cpi da covid

Bernardo Mello Franco: Bolsonaro vende um Brasil imaginário na Cúpula do Clima

Jair Bolsonaro tentou vender um Brasil imaginário na Cúpula de Líderes sobre o Clima. Nas palavras do presidente, o país está “na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global”. Nem parecia o chefe do governo que mutilou a fiscalização ambiental e permitiu o avanço do desmatamento da Amazônia.

Na defensiva, Bolsonaro sustentou que o Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do planeta e promoveu uma “revolução verde” no campo. Se tudo vai bem, o mundo estaria perdendo tempo ao se preocupar conosco.

O capitão abusou da boa-fé dos estrangeiros. Sem corar, ele disse ter determinado o “fortalecimento dos órgãos ambientais”. Na vida real, seu governo pilota uma operação de desmonte, executada pelo ministro Ricardo Salles.

No início da semana, mais de 400 servidores do Ibama denunciaram que as atividades de fiscalização estão paralisadas. Eles explicaram que uma nova instrução normativa inviabilizou a aplicação de multas aos infratores.

É verdade que houve uma mudança de estilo na fala de Bolsonaro. No passado recente, ele ameaçou abandonar o Acordo de Paris, espalhou mentiras contra o movimento ambientalista e declarou que poderia trocar a saliva pela pólvora se Joe Biden chegasse à Casa Branca.

Ontem o capitão se disse “aberto à cooperação internacional” e adotou um tom dócil ao se dirigir ao novo presidente americano. Para seu azar, o democrata já havia deixado a reunião quando ele começou a rastejar diante da câmera.

A distância entre o discurso e a prática não foi o único problema que impediu o presidente de ser levado a sério. Numa reunião em que diversos líderes prometeram sacrifícios para reduzir as emissões de gases poluentes, Bolsonaro estendeu o pires e pediu dinheiro.

“Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostas a atuar de maneira imediata”, afirmou.

Só faltou apresentar a conta de US$ 1 bilhão em troca da preservação da Amazônia, como fez na véspera o ministro Salles.


Vera Magalhães: Jair sem Trumpinho

'Alvorada sem alambrado/ Pão sem leite condensado/ Sou eu assim sem você. Ema sem cloroquina/Dudu sem carabina/ Sou eu assim sem você.'

Na hora e meia em que esperou sua vez de falar sem convicção na Cúpula de Líderes sobre o Clima convocada por Joe Biden, Jair Bolsonaro bem poderia cantarolar essa versão negacionista do sucesso de Claudinho & Buchecha.

Não que o clássico do funk carioca mereça ter seus versos solares e meigos substituídos pelo lamento do presidente brasileiro sobre o isolamento a que foi relegado no tabuleiro mundial depois que seu amigo Trumpinho foi derrotado nas urnas. Mas sua visível falta de ambiente na reunião em que teve de ler, a contragosto, um papel com o contrário daquilo que pensa e pratica em termos de política ambiental me lembrou os versos “Eu não existo longe de você/ E a solidão é meu pior castigo”.

Antes, quando era Trump, e não Biden, o anfitrião, Jair, família e agregados eram recebidos com alegria galhofeira. A caravana dos puxa-sacos exóticos dos Trópicos vestia boné, ganhava tapinha nas costas e se achava a tal. Podia mandar às favas os indicadores vergonhosos de desmatamento e queimadas. Afinal, primo Donald não estava nem aí para esse mimimi.

Agora, as coisas mudaram. Biden, vejam que amolação, resolve fazer uma Cúpula do Clima e, ainda por cima, exigir metas concretas. Jair não pode nem ler o mesmo discurso de sempre, como gostaria, porque os chatos do Itamaraty, depois da saída do Ernesto, vêm estragar o almoço do costelão e dizer que talvez seja melhor propor alguma coisa com cara de concreta.

Então toca colocar terno e gravata verde (ainda se tivesse o escudo do Palmeiras, talkey?) e fazer cara de sério ao lado do Salles, esquecer a Anitta e desenterrar aquele discurso “comunista” dos governos do PT e do PSDB.

Bolsonaro deve ter ensaiado diante do espelho para repetir palavras como biocombustíveis, biomassa, bioma e biodiversidade sem intercalar com um palavrão ou falar que aquilo é tudo coisa de maricas.

Do lado de lá da tela do computador, Biden (que até saiu da sala, dado o climão da Cúpula do Clima) e os demais líderes mundiais devem ter achado certa graça em ver o antes destemido presidente brasileiro prometer com a voz baixinha dobrar recursos para a fiscalização de crimes ambientais, uma semana depois de mandar exonerar o superintendente da Polícia Federal que ousou combatê-los por meio de uma operação.

Até Trump, onde quer que esteja curtindo seu merecido oblívio, deve ter soltado uma gargalhada e exclamado: “Quem é esse cara?”. Nem parecia aquele que até ontem estava disposto a lhe fazer companhia na bravata de abandonar o Acordo de Paris. Que deixou de sediar a COP-25, que se recusou a conversar com a diretora do Greenpeace, Jennifer Morgan, quando a encontrou em Davos em 2019. Seria o mesmo cara? Aquele do filho de boné que não sabe falar inglês, mas queria ser embaixador?

Eventos como os desta quinta-feira evidenciam a absoluta inadequação de alguém como Jair Messias Bolsonaro para presidir o Brasil, e de auxiliares como Ricardo Salles para gerir qualquer coisa que não seja destinada à destruição.

Ao conseguir, em três minutos de fala, prometer o oposto do que praticou ao longo de dois anos e quatro meses de desgoverno, Bolsonaro assinou diante de um mundo livre do trumpismo o atestado do desastre que é sua gestão.

Resta verificar o dia seguinte da Cúpula em que o Brasil e seu presidente ficaram nus diante do mundo com sua incompetência. Parece difícil que, diante de todas as evidências de que Bolsonaro apenas fez malabarismo retórico para pedir um trocado no final, Biden esteja disposto a financiá-lo. Assim como Trump só enrolava o “amigo”, os Estados Unidos sob nova direção devem continuar a dar chá de cadeira no Brasil.


Alon Feuerwerker: O cachorro do Pavlov

Os reflexos condicionados contra uma frente ampla de oposição

Na culinária e na política, nem sempre quem faz o bolo come o bolo. Em 1992, o PT ofereceu a base popular para depor o presidente Fernando Collor de Mello. Certa hora, achou-se que Luiz Inácio Lula da Silva emergiria do processo imbatível em 1994. Mas Fernando Henrique Cardoso reagrupou as tropas dispersas do collorismo, pegou o trem do Plano Real e matou o sonho do PT de surfar a onda do impeachment rumo ao poder.

Deu-se o mesmo na queda de Dilma Rousseff. PSDB e PMDB (hoje MDB) decretaram o fim do quarto governo petista, reuniram-se em torno de Michel Temer e projetaram poder ir adiante no tempo. Mas a entropia trazida pela Lava-­Jato foi além da conta e acabaram ambos tragados pelo tornado bolsonarista. O antipetismo trouxe junto a antipolítica e o antitudo, e tucanos e emedebistas viram o bolo escapar na undécima hora.

Esse fenômeno não se dá só em situações contaminadas por derrubadas de governos. Acontece também em transições normais, decorrentes de eleições convencionais. Quantas vezes se viu a polarização eleitoral, antes resiliente, ser atropelada por um azarão de última hora? Aí o oposicionista que fez de tudo e consumiu as melhores energias para minar o incumbente fica na poeira. Pois se tem algo difícil de combinar antecipadamente com o eleitor é o resultado de uma eleição.

“Na pandemia, esquerda e centro ensaiam juntar-se para fazer o bolo da lipoaspiração do atual presidente”

Assiste-se agora à ofensiva da esquerda e da ex-direita, rebranded como centro, contra Jair Bolsonaro. No momento, o objetivo de ambas é enfraquecê-lo para derrotá-lo na urna. Até porque Hamilton Mourão não tem sido, por enquanto, um replay de Itamar Franco ou Michel Temer. Não dá esperanças aos políticos hoje excluídos do poder. Nem esses andam dispostos a cozinhar o bolo e, de novo, ficar a ver navios. E Bolsonaro vai navegando…

Mas os mares andam cada vez mais turbulentos. Inclusive por certos incômodos que a condução governamental desencadeou e fez crescer na pandemia. Um deles, importante: pela primeira vez a elite sente algo parecido com as gentes do povão quando ficam doentes e não têm certeza de que vão encontrar um leito vazio de hospital ou UTI.

Atenção, eu disse “algo parecido”. Mesmo hoje, continuam situações no limite incomparáveis.

Na tempestade da pandemia, esquerda e centro ensaiam juntar-se para fazer o bolo da lipoaspiração do atual presidente, mas sempre com um olho no peixe, Bolsonaro, e outro no gato, o aliado de momento e já garantido adversário de amanhã. E, ao contrário de situações históricas anteriores, desta vez nem tentam disfarçar. Não é mais um jogo de dois, bolsonarismo e antibolsonarismo, ou petismo e antipetismo, mas de três.

Jogo de três é sempre mais complicado de operar. Se até o cachorro do Pavlov aprendeu, desenvolveu reflexos condicionados, não é difícil supor que os políticos também tenham aprendido. De viver, estudar ou ouvir falar, tanto faz. Entrar de gaiato numa “frente ampla” para confeitar o bolo e correr o risco de ficar sem nenhum pedacinho dele na hora de comer talvez não atraia mais tantos incautos como no passado.

Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735


Marco Aurélio Nogueira: Descoordenação geral

A crise é uma combinação de grandes, médias e pequenas crises, que se enrolam umas nas outras e se potencializam reciprocamente.

Enquanto o presidente da República exibe seu peculiar estilo de criar caso e agredir, afundando seu governo no desgoverno, a crise segue corroendo as esperanças brasileiras, sem sinal de superação.

A crise é uma combinação de grandes, médias e pequenas crises, que se enrolam umas nas outras e se potencializam reciprocamente. A crise sanitária e a crise econômica são grandes, terríveis, têm pinta de que se estenderão. A crise da educação mistura-se com  elas, e vai ceifando a inteligência nacional a partir de baixo, dos mais jovens, o que sugere a criação de um legado arrasador, que se espalhará pelo tempo. Pode-se dizer o mesmo da crise do saneamento, cujos déficits são escandalosos.

Somente elas são suficientes para explicar por que o País não está dando certo. São crises que se enraízam no chão profundo da história nacional, como se tivessem a ser criadas intencionalmente por mãos humanas. Servindo de base para todas elas, a desigualdade social obscena, chaga exposta a céu aberto, da qual muito se fala mas que segue se reproduzindo.

Nesse tronco principal enroscam-se outras crises, que eventualmente são mais fáceis de serem contornadas. Por comodidade vou chamá-las de “média intensidade”: a crise da federação e a crise dos poderes de Estado. As tensões que estão a ser reprisadas dia após dia têm a ver com isso. Há defeitos de formatação sistêmica no presidencialismo federativo, mas o que mais chama atenção é a ausência de um centro gestor eficiente, com um governante central interessado em defender o País mediante a harmonização de poderes e entes federativos. Nos últimos dias, o Judiciário entrou em rota de colisão com o Senado. O Senado reagiu à altura e assimilou o problema, mas não mostrou saber como processá-lo. Confusão à vista. O Executivo fez questão de deixar suas digitais. Com aquele jeito Bolsonaro de ser, resolveu conspirar com um senador (o inacreditável Kajuru) para pressionar os senadores e o STF simultaneamente. Para além da demonstração de desrespeito à Constituição, à ética pública, à decência e às boas maneiras, a iniciativa presidencial se dedicou, na verdade, a soprar as brasas de uma fogueira que libera gases tóxicos sem cessar. Uma fogueira que lhe queima as penas e o isola, mas que também cria um alvoroço que a todos confunde. Serviu, ao meno

Chamo essas crises de “média intensidade” porque podem ser enfrentadas com os recursos da política prática: a inteligência, a responsabilidade, a seriedade, a disposição ao diálogo, o jogo democrático. Se continuam a latejar é porque tais recursos não estão sendo empregados. Ressentimo-nos da falta deles, da falta de elites políticas dotadas de capacidade de iniciativa e proposição. Talvez não haja uma cultura política (um ethos, um conjunto de valores e convicções) que dê sustentação a boas elites, talvez os partidos não estejam sendo a “escola de formação” de que se necessita, talvez a classe política seja covarde de mais e lúcida de menos. Pode ser tudo isso. O fato é que as instituições democráticas, que se supõe fortes e estáveis, não estão produzindo respostas que amenizem crises e dificuldades, que avancem pactos e soluções positivas. Donde a sensação crescente de descontrole, descoordenação, desgoverno.

O País está sem diretrizes, sem políticas. O meio ambiente é uma tragédia, o Itamaraty marchou para trás, não há política externa, a Cultura foi jogada na sarjeta, o desarranjo atinge todos os segmentos da gestão pública. Carecemos de muitas coisas.

Até onde um País assim conseguirá chegar é uma incógnita. Não há futuros predeterminados. Há muitos caminhos abertos na encruzilhada da História. O fato é que os motores estão engasgando e não se vislumbra no horizonte próximo quem poderá voltar a fazê-los funcionar.


Alon Feuerwerker: Cone Sul

O recrudescimento da Covid-19 no Cone Sul do continente (leia) produz problemas não apenas sanitários, mas também políticos. No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro está às voltas com uma CPI. Na Argentina, o prefeito da capital rebelou-se contra as novas medidas restritivas de Alberto Fernández (leia). E no Uruguai acabou a lua de mel com o recém-eleito Luis Alberto Lacalle Pou (leia).

Os três países são governados por distintas correntes políticas. Grosso modo, e com todas as relativizações possíveis, direita no Brasil e esquerda na Argentina. No Uruguai, o que hoje em dia seria aqui chamado de centro. Também foram três modelos diferentes de combate ao vírus. Respectivamente, isolamentos sociais descentralizados (Brasil), tentativa de lockdown nacional (Argentina) e "modelo sueco" (Uruguai).

Uma hipótese para o repique regional é o espalhamento da variante de Manaus, mais contagiosa, disseminada com a ajuda das porosidades fronteiriças do continente. A isso certamente se juntam uma certa desorganização estatal e a ausência da desejável (pelo menos em pandemias) disciplina social encontrada nos países que vêm melhor conseguindo enfrentar o desafio.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Zeina Latif: O presidente não sabe surfar

Não há mais contraponto no governo para defender a disciplina fiscal, e cada grupo corre para garantir sua parte no latifúndio

Empolgados com a expressiva alta dos preços de commodities, analistas apostam em um ciclo robusto adiante, em boa medida por conta das perspectivas de vacinação em massa no mundo. Os países emergentes se beneficiariam com o influxo de capitais estrangeiros, para além da melhora do saldo exportador.

Haveria mais investimento nesses setores e em ativos de risco, pela própria percepção de redução do risco nos países - como sugerem as elevadas correlações entre preços de commodities e o custo (spread) da dívida soberana ou o preço do seguro contra calote (credit default swap) de emergentes.

O otimismo tem contribuído para sustentar preços de ativos. Convém, no entanto, conter o entusiasmo, especialmente para o caso brasileiro.

O principal combustível para a alta das commodities é o comércio mundial, que exibiu recuperação em formato de “V” e embalou a alta de 68% nos preços de commodities entre o colapso de abril passado e março último, pelo índice do FMI. Certamente a elevada liquidez mundial tem sua contribuição, por se tratar de um preço de ativo.

A tendência, porém, é de desaceleração do comércio mundial, pois fatores transitórios explicam em boa medida sua recuperação: a recomposição de estoques de commodities pela China, os estímulos monetários no mundo e própria normalização de cadeias de valor.

Avanços adicionais dependerão de mais elementos, sendo que a superação da pandemia significará muito mais a reativação do setor de serviços do que de setores intensivos no uso de commodities, mais preservados na crise.

Vale lembrar que o comércio mundial estava estagnado antes da crise, em função do protecionismo no mundo e da desaceleração na China.

A China acelerou seus planos de rebalanceamento do modelo de crescimento voltado a setores intensivos em tecnologia, em detrimento da indústria tradicional -, aliás, a disputa tecnológica está no cerne da guerra comercial entre China e Estados Unidos. Esses segmentos, no entanto, não são intensivos na utilização de commodities e tampouco o retorno do maciço investimento estatal está garantido, ainda menos de forma tempestiva.

 A complexidade da implementação e da maturação de projetos de tecnologia não se compara à de investimentos tradicionais em capital fixo. É natural, portanto, que ocorra uma desaceleração na China, inclusive pela acomodação na oferta de crédito após os estímulos recentes.

Em relação a agendas globais, ainda não chegou o momento do multilateralismo no comércio. O foco tem sido muito mais na questão ambiental, que ganhou ímpeto com Joe Biden. Mantém-se o quadro de protecionismo comercial, inclusive com risco de recrudescimento, por conta das exigências da agenda ambiental.

Mesmo que o ciclo de commodities perdure, é improvável que o Brasil consiga “surfar a onda” como no passado.

No primeiro governo Lula, isso foi possível. A política macroeconômica herdada de FHC foi fortalecida e houve avanço em políticas públicas que contribuíram para aumentar o potencial de crescimento de longo prazo do País e a emergência da nova classe média.

Apesar da crise política que interrompeu precocemente as reformas, o Brasil conseguiu se beneficiar do vento de popa do exterior, decorrente da entrada da China na OMC no final de 2001, e caminhou para conquistar o grau de investimento em 2008.

O quadro atual é outro. Já assistíamos à redução da participação do Brasil no investimento direto estrangeiro mundial e à saída de empresas do País. A má gestão da crise da pandemia agravou bastante a situação, sendo que a deterioração do regime fiscal em curso traz mais incertezas para o comportamento do dólar, das taxas de juros e da própria carga tributária no futuro.

Tudo somado, o cenário eleitoral ganha maior relevância no radar de empresários e investidores.

O governo está em um círculo vicioso de decisões equivocadas. O imbróglio do orçamento reflete erros passados na gestão da crise e sua suposta solução - que amplia os gastos públicos praticamente sem constrangimento, pendurando tudo na conta da covid-19 - produz outros tantos.

Não há mais contraponto no governo para defender a disciplina fiscal e cada grupo corre para garantir sua parte no latifúndio.

Esse quadro reduz as opções para correções de rumo. Mesmo se houvesse interesse, o esforço teria de ser enorme diante da perda de credibilidade. As saídas se estreitam e o Brasil perde a onda.


Elio Gaspari: De Zappa@edu para Bolsonaro@gov

O senhor abraçou uma causa perdida na discussão do meio ambiente

Presidente,

O senhor implica com os diplomatas profissionais e chega a ironizar suas boas maneiras. Como disse um colega, alguns arrumam melhor os talheres numa mesa que os pronomes numa frase. Escrevo-lhe com a autoridade de quem, no século passado, serviu como embaixador em postos para os quais o creme de barbear chegava por mala diplomática (Pequim, Hanói, Maputo e Havana). Eu evitava usar smoking, porque seria confundido com garçom.

Amanhã o senhor começará a participar da Cúpula do Clima e terá momentos difíceis. Acho que posso ajudar com uma ideia simples: deixe a diplomacia com os diplomatas profissionais. Teste-os, enunciando uma tolice. Quem concordar, profissional não é.

Na diplomacia, não há lugar para ganhadores nem para perdedores. Isso é coisa de militares. Às vezes o vencedor finge que perdeu e dá ao perdedor a chance de dizer que ganhou. Conversa de diplomata? Talvez o senhor esteja entre aqueles que consideram o americano Henry Kissinger um grande diplomata. Ele ganhou o Prêmio Nobel da Paz, mas abandonou o Vietnã à própria sorte depois de massacrar parte de sua população numa guerra perdida. Eu vivi lá e sei o que houve. Grande marqueteiro, isso sim.

O senhor abraçou uma causa perdida na discussão do meio ambiente. Depois de delirar na virtude de ser um pária, seu governo não deve apresentar contas. Sua carta ao presidente Joe Biden foi longa demais porque muita gente meteu a colher.

Nós já compramos causas perdidas. Apoiamos o colonialismo português na África, ficamos com os chineses de Taiwan, mesmo depois que os americanos se acertaram com a China. Votávamos nas Nações Unidas com Portugal por causa da pressão de meia dúzia de comendadores do Rio de Janeiro. Saímos dessa encrenca. Mais difícil foi aguentar as implicâncias com o restabelecimento de relações diplomáticas com a China. O senhor implicou com a vacina chinesa. Para quê?

Diplomatas consertam vasos quebrados desde os tempos coloniais. Eles sabem lidar com o ritmo e o tom nas crises. Na questão da Amazônia, o Brasil precisa apenas voltar a ser ouvido. Deixamos de sê-lo porque deliramos. A irracionalidade não é invenção nossa. Veja o caso dos Estados Unidos na Amazônia. No século XIX, eles queriam mandar para lá seus negros. No início do XX, Henry Ford delirou querendo transformar um pedaço da floresta em seringal particular. Décadas depois, o bilionário Daniel Ludwig teve uma ideia parecida. Deliraram, deram-se mal e foram-se embora.

Existe um espaço enorme para negociarmos projetos relacionados com a Amazônia. Para um exportador de grãos que compete conosco no mercado internacional, vossa política ambiental é um presente.

Pelo que sei, há malandraços oferecendo pontes com a Casa Branca. Não caia nessa. O presidente Biden tem um jeitão de vovô, mas conhece Washington. Para seu caderno de notas: em abril de 1975, as tropas do Vietnã do Norte estavam entrando em Saigon, e discutiam-se recursos para resgatar os vietnamitas que haviam ajudado os americanos. O então senador Biden avisou:

— Voto qualquer quantia para tirar os americanos, mas não quero me meter com operações para retirar vietnamitas.

Eu servi lá e nos Estados Unidos. Sei quanto isso custou aos dois povos.

Atenciosamente,

Ítalo Zappa.


Bernardo Mello Franco: Os estribos do general

O novo ministro da Defesa está empenhado em agradar o chefe. Walter Braga Netto estreou no cargo com uma exaltação ao golpe de 1964. Em seguida, passou a usar cerimônias militares para endossar o discurso do capitão.

Ontem o general aproveitou a troca de comando do Exército para fazer mais um comício bolsonarista. Às vésperas da Cúpula do Clima, ele tentou rebater as críticas da comunidade internacional pela devastação da Amazônia. “Os brasileiros que estão presentes na região sabem que a floresta continua de pé”, afirmou.

A patriotada não apaga o que as imagens de satélite mostram ao mundo. Ao analisá-las, o Imazon constatou que o desmatamento em março foi o maior para o mês nos últimos dez anos.

Com o governo pressionado pela abertura da CPI da Covid, Braga Netto disse que “é preciso respeitar o rito democrático e o projeto escolhido pela maioria dos brasileiros”. A frase sugere que a eleição deu um salvo-conduto ao presidente, como se ele não precisasse prestar contas à sociedade e ao Congresso.

O ministro também afirmou que o Brasil passa por um período de “intensa comoção e incertezas, que colocam a prova a maturidade, a independência e a harmonia das instituições”.

Faltou lembrar que os ataques ao equilíbrio entre os poderes partem do Planalto. Nas últimas semanas, Bolsonaro voltou a atacar ministros do Supremo e acionou sua milícia digital para intimidar os senadores que pretendem investigá-lo na CPI.

O general arrematou o discurso com uma advertência pouco sutil. Disse que as Forças Armadas estão “prontas” e “sempre atentas à conjuntura nacional”. A conversa casa com a retórica golpista do capitão, que tem ameaçado adversários políticos com o que ele chama de “meu Exército”.

Braga Netto assumiu a Defesa no momento em que o presidente cobrava mais manifestações de apoio dos militares. Sua primeira medida foi derrubar o general Edson Pujol, que tentava controlar a exploração política da tropa.

Ontem o ministro se despediu do ex-comandante com um bordão da caserna: “Que nossos estribos se choquem em cavalgadas futuras”.


Vera Magalhães: Campeonato do fim do mundo

“Nesse campeonato do fim do mundo, quando você é muito bem-sucedido, você acrescenta meio grau na temperatura do planeta”, disse, de forma contundente, o escritor e líder indígena Aílton Krenak na última segunda-feira no centro do Roda Viva.

Para ele, é este campeonato que o Brasil, tendo Jair Bolsonaro e Ricardo Salles como técnico e auxiliar, resolveu jogar. E é na condição de líder da tabela desse torneio macabro que o país chega à Cúpula de Líderes pelo Clima, proposta por Joe Biden, que será anfitrião virtual de 40 chefes de Estado a partir desta quinta-feira para marcar a volta dos Estados Unidos à mesa das negociações climáticas, depois de quatro anos de abandono desta agenda por Donald Trump.

Todos os olhos do mundo antes da reunião estão postos sobre o Brasil. Os sucessivos recordes de desmatamento da Amazônia, as queimadas na floresta e também no Pantanal, o desmonte da estrutura de fiscalização ambiental e a reiterada disposição de Bolsonaro de liberar a exploração mineral e de madeira em reservas indígenas, rever demarcações e legalizar terras ocupadas ilegalmente na região amazônica são apenas alguns dos "feitos" pelos quais o presidente brasileiro deverá ser questionado por seus pares.

Embora mantenham a absoluta falta de compreensão a respeito da importância econômica central da agenda climática e ambiental em qualquer fórum global hoje, Bolsonaro e seus auxiliares terão mais uma mostra de sua inadequação para esse debate, pois as cobranças para que se endureça com eles vêm não apenas dos adversários de sempre, como lideranças ambientalistas como Krenak ou a jovem Greta Thunberg, ou artistas como Leonardo di Caprio ou Wagner Moura, mas dos empresários.

Escrevi a esse respeito aqui na coluna na semana passada, e retomo o fio desta meada: Salles só será ameaçado no cargo quando Bolsonaro sentir na pele o risco de mantê-lo, ainda que ele sempre tenha feito exatamente o que o chefe mandou.

Grandes empresas brasileiras sabem o quanto de prejuízo reputacional e de negócios enfrentarão quando se tornar um imperativo para vendas a certificação ambiental de produtos, algo cada vez mais comum. Vale sobretudo para o poderoso agronegócio, até aqui ainda um reduto de apoio ao bolsonarismo, mas que não rasga dinheiro.

A pressão mundial é para que Biden endureça o jogo com o Brasil, não aceitando fazer nenhum acordo com o governo do capitão a não ser que o país reveja sua doutrina ambiental e se comprometa com metas objetivas e mensuráveis de redução de desmatamento e de emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa.

Bolsonaro ficará ainda mais exposto pelo fato de que os anfitriões querem marcar sua “volta ao jogo” com a assunção de metas ousadas e o anúncio de investimento pesado em conter o aquecimento global, para além da mera retórica.

Sabemos como o presidente brasileiro costuma se comportar em eventos mundiais como a Assembleia Geral da ONU ou o Fórum Econômico Mundial de Davos: como um peixe fora d’água, alguém que sabe que não tem o que dizer para além das quatro linhas das redes sociais e do cercadinho do Alvorada, onde fica seguro na companhia dos seus seguidores fanáticos.

Sem o “amigo" Donald Trump a chancelar o desdém e o discurso negacionista em relação ao Meio Ambiente, Bolsonaro ficará completamente isolado na cúpula. O discurso proferido nesta terça-feira pelo ministro da Defesa, Braga Netto, na linha “a Amazônia é nossa”, mostra que o nacionalismo mofado é a tônica em todas as áreas do Executivo, não só na pasta de Salles. 

Parece ingênua, portanto, qualquer esperança de que o Brasil vá ao encontro munido de novos propósitos para deixar a liderança da peleja do fim do mundo. Só fará isso se levar um cartão vermelho de Biden.


Vinicius Torres Freire: Para onde vai dinheiro das emendas parlamentares, que fazem Bolsonaro dançar miudinho?

Crise do Orçamento tem a ver com podridão do governo e é também problema histórico

Muito se falou de emendas parlamentares nestes dias da novela infame do Orçamento federal. Por que tanto tumulto por causa de um tipo de despesa que não chega a 1,5% do gasto do governo? Para onde vai esse dinheiro? Por que o aumento do valor total das emendas ainda vai manter Jair Bolsonaro com a corda no pescoço?

O comando do Congresso e o governo haviam aprovado um Orçamento em que a despesa superava o que, em tese, é permitido gastar, dado o “teto”. Um motivo do estouro era o aumento da despesa decidida por meio de emendas parlamentares, o que foi possível porque haviam sido subestimados gastos obrigatórios (como benefícios do INSS, por exemplo), resultado de malandragem e inépcia.

Caso Bolsonaro vetasse muita emenda, a retaliação no Congresso seria maior. Depois de dias de intriga, chegou-se a um acordo. Mantém-se parte do dinheiro extra para emendas parlamentares e diminui bem o risco de Bolsonaro e gente do governo serem processados por crime fiscal. O Congresso-centrão e parte do governo reduziram Paulo Guedes a papel ainda mais ridículo.

Uma emenda ao Orçamento é a destinação que um parlamentar, uma comissão, uma bancada estadual ou o relator do Orçamento dão a parte do dinheiro federal. O site Siga do Senado listou 17.825 delas em 2020, das quais 13.764 viram algum dinheiro.

Fora despesas extras com Covid, em 2020 o governo federal gastou R$ 1,5 trilhão. O valor das emendas parlamentares pagas foi de R$ 22 bilhões (o valor das executadas, de obras e serviços concluídos ou em andamento, foi de R$ 35 bilhões). Relativamente, é pouco dinheiro.

Quase 94% da despesa federal é obrigatória: 54% vai para Previdência e benefícios assistenciais, abono salarial, seguro-desemprego. Para salários, cerca de 21%. Etc.

Sobra 6% para a operação de governo (gasto administrativo, bolsa de pesquisa, insumo de hospital, obras etc.). Como os parlamentares avançaram nas emendas, o governo terá de cortar no osso a fim de que tenha dinheiro para funcionar no mínimo básico (haverá talho em obras definidas pelo Executivo, ciência, pesquisa, educação superior etc.). Ainda assim, terá de negociar com o Congresso o destino de algumas emendas. Vai dançar miudinho.

Boa parte do dinheiro das emendas vai para investimento, em geral obras pequenas: estrada, ponte, posto de saúde, casa popular, transporte público, obra contra seca, cadeia, quadra de esporte. De 2017 a 2019, dois terços foram para gastos em saúde. O grosso do resto vai para a Infraestrutura e ministérios que remediam a vida no interior pobre (Desenvolvimento Regional, Cidades, Integração, o nome que tenham). O valor médio da emenda paga em 2020 foi de R$ 1,5 milhão, mas metade delas levou menos de R$ 289 mil.

É ruim? Depende da obra. Mas, como se diz faz décadas, o Orçamento acaba picotado. Sobra pouco para fazer obra grande e de relevância “estrutural”.

As emendas parlamentares levam cada vez mais dinheiro por força do Congresso. Os motivos são complexos. A escassez regional de dinheiro para obras pode ser um deles (muito estado faliu), assim como a redução do financiamento privado de campanha eleitoral (parlamentares precisam de mais obras locais para garantir o mandato). Os parlamentares avançam também porque lidam com governos de escassa legitimidade e sob ameaça de deposição (Michel Temer) ou sem projeto civilizado algum, grosseiramente ineptos e sem coalizão política, como o dos Bolsonaro, que precisam ainda fugir da polícia e têm pânico de impeachment.

A crise do Orçamento resulta da degradação avançada da liderança política, agora em fase de horror e colapso, de depressão econômica e de um gasto público formatado de modo inviável e iníquo. Ainda vai longe.


Ruy Castro: Bilhete a um jovem bolsonarista

Se estiver sentindo o vírus perigosamente por perto, prepare-se para vir conhecer o Brasil real

Se o amigo vive no Brasil de Jair Bolsonaro, parabéns. Até há pouco, jovem, feliz, negacionista e com histórico de atleta, você era imune à Covid. Enquanto os velhos morriam, você assobiava no azul —distanciamento, higiene, restrições ao comércio, máscara e vacinas eram coisa de maricas e comunistas. Nas últimas semanas, no entanto, ao sentir o vírus perigosamente por perto e sabendo que amigos de seu porte físico e idade estavam intubados ou já no cemitério, é possível que você esteja pedindo ingresso no Brasil real —o nosso.

Não podemos bater-lhe a porta na cara, mas não espere muito de nossa parte. Somos 200 milhões à mercê da pandemia, dependendo apenas de nossos cuidados e do sacrifício dos profissionais da saúde —aqueles que nunca mereceram uma palavra de gratidão de Bolsonaro, muito menos uma visita de solidariedade a uma linha de frente. Mas fique certo de que esses profissionais o tratarão com a mesma heróica dedicação com que nos tratam —para eles, você será só mais um a ser salvo, não um farrista de aglomerações, festas clandestinas e carreatas.

Nós, brasileiros de segunda classe, estamos há um ano lendo e ouvindo entrevistas dos epidemiologistas e infectologistas. Mês a mês, eles avisaram sobre o que iria acontecer —e aconteceu. O combate a uma pandemia não pode caber a uma besta fardada como Eduardo Pazuello, cuja grande façanha militar foi obrigar um soldado a puxar uma carroça diante dos colegas num quartel em Brasília, em 2005. Talvez não seja também da sola de um cardiologista invertebrado como Marcelo Queiroga. Os especialistas continuam a avisar e a não serem levados em conta.

Neste Brasil à deriva, torça para não ser intubado. E, se for, que os hospitais tenham os remédios para ajudá-lo a engolir aquela tubulação.

Suas chances de sobreviver não serão muitas, mas, se sair dessa, aí, sim, bem-vindo ao Brasil real.


Hélio Schwartsman: Guerras vacinais

Qual vacina você tomaria se pudesse escolher?

Se você, leitor, pudesse escolher, qual vacina tomaria? Penso que muitos optariam pela da Pfizer. Ela, afinal, apresenta uma das taxas mais altas de eficácia em estudos de fase 3 publicados, não foi associada a efeitos colaterais graves, ainda que muito raros, e está mostrando que funciona bem na vida real, como se vê em Israel.

A questão, porém, é mais complexa. Ao que tudo indica, o Sars-CoV-2 veio para ficar. É provável que tenhamos de colocar a vacina anti-Covid no calendário anual de imunizações, e aí as vantagens da Pfizer talvez não se sustentem.

Hoje, diante dos custos econômicos de lockdowns, mesmo a mais cara das vacinas é uma pechincha. Mas, se precisarmos de reforços anuais, o preço será uma variável importante, e o da Pfizer está entre os mais elevados --US$ 20 a dose, contra US$ 4 da vacina Oxford. A logística também é mais complicada, já que o biofármaco da Pfizer precisa ser mantido à temperatura de -70°C.

Quem desponta como candidata forte a prevalecer no mercado de mais longo prazo é justamente a vacina da Oxford, a mais barata entre os principais imunizantes, que se conserva em geladeiras comuns e que também vem se mostrando efetiva nos experimentos de mundo real.

A disputa por mercado, assim como interesses geopolíticos ou simplesmente eleitoreiros, são fatores que não devem ser ignorados quando analisamos os noticiários sobre as vacinas. Não acho que, nas esferas "mainstream", ninguém esteja inventando notícias falsas contra este ou aquele imunizante, mas o peso que cada país dá a elas e as medidas que toma têm muito a ver com esses elementos não farmacológicos.

É nesse contexto que devemos entender a guerra que países da União Europeia deflagraram contra a vacina Oxford ou que Bolsonaro travou contra a Coronavac. Para nós, cidadãos comuns, qualquer vacina que evite que morramos ou desenvolvamos quadros graves deve ser celebrada.