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Ascânio Seleme: Privatizando o SUS

governo federal está realizando consulta pública para implantar uma certa “Política Nacional de Saúde Suplementar para o enfrentamento da Pandemia da Covid-19” que, na visão de especialistas e instituições dedicadas à saúde pública, significa um pedido de autorização para “privatizar” o SUS. A consulta foi autorizada pelo Consu, o Conselho Nacional de Saúde Suplementar, formado pelos ministros da Saúde, da Casa Civil, da Economia e da Justiça, assumindo competência que tecnicamente deveria ser da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Segundo dois grupos de estudos, um da Faculdade de Medicina da USP e outro do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ, o governo está aproveitando a pandemia para “passar a boiada” em favor das operadoras de planos de saúde.

A consulta, lançada na plataforma digital Participa + Brasil, da Presidência da República, tem 18 pontos. Segundo o Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde da Faculdade de Medicina da USP (Geps) e o Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde da UFRJ (GPDES), todos os pontos atendem aos interesses privados das operadoras em detrimento do interesse coletivo. Ao instituir a política, a consulta propõe integrar as ações da saúde suplementar ao SUS. Segundo os dois grupos, as práticas da saúde pública e da complementar são heterogêneas e muitas vezes divergentes, o que inviabiliza esta integração. A menos que se queira transformar o SUS numa “rede protetora das operadoras privadas”.

O governo propõe em sua consulta pública garantir o atendimento à saúde em “prazos razoáveis”. De acordo com análise feita pelo Geps e pelo GPDES, a ideia por trás deste ponto é remover o artigo 3º da Resolução Normativa 259 da ANS, que definiu prazos máximos para o atendimento e que “é uma pedra no sapato para a comercialização de planos de cobertura restrita”. A consulta também sugere proporcionar um ambiente de entendimento para solucionar conflitos entre operadoras e prestadores de serviços de saúde. Significa, segundo a análise dos grupos, aumentar a interferência dos planos nas condutas de médicos e outros profissionais de saúde.

Um dos pontos críticos é o que estabelece que um dos objetivos da política é “contribuir para o desenvolvimento sustentável do setor de saúde privada do país”. Para Geps e GPDES, “não há justificativa para o apoio governamental ao setor privado”. Está se oferecendo “suportes públicos para ampliar a privatização da saúde”. O que é ilegal e imoral num país tão desigual quanto o Brasil. Em outro ponto, a consulta propõe “estabelecer ações que visem o desestímulo ao atendimento de beneficiários de planos de saúde no SUS, no limite das coberturas contratadas”. De acordo com Januário Montone, primeiro presidente da ANS ainda no governo de Fernando Henrique, “querem baratear os planos para garantir maior acesso à população, reduzindo a cobertura e impondo limites de utilização”.

Há ainda diversas armadilhas enumeradas na análise da proposta feita pelos grupos da USP e da UFRJ e publicada em seus sites no dia 5 de maio. Uma delas é a inversão de valores hierárquicos, ao submeter a Agência Nacional de Saúde ao Conselho de Saúde Suplementar. O artigo 5º da proposta em consulta afirma que as ações da política nacional serão elaboradas pela ANS e “aprovadas” pelo Consu. O Conselho é um órgão político, sem qualificação técnica, ao contrário da Agência. Segundo Januário Montone, o Consu “perdeu sua finalidade com a criação da agência reguladora no ano 2000 e acabou sendo absorvido pelo Conselho Nacional de Saúde”.

Montone afirma “que esse plano tenta solapar os mais de 20 anos de regulação do setor de saúde suplementar”. Ele lembra as muitas medidas introduzidas na regulação do setor pela Lei Geral dos Planos de Saúde, como a proibição de restrições ao acesso aos planos, o direito à assistência de urgência e o ressarcimento ao SUS de custos gerados por detentores de planos. “Diziam que o mercado ia quebrar. Não quebrou. Em 2019 sua receita foi equivalente a 72% do orçamento do SUS, somando União, estados e municípios”. Para os grupos da UFRJ e da USP trata-se de “mais uma ofensa à saúde e à vida” que não pode ser tolerada. Diante disso, o governo recua ou tenta contradizer tantas constatações. Vai ser difícil.

Não ouse, canalha

Não se trata de ciclotimia. Tampouco deve-se creditar exclusivamente ao zerinho mais ridículo e ao seu gabinete do ódio. A recaída grotesca de Jair Bolsonaro, com novo ataque ao Supremo Tribunal Federal e à democracia, é apenas um reflexo de seu caráter. Essa é a sua essência. Ele se julga acima de tudo. Uma vez eleito, em razão de um gigantesco equívoco nacional, Bolsonaro entendeu erroneamente que podia tudo. Achou estar ungido de um poder que a Constituição não lhe deu, não dá a ninguém, nem nunca dará. Por isso ameaça da maneira mais sórdida as instituições. Sua última foi afirmar que, com o apoio das Forças Armadas, descumpriria uma hipotética orientação judicial contrária a um suposto decreto seu proibindo governadores e prefeitos de baixarem restrições para o controle do coronavírus. Ele que não ouse. Será rechaçado e varrido.

Piada global

Aliás, quem será que municiou este homem com a ideia de que a China está se preparando para uma guerra bacteriológica, química e radiológica contra o planeta? Deve ter sido com aquele alucinado que desrespeitou o Senado ao fazer um gesto de supremacista branco enquanto o presidente do Congresso falava, na véspera da demissão de Ernesto Araújo do Itamaraty. O Brasil, que se tornou um pária global em razão das suas ações e omissões no combate à pandemia, agora virou piada internacional.

Off label

Um dia pousou na mesa de Bolsonaro uma minuta de decreto que o autorizaria a fraudar a bula da cloroquina para introduzir efeitos inexistentes contra a Covid. Foi o que ouvimos de Luiz Henrique Mandetta na CPI. O crime foi evitado pelo presidente da Anvisa. Vejam só, nem o almirante Barras Torres conseguiu atender o biruta do terceiro andar na sua mais ordinária tentativa de enfiar cloroquina na goela dos brasileiros. Daí passou-se a usar o termo off label, que designa o medicamento cuja indicação para o uso diverge do que consta da bula. Parece bonito, é em inglês. Os ignorantes adoram e repetem.

Troca-troca

Mandetta trocou pelo menos três vezes de máscara durante o seu depoimento à CPI da Pandemia. O presidente da Comissão, senador Omar Aziz, passava álcool em gel na sua máscara sempre que um assessor se aproximava para passar alguma informação. Cada um se cuida como pode.

Mãe Joana

Pelas contas do Ecad, órgão arrecadador de direitos autorais, há 6.478 músicas nacionais que têm a palavra “mãe” ou “mamãe” no título. Entre elas consta “Casa da mãe Joana”, de Marília Mendonça. Ao contrário do que sugere, a música não trata do governo Bolsonaro, mas sim de um coração partido.

Ordem para matar

A chacina do Jacarezinho teve o OK de um governador recém confirmado no cargo pelo impeachment do titular, daquele que queria matar bandido com “tiro na cabecinha”. A chacina se deu apesar de o STF ter proibido operações em favelas durante o transcorrer da pandemia de coronavírus. Além da incompetência, da arrogância e da brutalidade criminosa da polícia, a ação foi ilegal. E daí? Daí que o governador Cláudio Castro deverá prestar contas ao Supremo. Desobedecer ordem do tribunal é crime e pode resultar no afastamento do mandatário. Mais um.

O carismático

O governador que autorizou a matança no Jacarezinho é bolsonarista, o que talvez explique a truculência da operação. Mas, por outro lado, Cláudio Castro é católico da linha carismática, vai à missa todos os domingos e canta no coro da igreja. O governador cristão vai carregar para o resto da sua vida o recorde de mortos na história das ações da polícia do Rio.

E se fosse milícia?

A matança do Jacarezinho não ocorreria se a boca de fumo e o aliciamento de menores fosse num condomínio da Zona Sul, na Zona Oeste ou mesmo em área urbana da Zona Norte. Mas na favela invisível tudo pode, menos se ela for dominada por milícias. Como você acha que a polícia agiria se jovens estivessem (e estão) sendo recrutados em áreas da milícia? Não agiria. Os policiais poderiam encontrar muitos ex-colegas, parceiros de sueca e sinuca. Não daria certo.

O guarda da esquina

Foi em Minas que se comprovou a máxima do mineiro Pedro Aleixo de que um dos muitos perigos da ditadura reside na autoridade que se auto confere o guarda da esquina. Viu-se isso no domingo passado em Belo Horizonte, mesmo com o país vivendo a plenitude do seu vigor democrático. Um grupo de policiais militares, liderados pelo deputado estadual Bernardo Bartolomeu (Novo), invadiu um apartamento e prendeu um homem que estaria jogando ovos sobre manifestantes bolsonaristas que se aglomeravam no Centro da cidade. Os militares cometeram um crime ao invadir uma casa sem mandado judicial e por motivação esdrúxula. Sentiram-se respaldados porque temos o presidente que temos e ainda foram estimulados por um deputado pé de chinelo que tem a cara velha do Novo.

Erros na primeira

Na primeira página do GLOBO de quinta-feira, duas fotos chamavam a atenção. Na do alto, Jair Bolsonaro liderava um grupo de mais de 20 negacionistas na descida da rampa do Planalto. Na outra, senhoras aplaudiam Paulo Gustavo. Na de Brasília, faltou um dos mais importantes terraplanistas do círculo íntimo (ops) de Bolsonaro. Osmar Terra não estava lá. Na de Niterói, no primeiro plano, uma mulher sem máscara liderava o lamento pela morte do humorista causada pela Covid.

Fonte:

O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/privatizando-sus-1-25008683


Demétrio Magnoli: Lei do Estado democrático deve se circunscrever à ação violenta contra as instituições

Câmara revogou a Lei de Segurança Nacional, com módico atraso de 32 anos. No seu lugar, aprovou uma Lei do Estado Democrático que flerta, aqui e ali, com a criminalização da opinião política. Paira no ar o perigoso conceito de democracia militante.

A LSN já vai tarde. Bolsonaro e seu assecla André Mendonça a invocam, dia sim e outro também, para tentar intimidar críticos do governo. Mas, como o Bombril, a lei da ditadura tem mil e uma utilidades: o STF também achou conveniente brandi-la quando inaugurou o infindável inquérito das fake news. No percurso, diante do arruaceiro deputado Daniel Silveira, enfiou numa sacola única o elogio retórico do AI-5 e os crimes de incitação à violência e ameaça. Ao redigir a Lei do Estado Democrático, a Câmara avaliza a manobra dos supremos juízes.

“A Constituição não permite a propagação de ideias contrárias ao Estado democrático”, escreveu o STF ao tornar réu o parlamentar bolsonarista. Falso! Nada, na Carta de 1988, proíbe defender ideias autoritárias. Silveira tem o direito de elogiar o regime militar e suas leis, assim como comunistas da velha estirpe estão cobertos pelo princípio da liberdade de expressão ao propor a substituição do Congresso pelos sovietes. O que é proibido, para um como para os outros, é cruzar o limite entre a palavra e a ação.

Gilmar Mendes sustentou a criminalização da difusão de ideias autoritárias com base no conceito legal alemão de democracia militante (streitbare Demokratie). A Constituição da República Federal Alemã, de 1949, veta a negação do Holocausto e o uso da suástica. Mas o Brasil, que nunca experimentou algo como o nazismo, não se define como democracia militante. Por aqui, só são puníveis explícitos discursos de ódio contra segmentos da população, além de calúnia, injúria ou difamação.

A caduca LSN é um código de uma ditadura militante (há outro tipo?). No seu artigo 23, criminaliza “incitar à subversão da ordem política ou social”, expressão que permite encarcerar o comunista ortodoxo por palavras proferidas numa entrevista ou passeata pacífica. A nova Lei do Estado Democrático tipifica vagamente crimes “contra as instituições democráticas” e de disseminação “de fatos inverídicos” em redes sociais no curso de processos eleitorais. Na forma como redigida pela Câmara, oferece caminhos para encarcerar o cachorro que apenas late.

Talíria Petrone, líder do PSOL, identificou os contornos da besta: “Sabemos bem como esses tipos penais abertos podem levar à criminalização de movimentos sociais”. O PSOL ama a ditadura castrista, que persegue movimentos sociais como as Damas de Branco ou o Movimento San Isidro por meio da acusação legal de subversão. Mas a duplicidade moral não impugna a crítica específica: o texto pode, efetivamente, ser interpretado de modo a punir a mera palavra subversiva, tanto de direita quanto de esquerda.

“Não seríamos nós que iríamos escrever uma lei que perseguisse os movimentos sociais”, retrucou Orlando Silva. O deputado do PC do B é um pândego: seu partido ama de paixão o regime totalitário chinês, que editou a Lei de Segurança de Hong Kong, uma LSN com esteroides, para encarcerar os estudantes do Movimento Guarda-Chuva.

Há pouco, um popular youtuber investiu no negócio da moda, que é rotular Bolsonaro como genocida. André Mendonça, então ministro da Intimidação, poderia processá-lo por calúnia, exigindo retratação. Preferiu, porém, erguer a espada afiada da LSN. Quando apreciar o texto proveniente da Câmara, o Senado tem o dever de evitar a promulgação de uma “LSN do Bem” que, inevitavelmente, serviria aos propósitos dos Mendonças vindouros.

Já temos leis suficientes sobre as fronteiras da liberdade de palavra. A Lei do Estado Democrático deve se circunscrever à ação violenta contra as instituições. Nossa democracia não milita.

Fonte:

Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/05/a-democracia-nao-milita.shtml


João Gabriel de Lima: Uma razão para ter orgulho do Brasil

Uma ideia que ajudou a mudar o mundo nasceu, como algumas canções da bossa-nova, em guardanapos de papel. Era o ano de 2009 e almoçavam, em Brasília, a secretária nacional de Mudança Climática, Suzana Kahn Ribeiro, e o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. O assunto: o que o Brasil poderia sugerir na COP 15, a Conferência do Clima de Copenhague? Suzana rabiscou um esquema no guardanapo. Nascia a “espiral positiva”.

A ideia era simples. Suzana e Carlos achavam que o Brasil deveria propor, unilateralmente, a redução de suas emissões de carbono. Mais: fixar metas concretas. Ainda mais: expor-se ao escrutínio internacional, abrindo seus números. Houve resistências dentro do governo, cujo discurso – recorrente entre os caramurus à esquerda e à direita – era cheio de “não podemos abrir mão de nossa soberania” e “eles devastaram suas próprias florestas, não se metam com a nossa”.

A “espiral positiva” era, antes de tudo, um desejo, um “wishful thinking”: inspirados pelo exemplo do Brasil, vários países tomariam atitudes semelhantes, numa competição virtuosa. A ideia venceu as resistências internas – entre elas, a da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Ganhou a adesão do Itamaraty, com seu timaço de negociadores com experiência em meio ambiente (a coluna voltará ao assunto em breve).

No plano externo, o sucesso não foi imediato. Os brasileiros ganharam aplausos em Copenhague, mas não adesões. A semente germinaria seis anos depois. O Acordo de Paris, assinado em 2015, era precisamente a ideia do Brasil – países propondo voluntariamente metas de redução de carbono, com métricas críveis.

O que mudou em seis anos? “Ficaram claros os incentivos para uma economia de baixo carbono. Não se trata apenas de salvar o planeta, mas também de ganhar dinheiro”, diz Suzana Kahn Ribeiro, atualmente professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela discorre sobre o assunto no minipodcast da semana.

As oportunidades são inúmeras. Segundo Suzana, a China, que já foi refratária a metas de emissões, cresceu o olho sobre o mercado de energia renovável. Países nórdicos investem em madeira certificada: do lado certo da força, ganham a concorrência com nações que devastam florestas. Acessam, de quebra, o bilionário mercado de títulos verdes. O lado certo da força, diga-se, acaba de ser demarcado com sabre de luz pelo Obi-Wan da vez – o presidente americano Joe Biden.

Se há uma razão para que os brasileiros se orgulhem de seu país, é a liderança que já exercemos na área mais estratégica do planeta – a que garante a própria sobrevivência da esfera azul que habitamos. Além de inspirar, em alguma medida, o Acordo de Paris, o Brasil foi o berço do moderno combate à mudança climática – na Rio 92, marco positivo do governo Collor.

Perdemos, no entanto, essa primazia – e, com ela, oportunidades de enriquecimento e projeção internacional. “É possível que, depois da pandemia, o mundo se reconstrua como uma economia moderna”, diz Suzana. “Conectar-se com esse futuro é uma chance enorme.” O tema começa a entrar em pauta entre os pré-candidatos de oposição para 2022. Do governo atual, pelo que diz e faz, não se deve esperar nada.

O Brasil conhece bem o caminho para reconquistar alguma relevância no mundo. Já houve um tempo em que nossas ideias, rabiscadas em guardanapos de papel, faziam o planeta cantar – ou ajudavam a salvá-lo, inspirando boas práticas.

Fonte:

O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,uma-razao-para-ter-orgulho-do-brasil,70003708202


Bernardo Mello Franco: Tropa de trapalhões

Em duas semanas, o Planalto já acumula ao menos sete vexames na CPI da Covid. A série começou quando o UOL publicou uma planilha da Casa Civil com 23 acusações contra o governo. A lista foi redigida para ajudar os bolsonaristas. Ao vazar, virou arma para a oposição.

Na semana passada, O GLOBO revelou que requerimentos assinados por senadores governistas foram produzidos em computadores da Presidência. Os registros eletrônicos mostram que os parlamentares atuaram como laranjas do capitão.

Nesta terça, o ex-ministro Henrique Mandetta expôs mais uma lambança. O ministro Fábio Faria enviou para o celular dele, por engano, uma pergunta que seria feita pelos aliados de Bolsonaro.

No dia seguinte, os governistas protagonizaram outro papelão: tentaram impedir as representantes da bancada feminina de falar. Os senadores Ciro Nogueira e Marcos Rogério se esforçaram para calar as colegas no grito. Foram desautorizados até por Soraya Thronicke, uma bolsonarista de carteirinha.

O general Eduardo Pazuello ainda não deu as caras, mas já acumula dois vexames na CPI. Na terça, apresentou uma desculpa esfarrapada para adiar seu depoimento. Disse que teve contato com dois coronéis contaminados, embora não tenha se prestado a fazer um teste de Covid-19.

Ontem o drible se transformou em escárnio. Enquanto dizia estar isolado no hotel de trânsito do Exército, o general fujão recebeu a visita do ministro Onyx Lorenzoni.

O sucessor de Pazuello protagonizou a sétima trapalhada governista. Num depoimento arrastado, Marcelo Queiroga deixou dezenas de perguntas sem resposta. A cada enrolação, evidenciava o medo de dizer algo que desagradasse o chefe.

“O senhor é médico, fez o juramento de Hipócrates, mas não consegue responder àquilo que eu pergunto”, protestou o senador Otto Alencar. Queiroga continuou a embromar e voltou para casa com o apelido de ministro Rolando Lero.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/tropa-de-trapalhoes.html


Hélio Schwartsman: Pazuello, covarde ou herói?

general Pazuello fugiu do depoimento que daria à CPI da Covid. Isso é fato. Resta determinar se o fez por covardia ou bravura. É claro que estou sendo irônico, mas menos do que o leitor imagina. A relação entre covardia e bravura é irredutivelmente paradoxal.

O guerreiro que nada teme não faz nada de extraordinário quando enfrenta a morte no campo de batalha. Para que sua atitude tenha algo de heroico, é preciso que ele tenha medo, se não de perder a vida, dos chamados destinos piores que a morte, como viver em desonra ou ver seus familiares e compatriotas reduzidos à escravidão. E basta admitir que o medo é indissociável da bravura para gerar situações contraditórias.

Gosto de uma observação do marechal Georgi Jukov: “No Exército Vermelho, é preciso ser muito valente para ser covarde”. É que os soviéticos punham em campo as temíveis companhias penais, que fuzilavam imediatamente qualquer soldado que parecesse recuar. Estima-se que centenas de milhares tenham sido mortos por esses pelotões.

Num exemplo mais literário e mais doméstico, Gonçalves Dias cria um I-Juca Pirama tão valente que não teme passar por covarde para cumprir suas obrigações filiais, sendo rejeitado até mesmo pelo pai pelo qual sacrificara a honra aparente.

Em qual contexto a fuga de Pazuello da CPI poderia ser interpretada como um ato de bravura? Lealdade. O general é tão leal ao comandante em chefe que não hesita em passar por covarde para protegê-lo. O fato de Pazuello ser um militar, carreira em que a covardia é o pior anátema que pode ser pespegado a alguém, torna seu sacrifício ainda mais trágico.

Só o que impede o general de ter seu destino imortalizado em versos são as motivações do chefe. Elas são tão mesquinhas que apequenam qualquer heroísmo. Se Pazuello não é covarde por ter fugido da CPI, o é por não ter denunciado os crimes de Bolsonaro.

Fonte:

O Globo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/pazuello-covarde-ou-heroi.shtml


Beatriz Della Costa: A sociedade civil tem que pautar a política

Umas semanas atrás fui entrevistada por uma jornalista que me perguntou assim: “Como mudar a situação do Brasil?”. Minha primeira reação foi partir para o óbvio: lockdown, vacina e auxílio emergencial. “Mas o que podemos fazer hoje para transformar esse cenário amanhã?”, ela insistiu. Fiquei aflita, pois não tenho a resposta. O que pude dizer foi que não há solução imediata, que a ideia do impeachment se esvai a cada dia e que já está bem claro que somos triplamente reféns: do vírus, do Governo negacionista e de políticos fisiologistas.

A conversa me deixou reflexiva. Primeiro pela essência da pergunta em si, que enfatiza o quanto estamos todos ansiosos para sair do buraco. Depois, pela constatação da inexistência de uma saída rápida. O bolsonarismo está por aí desde antes de 2018 e, de uma forma ou de outra, vai persistir para além de 2022 ou 2026. Ele representa um pensamento com o qual 30% da população de certa maneira se identifica. Então, querer mudar o futuro é, primeiro, ser capaz de olhar para este presente e entendê-lo a partir das heranças do passado, boas ou ruins. Precisamos lembrar que o bolsonarismo apenas vocaliza o comportamento de um país que se desenvolveu a partir do autoritarismo, da escravidão, da violência, do extrativismo.

E o que a gente sente é que ninguém, seja no governo ou na oposição, está preocupado em fazer isso, em delinear um projeto de país. Os partidos e os políticos, os tais fisiologistas de que falei, estão ali travando uma disputa de cabo de guerra que nada tem a ver com você ou comigo. De onde, então, pode vir a esperança? A que podemos nos apegar?

Sou cética no que diz respeito a uma oposição que, sem propostas, busca a união pela via do “anti”, mas confesso que aquele primeiro discurso de Lula depois de seu retorno ao jogo político, em março, me fisgou. Vi ali uma chance de enfim fugirmos destes tempos com sabor de 1964. A questão que fica é: para que futuro Luiz Inácio nos levaria? Chegaríamos finalmente à terceira década do século XXI? Ou iríamos para o futuro de 2010, numa continuidade direta de seu segundo mandato? Seja como for, a escolha entre 1964 e 2010 não é nada difícil.

Não tenho dúvidas, entretanto, de que a única maneira de entrarmos de vez no século XXI é nos livrando por completo da ideia de salvadores da pátria. Não existe mágica, não existem personificações puras do bem e da mudança. Qualquer pessoa que se proponha a botar o país nos eixos, a nos reinserir numa linha do tempo próxima à realidade, deve governar pelo diálogo com os mais diferentes grupos da população. Lula talvez esteja dando umas dicas de que está disposto a fazer isso (anda falando de imprensa livre, segurança, relações internacionais, pandemia e de vez em quando até de meio ambiente), mas já conhecemos suas limitações: além de representar um grupo político com visões enraizadas no fim do século XX, também é, de certa forma, parte do problema que vivemos.

No meio disso tudo, a sociedade civil tem a grande missão de começar a pautar a política de maneira menos centralizada e dependente. Precisamos disseminar o diálogo construtivo entre o poder público e, também, entre a população. Desde já, as organizações precisam ouvir brasileiros de todos os tipos, brasileiros que pensam de muitas maneiras, brasileiros que votam em pessoas diferentes. Isso vai decifrar insatisfações e, o mais importante, desvendar os pontos de convergência que podem fomentar um projeto de país e repavimentar a estrada para um Brasil justo e humano. Poucos países têm uma sociedade civil tão sólida, é hora de usarmos isso a nosso favor.

Sei que estamos resolvendo emergência atrás de emergência. Quando o encanamento se rompe e tudo fica debaixo d’água, vamos pensar em chamar um bombeiro hidráulico ou na reforma da casa? É possível lidar com a urgência e ao mesmo tempo se dedicar à construção de um futuro? Só há uma resposta: tem que ser. Estamos diante do grande desafio desta geração, a reconstrução do nosso tecido social. E chegou o momento de enfrentarmos nossos medos e as sombras do nosso passado, estabelecermos conversas, praticarmos a tolerância e sairmos Brasil adentro para construir nossos sonhos para o século XXI.

Beatriz Della Costa é cientista social, cofundadora e diretora do Instituto Update, organização da sociedade civil sem fins lucrativos que lançou em 2020 o projeto Eleitas: Mulheres na Política (www.eleitas.org.br), que mapeou mais de 600 mulheres e entrevistou mais de 100 para mostrar como elas vêm transformando a política, a sociedade e a democracia na América Latina.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-05-05/a-sociedade-civil-tem-que-pautar-a-politica.html


Alon Feuerwerker: O atraente bidenismo

A política econômica do governo Joe Biden vem atraindo certo entusiasmo nas correntes políticas da oposição, pela esquerda, ao governo Jair Bolsonaro. É compreensível. Após muitos anos de difusão do chamado Consenso de Washington, eis que na capital do mesmo nome surge uma administração a propor, entre outras coisas, emitir moeda, reforçar o papel do investimento estatal e taxar quem tem mais, para distribuir a quem tem menos.

A mudança ali, com as ondas de influência irradiadas mundo afora, soma-se vetorialmente por aqui a uma certa frustração com a colheita das políticas aplicadas desde pelo menos a Ponte para o Futuro de Michel Temer. Na sequência veio a dupla Bolsonaro-Paulo Guedes. É razoável admitir que existe alguma continuidade nas orientações definidas para a economia pelos governos que mandam no Planalto desde a ruptura de 2016.

Claro que a análise objetiva exige levar em conta as circunstâncias. Cada um de nós é ele mesmo e suas circunstâncias. Uma foi o governo Temer ter entrado em modo de sobrevivência por razões da área policial, e depois a pandemia da Covid-19 pegou pela proa a administração Bolsonaro. Mas aí enveredamos pelo terreno das explicações e justificativas. E na política, a exemplo de outras esferas da vida, quem começa a se explicar e justificar já está perdendo.

Os ventos bidenistas e a crônica pasmaceira econômica acenderam no Brasil o desejo de uma guinada. Mas qual a viabilidade dela? Que candidato com chances vai pegar a estrada em 2022 dizendo que irá fazer dívida pública pesada para ampliar o investimento estatal e prometendo tomar o dinheiro dos “ricos” (que no Brasil, na prática, incluem uma gorda fatia da classe média) para redistribuir renda pela mão do Estado?

Políticas econômicas precisam ter, antes de tudo, viabilidade política. Há sim teóricos respeitáveis que garantem: fazer dívida em moeda nacional não produz inflação. Mas qual presidente vai arriscar, no sempre instável cenário institucional brasileiro, colocar todas as fichas numa teoria contraintuitiva? Se der errado, seus autores no máximo farão autocrítica. Já o político provavelmente terá ido para o cadafalso, talvez metafórico.

Há uma diferença importante entre o Brasil e os Estados Unidos. Eles podem legalmente imprimir dólares sem lastro e nós podemos imprimir reais sem lastro, mas não parece que as consequências venham a ser as mesmas. Isso e outros fatores devem impelir os candidatos competitivos a buscar soluções mais convencionais. Uma em especial: a atração maciça de capitais externos para fazer subir a taxa de investimento privado.

Eis por que no próximo governo, pois entramos na etapa conclusiva deste, talvez um ministério de importância renovada será o das Relações Exteriores. E quem sabe não deveríamos voltar nossos olhos também para o Oriente, em vez de apenas para o Norte? É pouco razoável imaginar que a economia brasileira vai se erguer puxando os próprios cabelos para cima. Ou colocando todas as fichas de política exterior numa única casa.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

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Publicado na revista Veja de 28 de abril de 2021, edição nº 2.737

 

 

Fonte:

 

Análise Política
http://www.alon.jor.br/2021/05/o-atraente-bidenismo.html

 

Veja
https://veja.abril.com.br/blog/alon-feuerwerker/o-atraente-bidenismo/


Cristovam Buarque: Olhar para frente

Há meses o debate político se restringe ao eleitoral, limitado à opção entre PT, Bolsonaro ou candidatos no que vem sendo chamado de Centro ou Polo Democrático. Os que fazem parte deste grupo têm a tendência a achar que qualquer nome deles, se unidos, teria lugar no segundo turno.

Esquecem o imenso número de eleitores entre os nem-nem, que são nem-nem-nem. Dependendo do nome escolhido pelo Polo ou Centro, preferirão votar em branco ou nulo ou viajar no dia da eleição.

O eleitorado descontente com o PT e com Bolsonaro quer mais do que outro nome, quer um candidato que aponte para o futuro, um quadro político diferente, nem o desastre atual nem a volta para o passado. Mas lamentavelmente, o Polo ou Centro democrático não está apontado um rumo para frente.

Com este propósito este Polo tem apresentado nomes de qualidade, como Ciro, Huck, Dória, Mandetta, Leite, cada um com suas qualidades. A novidade do novo nome, Tasso Jereissati, é que ele tem fortes ligações com os outros candidatos, o que facilitaria a unidade de todos em torno a ele no primeiro turno, no segundo ele tem eleitores entre bolsonaristas e entre petistas, mantendo diálogo com o próprios Lula e outros líderes do PT. Além disto, tem experiência e uma narrativa para a transição para o fim do atual período de exceção que atravessamos. Neste sentido, é positivo que ele tenha manifestado que seria presidente comprometido com um só mandato, para recuperar o que foi perdido.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

Blog do Noblat
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/olhar-para-frente-por-cristovam-buarque


Luiz Carlos Azedo: A CPI da necropolítica

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado começa suas oitivas hoje, com os depoimentos dos ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. O primeiro foi defenestrado pelo presidente Jair Bolsonaro, que ficou enciumado da popularidade do médico ao liderar o Sistema Único de Saúde (SUS) na pandemia. O segundo pediu demissão rapidinho e se recusou a endossar as teses negacionistas do presidente da República. O cenário de atuação da pandemia é emoldurado por 400 mil cruzes, que podem chegar a 500 mil, antes de a comissão concluir seu trabalho, no prazo de 90 dias.

Mais de 300 requerimentos de informações já foram aprovados na CPI, mas esses dois depoimentos têm o poder de dar o rumo de suas investigações. Os dois ex-ministros são médicos e têm plena dimensão das razões que nos levaram à tragédia sanitária atual. Os passos seguintes serão ouvir o general Eduardo Pazuello, amanhã, e o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, na quinta-feira. Ambos terão que dar respostas convincentes aos integrantes da CPI.

Pazuello é um caso perdido, coleciona decisões e atitudes equivocadas. Se mantiver a costumeira soberba, estará no sal. Queiroga é médico, porém, ainda está enrolando o paraquedas. Manteve a maioria dos militares que assessoravam Pazuello. Sem confrontar o negacionismo do general, está se atrapalhando com a campanha de vacinação, sobretudo devido aos erros do antecessor. Pode complicar a vida de Pazuello ou se complicar, se fizer o contrário.

Ontem, Queiroga anabolizou o número de vacinados no Brasil, durante encontro na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp): “Hoje já temos imunizados com as duas doses cerca de 18% da população brasileira. Isso é um dado importante, e vamos avançar mais”. Mais fake news, impossível: a segunda dose foi aplicada em 15.869.985 pessoas, ou seja, 7,49% da população do país. Com a primeira dose, são 31.875.681 de imunizados, o que equivale a 15% da população.

Criar falsas expectativas é uma especialidade do Ministério da Saúde, que corre atrás dos atrasos na vacinação desde o início do ano. Nesta semana, oito capitais interromperam a imunização por falta de vacinas: Aracaju, Belo Horizonte, Belém, Campo Grande, Porto Alegre, Porto Velho e Recife. Entretanto, apesar do ritmo lento, a vacinação vem reduzindo o número de mortos na população de risco. As medidas de distanciamento social nos estados e municípios contribuíram para reduzir a taxa de transmissão do vírus para menos de 1, o que está se refletindo na queda do número de casos e de mortos.

Tragédia social
O problema é que o patamar ainda está muito alto: o país registrou 1.210 mortes pela doença nas últimas 24 horas e totalizou 407.775 óbitos desde o início da pandemia. Com isso, a média móvel de mortes nos últimos sete dias chegou a 2.407. Em comparação à média de 14 dias atrás, a variação foi de -16%, confirmando a tendência de queda. Se Bolsonaro tivesse bom senso, estimularia a adoção de duas ou três semanas de lockdown nos municípios mais importantes do país e jogaria o índice de contaminação no chão.

O que acontece é o contrário, o presidente Bolsonaro estimula aglomerações, como as que ocorreram no domingo, e se recusa a tomar a vacina, bem como a usar máscaras. Sabota sistematicamente os esforços das autoridades de saúde para conter a pandemia. Do ponto de vista estratégico, essa atitude foi um erro que pode lhe ser fatal nas eleições de 2022. Num país continental como o Brasil, uma crise sanitária dessa envergadura desorganiza a economia e destrói atividades produtivas, deixando ao relento e com fome milhões de pessoas. São os frutos envenenados da “necropolítica”. Esse conceito do filósofo negro e historiador camaronense Achille Mbembe define a política de governo que escolhe quem deve viver e quem deve morrer. Infelizmente, traduz a situação em que vivemos.

Até breve. Em férias, deixarei de assinar a coluna por quatro semanas.

Blog do Azedo / Correio Braziliense
https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/a-cpi-da-necropolitica/


Benito Salomão: O keynesianismo envergonhado de Paulo Guedes

O Brasil da segunda metade da década de 2010 tinha uma agenda econômica clara, interromper a trajetória explosiva da dívida pública e ao menos equilibrar o orçamento primário da União em déficit desde 2014. Inúmeras medidas foram empreendidas neste sentido, porém no meio do caminho, houve uma eleição. O projeto vencedor nas urnas prometeu zerar o déficit primário já no primeiro ano de governo. Justiça seja feita, o déficit não foi zerado, mas houve uma redução em termos reais dos R$136 bilhões em de 2018, para cerca de R$85 bi, em 2019. Não é pouca coisa, no contexto de estagnação da economia e de crescimento compulsório do gasto público obrigatório.

Mas veio a pandemia e com ela a necessidade de ampliar o gasto. Muitos atribuem tal expansão fiscal ao célebre economista britânico John Maynard Keynes que jamais escreveu sobre isto em sua Teoria Geral de 1936. Porém, o governo brasileiro e dentro dele, a equipe econômica, preferiram subestimar a doença por vias de uma coleção de falas infelizes como “com qualquer R$5 bilhões a gente aniquila com o Coronavírus”. Gastaram R$524 bilhões e o país entrou em colapso sanitário.

Até o presente momento, a Pandemia trouxe a óbito cerca de 3,1 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, que deve passar os Estados Unidos em número de mortos nos próximos meses, até o presente momento morreram cerca de 392 mil pessoas. Apenas a título de comparação, a guerra civil na Síria que completou 10 anos no último dia 15/03, fez cerca de 388 mil vítimas segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH). O COVID-19 no Brasil matou mais em pouco mais de 14 meses do que o maior conflito civil do nosso tempo matou em 10 anos.

Trata-se, portanto, de um contexto de guerra, sem escombros, mas com muitas vítimas. E não se faz ajuste fiscal em guerras. Nestes contextos, o orçamento precisa proteger as pessoas. O Brasil não pode ser acusado de não ter gastado durante a pandemia. Segundo o Tesouro, a soma gasta exclusivamente com despesas relacionadas ao combate do COVID-19 em 2020 foi R$524 bilhões, pouco mais de 7% do PIB. Em comparações internacionais o Brasil gastou mais do que países como Israel (6,1% do PIB), Dinamarca (5,1%) e Noruega (4,35%). Mas mesmo com todo esforço fiscal, o país não evitou a hecatombe humanitária que levou a colapso os sistemas público e privado em todo o território nacional.

O problema não é a falta de gasto, mas sim a eficiência do mesmo. Gastou-se muito, porém gastou-se mal. Ao final do processo o país terá um enorme passivo fiscal e um gigantesco trauma humanitário. Por dois anos seguidos, o Estado do Amazonas foi acometido por um enorme caos sanitário. A pergunta é, por que a região norte do país não teve seu acesso limitado de forma preventiva (exceto para a chegada de suprimentos) durante a primeira onda, antes que o caos se instalasse? Uma região de amplo território com pequenas populações demasiadamente espalhadas em localidades de difícil acesso. Não seria muito mais eficiente, em termos sanitários e financeiros, impedir (ou postergar) que o vírus lá chegasse, do que levar atendimento médico e estrutura hospitalar depois que a situação já era grave? Enquanto isso os esforços e recursos seriam direcionados para as periferias dos grandes centros do Sudeste, por onde a doença entrou no país e se mostrou igualmente grave.

Olhando para o orçamento direcionado ao COVID-19 em 2020 no Gráfico 1, o principal item de gasto foi o auxílio emergencial, pago em 9 parcelas que ao final custou R$293 bilhões ao Tesouro. Se o governo tivesse pago por 4 meses, um auxílio de R$1000 mensais o impacto fiscal teria sido de R$256 bilhões. Se isto fosse vinculado às medidas de isolamento social, auxiliando a federação na implementação de um lockdown verdadeiro, com cerca de 2 meses de duração, mais 2 meses para reabertura das economias em etapas, quantas mortes seriam evitadas no auge da primeira onda da doença? Tudo isso sem falar o descaso absoluto da União para com a aquisição de vacinas, dos R$524 bilhões gastos ano passado, apenas R$2.2 bi foram gastos com a compra de imunizantes. Não fosse os esforços do Governo do Estado de São Paulo, a calamidade seria maior.

O descaso com a aquisição de vacinas está causando o prolongamento e ampliação da crise fiscal. Apenas para que se tenha a exata noção, o decreto que instituiu a calamidade pública do Coronavírus durou 288 dias. O custo fiscal diário da pandemia foi superior a R$1,8 bilhões. Com uma segunda onda ainda mais devastadora e possibilidade de uma terceira onda em 2021, o governo vai gastar, principalmente adquirindo vacinas, ou deixar o número de mortes ser a variável de ajuste, junto com a proliferação da pobreza e da fome? Este é o pior cenário possível para as contas públicas, primeiro porque o descontrole da pandemia no tempo vai exigir mais gastos por muito mais tempo, segundo porque isto leva a quarentenas intermitentes que derrubam a arrecadação. Ficaremos com a dívida e com os mortos.

Com isto, o ministro Paulo Guedes faz uma política “Keynesiana” um pouco constrangida, envergonhada e desconectada de objetivos claros. Este é o problema de servir o Governo sendo vinculado à ideologia. Vez ou outra a realidade cobra uma revisão intelectual dos nossos pressupostos. Max Weber previu o duro dilema do homem público que por vezes é posto diante da escolha entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção. Se o país vive uma situação de guerra e o aumento temporário de despesas públicas é uma realidade impositiva, que a convicção seja posta de lado e a responsabilidade seja assumida. Afinal, o que se espera do resultado final do gasto público? O Brasil terá evitado mortes com estes gastos? Terá evitado falências? Terá fortalecido o SUS? E o day after da pandemia? Como o governo está se organizando para quando a pandemia acabar?

*Benito Salomão é economista.

Fonte:


Carlos Pereira: Governar sai caro para Bolsonaro

O Brasil foi surpreendido com a notícia de que a Lei Orçamentária Anual, além de ter sido aprovada muito tardiamente, alocou o valor de R$ 49,3 bi em emendas dos parlamentares ao Orçamento. Políticas públicas provenientes dessas emendas são peça-chave para a sobrevivência eleitoral de parlamentares, pois, ao nutrir as suas redes locais de interesse nos municípios, elas aumentam as chances de reeleição dos legisladores.

Esse valor é substancialmente maior do que os alocados em anos anteriores. Na realidade, tanto a demanda dos parlamentares por emendas como seu gasto efetivo durante o governo Bolsonaro quase triplicaram: de R$ 19,2 bi para R$ 46,3 bi (LOA) em 2019 e de R$ 5,7 bi para R$ 16,1 bi (pagas) em 2020, respectivamente.

Para abrir espaço a essa demanda vultosa de emendas, os parlamentares subestimaram alguns dos gastos obrigatórios do governo. Diante dos riscos de que essa escolha abrisse flancos jurídicos com a Lei de Responsabilidade Fiscal e com o teto de gastos, o governo foi obrigado a vetá-las parcialmente para o montante de R$ 35,5 bi.

Por que o governo Bolsonaro tem sofrido esse expressivo aumento nos custos de governabilidade?

Os custos de governabilidade são inflacionados quando o presidente está politicamente vulnerável com a sociedade e/ou quando gerencia mal a sua coalizão. Além de pagar mais caro, o presidente também corre riscos de perder poderes outrora delegados pelos próprios legisladores.

No governo FHC, por exemplo, a perda em 2001 da prerrogativa de reeditar indefinidamente medidas provisórias decorreu da quebra da sua coalizão, com saída do PFL, e da queda de sua popularidade. Em 2015, Dilma perdeu o direito de executar de forma discricionária as emendas individuais ao Orçamento, após ver sua popularidade despencar e enfrentar vários problemas na sua coalizão. Temer também foi compelido a executar de forma impositiva emendas dos parlamentares para barrar as denúncias de corrupção da PGR. Já Bolsonaro viu o Congresso promulgar o Orçamento impositivo também para as emendas coletivas das bancadas estaduais ao Orçamento quando perdeu suporte entre os eleitores sem ter uma coalizão majoritária.

Os parlamentares perceberam que as emendas impositivas não mais exigiriam apoio ao governo para que fossem executadas. Com isso, o governo tem precisado encontrar outras moedas de troca, como é o caso das “transferências especiais”, conhecidas como emendas “cheque em branco”, pois não requerem informação sobre a destinação de recursos nem prestação de contas aos órgãos federais de controle.

Os custos que o presidente tem enfrentado não são apenas financeiros. O Executivo nutria a esperança de que a sua vida viesse a ficar mais segura e tranquila com a eleição dos seus candidatos a presidente da Câmara e do Senado. Mas o perfil minoritário de sua coalizão não foi suficiente para que a CPI da Covid deixasse de ser instalada e em condições de minoria.

Se as organizações de controle “externas” à política (Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal, Tribunais de Contas etc.) têm apresentado um certo arrefecimento diante das iniciativas de interferência do governo Bolsonaro, os parlamentares conseguiram, por meio da CPI da Covid, ressuscitar um dos objetivos precípuos e constitutivos do Legislativo. Qual seja, exercer o controle direto do Executivo.

Parece existir no Brasil uma espécie de efeito substitutivo entre mecanismos de controle externos e internos ao Executivo. Quando os primeiros estão presentes e ativos, o Legislativo prefere não arcar com os custos de controlar diretamente o presidente. Mas, quando percebe fragilidades nos controles externos, assume esse papel abertamente.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,governar-sai-caro-para-bolsonaro,70003701856


Moisés Naím: O grande descompasso

Os cientistas nunca tiveram dúvidas de que teríamos uma vacina contra a covid19. E não estavam errados. Muito poucos, entretanto, previram que tal vacina estaria disponível tão rápido. Acertaram ao presumir que teríamos uma vacina contra esse vírus, mas erraram em suas estimativas da velocidade com que isso aconteceria. A experiência histórica indicava que levaria anos para a vacina se desenvolver e se tornar disponível em grande escala. Os cientistas começaram a pesquisar a covid-19 em janeiro de 2020 e pouco depois estavam prontos para iniciar a fase 3 dos testes clínicos, a qual avalia a eficácia da vacina em um grande número de pessoas. Normalmente, passam-se anos até que qualquer medicamento ou tratamento esteja pronto para os estudos de fase 3. Nesse caso, foram seis meses.

O mesmo está acontecendo com as mudanças climáticas e a revolução digital baseada na inteligência artificial. Os especialistas identificam corretamente as tendências das mudanças, mas subestimam a velocidade com que ocorrem.

O desenvolvimento científico e tecnológico é uma das tendências que sempre definiram a humanidade. Outra tendência histórica é que as novas tecnologias tendem a ter consequências imprevistas na sociedade, na economia e na política. E, claro, nos governos, que estão sempre desatualizados e atrasados nas mudanças tecnológicas.

O que aconteceu com a vacina contra a covid-19 – sua invenção, produção e distribuição – é um exemplo revelador desse perigoso descompasso entre tecnologia e política. Se o esforço científico foi global, a resposta dos governos foi local. Se laboratórios de diferentes países compartilharam dados e informações, governos importantes, como o chinês, por exemplo, os ocultaram ou desconversaram.

Os cientistas mostraram visão, flexibilidade e velocidade, os governos foram míopes, rígidos e lentos. Tudo isso não quer dizer que não tenha havido rivalidades entre alguns cientistas e acirrada competição entre as empresas farmacêuticas. Mas todos nós vimos como, enquanto os cientistas respondiam efetivamente à crise, políticos e governos de muitos países negavam a própria existência da pandemia ou a minimizavam, ridicularizavam o uso de máscaras ou a necessidade do distanciamento social, promoviam tratamentos fraudulentos e o uso de medicamentos milagrosos.

As normas, regras e valores que orientam o comportamento dos políticos são, por certo, muito diferentes daqueles que orientam os cientistas. Se, para os cientistas, o mérito individual é muito importante, os políticos privilegiam a lealdade de seus colaboradores e seguidores. Para os cientistas, as decisões devem se basear em dados e evidências, enquanto os políticos tradicionais se fiam muito em suas experiências, passagens e intuições anteriores. Enquanto a pesquisa científica busca mudanças por meio da criação e adoção de novos conhecimentos, a política muitas vezes privilegia ideias e formas de agir conhecidas – mesmo que, em seus discursos, todos os políticos se apresentem como agentes da mudança. Por fim, o método científico se fundamenta na razão e na verificação empírica de afirmações cuja validade pode ser verificada e replicada por outros. Na política, por outro lado, prevalecem as paixões e crenças pessoais, bem como as crenças religiosas e o pensamento mágico.

Tudo isso não significa, é claro, que entre os cientistas não existam comportamentos influenciados por paixões, interesses e preconceitos, ou que entre os políticos não existam casos de meritocracia, racionalismo e promoção da mudança. Mas o que esse contraste revela são algumas das fontes do descompasso entre ciência e política.

O atraso da política se manifesta brutalmente na estagnação dos governos, em seu funcionamento e, principalmente, nos processos de tomada de decisão em matéria de políticas públicas. Os políticos fariam bem em adotar o espírito de experimentação que sempre definiu a ciência. Isso, ao lado da abertura a novas ideias, a avaliação imparcial das evidências e a força da realidade empírica, poderia começar a reconstruir a credibilidade das democracias diante das múltiplas crises que as ameaçam. A alternativa – o status quo – oferece apenas o aprofundamento da crise de desgoverno que tem assolado tantas democracias ocidentais.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,o-grande-descompasso,70003701855