cpi da covid

Bruno Boghassian: Militares mantêm escolta política e retórica golpista de Bolsonaro

Novo ministro da Defesa indica que vai seguir discurso de intimidação do presidente

Se alguém tinha dúvidas sobre as intenções de Jair Bolsonaro ao trocar o comando das Forças Armadas, basta acompanhar os pronunciamentos do novo ministro da Defesa. Em poucas semanas, o general Walter Braga Netto mostrou que pretende manter a escolta política dos militares ao governo e seguir a retórica conflituosa do presidente.

Desde o início do mandato, Bolsonaro usa as Forças Armadas como ferramenta para intimidar adversários políticos e outros Poderes. Foi assim em seu embate com governadores e em ameaças que fez ao STF. Braga Netto indicou que vai ajudar o presidente nesse delírio autoritário.

Na semana passada, com o governo acuado pela CPI da Covid, o ministro agiu como auxiliar político de Bolsonaro e repetiu a tática de desviar o foco das investigações. "O uso de recursos pelos gestores dessas instâncias, estadual e municipal, deve ser acompanhado pela população e sofrer apuração rigorosa", declarou.

Braga Netto reforçou o gesto de continência nesta terça (20), na posse do novo comando do Exército. Num recado ao Congresso e ao Judiciário, disse que "é preciso respeitar o rito democrático e o projeto escolhido pela maioria dos brasileiros".

"A sociedade, atenta a essas ações, tem a certeza de que suas Forças Armadas estão prontas a servir aos interesses nacionais", completou. O general só não quis explicar por que os militares deveriam vigiar o que ocorre no terreno da política.

Em contraste, o comandante demitido fez um discurso burocrático, quase sonolento. Edson Pujol passou longe da cartilha bolsonarista e apresentou um relatório de gestão que mencionava até a sinalização de trânsito no setor militar de Brasília.

O antecessor de Braga Netto também dava guarida ao presidente. Fernando Azevedo e Silva sobrevoou com Bolsonaro uma manifestação golpista e assinou uma mensagem ao STF em tom ameaçador, mas foi derrubado mesmo assim. O novo ministro já provou que está disposto a cumprir as missões políticas do chefe para ficar mais tempo no cargo.


Ricardo Noblat: Outra vez se espera que Bolsonaro comporte-se como o seu oposto

Pano de fundo do Brasil para a Cúpula do Clima

Na véspera da abertura da Cúpula do Clima que reunirá 40 chefes de Estado, nem por encomenda fatos recentes poderiam se combinar melhor para reforçar aos olhos do mundo sua má impressão a cerca do governo Bolsonaro e a questão ambiental.

O pior índice de desmatamento da Amazônia nos últimos 10 anos foi alcançado em março último. Derrubou-se 810 quilômetros quadrados de floresta, área maior do que a da cidade de Goiânia, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia

A devastação triplicou em comparação com março de 2020. Cresceu 59% entre agosto de 2020 e março de 2021 em relação ao período de agosto de 2019 a março do ano passado. Apenas isso. 2020 foi também o ano em que queimou parte do Pantanal.

Em carta divulgada ontem, 400 servidores do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) anunciaram a suspensão de suas atividades de fiscalização graças a uma decisão do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

Boneco de ventríloquo de Bolsonaro, o que Salles aprontou dessa vez? Mudou o rito para a aplicação de multas ambientais. Segundo os servidores, a nova regra fixada por Salles no início do mês “inviabiliza” as ações de combate ao desmatamento na Amazônia.

“Registramos que, no momento, os meios necessários para o estrito cumprimento do nosso trabalho não estão disponíveis e que todo o processo de fiscalização e apuração de infrações ambientais encontra-se comprometido”, diz um trecho da carta.

Na semana passada, Salles foi alvo de uma notícia-crime da Polícia Federal do Amazonas e passou a ser investigado no Supremo Tribunal Federal (STF) por supostamente atrapalhar uma investigação sobre a maior apreensão de madeireiras ilegais.

Mais alguma coisa? Sim. Nas últimas 24 horas, Salles ridicularizou no Instagram indígenas que utilizam telefones celulares. Divulgou três fotos deles carregando celulares. A primeira imagem tem como texto: “Recebemos a visita da tribo do iPhone”.

Poderia haver no caso do Brasil pano de fundo mais adequado para a reunião de cúpula sobre o meio ambiente convocada pelo presidente Joe Biden? A sorte de Bolsonaro é que a reunião será virtual. A ele caberá ler um texto redigido por assessores.

Os demais governos sabem que falta vontade política a Bolsonaro para combater a degradação do meio ambiente. Se não faltasse haveria estratégia e meios poderosos para isso. Assim como falta vontade política para enfrentar a pandemia da Covid.

É o que explica, por exemplo, Bolsonaro jamais ter defendido medidas de isolamento social, e sabotado as que existem por conta de governadores e prefeitos, e a compra de vacinas. Sobra-lhe vontade política para blindar os filhos de denúncias de corrupção.

Como acreditar que ele cumprirá os acordos que venham a ser firmados durante a reunião de cúpula? Ele teria de fazer tudo ao contrário do que fez até aqui. É como imaginar que Bolsonaro, um dia, deixará de elogiar a ditadura de 64 e a tortura.

Esqueçam!


João Doria: O Brasil precisa de esperança

O Brasil da esperança valoriza o Estado onde ele é essencial: Saúde, Educação, Segurança Pública e Assistência Social

O Brasil vive hoje o pior momento da sua história. Os recordes negativos se acumulam: 27 milhões de brasileiros em extrema pobreza, vivendo com menos de R$ 9 por dia. 19 milhões passaram fome nos últimos três meses. 125 milhões, o que corresponde a seis em cada dez brasileiros, padecem de insegurança alimentar desde o início da pandemia. São 18 milhões de desempregados. Seis milhões de desalentados, que desistiram de procurar emprego, e somamos 5 milhões de crianças e adolescentes fora da escola.

O Brasil está próximo de bater 400 mil vítimas de covid. É o segundo país do mundo com mais mortes na pandemia. Faltam vacinas e medicamentos. Não foram comprados a tempo pelo Ministério da Saúde.

A Nação assiste à redução de dois anos na expectativa de vida da sua população, fato inédito na história do Brasil. Em seis anos, vivemos as três piores recessões econômicas já registradas, no País. Na década encerrada em 2020, empobrecemos 0,2% a cada ano, enquanto outros países emergentes enriqueceram 2,5% por ano.

Empobrecimento, fome, desemprego, evasão escolar e mortes. Essa tem sido a dura realidade do Brasil, especialmente para os mais pobres e mais vulneráveis.

O cenário de curto prazo não indica mudanças:

Inflação alta. Em 12 meses, a inflação alcançou 6,1% e ultrapassou o teto determinado pelo Banco Central. Juros altos. O mercado prevê uma taxa básica de 5% no fim do ano, o que prejudica investimentos na produção. Dólar alto. Estima-se que o real continuará a perder força.

Crise nas contas públicas. O orçamento irreal produzirá gastos extras de R$ 121 bilhões, muito acima do teto constitucional. A dívida pública aumenta e a confiança diminui. O Brasil caiu de 9.º para 12.º lugar entre as maiores economias do mundo.

Neste ano, a economia brasileira é a única a desacelerar entre os principais países. Corremos o risco de cair para o 14.º lugar ao fim de 2021.

O populismo aliado ao autoritarismo cobram agora um alto preço da sociedade. O Brasil está na contramão do mundo. 

É hora de mudar. O resgate da esperança pode começar hoje, 21 de abril, uma das datas mais simbólicas do calendário do nosso país. 

O Brasil da esperança combate a pandemia, produz vacinas, cuida dos doentes, protege os mais pobres e salva vidas.

O Brasil da esperança tem a educação como prioridade, o mais efetivo instrumento de transformação social. O Brasil da esperança combate a fome, produz alimentos, cuida dos mais pobres, respeita e acolhe seus cidadãos.

O Brasil da esperança defende a democracia, a liberdade individual e a livre manifestação artística, cultural, religiosa e de imprensa. O Brasil da esperança combate o racismo. O Brasil da esperança respeita a diversidade.

O Brasil da esperança valoriza a cultura regional, a economia criativa e a produção cultural brasileira. O Brasil da esperança respeita as comunidades tradicionais, os quilombolas e os povos indígenas. O Brasil da esperança incentiva a prática de esportes e os atletas de alto rendimento.

O Brasil da esperança promove o turismo e os valores do seu povo e da sua terra. O Brasil da esperança tem compromisso com as leis e a ética.

O Brasil da esperança promove o empreendedorismo e o desenvolvimento tecnológico. O Brasil da esperança preserva o meio ambiente, incentiva a economia circular e estimula o uso de energias renováveis.

O Brasil da esperança apoia a pesquisa, o desenvolvimento científico e aposta na ciência. O Brasil da esperança defende a indústria 4.0 e o agro sustentável e tecnológico.

O Brasil da esperança garante o exercício do papel constitucional das Forças Armadas como instituição de Estado. O Brasil da esperança trabalha pela paz e harmonia das nações e fortalece a cooperação internacional.

O Brasil da esperança organiza as contas públicas, oferece segurança jurídica e atrai investimentos, nacionais e internacionais. O Brasil da esperança valoriza o Estado nos lugares onde ele é essencial, principalmente na Saúde, Educação, Segurança Pública e Assistência Social.

O Brasil da esperança estimula a iniciativa privada nas atividades em que ela atua com mais eficiência do que o poder público. O Brasil da esperança gera empregos para todos os brasileiros.

O Brasil da esperança não alimenta ódios, nem rancores, nem racismo, nem conflitos. O Brasil da esperança é de paz e trabalho. O Brasil da esperança é o nosso país sendo uma grande nação.

*Governador do Estado de São Paulo


Antonio Corrêa de Lacerda: É preciso mais que o auxílio emergencial para enfrentar a crise

Muitos países têm adotado programas de fomento às atividades e à infraestrutura para estimular a retomada da demanda e da renda

O atendimento da população vulnerável tem sido fundamental no enfrentamento dos efeitos da pandemia. No ano que passou o pagamento do auxílio emergencial foi determinante para amenizar a situação. Para 2021 é crucial mantê-lo, pelo menos nos mesmos termos, apesar das dificuldades de ordem orçamentária. O agravamento da crise tornou-o absolutamente imprescindível para apoiar as pessoas que estão impedidas de exercer sua atividade e é preciso oferecer-lhes outras formas de sustento.

Para além da medida de amparo social, tendo em vista o aprofundamento e extensão da crise, outras medidas se tornam cruciais para o seu enfrentamento. Note que muitos países têm adotado programas de fomento às atividades e à infraestrutura como forma de estimular a retomada da demanda efetiva, portanto, da renda, do emprego e da arrecadação tributária.

Trata-se, por exemplo do caso dos EUA. Depois de ter aprovado um pacote social da ordem de US$ 1,9 trilhão, foi anunciado, mais recentemente, pelo presidente Biden o “Plano de Emprego Americano”. O programa prevê investimentos em infraestrutura de US$ 2,25 trilhões, contemplando a economia verde, em áreas como residencial, transportes e mobilidade urbana em geral, dentre outras.

Europa também anunciou plano de incentivo à economia no valor de 750 bilhões de euros, acompanhado de uma proposta de orçamento de longo prazo para o período 2021-2027, que abrange a oferta de crédito a custos competitivos para empresas e pessoas físicas. A China tem longa tradição de adoção de medidas anticíclicas mediante perspectiva de diminuição da demanda efetiva.

Essa ação de coordenação de políticas e medidas adotadas por vários países denota o esforço concentrado tanto de combater a crise decorrente da pandemia como também empreender uma clara estratégia de desenvolvimento. Eles estão corretamente conduzindo um diagnóstico de debilidades e lacunas nos vários campos social e de infraestrutura para fomentar e induzir o crescimento em bases sustentáveis, envolvendo dentre outras questões, a energia renovável. Subsidiária e complementarmente também se denota o foco na ampliação da competitividade sistêmica, a melhora do “ambiente” de negócios.

Outro traço comum das ações em curso é a combinação da coordenação e atuação do Estado com o setor privado. Seria um equívoco atribuir essa responsabilidade somente a um deles. Ambos exercem papel relevante para superar a crise. Mas a iniciativa deve ser necessariamente do Estado, uma vez que o investimento público é determinante no processo. Dado o seu efeito multiplicador e de “demonstração”, ele estimula o setor privado a também fazê-lo, sinalizando futuro crescimento da demanda e criando efeito positivo retroalimentado.

Quanto ao aspecto fiscal, vale lembrar que o impulsionamento das atividades gera efeito positivo sobre a arrecadação de impostos, o que, no médio prazo, tende a compensar a necessária ampliação dos desembolsos. Muitos países têm ampliado seu déficit e o endividamento público. No âmbito do G-20, por exemplo, o indicador da relação dívida/PIB retomou o nível máximo atingido em 1946, logo após a 2.ª Grande Guerra. Há ainda medidas de reforma tributária em vista visando a ampliar os recursos financeiros.

No caso brasileiro, no curto prazo, além das medidas já citadas, urge criar alternativas para romper amarras orçamentárias, algumas autoimpostas, como a “Lei do Teto de Gastos” (EC 95). Além disso há que se rever os incentivos e subsídios fiscais que não geram retorno social.

*Professor-Doutor, Diretor da FEA-PUC-SP, presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon), publicou, entre outros, “O mito da austeridade” (Editora Contracorrente).


Rosângela Bittar: Revival

Decisão do Supremo tornou possível o revival, a mesma urna de dois anos atrás

O risco do futuro é repetir o passado indesejado. Ou, diante da urna eletrônica de 2022, os eleitores viverem a mesma perplexidade que experimentaram em 2018. Naquele tempo, todos contavam com o benefício de desconhecer os limites da ignorância de Jair Bolsonaro. No ano que vem já não haverá o álibi. A pandemia expôs a realidade e revelou o presidente por inteiro. Seu retrato, ainda sem número, tem lugar reservado.

A decisão do Supremo Tribunal Federal de devolver a Lula condições eleitorais, seja por sentimento de culpa dos magistrados ou por Justiça, foi decisiva. Tornou possível o revival, a mesma urna de dois anos atrás, sina de que só o êxito da CPI da pandemia nos livrará.

O lado da esquerda também não mudou. Seus dois principais candidatos, Ciro Gomes e Lula, reaparecem agora tal como no passado. O ex-presidente repete até seus fatais encontros marcados com o MDB. Já o cearense de Pindamonhangaba se reapresentou surpreendendo: promoveu um rompimento precoce com Lula e o PT em geral. Tudo igual. Talvez com o agravo de atribuir a Lula um dos traços mais condenáveis e marcantes em Bolsonaro: o ódio a tudo e a todos.

Também os candidatos, ditos de centro, comparecerão em grande número. Talvez vingue uma ou outra surpresa. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do DEM de Minas Gerais, está sendo considerado nas novas hipóteses. É possível, ele tem pressa. Mas sua sorte depende do sucesso da CPI da pandemia. Houve ainda uma fumaça de esperança com o aceno do presidente do PSDB, Bruno Araújo, de pré-lançamento do senador Tasso Jereissati, o que revigoraria o partido que perde terreno a cada eleição.

Do seu polo, o candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, apresenta-se com mais densidade que em 2018. Mas não deixa de ser um clone de si mesmo. Nestes dois anos e quatro meses, não melhorou a biografia, e não projeta expectativas. Seus defeitos se realçaram mais que as possíveis qualidades. Entre os traços descobertos entre uma eleição e outra, um determina os últimos movimentos de poder do presidente: a falsidade. Bolsonaro tem sido mestre em ludibriar, adversários e aliados.

Em três circunstâncias recentes o presidente ficou exposto na mágica da enganação. Continua determinado a promover o presidente do BC a ministro da Economia. Roberto Campos Neto, porém, impõe uma condição, só aceitará substituir o amigo Paulo Guedes se o próprio conduzir abertamente o processo. Assim a equação não se desenvolve.

Outro quadro de contradição são os choques públicos de opinião entre o presidente e o seu quarto ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Tudo não passa de um acerto pragmático. Ao convidar Queiroga, ouviu dele que, como médico, não poderia renegar o uso de máscara e o isolamento social, nem mesmo recomendar a cloroquina. Bolsonaro, já cansado do mesmo problema, nem piscou: “Você fala o que quiser e eu faço o que quiser”.

Também o Senado comemorou cedo demais a demissão do chanceler Ernesto Araújo, o terceiro fato recente da falsidade presidencial. Araújo saiu do cargo, mas permanece ativo, representante de Olavo de Carvalho no governo, agora atuando informalmente ao lado de quem deveria ter sido demitido antes dele, o assessor do presidente, Filipe Martins. Aquele tal personagem do gesto racista exibido em rede nacional durante uma sessão do Senado.

Segue o presidente, assim, com seu discurso padrão, do qual se pode destacar, com o recrudescimento da crise sanitária, uma triste impressão. Bolsonaro parece estar apostando que as mortes serão esquecidas até lá. Por isso prefere insistir nos problemas de sobrevivência, amplificados pela economia fechada. A fome, pelo que transparece de suas convicções, terá melhor efeito eleitoral.

A não ser que a CPI da pandemia consiga restabelecer a verdadeira identidade do presidente Jair Bolsonaro.


Rubens Barbosa: O Brasil e a diplomacia epistolar

Cartas não definirão a política externa dos EUA com o Brasil; mas terão influência quando as negociações bilaterais começarem

Nos últimos dois anos, a ausência de uma política externa atuante que acompanhasse as mudanças que estão acontecendo no mundo deixou um vazio que rapidamente foi ocupado por agentes subnacionais, como governadores, pelo Congresso, presidentes das duas Casas e presidentes da Comissão de Relações Exteriores e pela sociedade civil.

Nunca antes na história deste país verificou-se quase semanalmente troca de correspondência de brasileiros e americanos (Congressistas, ex-ministros e sociedade civil) com Joe Biden e com autoridades de seu governo e do Congresso, em Washington, tendo como foco a política ambiental brasileira, e tratando de temas de interesse da relação bilateral.

 Além da correspondência entre os presidentes Bolsonaro e Biden, a maioria das cartas, críticas às política ambientais e de direitos humanos na Amazônia, pediu para o governo americano não levar adiante a cooperação em todas as áreas, inclusive de Defesa (Base de Alcântara), com o Brasil, enquanto o governo brasileiro não mudar a narrativa e as medidas internas que estão permitindo o aumento dos ilícitos na Amazônia pelo desmatamento, pelas queimadas, pelo garimpo e pelo tratamento dispensado às comunidades indígenas.

Nos últimos dias, com a aproximação da cúpula do clima, multiplicaram-se as manifestações de artistas, personalidades nacionais e estrangeiras, mostrando o grau de interesse fora do Brasil sobre o futuro da Amazônia. 

Na área oficial, Bolsonaro escreveu uma carta a Biden antecipando sua fala no dia 22 com algum avanço na narrativa seguida até aqui, mas com a referência ao apoio financeiro em troca de promessa de redução de desmatamento em 2030. John Kerry reconheceu a mudança de tom do governo brasileiro, mas cobrou resultado de curto prazo, dando oportunidade para o embaixador dos EUA, em conversa em grupo fechado, pedir resultados concretos e verificáveis.

As cartas não definirão a política externa dos EUA em relação ao Brasil, pois há muitos outros interesses econômicos, políticos e comerciais em jogo. Certamente, contudo, elas terão influência quando as negociações bilaterais começarem efetivamente, já que até aqui o que ocorreu foram diálogos em nível técnico, evitando qualquer confrontação direta.

A inusitada troca de missivas entre a sociedade civil brasileira e personalidades internacionais sobre a Amazônia mostra a urgência de o Brasil voltar a ter uma política externa com foco no meio ambiente e na mudança de clima, como ocorreu até fins de 2018. A apresentação de Bolsonaro amanhã talvez seja a última oportunidade para o Brasil voltar a apresentar-se como protagonista na discussão global sobre mudança de clima e para indicar uma mudança séria e profunda de rumo na política ambiental.

*Foi Embaixador do Brasil nos EUA e atualmente é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)


Pedro Fernando Nery: Novo IDH verde expõe hipocrisia dos países ricos

É justo que haja clareza sobre o quanto do desenvolvimento dos países ricos se baseia na destruição do planeta

Esta é a semana do Dia da Terra: vale aproveitar a ocasião para conhecer o novo IDH, que ajusta o tradicional índice de desenvolvimento humano para “pressões planetárias” (IDHP). Assim, além de informações sobre renda, educação e saúde, o novo IDH contempla a emissão de carbono e a pegada ecológica por habitante. Mensura então o quanto o desenvolvimento de um país pressiona a Terra, expondo vários países ricos – que despencam no ranking do IDH.

Peguemos o exemplo da Noruega, diversas vezes considerado o país de maior qualidade de vida, número 1 na classificação do indicador. As ruas de suas cidades têm ciclovias e estações para carregamento de carros elétricos. Sua política externa é preocupada com a mudança climática, sendo marcante o episódio da suspensão das doações ao Fundo Amazônia com o aumento do desmatamento no governo Bolsonaro. O novo IDH a constrange.

É que a Noruega perde nada menos do que 15 posições no indicador com os ajustes feitos pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Não deve voltar ao topo do ranking tão cedo: em parte porque o país é um grande produtor de petróleo. Digamos que os painéis solares de Oslo são viabilizados pela riqueza de suas exportações, que vira por exemplo combustível fóssil queimado em outros países.

Dessa forma, o novo IDH expõe de forma clara uma certa hipocrisia que já era criticada. Sobre a convivência da agenda verde dos noruegueses com a venda de petróleo de suas gigantescas reservas para o resto do mundo, o jornalista Michael Booth comparou a Noruega ao “traficante de drogas que não usa seus produtos”.

O vexame também é de outros países, o que talvez explique a baixa cobertura da imprensa internacional para o novo IDH, ou a tímida divulgação do próprio Pnud (que embora disponibilize os dados, optou por não divulgar o ranking reclassificado). O rico que mais perde é Luxemburgo, caindo mais de 130 posições.

Brasil ganha dez posições no novo IDH, menos do que vários países latino-americanos, muitos dos quais são os que mais ganham posições no IDHP entre países do mundo todo. Vários vizinhos nossos ganham mais que 20 posições. Seriam, para usar a definição oficial, países cujo desenvolvimento humano atual não pressiona o planeta e a desigualdade entre gerações. Segundo a ONU, esse IDH verde “deve ser visto como um incentivo para transformação. Em um cenário ideal, em que não houvesse pressões no planeta, o IDHP seria igual ao IDH”.

Vale frisar que o novo indicador, como o tradicional, tem limitações. Pode-se alegar que medidas sintéticas perdem a utilidade quando incorporam informações demais. E sempre haverá informações a incorporar. Por exemplo, a nova número um é a Irlanda, cuja prosperidade está em algum grau associada ao seu papel cada vez mais relevante de paraíso fiscal – em prejuízo de outros países. 

Assumidamente experimental, o novo IDH verde gera um ranking com curiosidades. Quando a sustentabilidade entra na conta, o Brasil é considerado mais desenvolvido que a Austrália, o México desbanca os Estados Unidos, o Sri Lanka ultrapassa a Coreia do Sul. A Costa Rica, que mais ganhou posições, supera em desenvolvimento humano a IslândiaPortugal ganha da Finlândia. E o Panamá surge na frente do Canadá no novo IDH.

A diplomacia dos países desenvolvidos poderia ser desafiada com a nova abordagem. Além da Noruega, os Estados Unidos é outro país que cai muito na reclassificação. Por mais desastrosa que seja a atual política ambiental brasileira, por que deveria se dar tanto status às críticas de países cuja emissão por habitante é, respectivamente, quatro vezes ou oito vezes maiores que a nossa? 

O IDH verde poderia ser um trunfo então para os países mais pobres, que deram menos causa à mudança climática e podem sofrer mais com ela (por conta dos efeitos na agricultura, por exemplo). Se vão ter seu crescimento econômico limitado pelos esforços de mitigação nos próximos anos, é justo que haja clareza sobre o quanto do desenvolvimento dos países ricos se baseia na destruição do planeta.

*DOUTOR EM ECONOMIA 


Monica de Bolle: Pensar o Brasil é largar os corrimões

Visto de longe e de perto, o Brasil dos economistas e da imprensa tradicional permanece preso a dogmas

O título desse artigo serve para o mundo: para dar conta do mundo, é preciso soltar os corrimões. Pensar sem corrimões é das imagens de Hannah Arendt que mais gosto, embora, como outras metáforas e conceitos da autora, tenha se tornado um pouco banal nos nossos tempos. O ato de pensar, isto é, de refletir com distanciamento, mas também com sensibilidade, precisa ser livre. Se não for livre, caso precise de muletas ou de limites pré-estabelecidos, não será pensamento. O pensamento precisa da liberdade porque, ao pensar, nós nos movemos. Há muito me debato com os limites do pensamento no Brasil. O livre pensar não parece ser do gosto nacional. As pessoas exercitam algo que não é bem pensamento, mas reflexões circunscritas, que têm lugar dentro de espaços convenientes e coniventes. Vozes são uníssonas e debate não há.

Deixei o Brasil em 2014. Naquela época, já escrevia e participava do debate público havia alguns anos. Também já havia ficado claro para mim que vozes dissonantes incomodavam mais do que deveriam, se os discordantes as quisessem ouvir. Nessa época, eu não era uma voz dissonante. Não viria a sê-lo até 2016, quando passei a criticar a política econômica de Temer. Até então, havia criticado a política econômica de Dilma, algo que se encaixava perfeitamente nos limites aceitos pela economia tradicional, tal qual praticada no Brasil. Dessas críticas resultou um livro, Como matar a borboleta azul: uma crônica da era Dilma. Por ter sido publicado em 2016, ano do impeachment, muitos o interpretam equivocadamente até hoje. Não tratei de escrever um livro sobre por que Dilma deveria sofrer impeachment, que considero um dos maiores erros que cometemos. O livro trata das políticas econômicas de seu governo e afirma desde o início que, apesar de bem-intencionadas, elas foram mal pensadas e mal elaboradas. Penso do mesmo modo até hoje e vejo no impeachment algo que tem nos custado muito. A reflexão sobre as políticas econômicas não é incompatível com minha visão sobre a remoção forçada de Dilma, o que na época chamei de “impeachment de coalizão”.

Quando Temer assumiu e apresentou de afogadilho reformas que precisavam de maior aprofundamento para não criar enormes problemas para o país, eu o critiquei. O maior erro cometido no governo Temer – e escrevi vários artigos sobre o assunto em 2016 – foi a criação do teto de gastos. O erro não é pela ideia de teto de gastos. O teto é uma regra fiscal como qualquer outra e há vasta documentação sobre seu uso em diversos países na literatura. O problema do teto aprovado naquele ano é que a medida foi mal desenhada de princípio: jogou o ônus do ajuste para além do governo Temer e instituiu uma regra excessivamente rígida, que ia de encontro às garantias constitucionais das despesas com a saúde e a educação. Nessa época o teto virou fetiche dos economistas de linha tradicional à brasileira, e, como voz dissonante, comecei a ser criticada. Mas eu não tinha muita visibilidade, de modo que ainda há quem acredite que eu tenha sido árdua defensora do teto roto. Paciência.

Em 2017, mantive minhas colunas no Brasil, mas passei a escrever mais sobre o meu trabalho no Peterson Institute for International Economics. Não havia muito o que dizer sobre o Brasil e eu estava mais interessada no que se passava aqui nos Estados Unidos, com a vitória de Donald Trump e as tratativas para o Brexit. Voltei ao debate nacional em 2018 por ocasião da eleição que deu a Presidência a Jair Bolsonaro, uma catástrofe previsível que tantos insistem em negar, talvez por vergonha, talvez por falta dela. Contudo, só fui me envolver mesmo com o Brasil no último ano.

Logo após os primeiros sinais da pandemia comecei a pensar como o Brasil seria afetado e quais seriam as medidas para enfrentar a inevitável crise econômica que sobreviria da crise de saúde pública. Ativei um canal que tinha no YouTube, mas que não usava, para falar sobre economia e saúde e ajudar a orientar as pessoas. Os brasileiros se mostravam bastante perdidos em relação ao que estava acontecendo e desorientados quanto ao que fazer. A partir do conteúdo desenvolvido no canal publiquei um livro chamado Ruptura (Rio de Janeiro: Intrínseca), em meados de 2020.

O livro reúne reflexões variadas e recomendações de política pública. Em sua página 71 algumas recomendações foram resumidas assim: “(a) um suplemento emergencial imediato do benefício do Bolsa Família em pelo menos 50%; (b) a instituição de uma renda básica mensal no valor de R$ 500 para todos os registrados no Cadastro Único que não recebem o Bolsa Família; (c) a abertura de R$ 50 bilhões em créditos extraordinários para a saúde, com a possibilidade de se aumentar esse montante; (d) aprovação do seguro-desemprego com maior flexibilidade e celeridade; (e) recursos emergenciais para os setores mais afetados pela crise no valor de pelo menos R$ 30 bilhões; (f) a abertura de linhas de crédito do BNDES para micro, pequenas, e médias empresas pois são elas as que mais empregam; (g) um programa de infraestrutura para sustentar a economia no médio/longo prazo com a utilização de recursos do BNDES”.

Nos meses subsequentes, em artigos, transmissões no canal, webinários e entrevistas, falei exaustivamente sobre essas medidas, sobre o papel de uma renda básica para complementar os programas de proteção social e sobre o uso dos bancos públicos no combate à crise. Expliquei conceitos básicos de economia, e outros nem tão básicos, entrando em temas áridos como o famoso quantitative easing, a política de compra de títulos do governo pelos bancos centrais. Discorri sobre inflação e deflação, alertei para o fato de que o mundo inevitavelmente passaria por quarentenas intemitentes e que o Brasil teria de aprender a lidar com isso. Nada disso foi dito à toa. Tudo foi pensado e refletido à exaustão depois de muita leitura, mas sem que pudesse me escorar em conhecimentos estabelecidos. Simplesmente não havia respostas à mão.

Aliás, ficou claro para mim desde o início que o conhecimento da minha área de formação, a economia, era um empecilho para pensar o Brasil da pandemia. Houve críticas, houve elogios, mas isso é o de menos. Sinto-me satisfeita por ter me apresentado em hora difícil e cumprido meu papel o melhor que pude. Ao longo do tempo, como estava estudando temas de biomédicas, meus interesses foram migrando cada vez mais para a saúde. Falei de imunologia, virologia, genética, vacinas, e esses são os assuntos que hoje me fascinam. Tomei distância da economia.

Ao tomar distância da economia, também fui tomando distância do Brasil. Visto de longe e de perto, o Brasil dos economistas e da imprensa tradicional permanece preso a seus dogmas – o do teto, o da responsabilidade fiscal, o do medo inflacionário, e tantos outros – e me parece tornar cativa a sociedade. Esse país dogmático não me interessa, pois não há mais nada a pensar. A minha prática sempre foi a de deixar para trás o que já não serve. Já não serve falar de economia no Brasil e já não serve ter canal no YouTube, com tantas coisas que quero ler e estudar. Essa coluna passará a tratar desses temas, assuntos de natureza global e da saúde pública. Aos que me leem, aos que me acompanharam no último ano, desejo que aprendam a pensar sem corrimões.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.


Carlos Andreazza: Breve roteiro para a CPI

Participei, ontem, do podcast “O assunto”, comandado por Renata Lo Prete. O tema: a CPI da Covid no Senado. Mais precisamente: as questões a serem investigadas na CPI. São muitas. E merecem desenvolvimento em texto; sobretudo porque clareiam um padrão.

Começo com o caos em Manaus. Está documentado que o Ministério da Saúde fez escolhas ali. Nada a ver com lentidão em dar respostas. Escolhas consistentes com o conjunto de posições que tomou ante a pandemia; conjunto com que o governo Bolsonaro opera — o padrão — para prolongar a permanência do vírus entre nós, o que garantirá as condições de desordem radical em que o bolsonarismo prospera.

Escolhas. Por exemplo: mesmo informado de que faltaria oxigênio, promoveu, às vésperas da desgraça, uma caravana pela cidade para difundir a adoção de tratamento precoce. E, no dia mesmo do colapso, mandou 120 mil comprimidos de hidroxicloroquina ao Amazonas. (Os responsáveis por essa ode a um medicamento ineficaz continuam no ministério; razão mais que suficiente para que Marcelo Queiroga também seja ouvido na CPI.)

Sobre cloroquina/hidroxicloroquina, precisa ser chamado o general Fernando Azevedo e Silva, então ministro da Defesa, para esclarecer a produção de milhões de comprimidos, com recursos para enfrentamento à peste, pelo laboratório do Exército.

Outra escolha do governo em Manaus: só transferir internados a outras cidades se “em situação extremamente crítica” — esta sendo aquela em que, segundo uma servidora do Ministério da Saúde, os hospitais estivessem “todos superlotados”, com “pacientes dentro de ambulâncias, indo a óbito”. Isso compõe apenas modesta porção dos motivos para inquirir Pazuello, embora não me possa esquecer das acusações — sem nome — que fez ao se despedir. Quem seria a liderança política cujos pedidos não republicanos teria se negado a atender?

Tão importante quanto investigar as escolhas do governo ante a barbárie em Manaus será analisar as várias versões oficiais — informadas e remendadas, inclusive ao Supremo — sobre as datas em que o ministério teria sido notificado sobre a crise iminente. Alguém mentiu. Há um vaivém inaceitável, que sugere trabalho para apagar rastros que comprovariam negligência.

Também será relevante apurar por que chegamos à falta de medicamentos para entubação se havia notificações formais projetando essa escassez desde maio de 2020. E se sabemos que o ministério cancelou, em agosto do ano passado, uma importação desses insumos, mesmo alertado pelo CNS sobre a projeção de insuficiência. Nada se fez. Até a situação atual.

Há as perguntas óbvias: por que o governo se negou, entre agosto e setembro de 2020, a assinar um contrato que teria nos valido doses de vacina já em dezembro, três milhões até março de 2021? Três milhões a mais de doses até o primeiro trimestre deste ano; e isso no momento em que (ainda) dependemos de Fiocruz e Butantan; e isso quando sabemos que o ministério — tendo, afinal, assinado com a Pfizer — há pouco comemorou a antecipação da entrega de um lote do imunizante outrora desprezado. Para maio...

Poderíamos ter três milhões de doses até março, mas ora celebramos um fração disso prevista para o mês que vem. Não me esqueço da justificativa para a recusa: o Brasil não aceitava uma cláusula por meio da qual o laboratório não se responsabilizaria por eventuais efeitos colaterais da vacina; dispositivo idêntico, porém, não tendo sido problema quando do acordo com AstraZeneca/Oxford.

No ano passado, o governo se jactava do que seria sua estratégia para a aquisição de imunizantes: fechar convênios bilaterais (apesar de só ter fechado um em 2020). Não havia estratégia, mas postura contaminada pela pregação ideológica contra o tal globalismo. Razão por que o Brasil, podendo contratar cobertura vacinal para 50% de sua população, optaria por aderir ao consórcio multilateral Covax, liderado pela OMS globalista, com a cota mínima, de 10%. (Convoque-se Ernesto Araújo.)

Há também o episódio CoronaVac, vacina que, até este abril, respondia por mais de 70% das aplicações no Brasil. Um imunizante atacado pelo próprio presidente. A desculpa: o brasileiro não seria cobaia nem teria o seu dinheiro posto na frente por uma vacina ainda não certificada pela Anvisa; e isso como se alguém defendesse vacinar cidadãos antes do aval da agência, e como se o contrato obrigasse pagamento anterior à certificação sanitária do imunizante.

Em 2021, porém, o critério mudou; e se passou a fazer o certo: firmar convênios com laboratórios variados, antecipando-se à avaliação da Anvisa, de modo a ter previsibilidade e ganhar tempo. Foi assim com o imunizante Sputnik V, para cuja aquisição o governo de repente se esqueceu daquele antigo rigor; sendo mesmo o caso de apurar se o lobby da farmacêutica que o fabricará aqui não teria colaborado para a postura expedita.

Registre-se que a representação — que a chegada — desse imunizante no país coincide com a campanha parlamentar, promovida pela base do governo, e sem que Bolsonaro voltasse a temer pelo uso de seu povo como cobaia, para que a Anvisa amolecesse seus controles ou fosse mesmo tornada prescindível; o que também coincide com o projeto para que empresas privadas pudessem comprar vacinas.

Ah, são tantas as questões... Espero ter ajudado.


Míriam Leitão: Os vários pontos de atrito em Brasília

O governo usou ontem a tática de tentar adiar a instalação da CPI para continuar seu bombardeio ao possível relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL). O grupo dos sete senadores, de oposição e independentes, já está trabalhando na estrutura dos trabalhos e na lista de possíveis convocados. O ex-ministro Pazuello pode ir até mais de uma vez. Primeiro, como testemunha, depois, como investigado. Em outra frente, parlamentares e embaixadores se reuniram para discutir a cúpula do clima. O cantor Caetano Veloso compareceu, como representante da sociedade civil, e deu um recado direto aos diplomatas dos Estados Unidos e países europeus. “Salles é o antiministro e este governo ataca a Amazônia.”

Os dias estão intensos em Brasília nesta semana, com um feriado no meio e uma agenda lotada. A instalação da CPI se desdobra em várias reuniões e negociações sobre a ordem dos trabalhos e dos convocados. “Não temos tempo a perder”, disse o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Ele acha que tem que começar pelos ex-ministros da Saúde. Mas há na CPI quem defenda que se chame primeiro os cientistas para mostrar, com dados, como chegamos até aqui e quais são os riscos. A convocação de Paulo Guedes é a dúvida do momento. O ex-ministro Pazuello pode ser convocado mais de uma vez, explicou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Ele pode falar primeiro como testemunha. Depois, com o andar da CPI, pode ser novamente convocado, mas como investigado.

Neste início de semana, em que ocorrerá a cúpula do clima, o procurador Lucas Furtado, do MP junto ao TCU, fez uma representação para que o tribunal requeira junto à Casa Civil o afastamento do ministro Ricardo Salles. Essa seria uma medida cautelar até que o tribunal decida sobre várias representações já apresentadas mostrando os erros, desvios de função e políticas danosas ao meio ambiente impostas pelo ministro.

Numa terceira frente o governo negociava o Orçamento. Ou melhor, era pressionado. Se adotasse a estratégia proposta pelos técnicos do Ministério da Economia, ficaria mais fraco no Congresso. A saída arquitetada é vetar partes, preservar a maioria das emendas parlamentares e liberar despesas do controle do teto. Ou seja, está sendo feita uma operação no Frankenstein orçamentário de 2021, para preservar emendas, com medo de uma reação dos parlamentares em ambiente já tenso com a CPI. Ontem, em uma live da XP Investimentos, a ministra Flávia Arruda, da Secretaria de Governo, falou em R$ 100 bilhões a mais fora da meta de primário. Depois, recuou e disse que não havia recebido as contas.

No próprio grupo de oposição mais os independentes há dúvidas. O senador escolhido para ser o presidente da CPI é definido por um senador como “imprevisível”. Esse parlamentar diz que o grupo dos sete na verdade é seis mais um. Sobre o possível relator, Renan Calheiros, ontem foi dia de ataques da milícia digital contra ele. O argumento dos bolsonaristas de que ele seria suspeito por ser pai do governador de Alagoas é fácil de ser rebatido, segundo me disse um dos parlamentares. “A CPI desde o começo foi para investigar as origens, causas e omissões do governo que fizeram o país chegar onde está. O foco é esse”, disse.Ouvi também o senador Randolfe Rodrigues. Ele diz que não há razão para adiar o início dos trabalhos e afirma que o ataque contra Calheiros veio de endereço certo:— O ataque vem das milícias bolsonaristas nas redes sociais e é coordenado diretamente do gabinete do ódio por Carlos Bolsonaro. Eles querem atrasar para tentar desgastar ao máximo o senador Renan Calheiros.

Randolfe esteve em reunião com os embaixadores dos EUA, da União Europeia, Alemanha, Noruega e do Reino Unido para discutir a cúpula do clima e os acordos com o Brasil. Além dele, estavam o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) e o senador Jaques Wagner (PT-BA) e representantes da sociedade civil. No meio, Caetano Veloso.

— A reunião era para deixar claro que somos a favor de recursos para o Brasil, mas queremos acompanhar a aplicação desse dinheiro, e que o dinheiro pode ir também para estados e municípios. Mas quem falou de forma mais clara foi o Caetano. Ele definiu Salles como o antiministro do Meio Ambiente, lembrou que este governo é negacionista e tem o objetivo de devastar o meio ambiente — disse o senador.

Esses mesmos embaixadores se reuniram com autoridades do governo brasileiro. Uma dessas autoridades me disse que nunca viu Estados Unidos e Europa tão unidos numa questão como nesta cúpula do clima.


Merval Pereira: ‘Kigali já’

A Câmara dos Deputados tem uma oportunidade rara de ajudar a recolocar o Brasil no mapa da comunidade internacional em relação à política ambiental com a ratificação, no dia 22, o Dia da Terra, da Emenda de Kigali, um adendo ao Protocolo de Montreal para redução do uso de substâncias com elevado potencial de efeito estufa nas geladeiras, freezers e aparelhos de ar condicionado vendidos no país.

Hoje, 100% do mercado japonês e a maior parte dos países europeus já adotam fluidos refrigerantes de baixo potencial de aquecimento global. Essas tecnologias começam a dominar outros mercados robustos, como o chinês e o indiano. EUA e China anunciaram apoio em conjunto à Emenda de Kigali. Sua aprovação será um aceno diplomático ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que encaminhou ao Senado americano uma orientação por sua aprovação, e também aos demais países da OCDE que estão entre os 119 que já aderiram à emenda.

Biden convidou o presidente Bolsonaro e outros 39 líderes mundiais para o encontro virtual denominado “Cúpula dos Líderes sobre o Clima”, nos dias 22 e 23 de abril, preparação para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP26, prevista para acontecer de 1º a 12 de novembro em Glasgow, na Escócia. A ratificação da Emenda de Kigali seria um trunfo para o governo em relação à redução do impacto ambiental e abriria para a indústria brasileira créditos a fundo perdido do Fundo Multilateral para implementação do Protocolo de Montreal, estimados em US$ 100 milhões, para modernizar fábricas e gerar empregos.

O projeto já passou por todas as comissões da Câmara, mas está parado há um ano, sem que seja colocado para votação em plenário. Um manifesto de entidades da indústria e de defesa da eficiência energética, de sustentabilidade e dos direitos do consumidor foi enviado ao presidente da Câmara, deputado Arthur Lira. Coordenador de energia e sustentabilidade do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), uma das organizações signatárias do manifesto “Pela aprovação de Kigali já!”, Clauber Leite diz que a expectativa é que a Câmara sinalize o compromisso do país com a agenda mundial de sustentabilidade apoiando a ratificação.

Além do Idec, apoiam o manifesto entidades como a Abrava (Associação Brasileira de Refrigeração, Ar Condicionado, Ventilação e Aquecimento), Eletros (Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos), Fecomércio-SP, Centro Brasil no Clima, Climate Policy Initiative, Instituto Ethos, entre outros. A emenda estabelece metas de redução dos gases hidrofluorocarbonetos (HFCs) em geladeiras e aparelhos de ar-condicionado.

Os mais utilizados no Brasil são até duas mil vezes mais prejudiciais ao efeito estufa que o dióxido de carbono. “Essa modernização permitiria que a indústria brasileira ficasse alinhada às inovações já presentes em mercados como norte-americano, europeu, chinês e indiano”, diz a carta.

A indústria diz que aprovação da emenda evitará que o Brasil se torne um dos últimos destinos de aparelhos obsoletos, que aquecem o planeta e têm baixa eficiência energética, elevando os gastos das famílias, do governo, da indústria e das empresas em geral com a conta de luz.

O uso de aparelhos eficientes resultaria num impacto de R$ 57 bilhões no Brasil até 2035, de acordo com um estudo do Instituto Clima e Sociedade (iCS) em cooperação técnica com o Lawrence Berkeley National Laboratory (LBNL). Do total, R$ 30 bilhões deixariam de ser gastos na geração de energia elétrica, e outros R$ 27 bilhões seriam economizados pelos consumidores na conta de luz.

“A proteção do planeta precisa ser compatível com o desenvolvimento econômico, e a busca pela eficiência energética e por produtos mais inteligentes é o melhor caminho para aliar essas duas agendas fundamentais”, diz a coordenadora da Iniciativa de Eficiência Energética do iCS, Kamyla Borges, advogada e uma das líderes do movimento pela Emenda de Kigali.


Joel Pinheiro da Fonseca: Quarentenas e isolamento são medidas conservadoras?

Nossos antepassados reagiram às epidemias de maneiras similares às nossas

Vivemos em tempos de decadência moral e espiritual. Os homens perderam a coragem. “Onde foram parar os machos?”, clama ávido um famoso assecla do bolsonarismo. E não pra menos! Pessoas em casa, fechadinhas, sem trabalhar, ganhando auxílio, com medo de um minúsculo vírus; isso não seria motivo de vergonha a nossos corajosos ancestrais?

Em uma variação do mesmo tema, o lamento ganha contornos espirituais. O homem moderno esqueceu-se de Deus e da vida eterna, e por isso é tão neuroticamente obcecado com a saúde. Afinal, a morte vem para todos. Por fim, corre o argumento, medidas de isolamento violam nossos santos direitos individuais, que não admitem restrição nenhuma. Não foi assim que o Ocidente se ergueu?

É bela a disposição de nossos conservadores em querer proteger nossa civilização. Mas é uma pena que ela não venha acompanhada de qualquer conhecimento histórico sobre essa civilização.

Ao contrário da imaginação conservadora, nossos antepassados de carne e osso reagiram às epidemias de seu tempo de maneiras similares às nossas. A própria ideia de uma quarentena aplicada a navios e caravanas que chegam de fora durante uma peste foi uma inovação da peste negra. E as medidas não paravam por aí.

Para impedir que a infecção saísse de uma cidade e fosse para outra, as autoridades impunham um cordão sanitário ao redor da cidade infectada: ninguém mais podia sair até que a epidemia passasse.

Proibição de aglomerações e festas, de jogos e teatros (aliás, Shakespeare escreveu seus poemas mais famosos durante uma longa quarentena sem teatro de 1592 a 93). Mesmo procissões religiosas foram restritas em diversas ocasiões, e muitas igrejas fechavam as portas. Nos piores momentos, os próprios fiéis deixavam de ir.

Algumas epidemias foram surpreendentemente bem documentadas. É o caso da peste de 1665 em Londres. Seguindo a prática comum, qualquer pessoa visivelmente infectada era imediatamente apreendida e levada a uma casa de pestilência, onde provavelmente morreria, para não infectar os saudáveis.

No caso de casas suspeitas, a ordem das autoridades era pintar um X vermelho na porta e colocar um guarda na rua para impedir que qualquer morador saísse delas.

Mas nem só de maldade era feita a política: para ajudar os desesperados e as cidades isoladas, havia coletas adicionais de impostos e doações de alimento. Exatamente como os auxílios que tantos países, inclusive o Brasil, utilizaram durante esta pandemia.

No início do século 20, nosso conhecimento já tinha avançado bastante. Quando a gripe espanhola tomou o mundo de assalto em 1918, as autoridades de vários países impuseram medidas muito similares às que vemos hoje: fechamento de escolas, restaurantes, comércios não essenciais, igrejas, teatros e aglomerações públicas em geral. Uso de máscara de pano para conter o contágio.

Medidas extremas para lidar com emergências de saúde pública estão conosco desde a Antiguidade. Não são invenção de tiranos e comunistas. A partir do momento que o perigo passa, as restrições vão embora. É o que já vemos em Israel, na Inglaterra, na Austrália.

Os delicados “conservadores” de hoje, para quem uma máscara de pano parece um sacrifício duro demais, associam essas medidas à tirania comuno-globalista. Mal sabem que são todas parte de sua amada civilização ocidental. ​

*Economista, mestre em filosofia pela USP.