cpi da covid

Marco Antonio Villa: Genocídio revelado

As consequências da política sanitária de Bolsonaro nós estamos assistindo: deveremos alcançar o dramático número de 400 mil óbitos da Covid-19

A instalação da CPI da Covid é o fato mais importante deste ano político. O locus da crise deve ser deslocado para os seus trabalhos, os depoimentos, os documentos, à apuração da matança de mais de 380 mil brasileiros. Tudo indica que Jair Bolsonaro vai tentar de todas as formas ameaçar os senadores, bem como deslocar o foco para manobras diversionistas. É a sua especialidade. O desafio para a oposição é de não cair nesta armadilha e concentrar suas forças na apuração dos fatos e das responsabilidades pelo genocídio que estamos assistindo desde março de 2020.

Teremos semanas tensas e surpreendentes. Se o que já sabemos sobre a ação criminosa de Bolsonaro e seus sequazes têm nos deixados horrorizados, certamente a revelação de novos documentos – a CPI, pelo artigo 58, parágrafo 3º, “tem poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” – vai apresentar ao Brasil o plano genocida. Sim, o que estamos assistindo não é uma ação da natureza, como uma erupção vulcânica, mas a construção de um projeto genocida planejado pelo Palácio do Planalto.

A recusa da compra de vacinas em agosto do ano passado – e poderíamos já estar vacinando desde novembro – não foi um gesto de desdém frente à pandemia. Foi mais, muito mais. Bolsonaro estimulou a circulação do vírus imaginando – e aí foi aconselhado pelos seus “especialistas” na área de saúde pública – que a imunização de rebanho levaria a que não fosse necessário a compra de vacinas. É o aprendizado típico dele e de seus asseclas: como estão distantes da ciência, é através de vídeos instantâneos de alguns minutos que “aprendem” sobre os mais diversos assuntos da administração pública. E, nesse caso, foram aulas de profissionais médicos que se assemelham ao Dr. Josef Mengele. As consequências nós estamos assistindo: deveremos alcançar ainda neste mês de abril o dramático número de 400 mil óbitos da Covid-19.

Assim, a CPI vai apresentar ao Brasil a ação genocida de Bolsonaro. Só que não em um pronunciamento de algum especialista, ou em uma reportagem. Desta vez teremos no prédio do Senado, em plena CPI, com a cobertura de toda imprensa nacional e internacional, e transmitido pela televisão, ao vivo, os relatos devidamente fundamentados sobre a maior tragédia sanitária da história do Brasil republicano. Se agregarmos o que a CPI vai revelar – antes até da conclusão dos seus trabalhos – com o brilhante documento da OAB, temos o cenário pronto para o impeachment. Bastará, então, fazer política republicana.


O Estado de S. Paulo: Tasso admite disputar prévias no PSDB

'Se meu nome servir para unir, vamos trabalhar nessa direção', diz senador tucano sobre candidatura à Presidência, em 2022

Vera Rosa e Andreza Matais, O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - Pela primeira vez desde que foi incentivado a entrar na disputa de 2022, o  senador Tasso Jereissati (CE) admitiu participar de prévias do PSDB para a escolha do candidato à Presidência e construir uma terceira via, diante da polarização entre a esquerda e a extrema direita. “Se meu nome servir para unir, em algum momento, vamos trabalhar nessa direção”, disse o senador ao Estadão.

Integrante da CPI da Covid, Tasso gostou de ser chamado de “Biden brasileiro” por um grupo do PSDB que se refere a ele como o único político capaz de agregar forças no campo de centro. Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden, de 78 anos, teve esse papel. “Vejo nele um cara que está mudando a história do mundo”, afirmou o tucano, que tem 72 anos.

As prévias do PSDB estão marcadas para outubro, mas Tasso acha melhor adiá-las para 2022. “Ainda tem muita água para rolar debaixo da ponte”, previu. Até hoje, o PSDB tinha três pré-candidatos à sucessão de Jair Bolsonaro: os governadores João Doria (São Paulo) e Eduardo Leite (Rio Grande do Sul), além do ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio. Agora Tasso, ex-governador do Ceará, também entrou no páreo.

O presidente do PSDB, Bruno Araújo, lançou sua candidatura à sucessão de Jair Bolsonaro. O sr. pode ser a terceira via?

Ser candidato à Presidência não está ainda nos meus planos. Eu falo “ainda”. Eu defendo a ideia de uma união do centro. Quando eu digo união é porque vejo espaço, nas próximas eleições, para um candidato entre Lula (ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva) e Bolsonaro, que não seja nem de esquerda, nem de extrema esquerda, nem de extrema direita. Com certeza eu não acho bom para o País mais quatro anos de Bolsonaro. É um governo desastroso em todos os pontos, da condução da pandemia de covid – levando o Brasil ao maior número de mortes do mundo por dia – à política econômica, que não anda. E também não vejo como repetir o governo do PT. Então, está na hora do equilíbrio. Se dividir muito, ninguém vai ter (apoio para chegar ao segundo turno). Se meu nome servir para unir, em algum momento, vamos trabalhar nessa direção.

O sr. aceitaria disputar uma prévia no partido com João Doria, Eduardo Leite e Arthur Virgílio?

Eu sempre fui defensor de prévias. Mas ponderando que essa prévia seja feita dentro do limite da coerência, de um posicionamento ético. E que sirva para unir, não para desunir. Nunca falei isso, mas acho que as prévias deveriam ficar um pouco para mais tarde, para que nós pudéssemos conversar com os outros partidos. Quando defendo essa união, eu acho que não deve ser só dentro do PSDB.

Mas, com tanta divisão no PSDB, é possível um consenso, sem necessidade de prévia?

As prévias são boas. Eu não sei se são oportunas agora (em outubro). Até o início do ano que vem, muita coisa vai acontecer. Mas isso é minha opinião. Vai prevalecer, evidentemente, a visão do partido, dos dirigentes.

Esse vácuo não beneficia a polarização Bolsonaro-Lula?

Não tem vácuo, não. Tem é candidato demais. Daqui a pouco, um começa a dar cotovelada no outro. Ainda tem muita água para rolar debaixo da ponte. Um exemplo de como as coisas mudam: eu não sabia (em 2018) que tinha uma extrema direita tão radical e tão organizada. Foi uma surpresa gigantesca. E esse movimento se uniu ao antipetismo e à facada (sofrida pelo então candidato Bolsonaro). Ninguém sabia o tamanho dessa direita porque ela estava enrustida há muito tempo. Bolsonaro soube catalisar isso através das redes sociais.

Como ninguém enxergou que a direita estava se estruturando pelas redes sociais?

Desde a redemocratização se criou uma espécie de preconceito contra a direita. Era difícil você encontrar alguém que dissesse que era de direita, mesmo sendo. Significava uma afinidade com o golpe, com a ditadura, com o período autoritário. Quando falavam que o Bolsonaro poderia ganhar, eu desprezava a hipótese, solenemente. Tinha certeza de que não seria possível porque um político que fazia aquele discurso nunca poderia ganhar. Se tem uma coisa do Bolsonaro que nós temos de respeitar é que ele não mudou.

Passados dois anos de governo, Bolsonaro ainda é um candidato competitivo, apesar de todas as crises? O centro se preparou para enfrentá-lo nas redes sociais?

Não. O centro não tem rede social organizada e espalhada. Nenhum desses candidatos que estão aí tem. Vamos precisar ter.

O sr. chegou a dizer que o marqueteiro João Santana, quando estava com o PT, espalhou fake news e derrubou Marina Silva. Agora, ele foi contratado por Ciro Gomes, que é próximo ao sr. e tem conversado com esse campo de centro. Isso preocupa?

Eu não sabia que o Ciro tinha feito essa contratação. Pelo caráter do Ciro, acho muito estranho. Agora, o João Santana pagou tanto pelos seus pecados, indo preso, que talvez tenha mudado e queira se redimir.

Dizem que o sr. é o único que pode convencer  Ciro a desistir da candidatura presidencial em nome de uma aliança maior.

Eu acho difícil o Ciro sair (do páreo). Mas não acho muito difícil o Ciro vir. O Ciro já foi de esquerda, mas hoje é de centro. E acredito que ninguém vá mudar o desejo dele de tentar a Presidência. Ele tem esse objetivo na vida.

O manifesto assinado por seis presidenciáveis, em defesa da democracia, é um caminho para construir a terceira via, em 2022?

Acho que foi um primeiro passo. Como diz o poeta, “você começa o caminho caminhando”. Mas a abertura de diálogo entre todos esses candidatáveis é fundamental. Eu posso ajudar, acho até que tenho uma facilidade de diálogo. Isso não indica que seja eu o candidato. Tenho enorme admiração pelo governador Eduardo Leite.

O que falta, na  sua opinião? É um programa para unificar esse grupo ou deixar as vaidades de lado para montar uma aliança?

A palavra principal é desprendimento. Mas alguns pontos são relevantes para uma agenda comum, como meio ambiente, respeito à ciência e não desprezar a questão fiscal.

O sr. tem sido chamado por algumas alas do PSDB de ‘Biden brasileiro’ por ter um perfil capaz de unir diferentes correntes. O que acha dessa comparação?

Fico extremamente lisonjeado, mas acho que é por causa da idade (risos). Vejo nele um cara que está mudando a história do mundo. Eu meço, hoje, a responsabilidade do Bolsonaro na nossa pandemia através dos Estados Unidos. Prestem atenção na mudança que houve lá no combate à pandemia depois da eleição. E agora Biden está colocando a questão do meio ambiente na agenda do planeta.

O PSDB passou por várias crises e não conseguiu chegar nem ao segundo turno da eleição de 2018. Como o partido pode se reposicionar no jogo?

Todos os partidos sofreram crises. O PSDB, o PT, o MDB... De uma maneira geral, os partidos estão bastante desmoralizados. Nessas eleições agora, vamos ter de nos reconstruir com um programa claro e, ao mesmo tempo, restabelecer a questão da ética. 

Além do sr., quais outros nomes podem furar a polarização na campanha presidencial?

Tem o Mandetta (ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta) pelo DEM. O PSDB tem aí tanto o Eduardo Leite quanto o Doria. Tem o Ciro pelo PDT. Luciano Huck é o que tem mais popularidade e está com meio caminho andado. Tem um grupo grande muito consciente dos riscos que o Brasil corre e se dispõe a conversar.

Quais riscos?

Se nós tivermos mais quatro anos de Bolsonaro, vamos ser um pária internacional, isolado do mundo. E com a economia no caos. O primeiro governo do Lula foi bom, mas ele teve como formulador de política econômica o Marcos Lisboa. Se ele vier com a política do Guido Mantega, do descontrole fiscal, nós também iremos por um caminho equivocado. Temos de reconstruir credibilidade.

A CPI da Covid pode desembocar em um processo de impeachment contra o presidente?

Não é o objetivo. Com certeza, a CPI vai levantar responsabilidades sobre esse drama que o País vive. Agora, eu acho que nós não devemos chegar a impeachment. Além de ser outra crise, é inócua porque uma CPI demora seis meses. E depois, se começar um processo de impeachment, vão no mínimo mais seis meses. O País ficaria parado e sem rumo, já chegando às eleições do ano que vem. Agora é trincar os dentes.

O ex-secretário de Comunicação Social Fábio Wajngarten disse à Veja que o Brasil não comprou antes vacinas da Pfizer por culpa do então ministro da Saúde Eduardo Pazuello. É crível que o presidente não soubesse de nada?

Eu não acho crível. Temos de averiguar, mas acho estranho que a compra de vacinas passe pelo secretário de Comunicação, e não pelo presidente. Até porque tem a célebre frase do então ministro da Saúde: “Ele manda, eu obedeço”.

O que se pode esperar da economia com o desemprego em alta e orçamento apertado? O “Posto Ipiranga” do governo corre o risco de incendiar?

Não tem mais gasolina (risos). Existe uma sensação de descontrole. A economia parada, o déficit e a inflação subindo. É o pior dos mundosMas há uma coisa para prestar atenção, no ano que vem. É que, em função da inflação, haverá uma bomba fiscal maior. Em 2022, o governo Bolsonaro terá mais dinheiro para gastar. Acho muito difícil o Paulo Guedes (ministro da Economia) avançar em seus planos liberais. Esse choque aconteceria de qualquer forma porque Bolsonaro nunca foi liberal. Ele sempre foi corporativista.

Muitos acreditavam que os militares fossem atuar como freio para o presidente, mas ocorreu o contrário. O sr. acha que eles podem não apoiar o projeto da reeleição?

Eu acho que os militares também ficaram surpresos. Não deveriam ficar porque Bolsonaro foi saído, não digo expulso, do Exército pela hierarquia militar. Eu acho que os militares têm de ficar neutros, como sempre estiveram. Não devemos nos preocupar com eles nas eleições. Eles têm de estar ali, respeitando a Constituição e fazendo o seu papel.


Vinicius Torres Freire: CPI da Covid tem de investigar desde já o risco de faltar vacina no ano que vem

A fim de evitar desastre novo, é preciso desde já planejar o ritmo de fabricação e compra de imunizantes

CPI da Covid começa na terça-feira (27) e deve exigir logo de cara explicações para a escassez de vacina em 2021. Essa inquirição pode fundamentar processos contra gente do governo Jair Bolsonaro, muito justo. Mas é preciso que os senadores investiguem o quanto antes o que está sendo feito a fim de evitar a falta de vacinas em 2022.

A pergunta pode parecer um despropósito. Falta vacina para o mês que vem. Até sexta-feira (23), apenas 18% da população adulta havia tomado a primeira dose (as duas doses, apenas 7,6%). Parte desse retardo vacinal foi gerada em meados de 2020 pelo triângulo horroroso que juntou negligência, perversão e ignorância lunática na alcova do governo Bolsonaro. Vamos parir outro monstro em 2022?

O problema vai além de produzir ou importar vacinas suficientes, em caso de necessidade de revacinação geral, como na gripe. Em tese, nesse aspecto 2022 pode ser menos desesperador. Prevê-se que a nova fábrica do Butantan produza 100 milhões de doses de Coronavac (a ButanVac é ainda mera esperança); talvez a Fiocruz fabrique 300 milhões. Mais um tanto de doses importadas e vacina-se a população inteira até o fim do ano.Mas pode ser que seja preciso revacinar todo o mundo bem antes. Os cientistas ainda não sabem dizê-lo. Além do mais, com sorte a vacinação deste 2021 talvez apenas termine em dezembro, o que é outro risco.Qual o problema?

Ainda não se sabe por quanto tempo uma pessoa infectada pelo coronavírus fica imune (nem o que quer dizer exatamente “imune”). Talvez fique protegida de infecção mortal por até oito meses, estimou um estudo pequeno e cheio de dedos, mas feito por pesquisadores de centros reputados (“Immunological memory to Sars-CoV-2 assessed for up to 8 months after infection”, publicado em janeiro na “Science”).

Também não se sabe por quanto tempo uma pessoa vacinada fica protegida de doença grave. As vacinas da Pfizer e da Moderna protegem por pelo menos seis meses, afirmaram os fabricantes, agora em abril. Deve ser mais, não se sabe, até porque as vacinas são recentíssimas.

De resto, proteção imunológica não é um interruptor, liga e desliga: pode ser eterna ou durar por muito tempo, com força declinante.

E daí?

Sem informação mais segura sobre quanto e como dura a imunidade, é difícil fazer prognósticos sobre a epidemia. Em um cenário de horror, exagerado para efeito didático, pode ser que, quando terminar a vacinação de 2021, os primeiros infectados e vacinados já tenham perdido a proteção. O risco aumenta porque o vírus estará circulando pelo mundo ainda por muito tempo (apenas 0,3% das vacinas foram para países pobres, segundo a OMS). Há ainda o problema das variantes. Pfizer e Moderna estudam a necessidade de uma terceira dose, incrementada para conter os mutantes.

É fácil perceber que, quanto menos durar a imunidade e quanto mais tempo o vírus estiver solto no mundo, mais rápido será necessário vacinar ou revacinar. Na dúvida, é melhor prevenir do que remediar, até porque não há remédio que cure Covid.

A fim de evitar desastre novo, é preciso desde já planejar o ritmo de fabricação e compra de vacinas, analisar os imunizantes que temos, aprofundar a pesquisa da imunidade dos infectados, testar mais gente e vigiar as variantes. Para tanto, precisamos de um plano nacional e muita pesquisa. Não temos, claro (Bolsonaro está matando também a ciência brasileira). A CPI tem de fazer um escândalo a respeito, tanto que a gente possa implementar um plano assim, a despeito dos monstros no poder.


Rolf Kuntz: Bolsonaro versus direitos, perigo para o trabalhador

Presidente continua vinculando desemprego a um ‘excesso’ de direitos trabalhistas

Bolsonaro ataca de novo, confirmando sua aversão aos direitos trabalhistas. Desta vez ele pôs em dúvida uma lei a favor da igualdade salarial para homens e mulheres. Antes de sancionar ou vetar o texto, aprovado no fim de março no Senado, ele pediu a manifestação de seus seguidores. “Pode ser que o pessoal não contrate, ou contrate menos mulheres, vai ter mais dificuldade ainda”, disse o presidente em sua live habitual de quinta-feira. Se entrar em vigor, a lei aumentará as multas, até agora muito brandas, aplicáveis em casos de discriminação de gênero, raça ou idade. Deputadas e senadoras tiveram importante participação na defesa do projeto.

Ao pedir a opinião dos apoiadores, Bolsonaro reafirmou, claramente, a disposição de governar para os bolsonaristas. Ele foi empossado em 2019 como presidente do Brasil, isto é, de todos os brasileiros, mas parece jamais haver entendido ou admitido esse fato. Essa concepção estreita de suas funções e obrigações foi evidenciada já no começo de seu mandato. Facilitar o acesso às armas foi uma de suas primeiras preocupações, embora houvesse 12,7 milhões de desempregados, 12% da força de trabalho, no trimestre móvel encerrado naquele mês de janeiro.

Bolsonaro tinha uma concepção peculiar, no entanto, das condições de funcionamento do mercado de trabalho. Essa concepção, reafirmada no caso da igualdade reivindicada pelas mulheres, era muito simples e já havia sido exposta durante a campanha eleitoral. O trabalhador, disse o candidato Jair Bolsonaro, terá de escolher “entre mais direito e menos emprego ou menos direito e mais emprego”.

Essa declaração foi feita em agosto de 2018, durante entrevista a um jornal da Rede Globo. Quando o apresentador lembrou seu voto contra a PEC das domésticas, o deputado respondeu ter dado esse voto “para proteger” as trabalhadoras. “Muitas mulheres”, acrescentou, “perderam o emprego pelo excesso desses direitos.” E em seguida: “Que tal aprovar todos os direitos trabalhistas para todos os integrantes das Forças Armadas?”.

Em dezembro daquele ano, já eleito, Bolsonaro voltou a criticar as normas trabalhistas. A legislação, afirmou, teria de se “aproximar da informalidade” para favorecer a criação de empregos. Em 4 de janeiro, pouco depois da posse, condenou mais uma vez, numa entrevista, a condição do assalariado. “O Brasil é o país dos direitos em excesso, mas faltam empregos. Olha os Estados Unidos, eles quase não têm direitos.”

Essa é uma visão distorcida e primária de como funciona o mercado de trabalho americano, dos direitos e da segurança do trabalhador nos Estados Unidos e do poder dos sindicatos. Não há surpresa, no entanto, porque a pobreza de informações do presidente brasileiro e a simplicidade de suas ideias são bem conhecidas.

Seria preciso, disse Bolsonaro naquela ocasião, aprofundar a reforma trabalhista. Ele se referia às mudanças ocorridas no mandato de seu antecessor. Mas a reforma proposta pelo presidente Michel Temer e aprovada no Congresso apenas deu flexibilidade ao sistema, sem anular direitos previstos na Constituição e na legislação trabalhista. Trabalho intermitente e possibilidade de jornada de 12 horas com 36 de descanso foram algumas das novidades.

Algumas mudanças, como o trabalho intermitente, têm facilitado a preservação de empregos na crise atual. A reforma implantada no governo anterior é muito diferente da redução de direitos proposta pelo presidente Bolsonaro e do barateamento da mão de obra defendido pelo ministro da Economia.

Parte do empresariado aplaude as propostas de eliminação de direitos ou, no mínimo, da redução de custos pela extinção de obrigações trabalhistas e previdenciárias ou pela contratação de jovens por salários muito baixos. Também há empresários e políticos, principalmente bolsonaristas, dispostos a aplaudir o corte de tributos sobre seus negócios, mesmo sem uma discussão séria de como essa redução será compensada.

Mas é bobagem associar a criação de empregos, como têm feito o presidente e o ministro da Economia, à mera redução de custos trabalhistas. Não se contratam trabalhadores, mesmo a baixo custo, quando a atividade está emperrada. Não é preciso ser doutor em Economia para conhecer essa verdade simples. Emprego depende, em primeiro lugar, da atividade econômica, ou, pelo menos, da expectativa de expansão dos negócios.

Mas a perspectiva de crescimento maior que nos anos anteriores nunca esteve presente, no Brasil, desde os primeiros meses de 2019. No começo de 2020 os otimistas previam expansão de uns míseros 2,5%. Depois da reforma da Previdência, já amadurecida no governo anterior, nada foi proposto pelo governo além de mudanças pífias na tributação e na gestão de pessoal. Nem as medidas econômicas implantadas na crise da pandemia foram mantidas no Orçamento para 2021. Até o auxílio emergencial foi suspenso por três meses, num quadro de desemprego e fome. Nem o direito à vida – contra a doença ou contra a miséria – foi protegido. Para que tantos direitos? Bolsonaro é pelo menos coerente.

*Jornalista


Malu Gaspar: Meta que Bolsonaro prometeu melhorar na Cúpula do Clima não existia

Em seu discurso na Cúpula do Clima, Jair Bolsonaro improvisou a redução de uma meta ambiental que, na prática, nunca chegou a existir

Até ontem, o Brasil nunca havia se comprometido a neutralizar suas emissões de carbono em 2060, como o presidente sugeriu em seu discurso. Na mais recente manifestação formal sobre o tema, protocolada na Organização das Nações Unidas em dezembro, o país apenas dá um “indicativo de longo prazo” de que poderia chegar lá.

A data de 2060 foi mencionada em um documento oficial de compromisso, conhecido como NDC, protocolado 22 dias antes da data final para cada país entregar à ONU sua lista quinquenal de compromissos contra o aquecimento global.

Nele, a diplomacia brasileira fixou metas numéricas para a redução da emissão de carbono até 2030 e indicou que, a continuar nesse ritmo, o país poderia chegar à neutralidade em 2060. A neutralização das emissões acontece quando o país emite apenas o volume de gases que provocam o efeito estufa equivalente ao que consegue retirar da atmosfera.

Na ocasião, porém, os diplomatas fizeram um alerta que já antecipava o discurso de Bolsonaro nesta Cúpula: “A definição final de qualquer estratégia de longo prazo para o país, em particular o ano em que a neutralidade climática pode ser alcançada, vai depender no entanto do bom funcionamento dos mecanismos previstos no Acordo de Paris”. Traduzindo: pode ser ainda mais ousado no futuro se o dinheiro prometido pelos países ricos chegar.

O documento de dezembro também havia eliminado uma das metas mais relevantes assumidas pelo Brasil em 2015, que Bolsonaro ontem resolveu ressuscitar: zerar o desmatamento ilegal até 2030.

O novo tom no discurso de Bolsonaro acontece num momento em que seu governo está sob intensa pressão internacional para mudar a política ambiental. Vários fatores pesam contra o Brasil.

Nos dois anos de governo de Bolsonaro, o desmatamento cresceu e alcançou, em 2020, a maior devastação em 12 anos, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sofre críticas e protestos de fiscais do Ibama e do ICMBio, ONGs, lideranças indígenas e, mais recentemente, até da Polícia Federal.

Também afetou a credibilidade do Brasil o malogro do Fundo Amazônia, que tem R$ 2,9 bilhões doados pela Alemanha e pela Noruega travados no BNDES por falta de consenso com o governo brasileiro sobre a forma de gerir e aplicar os recursos.

O ministro do meio ambiente fazia questão de vetar o acesso de entidades da sociedade civil, estados e municípios aos recursos, e não aceitava as regras de governança impostas pelos financiadores.

Além disso, o presidente brasileiro perdeu seu principal aliado no cenário mundial com a derrota, nos Estados Unidos, de Donald Trump para Joe Biden -- que fez questão de deixar a reunião minutos antes de Bolsonaro falar.

Nesta quinta, EUA, Reino Unido e Noruega anunciaram a criação de um novo fundo de US$ 1 bilhão para o combate ao desmatamento de florestas tropicais. É o mesmo valor que Salles pretendia obter nesta cúpula em doações para o Brasil.

Mas, diferentemente do que foi feito na criação do Fundo Amazônia, o dinheiro desta vez só virá como compensação para resultados. Com seguidos recordes nas taxas de desmatamento, o país não terá acesso a esses recursos tão cedo.

Apesar do discurso, na prática ainda vigora no cenário internacional a desconfiança expressada pelo secretário de estado americano, John Kerry, quanto à nova meta de Bolsonaro: "Isso funciona para nós. A questão é se eles farão o que têm que fazer". Ou pelo próprio vice-presidente Hamilton Mourão: "Em 2060, estaremos todos mortos. Tem é que reduzir o desmatamento agora".


Reinaldo Azevedo: Quem discursou na Cúpula do Clima? Fala de Bolsonaro desafia Mateus

Uma constante do presidente em 28 meses de mandato é nunca recuar; ao contrário: ele sempre piora o que fez no dia anterior

Quem era aquele presidente que, nesta quinta, falou em lugar de Jair Bolsonaro na Cúpula de Líderes Sobre o Clima? O mesmo que, no dia anterior havia participado do almoço de desagravo ao ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, na casa do dito "moderado" Fábio Faria, ministro das Comunicações? Obviamente não. E aí mora o problema. A reação à fala, mundo afora, é de desconfiança.

Uma pausa para uma consideração: quando o "moderado" do governo oferece um costelão amigo a Salles, cercado pela nata do reacionarismo, o que se deve esperar dos não moderados? No dia anterior, o homenageado havia feito pouco caso dos povos indígenas, com seu habitual humor truculento, destacando que há índios com iPhone, num esforço claro de deslegitimação das demandas dessas comunidades.

Na terça ainda, o delegado Alexandre Saraiva foi apeado da Superintendência da Polícia Federal do Amazonas, depois de trombar com Salles, que resolveu se solidarizar com madeireiros do Pará, apontando falhas inexistentes na operação, empreendida em dezembro do ano passado, que resultou na maior apreensão de madeira ilegal da história.

Em entrevista a O Globo, Saraiva afirmou que só apresentara ao Supremo uma notícia-crime contra o ministro porque, afinal, ele detém foro especial. Não fosse assim, teria instaurado ele mesmo um inquérito por obstrução da investigação e advocacia administrativa. E lá estava Salles, na quarta, sendo aquinhoado com uma costela assada, prestigiado, note-se, pelo chefe —o mesmo que prometeu, nesta quinta, mundos ao mundo --desde que este lhe dê os fundos.

O discurso de Bolsonaro, em si, é bom. Mas quanto ele realmente vale? Esse presidente prometeu, na campanha eleitoral, extinguir o Ministério do Meio Ambiente. E, com efeito, tentou subordinar a área à pasta da Agricultura. Diante da grita nacional e internacional, recuou, mas avançou na pauta reacionária: chamou Salles. E este se encarregou de fazer "passar a boiada".

E que se note: essa metáfora só vale para bois clandestinos. O agronegócio que conta quer distância das delinquências ambientais em curso e busca descolar a sua agenda das ações oficiais. Temos hoje um governo que é nefasto à preservação ambiental e também aos negócios.

Ao fim de seu 28º mês de mandato, é preciso que se destaque uma constante em Bolsonaro. Ele não recua nunca, pouco importando a eficácia ou não das escolhas que faz. É uma característica dos fanáticos. O resultado adverso reforça as suas crenças. Se uma determinada medida se mostra inútil ou contraproducente, atribui o revés à falta de convicção ou de energia na sua aplicação. E então manda dobrar a dose do remédio errado —cloroquina ou qualquer outro.

O presidente que agora passa o pires na Cúpula do Clima, afirmando que o Brasil precisa de dinheiro para preservar suas florestas —e precisa!— mandou um recado, em agosto de 2019, à primeira-ministra da Alemanha, que decidira suspender recursos enviados ao Brasil: "Eu queria até mandar um recado para a senhora querida Angela Merkel (...) Pegue essa grana e refloreste a Alemanha, ok? Lá está precisando muito mais do que aqui".

Então o presidente muda de ideia? Há uma diferença entre reconhecer um erro, tomando outro rumo, e fazer apenas a mímica da mudança, a exemplo do que se verifica na Saúde. Há quem pense que devemos considerar uma vitória da moderação termos um ministro que usa máscara em público e que reconhece a urgência da vacinação. O presidente, ele mesmo, continua a incentivar a barbárie virótica em meio a 400 mil mortos.Terá Bolsonaro recuado, de fato, pela primeira vez? Para ficar na metafísica influente neste governo, respondo com Mateus 7:15-17: "Acautelai-vos quanto aos falsos profetas. Eles se aproximam de vós disfarçados de ovelhas, mas, no seu íntimo, são como lobos devoradores. Pelos seus frutos os conhecereis. É possível alguém colher uvas de um espinheiro ou figos das ervas daninhas? Assim sendo, toda árvore boa produz bons frutos, mas a árvore ruim dá frutos ruins".Que Bolsonaro desafie Mateus!


Bruno Boghassian: Governo tenta ganhar a guerra da CPI da Covid no tapetão

Esforço mostra que Bolsonaro teme o que será revelado se a investigação correr solta

Preocupado com a exposição pública de seu comportamento mortífero na pandemia, Jair Bolsonaro tenta ganhar a guerra da CPI da Covid no tapetão. Aliados do governo acionaram a Justiça para interferir na escolha dos integrantes da comissão, lançaram uma campanha nas redes sociais para intimidar os senadores e abriram investigações contra rivais do presidente.

Os requisitos mínimos para a instalação da CPI estão preenchidos desde o início de fevereiro, mas o governo não desperdiçou uma gota de suor. Contou com a lealdade do presidente do Senado, que guardou o pedido na gaveta até que o STF determinasse a abertura da investigação.

Bolsonaro teve mais sucesso numa segunda manobra para dificultar as investigações. Às vésperas da criação da CPI, o presidente entrou pessoalmente numa articulação para que a comissão mirasse também o uso de verba federal pelos estados.

A intenção não é apurar desvios, mas tumultuar os trabalhos e ameaçar seus adversários políticos. Bolsonaro ganhou ainda uma ajuda da Procuradoria-Geral da República, que enviou um ofício em que acusa governadores de mau uso de recursos na pandemia –um material sob medida para exploração na CPI.

Agora, os governistas usam outros artifícios para impedir a comissão de seguir caminhos incômodos. Como não conseguiram maioria para controlar a investigação, bolsonaristas passaram os últimos dias atacando integrantes da CPI nas redes e fazendo pressão para derrubar o provável relator, Renan Calheiros (MDB).

Em outra frente, o Planalto apoiou a ação da deputada Carla Zambelli (PSL) na Justiça para barrar Renan. Ela argumenta que o senador não seria um relator imparcial porque seu filho é governador de Alagoas. Faltou dizer que outros integrantes também têm interesses políticos conflitantes com o foco da CPI.

O governo vai tentar influenciar os rumos do inquérito fora das quatro linhas da comissão. O esforço mostra que Bolsonaro teme o que pode ser revelado se a CPI correr solta.


dólar

Vinicius Torres Freire: O dólar toma um calmante

Comércio exterior em alta, calmaria nos EUA e entrada de capital aliviam situação, por ora

O preço do dólar está muito estressado, qualquer que seja a conta que se faça do seu valor “adequado”, do preço mais ou menos compatível mesmo com os números degradados da economia brasileira (que estaria em torno de R$ 4,50, calculam economistas). Nos últimos dias, porém, os mercadores de moeda tomaram um calmante. Nesta quinta-feira (22), o dólar baixou a R$ 5,44.

E daí?

Para começar, dólar mais barato pode ser um alívio para a inflação. O IPCA acumulado em 12 meses está em 6,1%; ainda deve passar de 7,5% entre maio e julho. Segundo um chute informado dos economistas, daí em diante baixaria até algo em torno de 4,5% no final do ano. Um dólar mais barato daria um empurrão nessa descida. Um IPCA menor pode evitar alta maior de juros (Selic) por aqui.

Isto posto, de onde vieram os calmantes? O remédio básico é quase sempre importado: as taxas de juros nos EUA deram uma caidinha, depois da corrida no primeiro trimestre do ano.

Melhorou também o saldo cambial, a diferença entre a entrada e a saída de dólares, que foi muito positiva no primeiro trimestre do ano (US$ 8,72 bilhões) melhor resultado de primeiro trimestre desde antes do início da derrocada brasileira, em 2013. Na prática, o fluxo cambial andava quase sempre no vermelho desde 2018. No ano passado inteiro, essa conta ficou negativa em quase US$ 28 bilhões (o pico de fuga foi em março e abril, de US$ 60 bilhões em doze meses). Nos doze meses até março, está negativa ainda em US$ 7,8 bilhões, mas melhorando.

Parte dessa melhora vem de uma situação que já se pode chamar de extraordinária no comércio exterior. O preço dos produtos que o Brasil exporta em relação àqueles que importa (os termos de troca) raramente foram tão altos em mais de 20 anos. Trocando em miúdos, a soja ou a carne que o país vende raramente valeram tanto em relação à média do que compramos lá fora. O saldo comercial será recorde, além dos US$ 70 bilhões neste ano.

Em geral, quando os termos de troca vão bem, a moeda brasileira se valoriza. Não tem sido o caso desde o início da pandemia. Fuga de dinheiro de países “emergentes” explica parte do problema; a alta brutal da dívida pública e a baderna político-econômica pioraram a situação.

Essa situação obviamente não melhorou. No entanto, observadores precisos de câmbio e juros dizem que houve fatores recentes de alívio. A gambiarra do Orçamento vexaminoso teria saído melhor do que o esperado. Os mercadores de dinheiro acreditam em despiora da epidemia, daqui por diante. Até fevereiro, a atividade econômica não teria padecido tanto do corte dos auxílios governamentais (o emergencial, o salarial e o dinheiro para estados e municípios). Isto é, haveria expectativa de retomada econômica depois da atenuação da epidemia mesmo sem gasto público extra e maior, como em 2020. Além da entrada de dinheiro na finança, o investimento direto (estrangeiro) no país está melhorando. Etc.

Essa perspectiva positiva teria criado expectativa de valorização do real. Assim ficou mais arriscado manter posições financeiras baseadas em dólar mais caro, o que ajuda também a valorizar a moeda brasileira desde agora.

Não há como estimar a duração do efeito dos tranquilizantes. Há motivos fundamentais para a valorização do real, mas o estresse de curto prazo tem sido determinante. Um remelexo nos EUA vai nos dar nos nervos. Não se sabe o que será da epidemia (a vacinação pode conter uma terceira onda?). Temos perspectiva de tumulto político até meados do ano. Enfim, o presidente é Jair Bolsonaro.


Armando Castelar Pinheiro: À espera da inflexão

Há que resistir à tentação de usar a inflação no ajuste das contas públicas: a conta vem depois, não compensa

A realidade tem se mostrado mais complexa que as previsões. Novas cepas, múltiplas ondas de casos e mortes, efeitos colaterais das vacinas, tudo eleva a incerteza sobre quando se controlará a pandemia da covid-19 e, não menos importante, como será o novo normal depois disso. Fica claro, também, que os países ricos não conseguirão controlar a epidemia vacinando só suas populações, enquanto no resto do mundo a pandemia segue solta, facilitando o surgimento de novas e mais virulentas variantes do vírus.

Isto posto, tudo indica que 2021 verá uma inflexão nesse processo, fruto do gigantesco esforço de vacinação em curso. E de que, os dados mostram, as vacinas estão funcionando. Até aqui foram aplicadas quase 900 milhões de doses globalmente, quase uma dose para cada seis pessoas com 20 anos ou mais. Na última semana, mais de 100 milhões de doses foram administradas e a tendência é esse ritmo acelerar, conforme suba a produção de vacinas. Mesmo que isso não ocorra, mantido esse ritmo o ano fechará com 4,5 bilhões de doses aplicadas, o suficiente para vacinar boa parte dos mais vulneráveis.

A vacinação avançou mais em alguns países ricos, como os europeus e os EUA, com grandes emergentes como Brasil, Argentina, China, México e Índia vindo atrás, nessa ordem, em termos de vacinas aplicadas por habitante. Onde a vacinação andar mais rápido, a atividade econômica e o emprego também se recuperarão mais ligeiro e significativamente. Os EUA são o grande caso de sucesso na economia, para o que os redobrados estímulos fiscais também contribuem.

No Brasil, tudo parece meio parado, à espera que a vacinação avance o suficiente para a normalização, ainda que parcial, para usar o jargão da moda, da economia. Já se aplicaram cerca de 35 milhões de doses e o ritmo tem ficado, com alguma volatilidade, perto de um milhão de doses por dia. Isso permitirá vacinar, com duas doses, todos os brasileiros com 20 anos ou mais até o fim do ano. Se conseguirmos mais vacinas, poderemos atingir essa “normalização parcial” no terceiro trimestre, com o ano fechando com uma retomada mais firme da atividade.

O problema é que há muito mais com que se preocupar, o que não parece estar ocorrendo. O que me fez lembrar da frase de Samuel Johnson: “Confie nisso, senhor, quando um homem sabe que está em vias de ser enforcado, concentra sua mente maravilhosamente”. Quem sabe a forca ainda não está apertando tanto quanto parece, mas a impressão é de rompimento com o padrão das últimas décadas, quando a proximidade da crise concentrou as mentes e levou à aprovação de ajustes fiscais. Não vemos isso agora, como ficou claro na confusão, ainda em curso, com o orçamento público deste ano.

O drama humanitário - mais de 20 mil mortes por semana - explica em parte essa apatia com a deterioração do quadro fiscal. É na saúde pública que as mentes estão concentradas. Parte da explicação também está, porém, em muito da deterioração futura vir de maiores despesas com juros, e não do mais visível déficit primário.

Entre fevereiro de 2020 e o mesmo mês este ano, a Dívida Bruta do Governo Geral saltou de 75,2% para 90% do PIB. A despeito desse salto, a despesa com juros sobre essa dívida caiu de 5,5% do PIB nos 12 meses até fevereiro de 2020 para 4,7% do PIB um ano depois. Isso porque, na média dos 12 meses terminados em fevereiro último, a taxa de juros implícita incidente sobre essa dívida foi de apenas 5,7%, contra 7,5% um ano antes.

Essa taxa de 5,7% é a menor registrada na série histórica disponibilizada pelo Banco Central (BC). Essa excepcionalidade fica ainda maior quando se olha para essa taxa em termos reais, descontando a variação acumulada pelo IPCA: nos 12 meses até fevereiro de 2021, a taxa real ficou em 0,5%, contra uma média de dez vezes esse valor em 2007-20 (5%).

Nos próximos meses a taxa de juros real incidente sobre a dívida pública vai continuar caindo, indo para valores negativos. Porém, olhando um pouco mais à frente, parece inevitável que ela suba, possivelmente de forma significativa. Isso por dois fatores.

Um, a alta dos juros pagos pelo Tesouro americano, que deve continuar conforme a economia do país se recupere, dado que o governo americano necessita emitir altos volumes de dívida para financiar seu elevado déficit. O processo será gradual, oscilando com as ondas da pandemia, mas deve ganhar força com a recuperação da atividade e a queda do emprego.

Outro, a necessidade de controlar a escalada inflacionária doméstica, que fará o BC continuar a elevar a taxa Selic, indexador de 45% da dívida pública, provavelmente para além do que projeta o analista mediano do Focus (6% ao final de 2022). A inflação segue surpreendendo para cima e o risco de o BC perder o controle das expectativas inflacionárias tem aumentado.

Torço que se resista à tentação de usar a inflação no ajuste das contas públicas: a conta vem depois, não compensa. É hora de começar a se preparar para esse novo desafio fiscal.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ 


Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro pode perder corrida pelo dinheiro para governadores

Presidente se mostrou no encontro como um aliado arrependido do trumpismo

Dezessete chefes de Estado e a presidente da Comissão da União Europeia falaram antes do presidente Jair Bolsonaro na Cúpula dos Líderes pelo Clima. O presidente do país “detentor da maior biodiversidade do planeta”, como Bolsonaro definiu o Brasil, começou a falar quase duas horas depois de a conferência virtual ter começado. E não pôde, a exemplo de Angela Merkel (Alemanha), Emmanuel Macron (França), Ursula Leyen (UE) e Cyril Ramaphosa (Africa do Sul), saudar, com uma estocada da boa diplomacia, a volta dos Estados Unidos, anfitrião do encontro, ao esforço contra o aquecimento global.

Os americanos voltaram ao Acordo de Paris um mês depois da posse do presidente Joe Biden e três anos e sete meses depois de o ex-presidente Donald Trump tê-lo denunciado. Os líderes europeus e da África do Sul não deixaram passar a oportunidade de lembrar Biden do passado muito recente do país que agora se arvora à liderança global do ambientalismo na tentativa de reconquistar um viés de “superioridade moral” perdido na era Trump. Bolsonaro, porém, não pôde fazer o mesmo porque, de todos os 40 chefes de Estado convidados para a conferência, foi o mais estreito aliado de Trump.

E foi assim que o presidente brasileiro se mostrou no encontro. Como um aliado arrependido do trumpismo, incapaz até mesmo de adotar a linha de outros infratores das metas ambientais, como o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau. No comando de um país que, a exemplo do Brasil, não cumpriu o que havia acordado no Acordo de Paris, em 2015, Trudeau colocou o combate ao aquecimento global como prioridade que secunda o enfrentamento da covid-19. Como a pandemia nunca foi sua prioridade, Bolsonaro preferiu centrar seus esforços numa única mentira, a do empenho nacional pela redução dos gases do efeito-estufa.

Os argumentos foram os mesmos apresentados na carta enviada, na semana passada, ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. A carta parece ter sido tão pouco convincente que o presidente americano esperou a vez de David Kabua, presidente das Ilhas Marshall, país minúsculo do Pacífico que tende a desaparecer pelo avanço dos oceanos, mas não Bolsonaro. Biden deixou a sala da conferência virtual antes de o brasileiro começar a falar. A mensagem brasileira foi mais ponderada do que as da era Ernesto Araújo, mas distorce a responsabilidade do país pela emissão de gases estufa, traça meta de redução baseada numa pedalada (para trás) sobre as conquistas anteriores e comemora a matriz limpa do parque energético como feito de seu governo.

A conferência deixou claras as dificuldades de Bolsonaro em limpar a imagem do Brasil depois da devastação e do desmonte das instituições de fiscalização promovidas por seu governo. Por razões inversas, Biden também pisou em ovos em seu discurso, que abriu a conferência. Ciente de que uma parte importante do eleitor americano rejeita o discurso ambiental, falou mais em emprego do que em clima. Ancorou a necessidade de mudar a matriz energética do país com o desenvolvimento de novas tecnologias como meio para a geração de emprego. O temor do eleitorado se estende ao mercado. À tarde, de volta à tela, mal acabara de falar da necessidade do esforço conjunto para o financiamento das ambiciosas metas ali traçadas, as bolsas despencaram, alarmadas com aumento de impostos.

O presidente chinês, Xi Jiping, citado por Merkel, Macron e pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em função dos esforços na pauta ambiental que precedem os dos EUA, também tratou de seus interesses sem subterfúgios. Ao enfatizar o multilateralismo, deixou claro que as conquistas não decorrerão do novo protagonismo americano mas do conjunto das nações. Xi insiste em se apresentar como liderança dos países em desenvolvimento propugnando o reconhecimento dos esforços que estes têm feito no sentido de buscar o desenvolvimento sustentável.

Todos os chefes de Estado exibiram esforços maiores do que aqueles que têm sido efetivamente feitos. E todos se comprometeram com metas ambiciosas para 2030 a serem acordadas na conferência das Nações Unidas sobre o clima, em Glasgow, em novembro. Nenhum deles, porém, enfrenta descrédito tão grande sobre a distância a ser percorrida entre os esforços e as metas quanto Bolsonaro.

O primeiro teste se dará no acesso ao fundo de US$ 1 bilhão, mobilizado a partir da coalizão de EUA, Noruega e Reino Unido e de empresas como Amazon, Airbnb, Bayer, Nestlé, Unilever, Boston Consulting Group, McKinsey, Salesforce e GKS (ver reportagem na página A5). É um dinheiro a ser destinado para o mundo inteiro e não apenas para o Brasil como desejava o Palácio do Planalto. E até mesmo os governos subnacionais estarão elegíveis. Como o pagamento se dará por meio de resultados, e não antecipadamente para armar a Guarda Nacional, como desejava o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, as chances de o governo federal são mais reduzidas do que, por exemplo, as do Consórcio Amazônia, que reúne os nove Estados da região.

Por meio um plano chamado “Recuperação Verde da Amazônia Legal”, os governadores apresentaram projetos como apoio na certificação de produtos sustentáveis para acesso aos mercados nacional e internacional, incentivo à pecuária intensiva, redução de carbono nas atividades de mineração e fomento ao turismo ecológico. Os desembolsos se dão mediante averiguação, por consultores independentes, do desempenho acordado. Depois de carregar sozinho o fardo da herança trumpista na cúpula, Bolsonaro ainda corre o risco de ser ultrapassado, em casa, pelos governadores, no acesso ao dinheiro.


Murillo de Aragão: Dificuldade em enxergar o óbvio

Estamos perdendo a capacidade de valorizar o que existe de bom

O Brasil é uma das últimas fronteiras do mundo para investimentos. Há necessidades gigantescas na área de infraestrutura e existe um mercado de mais de 200 milhões de pessoas educadas para o consumo.

As oportunidades existentes são únicas. Talvez nós, brasileiros, não tenhamos uma clara noção do nosso potencial devido à nossa irresistível vocação para falar mal do país. Na linha do que é ruim a gente mostra; o que é bom a gente esconde.

O setor imobiliário, por exemplo, pode avançar de forma extraordinária com a expansão do crédito. Somos uma das sociedades mais interconectadas do planeta, sistema que resistiu mesmo com o aumento de 50% do tráfego na internet durante a pandemia.

No campo ambiental, além de possuirmos uma das melhores matrizes energéticas do mundo, somos um dos maiores produtores de alimentos do planeta, mesmo com uma cobertura florestal que representa mais de 50% do território nacional. O agronegócio no Brasil, em sua imensa maioria, segue uma rígida legislação ambiental.

Com todo o fuzuê em torno das queimadas em nossas florestas, somos responsáveis por pouco mais de 3% das emissões globais de carbono. Os Estados Unidos, país campeão das narrativas em torno da defesa do meio ambiente, contribuem com mais de 14%. O pequeno Japão colabora com mais de 8% das emissões globais. E nenhum dos dois países é perseguido pela opinião pública mundial por questões ambientais.

 “No final das contas, temos imensos desafios a enfrentar, mas o Brasil é melhor do que parece”

No campo político, apesar da lentidão exasperante, fomos além do que a maioria dos países de nossa dimensão consegue em termos de reformas. E continuamos a avançar, com a nova lei de saneamento, a lei de recuperação judicial, o marco do gás e a autonomia do Banco Central.

Em 2019, tínhamos pouco mais de 700.000 investidores na bolsa de valores. Hoje são mais de 3 milhões de brasileiros. E esse número deve triplicar nos próximos anos. Temos mais de 300 fintechs em operação e um consistente processo de desbancarização em curso.

No campo institucional, os atritos entre os poderes da República representam mais a impossibilidade de uma hegemonia antidemocrática do que a possibilidade de uma ruptura institucional. O Brasil vive um sistema político compartilhado que ajuda a impedir a violência política arbitrando os conflitos.

No entanto, existe uma infeliz preponderância do conflito político estéril sobre a solução para nossos principais desafios. O desejo de destacar o atrito prevalece sobre a vontade de resolver nossos problemas. As good news de nosso país são soterradas pelas más notícias, fazendo com que percamos uma visão mais precisa da realidade.

No final das contas, temos imensos desafios a enfrentar, mas o Brasil é melhor do que parece. Isso, porém, não parece interessar a boa parte de nossa opinião pública nem às nossas autoridades, que se concentram mais no conflito do que nos desafios. Disse Clarice Lispector, “o óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar”.

Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735


Ricardo Noblat: Como de hábito, Bolsonaro mente da manhã à noite

Quem o pariu que o embale

O presidente Jair Bolsonaro acordou e foi dormir ontem mentindo, que é o que ele sempre sabe fazer de melhor.

De manhã, mentiu ao mundo na abertura da Cúpula do Clima ao dizer que “o Brasil está na vanguarda no enfrentamento ao aquecimento global”. Não está, já esteve.

Mentiu à noite nas redes sociais ao recomendar a cloroquina como remédio eficaz contra a pandemia do coronavírus.

A MM (mentira matinal) parece ter sido bem aceita por diplomatas que servem ao presidente Joe Biden, o organizador e anfitrião da cúpula. Eles gostaram do tom do discurso de Bolsonaro.

A MN (mentira noturna) pode ter agradado os devotos que a escutam como prova de coerência, mas somente a eles.

“Eu tomei um negócio ano passado, não vou citar o nome para não cair a live, mas se eu tiver um problema, vou tomar de novo”, prometeu Bolsonaro.

O desmatamento só cresce. Ao contrário do que disse, ele não está dobrando o orçamento das atividades de fiscalização ambiental.

À falta de vacinas porque o governo não as providenciou a tempo, o vírus segue matando. A culpa, segundo Bolsonaro, é de governadores e prefeitos que adotam medidas de isolamento.

Como o discurso da manhã foi lido, Bolsonaro não se enrolou. Como nas redes sociais ele improvisa, foi uma confusão só.

“Impressionante como só se fala em vacina”, reclamou Bolsonaro, que em seguida comparou a doença do vírus com os cânceres de mama e de próstata que ele considera tão mortais quanto.

Bolsonaro tomou emprestado aos governos que antecederam ao seu as ações em prol da preservação da natureza no Brasil.

Escondeu que o país é o campeão em perdas de florestas no mundo. Só de 2019 para 2020, foram eliminados 1,7 milhão de hectares de floresta primária no Brasil.

Isso é mais do que três vezes o que perdeu o segundo colocado, a República Democrática do Congo.

Comprometeu-se a eliminar “o desmatamento ilegal até 2030, com a plena e pronta aplicação do nosso Código Florestal” em vigor há 9 anos. Malandragem pura e direto na veia.

Na prática, pediu 19 anos de carência para cumprir a lei. E joga tudo nas costas dos próximos quatro governos.

Chega ou quer mais?