cpi da covid
Carlos Andreazza: Um modo de privatizar
O Parlamento esteve paralisado — por mais de semana — em decorrência do caso Daniel Silveira; escada para que Arthur Lira pusesse em marcha o trator que pretendeu alargar a câmara de blindagem que distingue a casta política brasileira. Afinal, a PEC da Impunidade não prosperaria. Mas foi a agenda legislativa do Brasil — ainda sem Orçamento para 2021, ainda sem solução para a volta do auxílio emergencial — na semana em que o país bateu o recorde de mortos pela peste em um só dia.
Nada mais se moveu no Congresso, desde a prisão do deputado, senão a tentativa corporativista de subverter o princípio da imunidade parlamentar para que crimes como o de Silveira — contra a ordem democrática — restassem autorizados. O Parlamento, à cata de escudar seus investigados por corrupção, quase aceitou dar guarida à fábrica de conflitos que ataca a própria democracia representativa. Exemplo perfeito do que produz a sociedade entre bolsonarismo e Centrão. Exemplo também de por que a natureza — para o golpismo — da base social que elegeu Bolsonaro contamina e interdita qualquer pauta reformista.
Avalie-se a constituição da persona do presidente e do fenômeno reacionário que encarna — exercício que mostra como sempre foi improvável crer que um seu governo pudesse reformar o Estado. Um sujeito cuja ignorância econômica forjou-se na segunda metade da década de 1970; péssimo militar cujos rudimentos sobre economia beberam do fetiche de um Brasil Grande induzido pelo governo central.
O apego ao tamanho da superfície estatal aumentaria com a chegada a Brasília. No curso de três décadas, Bolsonaro — aboletado nas bordas fartas (aquelas recheadas de catupiry) da pizza do establishment — se estabeleceria como bem-sucedido líder classista, agente contra qualquer esboço de diminuição do território em que ergueu frutífera (sim, laranjas) empresa familiar.
Um tipo que, para acrescentar complexidade ao reformismo impossível, tornou-se competitivo nacionalmente ao incorporar a demanda de ressentimentos variados contra o sistema de que sempre foi parte, eleito presidente associado a (e dependente de) um ímpeto por ruptura institucional, movimento desestabilizador em essência, que tem personificação em Daniel Silveira e efeito materializado na revolução dos caminhoneiros que travou o país em 2018.
Um presidente — com cabeça de sub-Geisel, que, agora desde o Planalto, orienta-se em função dos interesses dos mesmos grupos de pressão (armados, não raro amotinados) de quando era vereador — que é o próprio núcleo provedor da instabilidade avessa ao mais mínimo programa de reformas do Estado. Isso, claro, se houvesse projetos para reformar o Estado. Não há. Porque a Bolsonaro se juntou — para compor este raro espetáculo de estelionato eleitoral — um ministro da Economia incompetente como gestor público e que, politicamente autoritário, apaixonou-se pelo populista autocrata que o chefe é. Reformas?
Não se iluda mais, amigo liberal. Daqui até 2022, com algumas migalhas para as viúvas de um Guedes de fantasia, a parceria entre iguais — Bolsonaro e Lira — trabalhará por proteção e reeleição; o que significará mais Estado, contida na ideia de proteção a defesa das mamas em que os presidentes da República e da Câmara engordam há décadas. (Mas você pode acreditar que os estudos modais para a capitalização da Eletrobras avançarão celeremente até que a operação esteja pronta, a ser realizada à véspera ou no próprio ano eleitoral.)
Veja-se a maneira como vai humilhada a tal PEC Emergencial, prioridade de Paulo Palestra. Um projeto que se tentou requentar socado como contrapartida à retomada do auxílio; transformado, porém, numa frondosa árvore de jabutis perversos, a ponto de se haver condicionado a retomada urgente do auxílio ao fim dos pisos constitucionais para Saúde e Educação. Uma aberração. Que não prosperará — felizmente. Mas de cujo impasse se insinua, tocado pela pressa, o improviso. Tem método. O bolsonarismo depende de volubilidades.
O ciclo da fortuna bolsonarista, beneficiado e acelerado pela peste, consiste em prolongar — pela inação calculada — a circulação do vírus, provocar o caos (pela falta de vacinação em massa), atribuir responsabilidades a inimigos artificiais (governadores) e colher créditos extraordinários, para os gastos populistas que financiarão 2022, liberados pela urgência em enfrentar problemas deliberadamente gerados pelo governo Bolsonaro.
Porque o auxílio voltará — sempre se soube, mesmo quando se apregoava a mentira de que o vírus cedia, e a economia se recuperava em V. E a PEC Emergencial avançará, tudo indica, como síntese do liberalismo do amanhã de Guedes; minguando no Senado até resultar num corpo de compensações fiscais desprovidas de impacto imediato. Isso se o auxílio não regressar sem o estabelecimento de qualquer resposta fiscal — nem mesmo as empurradas ao futuro. A pandemia — que é sustentada no Brasil — desculpa e justifica. Reaja-se.
É o que querem Bolsonaro e seus parceiros do Centrão: um cheque especial, à margem do teto de gastos, para investir em popularidade e apaniguados — e que se dane a dívida pública. O minion Guedes topa. O presidente informa que as privatizações devem ficar para 2023. Não mente. A autocracia é um modo de privatizar. Guedes fica. Sabe bem ao que serve.
Andrea Jubé: A pandemia pela cartilha do coronel
Para Randolfe Rodrigues, últimos fatos precipitam CPI da covid
O Coronel Emílio é um chefe político de prestígio local, cujos domínios se estendem pelas fazendas de gado e metade da vila. Certo dia, ele recebe a notícia do assassinato de Bento Porfírio, um de seus capatazes, que estava de chamego com a prima De-Lourdes, casada com o Xandão Cabaça.
Quando o marido descobriu a traição, espreitou o detrator em uma pescaria, golpeou-o pelas costas com uma foice e fugiu sem deixar rastro.
Ao ser informado pelo sobrinho da tragédia envolvendo um de seus empregados mais antigos, Tio Emílio reagiu com fleuma: “Boi sonso, marrada certa”.
Perplexo, o sobrinho cobrou compaixão: “O senhor que é tão justiceiro e correto, e que gostava tanto do Bento Porfírio, vai deixar isto assim?”
De súbito, entretanto, o coronel bateu na testa, saltou da cadeira, e ordenou que os jagunços fossem ao encalço do fugitivo da lei.
O objetivo da ordem, entretanto, não era fazer justiça à vítima. O coronel estava preocupado em mitigar danos eleitorais. “Já perdi um voto, e, se o desgraçado fugir para longe, são dois que eu perco!”, desabafou com o sobrinho.
Pela cartilha do velho coronel político, retratado por Guimarães Rosa em “Sagarana” (1946), uma vida vale um voto. No Brasil da pandemia, a impressão que se tem é que a vida não vale nem isso mais. Se valer, os políticos já perderam pelo menos mais de 200 mil votos.
A diferença entre o Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real é que pelo menos o personagem se preocupava com a preservação da vida de seus eleitores, ainda que por razões pragmáticas.
No Brasil, a perda de centenas de milhares de vidas, vítimas da covid-19, não despertou empatia em segmentos da classe política nem em segmentos da população. As aglomerações em bares e outros locais públicos, e festas clandestinas, ocorrem à luz do dia. Políticos e populares ainda resistem à adesão aos cuidados mais comezinhos, como uso de máscaras e distanciamento social.
Um dos papéis das autoridades na pandemia deveria ser a conscientização dos brasileiros quanto à relevância de seguir os protocolos sanitários para coibir a disseminação do vírus.
A pandemia está em escalada galopante, mas os números não assustam. Um ano depois, chegamos ao pior momento da pandemia, com uma média móvel de 1.208 mortes diárias. São cinco Boeings caindo por dia, pela metáfora do neurocientista Miguel Nicolelis.
Contabilizamos mais de 10 milhões de contaminados, e mais de 255 mil óbitos. É como se enterrássemos de uma vez a população de uma cidade inteira do tamanho de São Carlos (SP), ou Foz do Iguaçu (PR), sem direito a velório. As UTIs estão lotadas em todos os Estados.
O comportamento dos políticos que se omitem, ou que propagam discurso negacionista, estimula a conduta de uma parcela de brasileiros que resiste a encarar a pandemia.
Ontem a doutora Ludhmila Hajjar, cardiologista e intensivista da Rede D’or, alertou em entrevista à “Globonews” que estamos à beira de um colapso nacional. Ela atribuiu o quadro dramático também a uma parcela de brasileiros que se esbaldou no carnaval em festas clandestinas, favorecendo o contágio.
Na quinta-feira, quando o Brasil atingiu um recorde de mortes por covid-19 (1.582), o presidente Jair Bolsonaro criticou, sem base científica, o uso de máscaras, em um comportamento que estimula seus seguidores a imitá-lo.
Ontem o correspondente no Brasil do “The Washington Post” alertou que a tragédia em curso no Brasil pode ter “implicações globais”. Ele afirmou que se o Brasil não controlar o vírus, vai se transformar no “maior laboratório aberto do mundo para o vírus sofrer mutação”, favorecendo a “disseminação de variantes mais letais e infecciosas”.
Em outra frente, governadores e políticos independentes, ou da oposição, buscam saídas para driblar a lentidão do Programa Nacional de Imunização, e também para cobrar responsabilidade das autoridades que podem ser acusadas de negligência.
Mais da metade dos governadores enfrentam a ira de empresários, de seus opositores e de segmentos da população por adotarem “lockdown” ou medidas restritivas, como toque de recolher, no esforço de conter o vírus. Ontem o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) defendeu imediato “lockdown” nos Estados com mais de 85% de ocupação de leitos, e de um toque de recolher nacional.
Sob ataque de Bolsonaro, hoje os governadores reúnem-se em Brasília com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Na base eleitoral de Lira, em Arapiraca, segunda cidade mais importante de Alagoas, causou comoção na semana passada a morte de uma enfermeira vítima da covid-19. Ela se recusou a tomar a dose da Coronavac, a que tinha direito por ser profissional de saúde, por duvidar da comprovação científica do imunizante, embora autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Lira perdeu a oportunidade de se manifestar para condenar a disseminação de “fake news”, mazela que contribuiu, pelo menos lateralmente, para a morte de sua conterrânea, quiçá eleitora.
Diante dessa conjuntura, no Senado, alguns parlamentares voltam a carga contra o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), nesta semana para pressioná-lo a instalar a CPI da covid.
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirma que os fatos mais recentes sobre a pandemia “precipitam a instalação da CPI”. Ele cita, por exemplo, o depoimento modificado do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, à Polícia Federal; o embate do presidente com os governadores; a persistência do discurso negacionista.
O Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real têm em comum a falta de empatia pelo semelhante, ou seja, a incapacidade de se colocar no lugar do outro, de compartilhar a dor do outro. Mas, ao contrário do personagem, também falta a alguns políticos uma dose de pragmatismo para que se movimentem para salvar seus eleitores. A Justiça Eleitoral não instala urnas no cemitério.
Tasso Jereissati: ‘Pacheco terá teste com CPI da covid’
Senador tucano cobra do presidente da Casa a instalação de comissão para apurar a conduta do governo na pandemia
Daniel Weterman, O Estado de S. Paulo
BRASÍLIA - O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) pressiona o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a conduta do presidente Jair Bolsonaro na crise de covid-19. O senador é um dos autores do pedido para abertura da investigação no Congresso que vai apurar a condução do combate à pandemia por autoridades públicas, incluindo o chefe do Planalto.
A instalação depende de Pacheco, apoiado por Bolsonaro na eleição para o comando da Casa e também pela oposição. “Esse vai ser o grande teste do Rodrigo, se ele realmente é independente como está dizendo ou se para ganhar se comprometeu até à alma com o Bolsonaro” afirmou o tucano em entrevista ao Estadão.
Na sexta-feira passada, Bolsonaro visitou as obras de duplicação da BR-222, em Caucaia (CE), e, mais uma vez, cumprimentou simpatizantes sem respeitar as medidas de contenção da covid-19, na semana em o que País atingiu novo recorde diário de mortes pela doença. “É preciso parar esse cara”, disse Tasso. A aglomeração ocorreu após o governador do Estado, Camilo Santana (PT), decretar toque de recolher e reduzir o funcionamento de atividades em função do avanço do novo coronavírus. Confira os principais trechos da entrevista:
Como o senhor avalia a recente visita do presidente Jair Bolsonaro ao Ceará?
Dois dias antes, o governador e o secretário da saúde anunciaram toque de recolher e outras medidas. Tudo isso porque estamos pertinho do colapso e com tendência de crescimento da pandemia muito grande. Chega o presidente aqui e vai a um município, junta gente, aglomera gente sem máscara, depois vai para outro e conclama a população a sair de casa. Além de conclamar, joga uma ameaça: aquele governador que fechar agora tem que pagar o auxílio emergencial. É um esforço enorme para conscientizar a população e o cara vem e conclama o contrário.
Por que o senhor defende a instalação da CPI no Senado?
Estou pedindo ao Senado, com receio de que teremos dificuldade porque não sei qual vai ser a posição do presidente Rodrigo Pacheco, que instale a CPI da covid-19. Ele colocou meio na gaveta, fez aquela audiência com Pazuello, que foi um desastre, para empurrar com a barriga. É preciso parar esse cara (Bolsonaro). O intuito da instalação da CPI não é nem para punir, mas é para pelo menos parar essa insanidade. Por ser presidente da República, não pode conclamar a população inteira a correr risco de morte sem nenhum tipo de punição.
Que medida prática a CPI faria? Pode encaminhar uma denúncia ao Ministério Público?
Denúncia ao Ministério Público. Primeiro, há crime contra a saúde pública, isso é claro. Segundo, há crime contra a federação, porque está conclamando a população a fazer o contrário do decreto de um governador do Estado e ainda ameaçando governadores que fizerem isso.
O senhor advoga a tese do impeachment?
Eu só quero parar com isso, que o presidente caia em si. Acho que impeachment vai criar uma crise sem tamanho. E, outra coisa, ele tem seguidores. Vai piorar a coisa. Temos que conscientizar o presidente pelos seus puxa-sacos que isso tem consequências legais e ele vai ter que pagar por isso um dia. Não é assim. Dentro da CPI da covid-19, vamos levantar quem é responsável.
O presidente do Senado está segurando a CPI. Qual é a viabilidade de ele autorizar?
O pedido de CPI está na mesa do presidente do Senado com as assinaturas. O que eles podem fazer é pedir que senadores retirem assinaturas. Se não, vai ser mais cedo ou mais tarde obrigado a implantar. Esse vai ser o grande teste do Rodrigo, se ele realmente é independente como está dizendo – e eu espero que seja – ou se para ganhar se comprometeu até à alma com o Bolsonaro.
O senhor acredita que Pacheco será independente? A comissão de acompanhamento que ele autorizou é para empurrar com a barriga?
Estamos com a possibilidade enorme de ter um caos no Brasil inteiro. Eu acredito que o presidente do Senado é um homem que tem consciência disso. A comissão de acompanhamento funciona bem, mas não tem consequência nenhuma. CPI é que mostra que tem consequência. O objetivo da CPI não é criar crise, é mostrar que o presidente da República não pode fazer e dizer o que quer, que tem consequências e que vai ser responsabilizado.
O funcionamento remoto do Senado em função da covid-19 pode servir como justificativa para não instalar a CPI?
Justificativa não, pode servir de desculpa. Vai ter argumentação de que é difícil fazer virtualmente. A instalação tem de ser já, mesmo remotamente. Não podemos ficar quietos. Não estamos funcionando remotamente para outras coisas de muita responsabilidade? Não tá a PEC Emergencial aí agora? Não tá a PEC da imunidade na Câmara?