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Rosângela Bittar: Sinfonia em meio à barbárie

Livro de Aldo Rebelo transforma releitura da história política em instantâneo da atualidade.

No capítulo 12 do seu livro O Quinto Movimento – propostas para uma construção inacabada, a ser lançado nos próximos dias, o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo transforma o que seria uma releitura da história política brasileira em um instantâneo da atualidade. Sua visão sobre os desafios impostos à democracia revela que não tem sido fácil mantê-la sob Jair Bolsonaro.

Sem citá-lo nominalmente, traça um retrato da ameaça à República exercida pelo comandante supremo das Forças Armadas, o presidente. As instituições democráticas, na sua avaliação, perdem prestí- gio, identidade e substância.

Bem escorado na disciplina de sua formação marxista, a que agrega experiência e trânsito entre políticos de todas as tendências, Rebelo defende, entre suas principais teses, a construção de um governo forte. Tão forte quanto democrático, com equilíbrio entre os poderes.

O problema não está só no Executivo. A situação crítica em que se transformou a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), alvejado por todos os lados tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, está arrolada como um dos maiores desafios. “Após a constituinte de 88, quando os militares se afastaram, procedeu-se à judicialização da política e, por consequência, a politização do Judiciário.”

Este desequilíbrio permanece e se amplia a cada dia, em meio à turbulência de um país de política convulsionada, em que recrudesce e se aprofunda o confronto entre parlamentares, magistrados e presidente da República. Problemas claramente expostos nos episódios mais recentes, que culminaram, ontem, com a instalação da CPI da Covid, no Senado, e a abertura, na Câmara, do debate sobre o episódio da apreensão de madeira ilegal na Amazônia. Uma reação do Congresso ao massacre de ignorância que o governo Bolsonaro impõe à sociedade.

Enquanto se desenvolve esta luta de campo aberto, surge, da quarentena da pandemia que nos esmaga, o inesperado livro de testemunhos e reflexões de Aldo Rebelo, um roteiro completo para debater o Brasil.

Político que viveu, em extensão e profundidade, como protagonista, diferentes facetas da política brasileira, Rebelo reúne uma experiência singular. Líder estudantil da época da ditadura, exerceu a presidência da UNE, seis mandatos de deputado federal e a presidência da Câmara. Foi ministro da Defesa, do Esporte, da Ciência e Tecnologia, da Coordenação Política, funções em que entrou e de que saiu sem acusações ou processos.

Aldo Rebelo sistematiza os episódios, em seu livro, com a criatividade de quem escreve uma sinfonia. Mais do que um nacionalista, como definido por todos, desde sempre, é um patriota apaixonado. E amplia, a cada dia, a confiança no seu estilo de fazer política: rigor na atenção aos diagnósticos e tolerância nas soluções.

Os sentimentos que criou com relação ao Brasil e aos brasileiros se forjaram na cena de abertura do livro. “A primeira vez que me dei conta do mundo, estava sobre um cavalo. Meu pai trabalhava em uma fazenda. Lembro que ele chegou a cavalo e me pôs montado. Eu devia ter uns três anos e vi outra dimensão do mundo. O mundo visto de cima: o rio, o horizonte, os campos. Data dessa época minha admiração, respeito e paixão pelos cavalos.”

Escrito durante a quarentena da pandemia, que Aldo Rebelo passou no Sítio Amazonas, em Viçosa, Alagoas, em companhia de sua mãe e sua mulher, o livro, de 249 páginas, tem bela ilustração de Elifas Andreato e Agélio Novaes e edição da JÁ, de Porto Alegre. Os 21 capítulos de O Quinto Movimento permitem uma visão otimista da história do Brasil, com intervenções de fatos do presente que lhe dão dinamismo.

No repertório que apresenta, com argumentos de plataforma, figuram economia e futebol, mulheres e índios, militares e diplomacia, educação e desigualdade, agricultura e Amazônia, campos nos quais se especializou nos últimos mandatos.


Carlos Melo: Fragilidade política e ruas definirão jogo

CPI é território em disputa: a oposição quer enfraquecer e, se puder, derrubar o governo; governistas agem na contenção de desgastes do Executivo. As condições iniciais tampouco independem de circunstâncias mais gerais, localizadas no governo e no país. Ao final, serão as condições de contorno – a insatisfação popular e a fragilidade política – que definirão o jogo.

Sempre houve abuso na utilização de CPIS. Oposições sem projeto e oportunismo fisiológico as usaram descoladas do contexto mais amplo. Normalmente, “deu em nada”. Mas, o oposto também se deu: a “CPI do PC Farias” derrubou Collor; a “CPI dos Correios” resultou no mensalão e destroçou promissoras lideranças do PT. Nos dois casos, a insatisfação geral se dava para além do objeto da CPI.

Hoje, a população está recolhida ao isolamento social da pandemia. E, por enquanto, não há mobilização de rua, elemento que potencializa as CPIS. Mas, à parte disso, as condições de contorno são notoriamente insatisfatórias.

Em 60 dias, o País chegará a 500 mil mortes, infelizmente. A situação econômica é deplorável: desemprego e fome tomam o cotidiano das famílias. A base governista é arenosa, como se viu no conflito do Orçamento. O governo está internamente fracionado, ministros sob fogo cerrado. Velhos aliados estão ressentidos e a imagem internacional é péssima.

O presidente e seu séquito são máquinas de disparates. Campeões de tiros nos pés, se desviam a atenção, também agravam a situação. A inabilidade política e a incapacidade de articulação atingem patamares inéditos. Não faltam condições de contorno desfavoráveis para que a CPI prospere.

Faltam as ruas. Mas, quanto mais rápido avançar a vacinação, maior a possibilidade de grandes mobilizações. Arrastar a CPI e estender seus ritos será mais um erro. Com quatro senadores e tudo o que ocorre no País, será difícil dominar o território em disputa.

*Cientista Político, professor do Insper


Miguel Caballero: Os recados de Renan para Bolsonaro e os militares na abertura da CPI da Covid

Não faltaram recados e indiretas a Jair Bolsonaro, embora Renan Calheiros tenha evitado citar nominalmente o presidente da República. Em seu discurso na primeira sessão da CPI da Covid, o relator, porém, foi mais direto ao falar das Forças Armadas, botando o dedo diretamente na relação que é uma das principais bases de apoio do governo Bolsonaro.

Em dois anos e meio, os militares apoiaram o presidenciável Jair Bolsonaro, ocuparam muitos postos na administração federal e, em que pesem alguns estremecimentos e rompimento com os que foram demitidos do governo, os principais atritos entre o presidente e os militares se restringiram à preocupação manifestada fora dos microfones de que um mau desempenho do governo contamine a imagem das Forças Armadas. Esse ponto jamais esteve tão em risco como agora, e a CPI será um novo teste da solidez dessa aliança.

Não se trata de esperar que os militares, categoria longe de ser homogênea, abandone ou não o presidente. Mas o Exército, especialmente, dificilmente escapará do escrutínio da CPI, e precisará limitar até que ponto poderá dividir responsabilização sobre erros da crise com o governo.

A fala de Renan tocou em pontos sensíveis na caserna. Citou as “454 mortes em combate na Segunda Guerra Mundial”, episódio quase sagrados para as Forças, lembrando em seguida que diariamente morre um número maior de brasileiros. “O que teria acontecido se tivéssemos enviado um infectologista para comandar nossas tropas?”, perguntou Renan. “Porque guerras se enfrentam com especialistas, sejam elas bélicas ou sanitárias. A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na Saúde. Quando se inverte, a morte é certa. E foi isso que aconteceu”.

É muito possível, porém, que a CPI tenha de ir além da participação de militares na gestão de Eduardo Pazuello. Embora Renan tenha dito em seu primeiro discurso que “não é o Exército que estará sob análise”, as investigações que a comissão fará sobre propaganda e distribuição de remédios sem eficácia cientificamente comprovada pode alcançar a compra de insumos e produção da hidroxicloroquina pela Força. O Exército, inclusive, já foi instado pelo Tribunal de Contas da União a, juntamente com o Ministério da Saúde, prestar esclarecimento sobre os gastos com a produção e distribuição do remédio.

Uma eventual convocação de um militar da ativa, fardado, a dar depoimento na mesa da CPI, é uma cena com grande potencial de danos à imagem das Forças Armadas.

O último comandante do Exército, general Edson Pujol, perdeu o posto após divergência públicas com o presidente no discurso de combate à pandemia.

No seu retorno ao protagonismo do noticiário político, Renan Calheiros reservou também outros recados. Um dos principais articuladores da resistência da classe política à Lava-Jato, repetiu no discurso ataques ao ex-juiz Sergio Moro — “não vou condenar ninguém por convicção” — e aos procuradores da antiga força-tarefa de Curitiba — “aqui nessa CPI não vai ter PowerPoint”.

Opositor ao governo Bolsonaro, o senador não perdeu a oportunidade de lançar uma alfinetada ao procurador-geral da República, Augusto Aras. Numa referência indireta à inércia da PGR para investigar possíveis crimes do presidente na pandemia, Renan afirmou que “CPIs vicejam quando os canais tradicionais de investigação se mostram obstruídos e isso é um ensinamento histórico”.

Por fim, fez também uma provocação a Bolsonaro, mesmo sem citá-lo. Ao elogiar o Supremo Tribunal Federal (STF) por ter garantido à minoria do Senado o direito de instalação da CPI após atingir as assinaturas necessárias, afirmou que o tribunal foi “terrivelmente democrático”, fazendo questão de usar o advérbio preferido do presidente sempre que afirma, há dois anos, que indicará um evangélico para o Supremo.


Bernardo Mello Franco: O primeiro milagre da CPI

A CPI da Covid já produziu seu primeiro milagre: transformou Flávio Bolsonaro num defensor do isolamento social. Ontem o senador tentou convencer os colegas a deixar a investigação para depois. “Por que não esperar todo mundo se vacinar?”, sugeriu.

A preocupação tardia com a doença não foi a única surpresa do discurso. Com a pele bronzeada pelas férias no Ceará, o primeiro-filho atacou o presidente do Senado, o relator da CPI e até a bancada feminina. O falatório não virou votos para o governo, mas escancarou o desespero do clã presidencial.

Pelo que se viu ontem, a família tem motivos para temer a comissão. Na sessão inaugural, a tropa bolsonarista levou um baile. Flávio ainda foi obrigado a engolir uma descompostura da senadora Eliziane Gama. Ela avisou que ali não era lugar para chute na porta e ironia machista. Só faltou dizer que o Zero Um não estava em Rio das Pedras.

Quando a reunião começou, os governistas se agarraram à liminar que impedia Renan Calheiros de assumir a relatoria. Foi uma tática desastrada. Como se previa, a decisão foi derrubada rapidamente. O senador se sentou na cadeira e desceu a lenha no Planalto.

“Vamos dar um basta aos suplícios, à inépcia e aos infames”, discursou. Ele atacou o negacionismo e prometeu “apontar culpados”. Num recado a Jair Bolsonaro, citou os genocidas Augusto Pinochet e Slobodan Molosevic. “O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes, e eles devem ser punidos”, arrematou.

Renan também criticou a entrega do Ministério da Saúde ao general Eduardo Pazuello, que no domingo passeava sem máscara num shopping de Manaus. “A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na saúde. Quando se inverte, a morte é certa”, disse.

O emedebista não se limitou à retórica: de cara, apresentou 11 requerimentos. A lista inclui a convocação de quatro ministros da Saúde, a requisição de documentos e o compartilhamento do inquérito das fake news.

No dia em que a comissão entrou em campo, Bolsonaro usou cinco palavras para defender seu desempenho na pandemia. “Eu não errei em nada”, garantiu. O capitão vai precisar de outro milagre para convencer a CPI.


Malu Gaspar: Toffoli manda Bolsonaro, Pacheco e Lira se explicarem sobre emendas "cheque em branco"

O ministro do Supremo Tribunal Federal José Dias Toffoli deu 10 dias a Jair Bolsonaro e os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, para enviar explicações sobre a ampliação de uma nova modalidade de desembolso das emendas parlamentares, as chamadas transferências especiais.

Os três foram notificados na última sexta-feira, como consequência de uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Partido Novo e que foi distribuída para Toffoli. O Novo é crítico do instrumento de repasse. Jair Bolsonaro não era citado inicialmente na ação, mas Toffoli decidiu incluí-lo.

As transferências especiais foram criadas em 2019 pelo Congresso. São chamadas de "cheque em branco" porque, ao contrário do que acontece com os recursos enviados para estados e municípios por meio de emendas regulares, no caso delas não é preciso dizer em quê os recursos serão aplicados nem prestar contas aos órgãos federais de controle de seu uso.

 Basta o parlamentar indicar o nome da cidade que deve receber o dinheiro, e os recursos caem direto na conta da prefeitura, que também não precisa dizer o que fará com ele.

Criadas no final de 2019 com o propósito de facilitar o repasse da verba federal, em geral lento e burocrático, as transferências na prática criaram uma exceção à regra, adotada em toda a administração pública, pela qual o dinheiro para obras ou programas custeados com dinheiro da União é repassado a estados e prefeituras pelos ministérios ligados à aplicação das verbas e seu uso é fiscalizado pela Caixa.

 Elas foram estabelecidas por uma emenda constitucional que permitiu aos parlamentares repassar até metade de sua cota de emendas individuais por depósito direto. Em 2021, isso representará cerca de R$ 8 milhões por parlamentar. 

Conforme mostrou a coluna, essa verba ajudou a irrigar prefeituras comandadas por parentes de deputados no ano passado e contribuiu para a sua reeleição. Dos cinco municípios que mais receberam transferências especiais em 2020, em três o dinheiro foi repassado por um parlamentar que é parente do gestor local. Todos foram reeleitos.

Embora o mecanismo tenha sido criticado desde o início por órgãos de controle federais, por reduzir a possibilidade de fiscalização, no Orçamento de 2021, o relator da Lei de Diretrizes Orçamentárias, Irajá Abreu (PSD-TO) decidiu estender, por conta própria, o uso do "cheque em branco" para as emendas coletivas de bancada, envolvendo uma fatia bem maior dos repasses federais: R$ 7,3 bilhões neste ano.

Pela regra, as emendas de bancada servem para custear projetos  maiores e são decididas de maneira coletiva entre os parlamentares de cada unidade federativa. Ao aplicar a elas o mesmo tratamento das emendas individuais, corre-se o risco de ampliar o uso de verba para atender a interesses paroquiais dos parlamentares em seus redutos eleitorais e deixar à míngua projetos mais relevantes. 

O texto de Irajá Abreu foi vetado por Jair Bolsonaro, mas o veto foi derrubado pelos congressistas no meio da votação do Orçamento de 2021, em 17 de março.

Para não atrasar ainda mais o Orçamento, que só acabou sendo votado no fim daquele mês, os líderes do governo no Congresso firmaram um acordo com parlamentares para que deixassem a conversão das emendas de bancada em transferências especiais para depois da sanção do texto orçamentário, o que ocorreu na semana passada.

Na ação impetrada no Supremo, o Partido Novo pede a revogação do "cheque em branco". O partido alega que a ampliação do uso das transferências promovida por Irajá Abreu é inconstitucional pois trata as emendas individuais e as de bancada, diferenciadas na lei, de maneira uniforme.

Os advogados do partido pedem ainda que a decisão seja proferida liminarmente, ou seja, rapidamente, uma vez que a aplicação das transferências especiais nas emendas de bancada está valendo e pode ser feita a qualquer momento. Somando-se o valor já autorizado a ser desembolsado neste ano em transferências especiais ao volume que desejam os parlamentares, o valor total do "cheque em branco" pode chegar a R$ 9,3 bilhões neste ano.

“Trata-se, portanto, de caso de extrema urgência, a fim de evitar a reorientação das emendas parlamentares de bancada rumo a um tipo de execução que não tem base constitucional”, afirma o Novo, em sua petição.

Após o prazo de 10 dias para esclarecimentos, Toffoli quer ouvir também a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da União antes de proferir sua decisão.


Foto: Beto Barata\PR

Bela Megale: 'Gabinete do Ódio' da Presidência será alvo de convocação da CPI da Covid

Funcionários do Palácio do Planalto que integram o chamado “gabinete do ódio” serão alvos de um pedido de convocação da CPI da Covid, instaurada nesta terça-feira no Senado. O PT vai solicitar a convocação dos assessores da presidência da República Tércio Arnaud Tomaz, José Matheus Salles Gomes e Mateus Matos Diniz. O trio bolsonarista é apontado como responsável por ataques a adversários do presidente nas redes sociais.

Uma das frentes articuladas pela oposição mira o uso de redes sociais para disseminar fake news que boicotam medidas sanitárias, como uso de máscara, além de ataques a autoridades que decretaram medidas de isolamento social, como governadores e prefeitos. Para isso, os senadores trabalham em um pedido de compartilhamento de dados da CPMI das fake news com a investigação da Covid.

A ideia é saber se houve dinheiro público e até de privado de apoiadores do presidente na disseminação de ataques e notícias falsas relacionadas à pandemia. A avaliação da oposição é que, ao unir a negligência do governo federal sobre a pandemia e o uso de fake news, Bolsonaro terá que lidar com os temas mais espinhosos de sua gestão.

– Se o presidente da CPI da Covid requisitar algum material, não há problema nenhum. O que for pedido sobre fake news relacionadas às vacinas, Covid-19, estamos dispostos a compartilhar – disse o senador Angelo Coronel (PSD-BA), presidente da CPMI das fake news.

Os senadores também pretendem explorar investimentos do governo federal em campanhas como “O Brasil não pode parar”, que pregava contra o isolamento social e acabou proibida pela Justiça, a ações de marketing com influenciadores digitais defendendo o tratamento precoce, ou seja, o uso de remédios sem eficácia para tratar a Covid-19.


Pedro Cafardo: O culto à cloroquina e ao teto sacrossanto

Enquanto o mundo pensa no pós-pandemia, Brasil se vê envolto na discussão sobre limites fiscais rígidos demais

Uma frase banal - fazer do limão uma limonada - move quem está pensando na economia da era pós-covid. Ainda que as aflições com o desastre humanitário global em andamento desencorajem esse olhar economicista, muitos países já puseram o tema em discussão e tomam medidas olhando para o futuro imediato.

Quem prestou atenção nos discursos da Cúpula do Clima da semana passada viu o “caminho das pedras” da nova economia. A ideia geral é que o principal mecanismo para criar empregos após a pandemia serão os investimentos na economia verde.

O presidente dos EUA, Joe Biden, está presenteando os americanos com um programa econômico que vai muito além do auxílio emergencial. Já aprovou um pacote de estímulos fiscais de US$ 1,9 trilhão e propõe investimentos de longo prazo de até US$ 3 trilhões. Esta segunda parte é a limonada, porque aproveita a crise para sugerir uma grande transformação estrutural da economia americana, ao mesmo tempo em que promete reduzir as emissões de gases-estufa em 52% até 2030. Pode parecer estranho, mas a infraestrutura americana está velha e precisa ser renovada. Não há no país, por exemplo, ferrovias de alta velocidade, coisa comum na Europa. As novas linhas de trens devem substituir transporte aéreo, altamente poluidor.

Então Biden quer renovar a infraestrutura do país e, ao mesmo tempo, descarbonizar a economia, que é para onde vai a fronteira tecnológica em função do aquecimento global. Além disso, ele promete investir em educação e saúde pública com recursos obtidos pela maior taxação dos ricos americanos.

O plano Biden, pela sua enorme dimensão, provoca controvérsias. As declarações que mais preocuparam foram as do ex-secretário do Tesouro Larry Summers, por ser um economista de centro-esquerda, que teoricamente deveria apoiar o investimento público. Summers acha que o pacote fiscal, grande demais, pode gerar inflação de demanda, alta de juros e recessão.

Com ou sem polêmica, o fato é que os americanos já planejam a economia do pós-covid e pouco se lixam com o aumento dos gastos. Europeus vão pelo mesmo caminho. Na França, o ministro das Finanças, Bruno Le Maire, mandou às favas o neoliberalismo e disse que vai proteger a economia francesa “a qualquer custo”. Prometeu investir para garantir soberania e domínio de tecnologias que “moldam o futuro” do país. Vai proteger as empresas com taxações e novos financiamentos. A ideia é “reinventar o modelo econômico do país” com base na inovação e na indústria livre de carbono.

Enquanto o mundo pensa no pós-pandemia, aqui o governo ainda aposta na cloroquina, provocando gargalhadas no exterior. Promessas, como as feitas na Cúpula do Clima, soam falsas. O comando econômico só pensa em conter gasto público. A discussão da política macroeconômica se limita ao teto de gastos, jabuticaba pouco razoável num momento em que mundo decidiu aplicar recursos para combater a doença e renovar a economia nos novos parâmetros.

Nem no incentivo ao carro elétrico, óbvia tendência mundial, estamos pensando ainda, como mostrou Marli Olmos no Valor de ontem. Não se trata de defender a ideia de que o bom para os EUA ou para a Europa é bom para o Brasil. Trata-se de seguir o rumo da economia mundial ou de ficar sentado na sarjeta, chorando e esperando pelos milagres da cloroquina ou do teto de gastos.

José Luis Oreiro, professor da UNB, que acaba de lançar o livro “Macroeconomia da Estagnação Brasileira” em parceria com Luiz Fernando de Paula, anda enfurecido com o que chama de “fé no teto sacrossanto”, que só existe no Brasil com esse rigor, incluído na Constituição e com poucas regras de saída. “Se preservar o teto, a economia cresce; se violar, não cresce”, esse é o dogma. “Por que?”, pergunta.

Em tempo: na opinião de Oreiro, Summers está equivocado e “Biden deve ficar para a história como o novo Roosevelt”.

Pontes abertas

Mudando de assunto, mas nem tanto, os quadrinhos acima, uma velha metáfora comum nas paredes de barbearias dos anos 1960, representam bem o que vêm fazendo as duas forças políticas progressistas do país há quase três décadas. Nunca saíram do primeiro quadrinho e foi preciso aparecer um radical totalitário para desconfiarem que estão no mesmo lado. Ameaçam agora passar para o segundo quadrinho.

As propostas das duas não são conflitantes. Quando governaram, controlaram inflação, buscaram crescimento, reduziram analfabetismo e mortalidade infantil, tiveram a responsabilidade fiscal possível e melhoraram a distribuição de renda. Seria utopia pensar numa aliança progressista entre elas? As pontes estão abertas. Mas será preciso superar ambições pessoais de poder em ambos os lados e alguém tomar a iniciativa de atravessar as pontes. As propostas podem ser mescladas para salvar um país entregue a quem não faz planejamento econômico, ignora a ciência e o desafio ambiental, descuida da educação e da saúde e promove discórdias.

Se não se unirem, as duas forças serão condenadas pela história. Pode dar com os burros n’água a ideia de deixar a centro-esquerda de fora e formar um bloco puro-centro, que é móvel, infiel e fragmentado, como mostrou pesquisa publicada sexta-feira pelo Valor. Também não há como isolar de um acordo a centro-direita, porque a esquerda não forma maioria. Não seria melhor escantear os extremistas, parar, negociar e decidir se vão comer juntos primeiro as mortadelas da esquerda ou as coxinhas da direita?


Andrea Jubé: 'Quantos poderiam ser salvos?'

Atraso nas vacinas foi deliberado, diz governador de Alagoas

O governador de Alagoas, Renan Filho (MDB), recorreu a uma metáfora futebolística, tão comum na política, para explicar por que a falta de uma coordenação nacional no combate ao coronavírus contribuiu para o recrudescimento da pandemia no Brasil.

“O Ministério da Saúde é fundamental nesse processo, e em meio à crise, tivemos quatro ministros. Imagina a Seleção Brasileira, às vésperas da Copa do Mundo, trocando de técnico quatro vezes, cada um com um time de diferente, um lateral esquerda, outro de direita. Certamente isso dificulta a organização do time”.

O mandatário é filho do senador Renan Calheiros (MDB-AL), que ontem teve a nomeação para o cargo de relator da CPI da pandemia impedida por uma liminar da Justiça Federal do Distrito Federal. Nas redes sociais, o senador classificou a decisão como “interferência indevida”, acusou o governo Jair Bolsonaro de orquestrá-la, anunciou que vai recorrer, e provocou: “Por que tanto medo?”

Para Renan Filho, contar com Renan Calheiros na relatoria da CPI não deveria inspirar medo, mas, sim, confiança pela sua experiência política e disposição para conciliação. “Não se encontra no Senado tanta gente com a capacidade dele, experiente, calmo, sereno. O senador Renan é equilibrado e no papel de relator, só vai ajudar”.

O governador acrescenta que o senador seria incapaz de qualquer injustiça na condução dos trabalhos “porque já foi injustiçado, e sabe o que isso significa”. Uma alusão às denúncias contra o senador no âmbito da Lava-Jato. Renan ainda responde a oito processos no Supremo Tribunal Federal, mas dos 17 originais, nove já foram enviados ao arquivo.

Na última semana, Renan Filho recebeu um telefonema do presidente Jair Bolsonaro, que tem o alagoano como único interlocutor entre os governadores do Nordeste. Na conversa, Bolsonaro reafirmou ao governador que o momento é inoportuno para a CPI.

O governador não discordou do presidente naquele momento, porque seria uma descortesia em pleno telefonema com o chefe do Executivo. Ontem, entretanto, Renan Filho disse à coluna que tem outra opinião: “Quem decide o momento ideal para uma CPI é o Congresso Nacional”.

Renan Filho acredita que Bolsonaro lhe telefonou para fazer “um gesto na direção do diálogo”, já que o senador Renan havia sido indicado para relatar a CPI. O governador lembrou que, em entrevistas recentes, Renan Calheiros disse que, como relator, conversaria com todos, “especialmente com o presidente, se ele desejar”.

Até ontem, havia ambiente para o diálogo, mas a ofensiva judicial da deputada Carla Zambelli (PSL-SP), aliada de primeira hora do Palácio do Planalto, e que obteve a liminar barrando Renan, tumultuou o jogo. Se a decisão for revogada, Renan assumirá o posto pintado para a guerra, um figurino que ainda não havia exibido.

No fim de semana, Renan foi ao Twitter declarar-se suspeito em relação a qualquer investigação sobre o governo de Alagoas que surgir na CPI. Uma reação à campanha deflagrada nas redes sociais pelos bolsonaristas, que impulsionaram a hashtag #Renansuspeito, já que o relator da CPI é pai de um governador, e os governadores serão investigados quanto à gestão dos recursos federais para o enfrentamento da pandemia.

Renan Filho diz que não teme essa investigação porque Alagoas tem bom desempenho na pandemia. É o terceiro Estado com menos mortes por grupo de 100 mil habitantes, e não foi investigado pela Polícia Federal.

Para conter a covid-19, ele associou medidas de distanciamento social e de restrição de circulação, à ampliação da rede hospitalar. Relata que acelerou a conclusão de quatro hospitais, ao mesmo tempo em que contou com o apoio da Federação das Indústrias e da Associação Comercial em comerciais para a televisão nas medidas restritivas. Está em vigor o toque de recolher a partir das 21 horas, e dias pontuais para o fechamento dos shoppings. A lotação das UTIs está em 76%.

“Por essas ações a rede não colapsou até agora. É possível construir um discurso integrado, mas houve no Brasil uma intenção de dividir o país”.

Renan Filho invoca o infográfico elaborado na semana passada pelo site “Poder360”, que comparou unidades federativas a países. Nesse comparativo, o Distrito Federal e sete Estados brasileiros estariam entre os 10 países com mais vítimas da covid-19. Amazonas, com 2.903 mortes por milhão, desponta acima da República Tcheca, líder do ranking mundial. Alagoas estaria empatado com a Bahia, em 32º lugar, com 1.186 mortes por um milhão de habitantes.

Renan Filho defende que a CPI faça esse modelo de cálculo. “Quantas vidas teriam sido salvas se as medidas corretas de enfrentamento à pandemia fossem tomadas no momento adequado? Essa história também precisa ser contada”, conclamou.

Ele admite que não será possível um cálculo direto ou objetivo, “mas obviamente dará para demonstrar que algumas regiões têm resultados melhores do que outras, e podemos olhar o que levou a isso, podemos fazer discussão com especialistas”, sugeriu.

Num momento em que o Brasil ainda vivencia um platô de 3 mil mortes diárias, o governador considerou “muito grave” a nova revisão do cronograma de imunização, e vê um atraso intencional na busca de imunizantes.

“Nós nos atrasamos deliberadamente na aquisição de vacinas. Em determinado momento, o Brasil era contra a compra de vacinas, e isso se verbalizou por meio de várias autoridades. E não temos um cronograma de vacinação, ele é alterado a cada semana, quinzena ou mês, e é sempre para postergar, nunca para antecipar”.

Renan Filho lembra que defendeu a urgência de uma coordenação nacional de combate à pandemia, com a integração de esforços entre as três unidades da federação na reunião de governadores, ministros e chefes das Casas Legislativas no Palácio da Alvorada há um mês. “Governo federal e Congresso concordam com essa falta de coordenação, por isso criaram o comitê [nacional de combate à pandemia], mas de lá pra cá, não teve ação nenhuma”.


Eliane Cantanhêde: Na CPI, guerra é guerra

Bolsonaro quer impor roteiro, desqualificar Calheiros e dar Pazuello aos leões, mas os fatos o condenam

Com a instalação da CPI da Covid, começa hoje uma nova fase do governo Jair Bolsonaro, que, além de já estar em campanha eleitoral antecipada para 2022, vai estar muito ocupado em tentar explicar o inexplicável numa tragédia histórica que já levou 390 mil vidas no Brasil. Bolsonaro vai passar a ter oposição real e muita visibilidade negativa.

A CPI é como o coronavírus: desconhecida, altamente contagiosa e potencialmente letal. Se Bolsonaro reagir a ela com o negacionismo com que trata o próprio vírus, ficará em maus lençóis. Mas, se ele é incompetente como presidente, é esperto como candidato e na relação com o Centrão. Suas três prioridades: impor o roteiro da CPI, desqualificar o senador Renan Calheiros como relator e manter controle sobre o general e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello.

Quanto ao roteiro, o Planalto fez 23 perguntas a ministros sobre os erros mais gritantes, mas tem muito mais. Exemplos: por que tratar a pandemia até hoje como “gripezinha”? E por que Bolsonaro jogou no lixo documentos do Exército e da Abin sobre isolamento? Nenhum ministro tem resposta para isso, assim como ninguém sabe que tipo de motivações, ou interesses, estão por trás da posição sobre isolamento, máscaras e vacinas – e sem pôr nada no lugar, além de cloroquina...

Atacar Calheiros é fácil, pelos processos no Supremo e por ser pai do governador de Alagoas, Renan Filho, como acatou ontem a Justiça Federal no DF. Mas Renan pode ser tudo, menos bobo. É experiente, tem liderança e, depois de tanto tempo recolhido, sabe bem o que o esperava e espera ao voltar aos holofotes.

Quanto a Pazuello, ele é um risco para Bolsonaro. Como ministro, já se atrapalhava todo com jornalistas, mentindo, apresentando previsões irreais de vacinas, tirando onda de irritado. Já imaginaram numa CPI com raposas, maioria oposicionista, montanhas de erros e nenhuma defesa?

Até na véspera da CPI, Pazuello e o sucessor, Marcelo Queiroga, continuaram errando. Um ex-ministro da Saúde passeando sem máscara num shopping logo de Manaus? E o atual tentando culpar o Butantan por falta de segundas doses? De Pazuello não se espera muito e o próprio Exército não sabe o que fazer com ele. Mas Queiroga? Está mal informado, ou entrou na dança política?

Ontem, Queiroga jogou para governadores, Butantan e Coronavac a culpa por muitos brasileiros, sabe-se lá quantos, não conseguirem tomar a segunda dose. Se há vacinas, o Brasil deve à Coronavac. E por que não há segunda dose? Porque, em 21 de março, dois dias antes da nomeação de Queiroga, o Ministério da Saúde liberou Estados e municípios a gastarem todo o estoque na primeira. É mais uma irresponsabilidade criminosa, até porque as previsões de doses nunca foram confiáveis. O ministro não sabia?

Foi também o Ministério da Saúde quem confiscou toda a produção nacional do kit intubação, mas, quando os insumos e medicamentos começaram a faltar e o governo de São Paulo mandou nove ofícios pedindo envio urgente de kits, o que Queiroga respondeu? Mandou os “Estados ricos” comprarem seus próprios kits. Comprar onde, se todo o estoque foi requisitado pelo governo federal?

A estratégia do governo é jogar Pazuello aos leões e deixar os demais ministros na fila da jaula, inclusive Paulo Guedes e o ex-chanceler Ernesto Araújo. Todos, porém, só cumpriram ordens. Um manda, os outros obedecem. O presidente Jair Bolsonaro é o grande responsável, cometeu os grandes erros, é o grande alvo. A intensa articulação do Planalto para esvaziar a CPI, atacar Calheiros e usar Pazuello de escudo esbarra numa antiga verdade: contra fatos, não há argumentos. Nem articulação que dê jeito.


Carlos Andreazza: O movimento de Ciro

Ciro Gomes está com o bloco na rua. Sua margem de manobra é estreita. Estreitou-se ainda mais com Lula habilitado a concorrer. Mas ele a tem explorado — até aqui — ao estado da arte. Merece atenção. Merece igual atenção o “até aqui”; dado não terem sido poucas as vezes em que uma boa posição lhe serviu de altura para um tombo mais doído adiante. Sua estratégia é clara; também lhe é a única disponível. Daí por que a advertência: não poderá errar; não lhe sendo pequeno o histórico de equívocos em campanhas. A seu favor: não errou em 2018, jornada de que saiu maior.

Jornada de que saiu maior — e bem posicionado para o jogo que ora faz com vistas a 2022. A recente entrevista ao GLOBO é aula de discurso político. E não apenas porque precisa na mensagem. Ciro foi exato — falou o que pretendia, para quem mirava, conforme planejara —, porque consciente do campo que lhe resta. Não lhe é grande o campo; nem plano. Mas já o identificou. Não lhe é vasta a chance; que só há, porém, porque mapeou a pinguela. Joga bem. Com pouco.

Parte da constatação de uma evidência: Lula, uma vez no tabuleiro, expande-se para ocupar todos os espaços à esquerda — o que tende a interditar o terreno a, por exemplo, Flávio Dino. O ex-presidente maximiza a natureza hegemônica do PT; aos demais restando a velha condição de satélites. Surge, então, o Ciro de centro. Um deslocamento que já iniciara em 2018; e que é consistente com o lugar em que se apregoa faz tempo: centro-esquerda.

(Ciro é de esquerda — assim o situo. Eleição, contudo, é convencimento. É percepção. Percepção do outro. Da sociedade. Vale não necessariamente o que o sujeito é; mas o que consegue representar — o chão que consegue ocupar na leitura, no imaginário, do receptor. Não custa lembrar que Bolsonaro, o suprassumo do corporativismo, dependurado havia 30 anos nas tetas do Estado, logrou convencer como liberal-reformista.)

É desde esse lugar central, em que tenta se plantar, que Ciro quer se viabilizar como alternativa nem-nem — nem Bolsonaro, nem Lula. Espaço desde o qual, mesmo que ainda não tomado, lança iscas para a centro-direita. Sua presença como signatário da carta assinada também por João Doria, Luiz Henrique Mandetta, Luciano Huck, Eduardo Leite e João Amoêdo é o grande fato político da iniciativa — que seria óbvia, previsível, sem ele. Só Ciro extrai ganhos de constar no polo que se proclama democrático, um grupo de — em graus variados — bolsonaristas arrependidos.

Só Ciro dialoga com novos eleitores integrando o conjunto. Que compõe sem deixar de estigmatizar os demais. Por exemplo: classificou Doria como alguém que “não conhece o Brasil”; e Huck como “animador de auditório”. Somente a Mandetta faz deferência — talvez porque lhe fosse bom vice: “bem-intencionado”.

Ao mesmo tempo, não tendo jamais sido bolsonarista, Ciro é também aquele que, ante a perspectiva de trabalhar pela eleição de Haddad, preferiu viajar a Paris. Um acerto. Para seu plano de sobrevivência, de desvinculação da esquerda, de deslocamento ao centro, um acerto. É importante refletir, a propósito, sobre como se refere a Lula na entrevista: “tomado de ódio”. Essa definição — que, creio, repetirá com frequência — é essencial à compreensão de sua tática. Que se quer antecipar a uma possível reedição do Lulinha Paz & Amor. E que certamente se antecipa à tentativa de cooptação do centro que também o ex-presidente empreenderá. A Ciro, então, toca pintar um Lula que, depois de mais de 500 dias preso, virá para a forra. Considerada a vitalidade (subestimada) do antilulismo entre nós, não será ineficaz associar um Lula reabilitado ao desejo de se vingar.

Não é à toa que Ciro — contra o cenário hoje mais provável — força a mão para projetar um segundo turno sem Bolsonaro em 2022. Quer que o cidadão que rejeita o PT — a fatia não bolsonarista de eleitores do presidente em 2018 — habitue-se a ele como elegível, palatável, contra Lula.

Ciro Gomes tem um projeto de Brasil. Não faz minha cabeça, mas tem. O de um Estado indutor da economia, que esteja mais presente na vida das pessoas. Um programa desenvolvimentista, que se casa ao que será a demanda da sociedade — por ajuda, por estímulo — no pós-pandemia. Não me parece o mais provável; mas não podemos desconsiderar a hipótese de que o eleitor — depois da peleja entre rejeições de 2018, e depauperado pela peste — procure por algum norte em 2022 que não derivado de personalismos.

Advirta-se — já que falei em erros, e em não poder errar — que norte não virá com João Santana como marqueteiro. É equívoco. Contradição, se o deslocamento tem por trilho afastar-se do petismo. Santana é olhar para trás e para fórmulas de sucesso eleitoral pagas na Suíça; fórmulas de sucesso objetivo que, na prática, plantaram as piores práticas de campanha, como aquelas, mentirosas, aplicadas contra Marina Silva.

Sim. O eleitor — é possível (com fé) — quererá propostas; quererá, com sorte, algum projeto de país. Mas será excessivo supor que se transforme tanto a ponto de não considerar o combate à corrupção — grande eleitor em 2018 — entre as prioridades. E Santana é memória. Não será banal Ciro acusar a roubalheira petista — dizer que alertou Lula — tendo um marqueteiro outrora pago pelo esquema.


Ricardo Noblat: Bolsonaro escolhe perder para Renan a primeira batalha da CPI

Que vantagem Maria levou? Nenhuma!

Deu-se com prova de esperteza e de jogo de cintura do presidente Jair Bolsonaro seu telefonema recente para o governador Renan Calheiros Filho (MDB), de Alagoas. Por meio dele, Bolsonaro tentava apaziguar suas relações com o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), que será o relator da CPI da Covid-19.

Renan, pai, e Bolsonaro jamais foram próximos à época em que se cruzaram como deputados na Câmara. Houve uma chance de os dois se entenderem quando Bolsonaro se elegeu presidente, e Renan disputou a reeleição para presidente do Senado. Mas aí, Bolsonaro ajudou Davi Alcolumbre (DEM-AP) a derrotar Renan.

Depois de ouvir de Renan, o governador, que o pai não guardava mágoas dele e que se comportaria com equilíbrio como relator da CPI, que fez Bolsonaro? Autorizou a deputada Carla Zambelli (PL-SP), uma bolsonarista de quatro costados, a acionar a justiça para que impedisse Renan de ser o relator.

Um juiz federal de Brasília decidiu que Renan não poderá ocupar a função. Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, respondeu que a decisão não tem cabimento e que por isso será simplesmente ignorada. A instalação da CPI se dará, hoje, em sessão marcada para às 10h. E Renan será ungido relator.

Que vantagem Maria leva? O que Bolsonaro imaginou ganhar com uma manobra destinada ao fracasso? O despacho do juiz parece uma peneira cheia de rombos. Ele afirma, por exemplo, que Renan não poderá ser votado para relator. Não haverá votação. O presidente da CPI indica o relator de comum acordo.

Bolsonaro conseguiu uma coisa que parecia impossível: tornar Renan um político menos controverso do que sempre foi.

Pazuello, um general ruim de serviço até quando mente

Caiu a máscara

Neste governo, só o presidente Jair Bolsonaro deve sentir-se livre para mentir mesmo quando tudo o que diga possa soar como inverossímil do começo ao fim. Não é o cargo que lhe confere tal direito, mas o número de vezes que desrespeitou a verdade. Seus devotos e adversários se acostumaram e não ligam. Os mais tolerantes entre eles até acham graça.

O general Eduardo Pazuello, especialista em logística militar de fama duvidosa e desastrado ministro da Saúde, não aprendeu a lição e deu-se mal. Foi flagrado passeando sem máscara em um shopping de Manaus. Indagado por uma fotógrafa por que não usava máscara, retrucou: “Onde vende a peça?” Em seguida, foi socorrido por uma mulher que lhe deu uma de presente.

A foto viralizou nas redes sociais e um dia e meio depois ele decidiu se explicar ao invés de manter o silêncio porque o estrago estava feito. E o que disse por meio de sua assessoria? Que entrou no shopping justamente para comprar uma máscara, o que fez depois de caminhar apenas cinco metros. Falta credibilidade a Pazuello para mentir, o que deixa Bolsonaro muito assustado.

Afinal, o que o general poderá dizer quando for convocado para depor diante dos 11 senadores que formam a CPI da Covid-19? Haverá treinamento suficiente para tornar convincentes as respostas que dê sobre as mais delicadas questões que desafiarão sua argúcia? Não poderá ignorar as perguntas por mais capciosas que sejam, nem pedir para respondê-las depois por escrito.

Nos anais do Congresso não há registro sobre depoimentos de generais da ativa prestados em comissões parlamentares de inquérito. Pazuello será o primeiro. Terá essa elevada honra!


Míriam Leitão: Governo afastado dos brasileiros

O governo Bolsonaro está descolado dos brasileiros na área ambiental e climática. Empresas anunciam compromissos de zerar emissões, de fiscalizar sua cadeia produtiva, porque isso é um diferencial competitivo. Governadores fazem pontes com governos e empresas. Bolsonaro estrangulou o orçamento dos órgãos ambientais, um dia depois de dizer ao mundo que os fortaleceria. Ontem, na Câmara dos Deputados, o delegado Alexandre Saraiva, da Polícia Federal, mostrou provas explícitas da ilegalidade da madeira que o ministro Ricardo Salles diz que é legal. “O ministro tornou legítima a ação de criminosos”, disse Saraiva, que foi exonerado da Superintendência.

O engenheiro Tasso Azevedo, do Observatório do Clima, observou esse descolamento entre o governo e a sociedade.

— Temos algo acontecendo aqui. A sociedade está fervilhando, o mundo inteiro está olhando para isso. No setor empresarial, do segundo semestre do ano passado para cá, todos os conselhos passaram a falar sobre o tema, querendo entender. Saiu do nível de gerente, foi ao CEO e chegou ao conselho. Várias empresas estão assumindo compromissos e alguns são bem fortes — diz.

Está curioso ver, exemplifica Tasso, a corrida entre as três maiores empresas produtoras de proteína animal, JBS, Marfrig e Minerva:

— Parece que as três estão disputando quem acaba primeiro com as suas emissões. A carta dos 200 CEOs pedindo mais ambição nas metas, tudo está indo nessa direção.

Algumas empresas sempre estiveram nessa trilha, como a Natura. Mas são muitas as companhias que sabem que precisam anunciar metas, verificáveis, prestar contas do esforço que estão fazendo.

O governo federal, apesar do que Bolsonaro disse na reunião de cúpula, segue o seu projeto de desmonte do Ibama, do ICMBio, e até da PF. No Congresso, tramitam projetos perigosos, como o que enfraquece o licenciamento ambiental e regulariza terras roubadas. O depoimento do delegado Saraiva mostra que 70% da madeira apreendida na operação Handroanthus, que Salles diz ser madeira legal, não apareceu nem o suposto dono para reclamar. Há casos de falsificações grosseiras nos documentos. Esse é o projeto do governo Bolsonaro de legalizar o crime. Mas não é o da maioria do povo brasileiro, não é o das grandes empresas, nem dos grandes bancos. O capital converteu-se? Não. Ele está falando de negócios, como sempre. No mundo de hoje, produção ambientalmente suja não é financiada, não tem clientes, perde a competição.

Os governadores fizeram dois movimentos inteligentes. Primeiro, na carta ao presidente Biden lembraram que construíram mecanismos em suas administrações para a cooperação internacional. Segundo, o consórcio dos estados da Amazônia celebrou a divulgação da Leaf Coalition, tão logo foi lançada. Essa iniciativa vem sendo costurada há algum tempo por um grupo de países — Estados Unidos, Reino Unido e Noruega — e de empresas internacionais.

— O Leaf começou em várias frentes e a Amazon esteve bem envolvida no começo. Foi montado um grupo de trabalho. A plataforma se parece com a do Fundo Amazônia, mas em escala global. Cria-se uma linha de base para mostrar a partir desse ponto a queda do desmatamento e há um conselho independente para acompanhar os compromissos. Os países podem se inscrever, mas também os estados, as regiões, para angariar fundos. Os estados brasileiros estão fazendo isso. Vale a partir de 2022, mas em comparação com os cinco anos anteriores — diz Tasso.

Pelo que se sabe, já foi fixado até o preço da tonelada de carbono, num valor acima do que era calculado o Fundo Amazônia. Uma empresa como a Microsoft, por exemplo, que quer zerar suas emissões — não apenas as de agora, mas as que emitiu ao longo da sua história — tem muito a comprar nesse mercado.

Os governadores da região Norte já estavam em contato com os organizadores e por isso no próprio dia do anúncio o governador Flávio Dino, presidente do Consórcio dos Estados da Amazônia Legal, saudou o lançamento da “nova aliança público-privada Leaf Coalition”.

A sociedade, as empresas, os bancos, os governos estaduais estão se conectando com o mundo e a agenda da preservação ambiental. Bolsonaro e seu ministro fazem seu trabalho de demolição das florestas tropicais, e de legalização do crime, descolados do mundo e do próprio Brasil.