na fotografia do episódio. Como democrata, garantidor da República contra a ameaça de golpe. Contra a ameaça de um golpe que é a mais perfeita impossibilidade. Lira reagindo a um golpismo do século XX, com tanques na rua para desfechar a tal ruptura — o que, por absoluta falta de meios, não haverá. Lira reagindo, pois, a um inimigo artificial, a um espantalho, fantasia que talvez ele próprio tenha criado, enquanto se cala — mui bem acolhido pelo golpista — ante os modos do verdadeiro ataque de Bolsonaro, aquele executado progressivamente, num investimento constante para minar, por dentro, o equilíbrio institucional, para esgarçar o tecido social, para destroçar a guarda constitucional, para enfraquecer a confiança no sistema eleitoral, para dilapidar, carcomendo os fundamentos, a democracia representativa e, mais amplamente, a democracia liberal; para o que colabora o presidente da Câmara, passador agressivo de boiada, atropelador dos instrumentos de defesa regimental das minorias legislativas.

Golpe, aquele (impossível) com ruptura institucional modelo 1964, é ruim para os negócios. Lira não aceita. Mas não só compõe com o populismo autoritário, esse (real) que golpeia por desgaste, sem tirar-lhe a fartura das tetas do Estado, como é sócio do governo militar de Bolsonaro. Não apenas alguém que mama, mas que controla o destino e o ritmo da ordenha. Governo militar do Centrão. Ou, como preferiria o professor Wilson Gomes, já que Centrão seria figura amorfa que não se poderá punir nas urnas: governo militar do Progressistas, com Ciro Nogueira, com general Heleno, com tudo. Sócios.

Prudência, portanto, antes de olhar para arranjo eventual do governo e logo supor que os militares perdem espaço para Lira e turma. São sócios. E só reforçam a sociedade. O governo é militar; e são os militares, os generais ramos e outros com teto duplex para remuneração, os primeiros a compreender a importância do orçamento secreto e da necessidade objetiva de ter a operação de um profissional tocada desde o Planalto. Os generais investiram as próprias Forças Armadas no sucesso do governo. Precisam da reeleição em 2022.

Nada mais representativo deste momento decisivo do que o presidente falando — ocorrência raríssima — a verdade. Sim, o capitão é — sempre foi — do Centrão. Um militar condicionado pela cultura do Progressistas. Mas não da gema do Centrão. Bolsonaro é das bordas, catador de migalhas, de rachadinhas. Um marginal do Centrão. Do Centrão ressentido. Assentado — imaginemos uma daquelas pizzas gordurosas que levam recheio na borda — dentro da casca, aboletado no catupiry da extremidade, condição ideal para que constituísse bem-sucedida empresa familiar. Nunca esteve sozinho.

Se gritar “pega Centrão”, Ricardo Barros corre com Pazuello (e Elcio Franco) no colo.


Radiografia das ‘lives’ e discursos de Bolsonaro mostra escalada de autoritarismo e desinformação

Análise do vocabulário do presidente feita pela Lagom Data para o EL PAÍS expõe aumento de falas contra o sistema eleitoral, maior simbiose com Exército e informações erradas sobre vacinas. YouTube retirou do ar vídeos do presidente com dados médicos incorretos

Marcelo Soares, El País

No primeiro semestre de 2021 Jair Bolsonaro subiu o tom de suas falas, intensificando a frequência a referências autoritárias. A 14 meses das eleições presidenciais, reforçou a campanha de desconfiança sobre o sistema eleitoral brasileiro. Passou também a usar com mais frequência em suas lives no YouTube expressões como “meu Exército” e “minhas Forças Armadas”, em que evoca simbiose com os militares e se apropria para uso pessoal da atribuição constitucional de que foi incumbido. E se finalmente o Governo Bolsonaro abraçou a campanha de vacinação contra a covid-19, nas transmissões nas redes sociais o presidente seguiu difundindo informações errôneas sobre a doença. É o que aponta uma análise dos padrões de falas e discursos do presidente, feita com exclusividade para o EL PAÍS pelo estúdio de inteligência de dados Lagom Data. É esse discurso que molda as decisões políticas e sanitárias do Governo, ainda que as ideias afrontem a democracia e a ciência.

Vários dos vídeos em que Bolsonaro espalha desinformação sobre a covid-19 foram tirados do ar pelo YouTube na última quarta (21), numa decisão inédita. “Nossas regras não permitem conteúdo que afirma que hidroxicloroquina e/ou ivermectina são eficazes para tratar ou prevenir a covid-19, garante que há uma cura para a doença; ou assegura que as máscaras não funcionam para evitar a propagação do vírus”, explicou o canal. O vocabulário desses vídeos entrou na análise antes que ela saísse do ar. As regras do YouTube batem em cheio sobre o conteúdo produzido pelo presidente, arma poderosa para amalgamar o apoio de seus eleitores, que multiplicam quase instantaneamente as informações divulgadas por Bolsonaro.


MAIS INFORMAÇÕES


Para a análise, o Lagom Data coletou a íntegra do texto dos 406 discursos de Bolsonaro disponíveis no site oficial do Planalto, além das legendas automáticas de 89 das 110 lives do presidente, entre sua vitória eleitoral, em 2018, e o final do primeiro semestre de 2021. Destas, ao menos 10 lives parecem ter sido removidas pelo YouTube, em uma nova análise feita nesta quarta pelo estúdio de inteligência de dados. Ao todo, 14 vídeos ao vivo foram retirados do canal do presidente.

“Se eu levantar minha caneta Bic e falar ‘Shazam’, eu vou ser ditador. Vou ficar sozinho nessa briga? O meu exército que tenho falado o tempo todo é o povo. Sempre digo que eu devo lealdade absoluta ao povo brasileiro, e esse povo está em toda sociedade, inclusive o Exército fardado”, disse na transmissão ao vivo do YouTube em 11 de março de 2021. Em 20 de maio, o presidente utilizou a expressão novamente para criticar as medidas de isolamento impostas pelos Governos locais por conta da pandemia. “Eu já falei várias vezes que o meu exército jamais irá às ruas para manter o povo dentro de casa, como as forças policiais de alguns governadores”.

Quando menciona a caserna, Bolsonaro gosta de fazer reminiscências do seu passado militar (ele foi capitão do Exército), afirmações grandiloquentes sobre sacrificar a própria vida e soberania do povo e elocubrar sobre “o inimigo”, uma referência velada ao combate ao “comunismo” muitas vezes tratado como sinônimo de esquerdismo ou petismo. Presidente que mais empregou militares na administração pública desde o fim da ditadura, Bolsonaro, desde a posse, já falou em 31 formaturas de academias militares e policiais ―23 das Forças Armadas, 8 de polícias militares, uma frequência de participação que não era comum a outros presidentes.



“Quando estava no Exército, Bolsonaro era um estorvo que foi afastado por motivos políticos em 1988. Em 2014, 2015, ele foi transformado num mito. No poder, virou um cavalo de troia, para que esse grupo ocupasse os espaços de poder. Cabeça, tronco, membros, entranhas e alma do Governo”, afirmou ao repórter Afonso Beniteso coronel da reserva do Exército Marcelo Pimentel, que enxerga no comando do país um “Partido Militar”.

Caos nas eleições e vacinas
Em março de 2020, um ano e cinco meses após ser declarado vencedor da eleição presidencial, Bolsonaro prometeu em Miami apresentar supostas evidências de que, devido a uma fraude, não conseguiu vencer no primeiro turno as eleições de 2018. Desde então, tem se esquivado de apresentar essas tais provas às autoridades competentes, o que não o impede de voltar a fazer as mesmas acusações.

A análise do seu vocabulário mostra que as eleições de 2022 têm presença constante no seu discurso desde os primeiros meses do seu mandato. Essas menções vêm se avolumando desde outubro de 2020, e cresceram no primeiro semestre de 2021. Desde janeiro, as expressões “voto impresso” e “voto auditável” também aparecem com mais frequência na fala do presidente. Nas lives, elas já apareceram 27 vezes. Em discursos, 16.

Na live de 25 de junho, o alvo foi a campanha contra o sistema eleitoral: “Ministro [Edson] Fachin, o mesmo que proibiu policiais militares do Rio de Janeiro de entrar na comunidade atrás de vagabundo, o mesmo que proibiu que helicópteros façam operações dentro de comunidades, agora disse que quem luta pelo voto auditável comete um ato de violência contra a Constituição. Dá para entender? Dando palpite. Palpiteiro!”, disse Bolsonaro.



Se nos discursos, geralmente em ocasiões solenes, o presidente usa um vocabulário mais comedido e muitos cumprimentos, é nas lives, destinadas a sua base mais fiel e radicalizadaque ele afrouxa a gravata e faz a maior parte das menções distópicas. Em média, Bolsonaro fala durante 49 minutos em suas transmissões ao vivo semanais. Seus discursos, por sua vez, tendem a ser mais curtos. A live mais longa, de 1º de julho deste ano, teve quase uma hora e cinco minutos. Com isso, o conjunto completo de falas analisadas forma uma massa de vocabulário mais extensa do que a Bíblia: são 871.412 palavras ―sites religiosos estimam que o texto completo da Bíblia tenha até 810.000 palavras, dependendo da tradução.

Essas diferenças entre discurso formal e o feito sob medida para mobilizar para seus seguidores também fica claro no manejo discursivo da pandemia de covid-19. No segundo semestre de 2020, a bala de prata favorita de Bolsonaro para enfrentar a covid-19 era a cloroquina, ou hidroxicloroquina, remédios prescritos para malária que o Governo transformou em política de Estado pela qual agora nenhum ministério se responsabiliza, como mostrou o EL PAÍS.

As menções ao fármaco se reduziram a quase nada no final do ano, quando a busca pelas vacinas se tornou o principal assunto do Brasil. As citações ao remédio voltaram, agora de maneira defensiva, após a abertura da CPI da Pandemia, no final de abril. Neste mês, o órgão técnico que assessora o Ministério da Saúde finalmente enviou documento à CPI no qual afirma que os remédios do chamado “kit covid” promovido pelo Planalto, mas também por clínicas privadas, não têm qualquer efeito para mitigar a covid-19. E e o YouTube tomou sua primeira reação oficial contra esses vídeos, o que pode culminar com a suspensão do próprio canal pessoal do presidente.

As falas de Bolsonaro sobre a vacina neste ano flertam com contradições o tempo inteiro: numa mesma live, ele pode questionar a eficácia e a segurança das vacinas num momento para, minutos depois, afirmar que por virtude sua o Brasil é um dos países que mais vacinam no mundo. Na live de 24 de dezembro, por exemplo, ele disse que a eficácia da Coronavac ―de tecnologia chinesa e fabricada ao Brasil pelo Instituto Butantan por iniciativa do Governo de São Paulo― seria “lá embaixo”.

Mesmo depois de fazer um discurso em cadeia de rádio e TV em março defendendo a imunização, Bolsonaro segue sabotando a campanha pela vacina com informações equivocadas, como a de quem já teve covid-19 não precisa se vacinar: “Todos que contraíram o vírus estão vacinados, até de forma mais eficaz que a própria vacina porque você pegou o vírus para valer. Então, quem contraiu o vírus, não se discute, esse está imunizado”, afirmou Bolsonaro em live em 17 de junho.



Antes da iniciativa desta semana do YouTube, outras dez lives já haviam sido retiradas do ar, especialmente quando afirmações feitas por Bolsonaro tiveram consequências jurídicas. É o caso do vídeo de 14 de janeiro, dia em que faltou oxigênio em Manaus ―mais de 30 pessoas morreram na capital amazonense em dois dias de falta de oxigênio. Ao lado do então ministro Eduardo Pazuello, foram feitas oito afirmações checadas pela Agência Lupa. O presidente louvou, mais uma vez, os medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença e o ex-ministro disse não saber se o distanciamento social funciona. Também desapareceu a live de 26 de março de 2020, logo no início da pandemia, quando ele dizia que a covid-19 não seria problema porque brasileiro mergulha no esgoto e não acontece nada.

Limitação de dados e transparência
Além dos vídeos retirados do ar, há uma limitação importante nos dados das lives, o que remete a mais uma questão de falta de transparência do Governo Bolsonaro. Se os discursos oficiais são transcritos rotineiramente pelo cerimonial da Presidência e publicados no site oficial do Planalto desde o Governo Fernando Henrique Cardoso, as transmissões em rede social, embora contem com infraestrutura oficial, são tidas iniciativa pessoal do presidente. Algumas chegaram a ter meio milhão de espectadores. De todo modo, como estão publicadas no YouTube, foi possível extrair a transcrição automática da maioria delas.

Para análise, essas transcrições foram mantidas como vieram, sem revisão. O algoritmo de reconhecimento de voz depende da clareza da dicção, o que não é uma marca constante das falas de Bolsonaro. Com isso, é possível que algumas menções a palavras de interesse possam ter ficado para trás porque o presidente gaguejou ou embaralhou sílabas. Palavras pouco comuns também podem ser transcritas com erro. É o caso do ministro Edson Fachin, do STF, cujo sobrenome a transcrição automática do YouTube compreende como “Faquinha”. Também não é possível automaticamente separar o que Bolsonaro diz do que seus convidados falam ―por isso, não foram analisadas palavras como “presidente”, que podem indicar uma saudação do interlocutor.

Outras transmissões ao vivo estão sem a legenda gerada pelo computador. Todas as lives de dezembro de 2020 estão nessa situação. Uma consulta ao noticiário sobre as lives do período mostra que foram nessas transmissões que Bolsonaro mais fez senões às vacinas contra a covid-19. O período coletado tampouco abrange as revelações que surgiram em julho na CPI da Pandemia sobre os negócios suspeitos que teriam sido endossados por autoridades do Ministério da Saúde para comprar vacinas tendo empresas improvisadas como atravessadoras.

“Parte da imprensa”
É nas lives, de longe, que Bolsonaro faz a maior parte dos seus ataques à imprensa. Menções genéricas às palavras “imprensa” e “mídia” se avolumam ao sabor das críticas recebidas pelo presidente, e tiveram seu ápice em junho de 2020. Foi naquele mês, logo após a entrada de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, que o Governo tomou medidas para tentar ocultar dados de mortes causadas pela covid-19.



Desde meados de maio, a divulgação dos dados atrasava um pouco mais a cada dia, até que, questionado por jornalistas, Bolsonaro estourou: “Acabou matéria do Jornal Nacional”. Os dados eram propositalmente atrasados para que não fossem mostrados em horário nobre. Naquele dia, o Jornal Nacional entrou com boletim urgente na TV assim que os dados foram anunciados. Na semana seguinte,numa decisão que teve a participação do empresário Carlos Wizard, aliado de Bolsonaro e agora alvo da CPI da Pandemia, o Ministério da Saúde deixou temporariamente de publicar os dados diários sobre a covid-19 até que o Supremo Tribunal Federal ordenou que voltasse a publicá-los.

As menções à imprensa também se avolumam ao longo do primeiro semestre deste ano. As palavras Folha e Globo, nomes de duas das maiores empresas de comunicação do Brasil, foram mais citadas neste semestre do que em todo o segundo semestre de 2020. Em 2020, tem destaque o uso da expressão fake news por parte do presidente, tanto para defender a si e a aliados de processos por atos democráticos e desinformação quanto para acusar empresas de comunicação de mentir.

Em diagrama que mostra a estrutura do discurso, chamada de árvores de palavras, é possível ver estatisticamente a frequência com que outras palavras acompanham os termos de interesse na fala de Bolsonaro, em lives e em discursos. É mais fácil ele fazer referências à “grande mídia” e “parte da imprensa” em lives do que em situações formais, por exemplo.


Do direito inalienável de derrubar estátuas

Um bandeirante é, acima de tudo, um predador. Celebrá-lo é afirmar um “desenvolvimento” de um país composto por uma nata encastelada em condomínios e uma grande massa que ainda hoje é caçada

Vladimir Safatle / El País

“Quem controla o passado, controla o futuro”. Essa frase de 1984, de George Orwell, é uma das mais importantes lições a respeito do que é efetivamente uma ação política. Toda ação política real conhece a importância de compreender o passado como um campo de batalhas. Ela compreende que o passado é algo que nunca passa por completo. A definição mais correta seria: o passado não é o que passa. O passado é o que se repete, o que se transfigura de múltiplas formas, o que retorna de maneira reiterada. O passado é o que faz CEOs falarem, em 2021, como senhores de escravos do século XIX, que faz transgêneros atualmente em luta falarem como pessoas escravizadas em luta séculos passados. Nosso tempo é espesso. Nas camadas dessa espessura convivem mortos e vivos, espectros, limiares e carne. Só mesmo uma noção pontilhista e equivocada de instante pode reduzir o presente ao “agora”. O “agora” é apenas uma forma, politicamente interessada, de bloqueio do presente. Pois quem luta pela liberação do passado, luta pela modificação do horizonte de possibilidades do presente e do futuro.


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Seria útil lembrar disso no Brasil, ou seja, nesse país que se especializou em procurar não falar de seu passado devido a uma certa crença mágica de que, se não falarmos dele, o passado irá embora e nunca mais voltará. Os apóstolos do esquecimento deveriam lembrar que foi assim que criamos o país da compulsão contínua de repetição. País que se acostumou a ver militares agindo como se estivessem em 1964, no qual uma política catastrófica de anistia permitiu que as Forças Armadas preservassem seus responsáveis por crimes contra a humanidade até que eles voltassem a ameaçar a sociedade. O esquecimento é uma forma de governo. A tentativa de exilar os sujeitos no presente puro é o seu braço armado mais forte. Deveríamos partir daí se quiséssemos efetivamente entender o que é o o Brasil.

Dito isto, não é motivo de espanto ver alguns a criticarem uma das mais importantes ações políticas desse últimos meses, a saber, a queima da estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo. Quem acha que isso é apenas um ato “simbólico” deveria pensar melhor a respeito do que compreende por símbolo e como são eles que, muitas vezes, impulsionam as lutas mais decisivas e as transformações mais impressionantes. Quando caiu, a Bastilha não era mais que um símbolo. Mas foi a queda do símbolo, foi um ato simbólico por excelência, que abriu toda uma época histórica. A modificação na estrutura simbólica é modificação nas condições de possibilidade de toda uma era histórica. Aqueles que fazem profissão de fé de “realismo político”, de “materialismo”, talvez estejam a esconder certo receio de que estruturas simbólicas fundamentais desçam as ruas e sejam queimadas.

Pois uma estátua não é apenas um documento histórico. Ela é sobretudo um dispositivo de celebração. Como celebração, ela naturaliza dinâmicas sociais, ela diz: “assim foi e assim deveria ter sido”. Um bandeirante com um trabuco na mão e olhar para frente é a celebração do “desbravamento” de “nossas matas”. Desbravamento esse que não é abertura de nada, mas simples apagamento de violências reais e simbólicas que não terminaram até hoje. Pois poderíamos começar por se perguntar: contra quem essa arma está apontada? Contra um “invasor estrangeiro”? Contra um tirano que procurava impor seu jugo ao povo? Ou contra aquelas populações que foram submetidas à escravidão, ao extermínio e ao roubo? Um bandeirante era um caçador de homens e mulheres, ou seja, a encarnação mais brutal de uma forma de poder soberano ligado à proteção de alguns e à predação de muitos. Um bandeirante é, acima de tudo, um predador. Celebrá-lo é afirmar um “desenvolvimento” que, necessariamente, realiza-se em um país composto por uma nata de rentistas encastelados em condomínios fechados e uma grande massa que ainda hoje é caçada, que desaparece sem rasto nem traço.

Destruir tais estátuas, renomear rodovias, parar de celebrar figuras históricas que representam apenas a violência brutal da colonização contra ameríndios e pretos escravizados é o primeiro gesto de construção de um país que não aceitará mais ser espaço gerido por um Estado predador que, quando não tem o trabuco na mão, tem o caveirão na favela, tem o incêndio na floresta, tem a milícia. Enquanto estas estátuas estiverem sendo celebradas, enquanto nossas ruas tiverem esses nomes, esse país nunca existirá. Quem faz o papel de carpideira de estátua acaba se tornando cúmplice dessa perpetuação. Só sua derrubada interrompe esse tempo. Essa ação é, acima de tudo, uma autodefesa.

Quando a ditadura militar criou o mais vil aparato de crimes contra a humanidade, dispositivo de tortura de Estado e assassinato financiado com dinheiro do empresariado paulista, não por acaso seu nome foi: Operação Bandeirante. Sim, a história é implacável. Como disse no início, o passado é o que não cessa de retornar. Borba Gato estava lá, nas câmaras de tortura do DOI-Codi, encarnado, por exemplo, em Henning Albert Boilesen: empresário dinamarquês presidente da Ultragaz e fundador do CIEE, que se deleitava em inventar máquinas de torturas (a pianola Boilesen) e assistir a torturas e assassinatos. Por isso, quando as estátuas começarem a cair, é porque estamos no caminho certo.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.


Política de renda básica continua sendo emergencial, diz Débora Freire

Segundo a economista, programas sociais de renda básica "serão muito necessários pós-Covid" e precisam ser elaborados tendo em vista o enfrentamento das desigualdades sociais e a recuperação econômica

IHU Online

A experiência do Auxílio Emergencial concedido no ano passado, que repassou parcelas de até 1.200 reais para os beneficiários, indica a urgência desse tipo de política no país para enfrentar o aumento da pobreza. "Na minha concepção, a política de renda básica continua sendo emergencial e vai ser emergencial pós-crise. Teremos que discutir o aprofundamento da proteção social no Brasil se não quisermos perenizar o aumento da pobreza e da desigualdade que vai aumentar quando acabar o Auxílio Emergencial ", diz Débora Freire.

No ano passado, a economista fez um estudo acerca dos impactos da renda básica emergencial tanto na vida das famílias que receberam o benefício quanto na própria dinâmica da economia. "Observamos um impacto de quase 50% na renda das famílias mais pobres, aquelas que recebem de zero a um salário mínimo. Essas foram as famílias mais atendidas pelo Auxílio Emergencial. Para algumas delas, o auxílio mais do que cobriu a perda de renda naquele período. Também percebemos impactos nas classes que recebem de dois a três salários mínimos. Chamo a atenção para os impactos positivos em famílias que não são elegíveis do programa, que não recebem diretamente a transferência de renda. Esse é um impacto importante dos programas de transferência de renda e acontece porque as famílias que recebem o benefício diretamente estão na base da pirâmide e gastam sua renda em consumo. Então, elas aumentam o seu consumo e isso significa mais venda, ou seja, os setores produtivos têm que produzir mais para atender aquela demanda e, ao produzirem mais, empregam mais capital e temos mais geração de renda na economia", ressalta.

No ano passado, Débora Freire participou do evento "A Renda Básica Universal (RBU) para além da justiça social", promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Na palestra "Renda Básica Universal. Combate à desigualdade e busca da justiça social na experiência brasileira", ela defende a construção de um "aparato de proteção social que consiga se ajustar rápido às crises, visto que a população informal e uberizada tem uma característica de muita volatilidade nos seus rendimentos, e toda vez que os rendimentos tendem a ser reduzidos seria possível fazer alguma transferência imediata para as famílias".

A seguir, reproduzimos a conferência no formato de entrevista.

Débora Freire é graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ, mestra em Economia Aplicada pela Universidade Federal de Viçosa - UFV e doutora em Economia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais - CEDEPLAR/UFMG. É professora adjunta do Departamento de Ciências Econômicas da UFMG.

Confira a entrevista.

IHU – Quais as principais conclusões da pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos em Modelagem Econômica e Ambiental Aplicada - Nemea sobre o Auxílio Emergencial?
Débora Freire – Fizemos um estudo no Nemea acerca dos impactos da renda básica emergencial e o olhar que trago, para além das questões sociais e do impacto nas desigualdades [gerado pelo auxílio], é o de olhar para programas sociais de renda básica como programas também de incentivo econômico e de incentivo à recuperação econômica, que serão muito necessários pós-Covid.

discussão sobre a implementação de programas de renda básica já existia [antes da pandemia], muito por conta da dinâmica do mercado de trabalho que estamos observando nos últimos anos, como o aumento de empregos de pior qualidade e fenômenos de flexibilização no mercado de trabalho, conhecidos como uberização. Muitas pessoas, dada a crise econômica, especialmente no Brasil desde 2015, aceitam empregos de pior qualidade, com jornadas exaustivas e sem garantias de direitos – isso, de fato, piora o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas. Ao mesmo tempo, ocorre um processo de robotização que tem gerado uma substituição da mão de obra de trabalho por máquinas e fala-se de uma tendência em que não haverá emprego para todo mundo. Então, temos visto um aumento do desemprego. Nesse contexto, no mundo todo, a discussão sobre uma renda básica, sobre um nível mínimo de vida necessário para as pessoas, já estava ganhando forma há algum tempo, em razão dessas novas dinâmicas, mas ganhou outra perspectiva e velocidade por causa da pandemia de Covid-19.

No Brasil, implementou-se um programa de auxílio emergencial que foi, de fato, um sucesso do ponto de vista das políticas públicas na pandemia em relação ao eixo econômico
Débora Freire/Tweet

Na pandemia, os programas de transferência de renda foram utilizados na maioria dos países que conseguiram ser exitosos na tarefa de garantir um nível mínimo de renda para as famílias. No Brasil, não foi diferente: implementou-se um programa de auxílio emergencial que foi, de fato, um sucesso do ponto de vista das políticas públicas na pandemia em relação ao eixo econômico. Foi a política mais exitosa. No entanto, as transferências de renda foram reduzidas e não há perspectiva da continuação deste programa ou da implementação de um programa diferente. Também não sabemos, do ponto de vista da saúde, o que vai acontecer. Não sabemos até quando esta crise vai durar e, do ponto de vista econômico, a recuperação tende a ser lenta. Ao mesmo tempo, vemos uma discussão muito truncada e difícil de ser feita no âmbito federal, que não tem previsto no orçamento o que vai ser feito. O governo tem “batido muito a cabeça” [para encontrar formas] de como financiar uma renda básica, mas essa discussão não tem avançado na medida que precisa.

Não voltaremos para o mundo anterior e, muito provavelmente, teremos um mundo com muito mais desigualdades e com uma dificuldade de recuperação econômica muito expressiva
Débora Freire/Tweet

IHU – Como, a partir do Auxílio Emergencial, foi possível fortalecer minimamente o sistema de proteção social?
Débora Freire - Gostaria de destacar as potencialidades do tipo de transferência de renda, como a renda básica emergencial, para que possamos pensar novas perspectivas a respeito do aprofundamento da proteção social no Brasil, que vai ser necessário.

Não voltaremos para o mundo anterior e, muito provavelmente, teremos um mundo com muito mais desigualdades e com uma dificuldade de recuperação econômica muito expressiva. Na minha concepção, a política de renda básica continua sendo emergencial e vai ser emergencial pós-crise. Teremos que discutir o aprofundamento da proteção social no Brasil se não quisermos perenizar o aumento da pobreza e da desigualdade que vai aumentar quando acabar o Auxílio Emergencial.

renda básica emergencial teve tanto sucesso, que conseguiu neutralizar o impacto da crise nas famílias. Não tivemos até hoje políticas tão distributivas como foi o Auxílio Emergencial no Brasil, mas tão logo o benefício acabe, vamos ver a face da desigualdade. Precisamos discutir possibilidades de políticas, de desenho de renda básica, e de financiamento.

A renda básica emergencial teve tanto sucesso, que conseguiu neutralizar o impacto da crise nas famílias
Débora Freire/Tweet

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde - OMS declarou a pandemia de Covid-19, e o Brasil teve um tempo para se ajustar, para tentar antever os efeitos da Covid. Mas, de fato, não aproveitamos esse tempo para nos planejarmos de maneira adequada. Do ponto de vista das medidas em relação aos impactos econômicos e das políticas a serem adotadas, primeiro, ouvimos declarações de que o governo continuaria com a agenda de austeridade, não mudaria os rumos da política econômica por conta da pandemia, o que de fato era um contrassenso, porque todos sabiam que a realidade iria se impor, a crise iria chegar e precisaríamos de um Estado fazendo política contracíclica, ou seja, aumentando os gastos estatais com saúde e proteção social. Já se sabia que isso deveria ser feito, mas o governo teve dificuldade de fazê-lo. Depois, o governo foi ajustando suas expectativas e anunciou que algumas medidas seriam tomadas, como a expansão do Bolsa Família, mas ainda havia uma incredulidade em relação aos impactos da crise. O ministro da Economia chegou a dizer que com oito bilhões seria possível dar conta da crise, mas hoje já se sabe que [aquilo] era uma fantasia, porque dada a magnitude dos gastos públicos que foram necessários e ainda são, aquela visão do início da crise era totalmente equivocada.

Impacto da pandemia na renda das famílias

Quando de fato foi decretada a pandemia de Covid-19, o nosso grupo de pesquisa reorientou sua agenda para avaliar os impactos sociais da pandemia. Nos perguntamos se o impacto seria homogêneo entre as pessoas e as famílias. Primeiramente, tínhamos um discurso de que por se tratar de uma crise sanitáriaricos e pobres enfrentariam a crise da mesma maneira. Obviamente, já sabíamos que isso não iria acontecer, do ponto de vista tanto da saúde como da economia.

Do ponto de vista da saúde, já sabíamos que a população mais pobre e vulnerável seria mais impactada, porque são pessoas que moram em condições mais precárias, vivem em locais com uma densidade populacional muito maior, aglomeradas, com mais dificuldade de acesso a serviços de saúde e a produtos de higiene que são necessários para tentar evitar o contágio e, além disso, pegam transporte público para ir trabalhar e não conseguem evitar aglomerações.

Do ponto de vista econômico, tentamos responder quão heterogêneo seria o impacto na renda das famílias, advindo de um cenário recessivo, que seria inevitável dada a crise de Covid-19. A nossa pergunta foi: como a queda de 1% no emprego impacta a renda das famílias por classes de renda? Para responder a essa pergunta, utilizamos um modelo de simulação – o qual desenvolvi na minha tese de doutorado – que mapeia os fluxos econômicos, como se fosse uma fotografia de toda a economia, mapeando os fluxos de vendas e compras entre setores produtivos, as famílias e o governo; as transferências de renda entre as famílias – como os setores produtivos remuneram as famílias na forma de renda do trabalho e do capital; e como essa renda é distribuída por classes de renda.

Do ponto de vista agregado, vimos que a queda de 1% no emprego se relacionaria a uma queda de 1,4% do PIB e a uma queda de 1,1% na renda disponível das famílias. Mas o nosso interesse era avaliar como esse impacto heterogêneo se daria do ponto de vista da renda das famílias por classes de renda, já que o modelo permitia essa análise. Conseguimos perceber que uma crise recessiva de 1% de queda no emprego afetaria a renda das famílias mais pobres – estamos considerando 11 classes de renda. Nas duas primeiras classes de famílias, que recebem até um salário mínimo e até dois salários mínimos, observamos que o impacto da recessão é 20% maior do que o impacto médio na renda das famílias de modo geral. Ou seja, projetamos que a renda das famílias mais pobres seria mais afetada do que a renda da maioria porque essa crise atingiu principalmente o setor de serviços, que emprega uma proporção maior de trabalhadores informais, com mão de obra menos qualificada e, portanto, a maior parte das famílias mais pobres trabalha no setor de serviços. Enquanto as famílias mais pobres têm uma renda menor e dependem exclusivamente da renda do trabalho e das rendas de transferência, as famílias mais ricas têm renda proveniente de rendimentos de capital, de ativos financeiros. Dada essa diferença, é mais impactado quem depende da renda do trabalho. Essas famílias precisariam ser auxiliadas porque, do contrário, aumentaria muito a desigualdade no país.

Implementação do Auxílio Emergencial

Primeiro, o Ministério da Economia anunciou um auxílio no valor de 200 reais para os autônomos. Já se sabia que isso seria insuficiente. O governo teve muita dificuldade de entender como conceder o auxílio: se iria utilizar o CadÚnico e como poderia expandi-lo. No entanto, a sociedade civil e os pesquisadores se mostraram muito participativos e pressionaram o Congresso para que votasse um benefício que fosse suficiente para lidar com a crise, visto que 200 reais era um valor insuficiente. O Congresso votou a renda básica emergencial de 500 reais, o governo acabou passando o valor para 600 reais, que foi aprovado no Senado.

IHU - Quais foram os impactos desse programa na economia?
Débora Freire - A pergunta da nossa pesquisa era: a renda básica emergencial é uma resposta suficiente aos impactos econômicos da pandemia de Covid-19 no Brasil? O nosso intuito era avaliar o impacto do auxílio na renda das famílias, mas também na economia, visto que, ao nosso ver, os impactos econômicos dos programas de transferência de renda têm de ser considerados. Esse tipo de política atua não apenas para diminuir a vulnerabilidade social das famílias no momento, mas como uma política de atenuação dos impactos da pandemia. Isso é importante de avaliar porque nos mostra os potenciais de um programa de renda básica para a recuperação econômica e como esses programas têm servido também do ponto de vista econômico e não apenas social.

Nós utilizamos aquele mesmo modelo de simulação que foi desenvolvido na minha tese de doutorado para simular os impactos da renda básica emergencial. No entanto, o adaptamos para um modelo trimestral – ele era anual – para captar os efeitos do trimestre e de curto prazo do programa. A estratégia de simulação mesclou duas bases de dados: a base de microdados do CadÚnico e os microdados da Pnad para mapear quem seriam os potenciais elegíveis para o programa, para conseguirmos mensurar os choques de transferência de renda que estabeleceríamos no nosso modelo.

O modelo tem 11 classes de renda e analisamos separadamente as três primeiras classes, que são as famílias que recebem de zero a três salários mínimos e que seriam contempladas pelo Auxílio Emergencial. Usando e mesclando essas bases de dados, estabelecemos os filtros usados pelo governo para determinar a elegibilidade para o programa: o indivíduo deveria atender a todos os pré-requisitos estabelecidos, como ser maior de 18 anos, não ter emprego formal, não receber benefício previdenciário ou assistencial, exceto o Bolsa Família, ter renda familiar de até meio salário mínimo per capita ou até três salários mínimos totais e não ter recebido acima de 28.559 reais no ano anterior. Deveria também ou ser microempreendedor individual ou contribuir individualmente para o FGTS ou ser um trabalhador informal, tanto desempregado como autônomo, inscrito no CadÚnico, ou por meio de autodeclaração, que foi feita via aplicativo. Conseguimos chegar a um número de beneficiados muito próximo ao número projetado pelo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea e pelos dados divulgados pelo Dataprev. Posteriormente, o benefício atingiu um contingente populacional muito maior.

A estratégia de simulação que fizemos contemplou dois cenários: a renda básica emergencial nos três primeiros meses previstos, e depois analisamos um cenário sem o benefício.

Observamos um impacto de quase 50% na renda das famílias mais pobres, aquelas que recebem de zero a um salário mínimo. Essas foram as famílias mais atendidas pelo Auxílio Emergencial
Débora Freire/Tweet

Resultados

Observamos um impacto de quase 50% na renda das famílias mais pobres, aquelas que recebem de zero a um salário mínimo. Essas foram as famílias mais atendidas pelo Auxílio Emergencial. Para algumas delas, o auxílio mais do que cobriu a perda de renda naquele período. Também percebemos impactos nas classes que recebem de dois a três salários mínimos. Chamo a atenção para os impactos positivos em famílias que não são elegíveis do programa, que não recebem diretamente a transferência de renda. Esse é um impacto importante dos programas de transferência de renda e acontece porque as famílias que recebem o benefício diretamente estão na base da pirâmide e gastam sua renda em consumo. Então, elas aumentam o seu consumo e isso significa mais venda, ou seja, os setores produtivos têm que produzir mais para atender aquela demanda e, ao produzirem mais, empregam mais capital e temos mais geração de renda na economia. Uma vez que a distribuição de renda na economia entre as famílias é concentrada, os principais beneficiários indiretos desses programas de transferência de renda são as famílias que estão nas classes superiores. Esse efeito positivo para as famílias que recebem mais de três salários mínimos é um dos impactos indiretos da renda básica emergencial na economia.

Impactos macroeconômicos

Uma vez que esse tipo de programa gera impacto na renda das famílias, gera também efeitos macroeconômicos. Isso porque estimula o consumo das famílias que, por sua vez, gera um estímulo à produção de renda na economia, que se transforma em impactos macroeconômicos. Temos impactos no PIB, no consumo das famílias, no emprego e no investimento. Observamos um impacto positivo no PIB, de 0,44%, no primeiro trimestre, mas no cenário em que a renda básica fosse retirada, haveria uma queda nesses impactos, que perduraria ao longo do próximo ano (2021).

O programa de renda básica emergencial teve um impacto de mitigar a recessão e a crise econômica - Débora Freire Tweet

Dado o cenário econômico recessivo, o programa de renda básica emergencial teve o efeito de mitigar a recessão e a crise econômica, uma vez que gerou um impacto positivo no PIB e nas demais variáveis macroeconômicas. Se não fosse o Auxílio Emergencial, teríamos tido uma recessão econômica muito maior. Esse foi um programa muito importante, pois o consumo se manteve aquecido, apesar da crise. A queda do consumo foi muito menor do que se não houvesse a renda básica emergencial.

Financiamento

Uma questão importante das simulações é que nesses cenários nós consideramos o financiamento dessa política como de fato foi colocado em prática, por meio do endividamento público. Sabemos que os gastos para enfrentar a crise estão sendo financiados com o aumento do endividamento e, exatamente por isso, temos impactos maiores do ponto de vista econômico. Por que digo isso? Porque se tivéssemos que financiar a política com algum recurso como, por exemplo, impostos, teríamos um choque negativo na economia e os impactos seriam menores. Os efeitos [do Auxílio Emergencial] seriam maiores e teríamos um impacto ainda mais positivo se tivéssemos um financiamento baseado na tributação dos mais ricos, porque eles consomem uma maior parte da sua renda.

É importante ressaltar que o auxílio é uma política emergencial. Para pensar uma renda básica permanente, vai ser necessário algum tipo de ajuste e de mapeamento de fonte de financiamento. Não se financia uma política permanente com endividamento público. Então, precisamos pensar de onde tirar o recurso para desenhar uma política de renda básica permanente.

Os efeitos [do Auxílio Emergencial] seriam maiores e teríamos um impacto ainda mais positivo se tivéssemos um financiamento baseado na tributação dos mais ricos - Débora Freire Tweet

IHU – Quais setores econômicos foram impactados pelo Auxílio Emergencial?
Débora Freire - Esse tipo de transferência de renda para as famílias tem potencial de atingir setores produtivos de forma assimétrica porque eles têm participação distinta no consumo das famílias. Alguns setores têm uma participação muito mais efetiva. Quando consideramos as famílias em classes de renda, essa composição também muda porque enquanto as famílias de classe mais baixa gastam a renda em alimentação, serviços pessoais e eletrodomésticos, as famílias de classe mais alta têm uma cesta de consumo média diferente: elas consomem viagens, combustível, ou seja, têm outro perfil e padrão de consumo. Como as famílias de classes mais baixas foram as principais atingidas pelo auxílio, consequentemente o programa atingiu os setores de eletrodomésticos, de perfumaria, higiene e limpeza, de artefatos de couro e calçados, de saúde, de vestuário, de alimentos e bebidas. O setor de comércio foi muito afetado pela crise de Covid-19, mas o Auxílio Emergencial foi um programa de estímulo também para o setor.

Outro impacto do Auxílio Emergencial diz respeito à arrecadação do governo. O sistema econômico é integrado e muitas vezes fazemos algumas confusões em relação ao orçamento público, que não é igual ao orçamento familiar. Ou seja, a família gasta aquilo que ela tem de renda, mas o governo tem uma especificidade diferente: ele tem a capacidade de afetar a sua receita com seus gastos. O governo é um setor demandante da economia e, quando ele amplia os gastos, faz com que a economia se aqueça e gere o ajuste da produção dos setores produtivos para atender a demanda crescente. Esse novo cenário gera mais renda e, consequentemente, há um aumento na arrecadação de impostos. Então, o governo tem a capacidade de arrecadar e afetar a sua arrecadação.

O setor de comércio foi muito afetado pela crise de Covid-19, mas o Auxílio Emergencial foi um programa de estímulo também para o setor
Débora Freire/Tweet

Em função disso, chamamos a atenção para este resultado: a política de renda básica tem o efeito de, em partes, se autofinanciar, porque uma vez que o governo transfere renda para as famílias, a arrecadação do governo também vai ser afetada pela política. Segundo nossos cálculos, em três meses de renda básica emergencial, 24% do custo da política seria coberto pelo “desvio” que ela gera na arrecadação do governo. Ou seja, teríamos um efeito autoalimentador da política na receita do governo, que deveria ser considerado. Obviamente, a política não gera mais arrecadação do que o seu custo, mas no caso de uma política emergencial, o valor coberto seria de 24%. Então, é preciso considerar o custo líquido dessas políticas e não o custo bruto. O auxílio é primordial para as novas dinâmicas econômicas pós-Covid-19 exatamente porque essa nova dinâmica de desigualdades tende a se acelerar depois da pandemia.

IHU – Quais os desafios de instituir uma renda universal e incondicional?
Débora Freire - Quando falamos de renda básica, estamos falando de uma transferência de renda regular, incondicional e universal, ou seja, todos podem recebê-la. Mas a forma de financiamento é via imposto de renda: as famílias de classes mais altas seriam contribuintes líquidos, porque elas poderiam receber o benefício, mas teriam que pagar por ele no imposto de renda, ao passo que as famílias mais pobres seriam beneficiados líquidos, porque são isentas do imposto de renda.

renda mínima diz respeito a programas focalizados, segundo critérios de renda, como o Bolsa Família, em que as pessoas precisam ter um limite de renda para receber o benefício, e também são condicionais porque tem alguma contrapartida, como as crianças terem que estar na escola para a família receber a renda etc. Os programas também podem ter focalização indireta, ou seja, crianças, idosos, famílias com crianças. Essa proposta tem sido muito discutida, visto que um programa de renda básica, inicialmente, é de difícil implementação porque é muito amplo. Teríamos que começar com programas com desenhos menores e, a partir das melhoras econômicas e fiscais, ir expandindo os programas. Poderíamos pensar na universalidade em um determinado tipo de focalização, como crianças, por exemplo. Ou seja, todas as famílias que têm crianças receberiam o benefício. Atingiríamos principalmente os mais pobres, visto que as famílias com mais crianças são as mais pobres, e teríamos um esquema de contribuintes e beneficiários líquidos. Também tem uma discussão importante acerca de uma renda para os jovens, porque as famílias com jovens costumam ser mais vulneráveis. Nesse sentido, a renda poderia ser estendida posteriormente aos jovens e depois aos idosos, por exemplo. Alguns desenhos estão sendo discutidos, principalmente na academia brasileira. O grande problema é o financiamento exatamente porque o governo tem sido reticente em fazer uma reforma tributária que angarie recursos dos mais ricos, que hoje são subtributados.

Além de combater a pobreza e a desigualdade, a renda básica tem a característica de dotar o cidadão de poder de barganha e, talvez, essa seja uma característica muito importante para os tempos atuais
Débora Freire/Tweet

Poder de barganha

Além de combater a pobreza e a desigualdade, a renda básica tem a característica de dotar o cidadão de poder de barganha e, talvez, essa seja uma característica muito importante para os tempos atuais, visto as dinâmicas do mercado de trabalho. O trabalhador tem perdido muito poder de barganha e muitas pessoas estão trabalhando de forma precária, com jornadas exaustivas, sem nenhum tipo de direitos. Em geral, as pessoas aceitam essas condições uma vez que não conseguem encontrar empregos em outras atividades.

Vejo a renda básica como uma política que não só vai auxiliar a recuperação da economia, como vai ajudar no processo de dotar o cidadão de poder de barganha, garantindo a ele um nível de renda mínimo. Com esse nível de renda mínimo, poderá barganhar melhores condições de trabalho, visto que ele não depende fundamentalmente daquele trabalho que o explora para sobreviver e mitigar os problemas relacionados à oferta de emprego.

Só o Bolsa Família, nos seus moldes atuais, não será suficiente - Débora Freire Tweet

IHU - Quais são as perspectivas para a proteção social no Brasil?
Débora Freire - Será necessário algum tipo de proteção social, porque do contrário tende a se perpetuar uma situação de vulnerabilidade, de aumento da pobreza e da desigualdade. Só o Bolsa Família, nos seus moldes atuais, não será suficiente.

É preciso um aparato de proteção social que consiga se ajustar rápido às crises, visto que a população informal e uberizada tem uma característica de muita volatilidade nos seus rendimentos, e toda vez que os rendimentos tendem a ser reduzidos seria possível fazer alguma transferência imediata para as famílias. A grande questão, como comentei anteriormente, é como financiar esse tipo de programa. Existem as propostas de realocação de programas, sem alterar gastos, como acabar com alguns programas e canalizar isso para expandir o Bolsa Família ou criar um programa de renda básica. Tem ainda as propostas de financiar por meio da tributação dos mais ricos. Na minha concepção, o ajuste e a recuperação da economia brasileira têm que ser via sistema tributário e gasto social. Se redistribuirmos a renda dos pobres para os extremamente pobres ou a da classe média baixa para os pobres e extremamente pobres, estamos limitando o efeito progressivo da política e, consequentemente, limitando o impacto da política na economia ao mesmo tempo que tendemos a gerar crises sociais exatamente porque sabemos que esse equilíbrio não é estável. Uma vez que os mais ricos continuam com seus benefícios tributários, com as reduções no imposto de renda, com a isenção de lucros e dividendos para pessoa física, isso tende a gerar uma instabilidade muito grande, porque a classe mais rica mantém seu aparato econômico, inclusive, ganhando participação na renda nacional, ao passo que a classe média baixa está sendo muito afetada e comprimida para que a renda seja transferida para os mais pobres. Isso não é um equilíbrio viável.

O caminho mais viável economicamente e socialmente para financiar a renda básica seria a tributação dos mais ricos. A grande questão é: por que tanta resistência? Para fazer isso, precisamos rever e flexibilizar o teto de gastos. Não estou dizendo que não precisamos de regras fiscais, precisamos, sim, mas temos de ter uma regra que não trate o gasto de forma homogênea e que possibilite uma canalização do gasto para transferências sociais. O teto de gastos, ao limitar o crescimento real dos gastos a zero, elimina esse tipo de possibilidade de tributar mais os mais ricos e canalizar recursos para os mais pobres via um programa de transferência de renda. Nesse sentido, o imposto de renda de pessoa física é a potencial grande fonte de recursos para financiar uma renda básica.





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Como Copa, Olimpíada e Bolsonaro implodiram imagem do Brasil no exterior

Quando o Rio de Janeiro foi escolhido em 2009 para sediar a Olímpiada de 2016, o clima era de grande entusiasmo. Seria, aparentemente, uma grande oportunidade de divulgar o Brasil, atrair investimentos e turismo internacional

Nathalia Passarinho / BBC News Brasil

Imagens do ex-presidente Lula e do ex-jogador de futebol Pelé pulando de alegria e até chorando circularam nos meios de comunicação. Três anos antes, em 2006, o Brasil já havia sido escolhido para ser sede da Copa do Mundo em 2014.

Com esses dois megaeventos internacionais, o país seria notícia no mundo todo. E foi. Mas, contrariamente ao senso comum, essa "ampla divulgação" provocou efeito inverso do esperado: marcou o início da derrocada da imagem do Brasil no exterior.

Pelo menos é o que revelam dados obtidos pela BBC News Brasil da pesquisa Anholt-Ipsos Nation Brands, que mede a percepção das pessoas sobre os países em áreas como governança, exportação, cultura e população.

O estudo, encomendado pelo consultor britânico de políticas públicas Simon Anholt, é feito desde 2005 por uma das maiores empresas de pesquisa de opinião pública do mundo, a Ipsos Mori.Pule Talvez também te interesse e continue lendo

Anholt, que já atuou como conselheiro de governantes de 56 países, disse à BBC News Brasil que a Olimpíada e a Copa do Mundo serviram de publicidade negativa ao Brasil porque o mundo passou a conhecer mais sobre a pobreza, a desigualdade social, a violência e a corrupção existentes no país.

Por quase dez anos, o Brasil vivenciou "estabilidade" na sua marca externa, ou seja, na forma como era visto pelo mundo. No entanto, justamente nos anos em que o país sediou os dois grandes eventos esportivos internacionais, houve uma piora acentuada na percepção externa em relação ao país, conforme os dados da pesquisa Nation Brands.

Mas como isso aconteceu?

Holofote sobre o Brasil mostrou 'demais'

Letreiro da Olimpíada no RJ
Brasil gastou mais de R$ 40 bilhões para sediar Jogos Olímpicos no RJ em 2016

Simon Anholt explica que quando um país sedia jogos de envergadura internacional, o noticiário do mundo inteiro passa a fazer matérias sobre a nação-sede. Nesse bojo, entra de tudo: aspectos da história, política, segurança, economia etc. Ou seja, no caso do Brasil, as reportagens jogaram os holofotes não apenas nos aspectos positivos, como cultura e belezas naturais, mas também nos problemas econômicos e sociais.

Em 2014, ano da Copa do Mundo, o Brasil vivia o início de uma prolongada crise econômica. Em 2016, ano da Olimpíada do Rio de Janeiro, a Operação Lava Jato avançava, implicando políticos de peso no esquema de corrupção da Petrobras. Enquanto isso, o Senado estava prestes a confirmar o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

A ampla divulgação do Brasil durante os dois campeonatos internacionais ajudou a derrubar, segundo Anholt, uma imagem "mistificada e irreal" que grande parte do mundo tinha do país — de aberto, tolerante, alegre e voltado à música e ao futebol.

"A Copa do Mundo e a Olimpíada foram, de certa maneira, um despertar para a realidade das ideias afetivas que as pessoas tinham do Brasil", disse à BBC News Brasil.

"Havia, pelo menos fora da América, uma ideia romântica equivocada do tipo de país que o Brasil é, focado no futebol, samba, cachaça."

Anholt diz que o fato de a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016 terem sido eventos bem-sucedidos, sem intercorrências graves, não mudou em nada o impacto negativo que os holofotes provocaram.

O Brasil gastou mais de R$ 41 bilhões para fazer a Olimpíada do Rio de Janeiro e outros R$ 26 bilhões para a Copa do Mundo.

"As pessoas já esperam que os eventos sejam bem-sucedidos. O que surpreendeu as pessoas foram as evidências da pobreza, desigualdade, violência, corrupção. E elas meio que não estavam esperando por isso", diz Anholt, que é autor de seis livros sobre marca e imagem internacional dos países. "O mito do Brasil era o de que ele seria um país muito mais desenvolvido e progressista. Eu me refiro à percepção fora da América Latina."

O que mostram os dados
O Brasil figura na posição 30 do ranking Nation Brands, que mede a percepção no exterior de 50 países, entre os quais Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Brasil e Argentina. A Alemanha é o país mais bem avaliado, seguido pelo Reino Unido.

Para fazer a lista, são ouvidas mais de 20 mil pessoas de todas as faixas etárias, poder econômico e nacionalidades. Elas respondem a 50 perguntas sobre diferentes aspectos de um país — de qualidade do governo a belezas naturais e turismo. O recorte representa 70% da população mundial e 80% da economia global.

Os resultados não são divulgados ao público — são vendidos a governos e grandes empresas. Mas Anholt compartilhou com a BBC News Brasil dados relativos ao Brasil.

Vidro de ônibus quebrado
Durante a Olimpíada do RJ, dois ônibus que levavam jornalistas foram atingidos por pedras. Num dos incidentes, uma jornalista americana levantou a dúvida sobre a possibilidade do veículo ter sido atingido por tiros

Desde 2008, o país possuía uma "nota geral" estável, mas no ano da Copa do Mundo houve uma queda forte na percepção das pessoas sobre o Brasil em todos os aspectos, inclusive "cultura", que é a área de melhor pontuação.

Em 2015, houve uma leve recuperação, mas a Olimpíada de 2016 provocou uma deterioração ainda maior na imagem do Brasil no exterior, principalmente no quesito "governança", que avalia a competência de um governo nacional e a percepção internacional sobre o seu comprometimento com questões globais, como paz, segurança, desigualdade e meio ambiente.

Simon Anholt explica que o mesmo fenômeno ocorreu na África do Sul, que sofreu queda acentuada na sua "marca internacional" após a Copa do Mundo de 2010. O evento, assim como a Copa e a Olimpíada realizados no Brasil, foi um "sucesso". Mas as horas e horas de reportagens sobre o país africano deterioraram a sua imagem, em vez de promovê-lo no imaginário mundial.

"Quando tem Olimpíada e Copa do Mundo, a imprensa internacional vai a esse país e tem que preencher a grade de notícias entre os jogos. E o que eles fazem é mostrar o país-sede e a cidade-sede. São horas e horas de vídeos sobre o país, e as pessoas assistem", destaca Anholt, que também é professor de Ciência Política da Universidade de East Anglia, no Reino Unido.

"O conhecimento sobre Brasil e África do Sul era limitado e, em alguns casos, romantizado, entre o público internacional. Mas agora elas estão vendo o Brasil e a África do Sul e pensam: 'meu Deus, esses são países em desenvolvimento, com pobreza, violência e corrupção'. E a imagem se deteriora em função disso."

Queda ainda maior com o governo Bolsonaro
Desde a última queda acentuada na sua imagem internacional em 2016, o Brasil iniciou uma recuperação. Mas, de 2019 em diante, após o início do governo Jair Bolsonaro, a "marca" ou imagem externa do país parece ter entrado em queda livre, conforme os dados do Nation Brands.

"A derrocada na imagem partir de 2019 é a mais significativamente negativa já registrada pelo Nation Brands Index. Isso tem correlação com o governo Bolsonaro, reação do governo à pandemia e ao furor internacional diante das queimadas na Amazônia", explica Anholt.

O pior desempenho do Brasil é no quesito governança, que mede a percepção sobre a competência do governo — o Brasil figura em 44º no ranking nesse tópico. O melhor desempenho é em "cultura", que mede a apreciação do mundo à música, filme, esporte, arte e literatura de um país. Nessa área, o Brasil aparece na décima posição no ranking.

Jair Bolsonaro
A partir de 2019, imagem do Brasil passa a sofrer queda ainda pior que a vivenciada na Copa do Mundo e Olimpíada. Para Simon Anholt, posição do presidente sobre Amazônia e pandemia influenciaram

Segundo o consultor de políticas públicas britânico, líderes nacionalistas como Donald Trump, Bolsonaro ou Viktor Órban, da Hungria, podem ser populares em seus países, mas não costumam gozar de boa imagem internacional.

"Em geral, pessoas não gostam de líderes com o estilo do presidente Bolsonaro. Domesticamente, pode haver um apelo, mas internacionalmente eles não costumam ser populares", diz.

"Se formos comparar com Trump, ambos os líderes usavam o mesmo 'manual' e Trump era dramaticamente impopular no exterior, embora fosse muito popular entre parte da população americana."

A BBC News Brasil encaminhou e-mail para o Itamaraty pedindo comentário sobre essas declarações e sobre o resultado do Brasil no ranking e aguarda resposta.

Efeito pandemia
A postura negacionista do governo federal brasileiro diante da gravidade da pandemia também contribuiu, segundo Anholt, para prejudicar a "marca Brasil" em 2020.

"Em geral, as pessoas não estão tão interessadas assim em como outros países lidam com a pandemia, elas querem saber da pandemia no próprio país. A não ser que haja algo que chame muita atenção. E, nesse caso, novamente há o fator Bolsonaro", diz o professor de política.

"Você tem um presidente que, aparentemente copiando Trump, diz que isso não é nada, é um mito, é uma trapaça. E isso é chocante. Essas são as questões que afundaram a imagem do Brasil. Não é algo permanente, mas levará tempo para uma recuperação."

Imagem está piorando entre jovens estrangeiros
Um fenômeno que o Nation Brands Index capta é que a imagem do Brasil no exterior está se deteriorando mais rapidamente entre os jovens, principalmente por causa da posição atual do governo Bolsonaro em relação a direitos de minorias e proteção da Amazônia.

O discurso do presidente de abrir a floresta para a mineração e de minimizar desmatamento e queimadas teve um impacto forte entre o segmento de 18 a 29 anos, diz Anholt. Essa faixa etária é a que posiciona o Brasil pior no ranking de "governança", em 45º entre 50 países.

"O entendimento claro é que Bolsonaro não promoveria um diálogo construtivo com a comunidade internacional sobre proteção do meio-ambiente. E, recentemente, a imprensa internacional mostrou horas e horas de imagens de árvores na Amazônia queimando", lembra.

"Foram imagens poderosas. Principalmente entre os jovens a bandeira da luta contra mudanças climáticas é cada vez mais forte."

Qual o impacto de ter uma imagem externa ruim?
Segundo Simon Anholt, a imagem de um país no exterior tem impacto profundo em diferentes aspectos — de turismo e atração de investimentos externos, ao poder de influenciar decisões políticas no cenário internacional.

"A imagem de um país afeta até mesmo a capacidade de fechar acordos. O Reino Unido ou a União Europeia pode, por exemplo, não se empenhar em fechar um acordo comercial com o Brasil porque os jovens eleitores desaprovam a conduta do governo brasileiro em relação à Amazônia", exemplifica.

Queimada na Amazônia
Proteção ambiental é uma das principais bandeiras da atual geração de adolescentes. Postura do governo brasileiro em relação à Amazônia tem reduzido a popularidade do Brasil entre os jovens, diz Anholt

É o que está ocorrendo com o amplo acordo comercial negociado entre o Mercosul e a União Europeia. Em vários países europeus, a aprovação da proposta nos parlamentos sofre resistência por causa da imagem negativa da política ambiental do governo brasileiro.

Mas Anholt enxerga o "despertar" do mundo para a realidade do Brasil, iniciado na Copa do Mundo de 2014 e na Olimpíada de 2016, como "positivo a longo prazo".

"De certa forma, ainda que seja prejudicial à imagem, é bom que as pessoas comecem a enxergar o Brasil de maneira mais complexa e adulta", diz.

"Os EUA sempre apresentaram essa imagem do Brasil como sendo de festa constante. E tudo bem para algumas coisas, mas isso não é bom se você é a Embraer e se você tem ambição de ser uma economia séria no cenário mundial."

Além disso, diz Anholt, a pressão internacional pode favorecer a que o Brasil "corrija rumos" em questões de importância global, como proteção ambiental.

"O Brasil agora está sendo observado e julgado. E no momento está sendo julgado severamente no governo Bolsonaro", avalia.

"Acho que a festa acabou no que diz respeito à imagem do Brasil no exterior. Embora isso seja triste e crie pressões econômicas, no longo prazo será uma coisa boa. Já é hora de o mundo reconhecer o Brasil como algo mais que apenas Carnaval de rua."


O Centrão no telhado. Aliança pode impactar desempenho de Bolsonaro

Não se deve subestimar a aliança de Bolsonaro com o Centrão. Além de dar mais estabilidade ao governo no Congresso, pode impactar seu desempenho eleitoral

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas (Correio Braziliense e Estado de Minas)

A reunião do presidente Jair Bolsonaro com o senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, foi transferida de ontem para hoje, na versão oficial, porque o avião no qual retornou do México atrasou. Nos bastidores, porém, a ida do parlamentar para a Casa Civil do Palácio do Planalto está no telhado. O presidente da República cogitaria dar “meia-volta, volver” no deslocamento do general Luiz Eduardo Ramos (aquele que foi “atropelado por um trem”) para a Secretaria-Geral da Presidência, com o argumento de que a Casa Civil tomaria muito tempo de Nogueira, cuja principal tarefa seria a articulação política.

A ida de Ciro para a Secretaria-Geral da Presidência só fará sentido se for um desejo do próprio. Se for um recuo de Bolsonaro, porém, mesmo que o senador aceite a tarefa, será um sinal de que o empoderamento do Centrão no Palácio do Planalto foi apenas uma flor do recesso. A entrega da Casa Civil ao Centrão descontenta os seguidores de Bolsonaro nas redes sociais e os militares que controlavam a Esplanada, pois a Casa Civil tem um papel estratégico na coordenação da administração federal. Entretanto, na Secretaria-Geral, Ciro não terá a força política que seus aliados no Congresso esperam.

Não faltam motivos para a mexida no Palácio do Planalto na metade do terceiro ano de mandato. O tempo ruge para Bolsonaro, que lidou com o relógio como se esse não fosse o recurso mais escasso de seu mandato. O presidente da República perde o foco com atos de repercussão negativa e assuntos que não são prioritários, ainda que emulem seus seguidores. O tempo perdido já cobra seu preço nos indicadores do governo. Basta olhar para os problemas reais do país, a começar pela crise sanitária.

Ontem, sete capitais registraram falta de vacinas — Belém, Campo Grande, Florianópolis, João Pessoa, Rio de Janeiro, Salvador e Vitória —, o que é um atestado de incompetência do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Ou seja, quatro ministros depois, as falhas do governo federal na coordenação do combate à pandemia continuam. Mesmo com o Congresso em recesso, portanto, sem as sessões da CPI da Covid, Bolsonaro continua acumulando notícias negativas na Saúde. A vacinação avança num ritmo lento, apesar dos esforços dos estados para controlar a pandemia. A redução do número de mortes diárias — foram 578 óbitos causados pela doença e 18.999 novos casos notificados nas últimas 24 horas —, não apaga o trauma de 550 mil mortos.

Aposta na galinha
O mau desempenho do governo é escandaloso na saúde, mas isso não significa que, em outras áreas, tudo esteja bem. Houve um desmonte de políticas públicas na educação, com universidades e outros estabelecimentos federais de ensino à míngua, crise de financiamento na rede privada e evasão escolar generalizada. A ausência de uma política de habitação adequada somada à pandemia, apesar do bom desempenho do mercado imobiliário, multiplicou a população em situação de rua nas grandes e médias cidades. Na segurança pública, a liberação da venda de armas e a truculência policial fizeram explodir o número de mortes por arma de fogo — ou seja, a violência e a insegurança aumentaram.

Na área econômica, o agronegócio e a mineração vão bem, obrigado, porém, a política oficial de agressão ao meio ambiente cobra seu preço. As mudanças climáticas estão em toda parte e, com isso, as pressões internacionais sobre o governo aumentarão. As enchentes na Alemanha, na Holanda e em outros países europeus farão recrudescer os protestos e retaliações contra o governo brasileiro e produtos brasileiros. Ao mesmo tempo, aqui no Brasil, os incêndios provocados pela seca já começaram e ainda teremos uma crise energética. Bate à porta uma inédita onda de frio, para a qual muitos não estão preparados, e o governo não tem sequer um plano de contingência, apesar dos alertas dos meteorologistas.

Alta da inflação, juros subindo, 17 milhões de desempregados, mesmo com uma expectativa de crescimento em torno de 5% neste ano, o ambiente econômico é muito ruim para a maioria da população. Como acontece nas crises, os mais pobres estão mais pobres. Entretanto, a retomada do crescimento é um fator positivo, que alimenta as esperanças do mercado, do ponto de vista da rentabilidade das empresas, e do próprio Bolsonaro. Um voo de galinha da economia, em ano eleitoral, pode embalar o projeto de reeleição. Por essa razão, não se deve subestimar a aliança de Bolsonaro com o Centrão. Além de dar mais estabilidade ao governo no Congresso, pode impactar seu desempenho eleitoral, turbinando candidaturas de seus aliados nos estados e o desempenho do governo na ponta do clientelismo.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-centrao-no-telhado/