covid-19
RPD || Eduardo Rocha: O pós-coronavírus - Por uma Conferência Mundial pela Produção e Emprego
Dar respostas rápidas para salvar vidas e manter a produção e serviços é o principal desafio enfrentado em todos os países por conta da pandemia do coronavírus Covid-19
A violência meteórica da pandemia global do coronavírus em todo o sistema de reprodução social do gênero humano irrompe nova época histórica, cujo enigma desafia a inteligência a decifrá-la de modo a dar respostas às exigências emergenciais – salvar vidas em risco e manter a produção e serviços –, e futuras da humanidade.
O infarto econômico mundial reconfirmou ontologicamente o trabalho – este eterno e necessário intercâmbio entre o gênero humano e a natureza para a reprodução da vida – como a força material fundante na gênese e no desenvolvimento do ser social, e revelou a necessidade de nova crítica de toda economia política vigente e a reinvenção das relações capital-trabalho.
No Brasil e no mundo, surgiram excelentes estudos explicativos sobre as recentes medidas governamentais para atenuar os efeitos recessivos da pandemia que mundialmente coexiste agora com a quarta revolução industrial. Dois fenômenos que intensificam uma conexão histórico-universal nunca vista, realçam velhas e novas contradições, operam e operarão transformações na totalidade do ser social e demandarão a criação inédita de uma governança global para a construção de uma nova sociabilidade humana ao longo do século XXI.
A pandemia retrai a taxa real de acumulação de capital e problematiza o funcionamento sistêmico do capitalismo global. A reativação econômica e a reinserção produtiva de trabalhadores demandam mais do que as atuais terapias intensivas. Demandam nova arquitetura socioeconômica global, voltada para o futuro da humanidade, de modo a livrá-la da força gravitacional da recessão sistêmica tenebrosa, da profunda insegurança, da pavorosa incerteza e de um futuro sinistro e sombrio.
Pode ajudar na construção dessa nova arquitetura socioeconômica global a realização, sob a responsabilidade da Organização das Nações Unidas (ONU), de uma Conferência Mundial pela Produção e pelo Emprego (CMPE), visando a harmonizar os fluxos monetários e financeiros internacionais, com vistas a canalizar a poupança pública e privada em investimentos reais com as globais necessidades sociais, produtivas, de emprego e desenvolvimento global dos povos.
Seria como uma “Conferência de Bretton Woods da Produção e do Emprego” focada na criação de políticas e ações multilaterais para fazer valer a reativação econômica – da produção, do emprego, do pleno funcionamento da rede de proteção social e pavimentar minimamente as vias macroeconômico-globais para impulsionar o desenvolvimento em vastas regiões do planeta.
Além dos chefes de Estado, desta Conferência deveriam participar os demais organismos multilaterais e da sociedade civil. Uma Conferência não para fazer futurologia social utópica, mas concentrar-se na reflexão e proposição de elementos constitutivos de uma macroeconomia global num quadro histórico no qual o amado e odiado clássico keynesianismo, circunscrito na esfera do Estado-nação, é insuficiente na produção de respostas. Tanto de economias nacionais integradas globalmente quanto de um mundo integrado que ainda não dispõe de um governo mundial. São muitas questões em aberto. Se a teoria é feita por dúvidas, a política é feita com convicção. E hoje esta convicção aponta para a necessidade desta Conferência.
Por fim, a questão da redução da jornada de trabalho, a contratação de trabalhadores adicionais dentro de um plano de redistribuição do emprego (na indústria, agropecuária, construção civil, comércio, serviços, setor público) com elevação da produtividade adquirirá importância universal, tanto no aspecto teórico, como no aspecto político prático para a reativação e sustentabilidade do desenvolvimento. A antítese disso é o aumento da superexploração do trabalho.
Em 1998, a França reduziu a jornada de trabalho para 35 horas com duas medidas complementares: a) redução de impostos sobre a folha de pagamento e b) contratação de trabalhadores adicionais aos já existentes. No Brasil, contudo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, em plena pandemia, prometeu reduzir impostos da folha de pagamento após a crise e não exigiu contrapartida alguma dos empresários.
O futuro das relações capital-trabalho dificilmente reeditará as atuais, que nada mais são do que a expressão superestrutural de relações de produção de um mundo que está ruindo aos olhos de todos. É ilusão querer que o mundo “volte à normalidade do passado”. Não há volta. Aquele mundo não existe mais. O caminho terminou, a viagem começa, diria Georg Lukács (1885-1971). O coronavírus abriu nova página da história e desafia o gênero humano a escrevê-la e apontar para onde ir: barbárie ou civilização?
Alea jacta est.
Paulo Sotero: Por um diálogo além da capacidade de Trump e Bolsonaro
A covid-19 indica a ciência como caminho para aproximação com os Estados Unidos
A cooperação internacional não é a praia de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro. Mas é campo fértil e promissor para cientistas do Brasil, dos Estados Unidos e de outros países com história de combate a epidemias trabalharem juntos para decifrar a covid-19, conter o contágio e desenvolver uma vacina para o vírus que já matou dezenas de milhares de pessoas e poderá matar milhões.
“A Índia e o Brasil têm grandes indústrias de vacina”, escreveu Donald G. McNeil Jr., do New York Times, em ampla reportagem publicada no domingo sobre o longo caminho à frente para conter o vírus. Epidemiologistas dos EUA, da Índia, da China, da França e do Reino Unido sabem que o desenvolvimento científico no Brasil nasceu do combate a epidemias e endemias, como escreveu Simon Schwartzman em Um Espaço para a Ciência, uma história da formação da comunidade científica no Brasil, fundada por médicos pioneiros, como Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Carlos Chagas e Adolfo Lutz, na virada do século passado. Vem do legado desses gigantes a boa tradição de nossa medicina sanitária, reconhecida mundo afora e que permitiu ao País, em tempos recentes, enfrentar com sucesso as epidemias de HIV-aids, Sars e zika.
Não é somente na ciência que o Brasil pode e deve agir em interesse próprio e da humanidade e contribuir para conter o flagelo da covid-19. Arthur Silverstein, um historiador da medicina da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, sugeriu, na mesma reportagem do New York Times, que o governo americano assuma o controle e esterilize grandes cubas de fermentação de cervejarias e alambiques de produção de bebidas destiladas e os ponha a serviço da produção em grande escala de uma vacina segura, quando esta for descoberta. Eis aí um convite à Ambev e aos grandes fabricantes de cachaça para redirecionar parte de sua capacidade de produção para o bom combate à pandemia.
A cooperação brasileira pode ir além, se governantes como Trump e Bolsonaro deixarem de usar o flagelo para fazer demagogia com coisa séria e ouvirem o conselho de cientistas como a médica Luciana Borio. Nascida no Rio de Janeiro, Luciana Borio trabalhou na unidade de prevenção de pandemias criada no Conselho de Segurança da Casa Branca na administração do republicano George W. Bush, fortalecida pelo democrata Barack Obama e esvaziada em 2018, sabe-se lá por quê, por Trump. Formada pela Escola de Medicina da Universidade George Washington, na capital americana, a médica atuou como cientista chefe da Food and Drug Administration e não tem paciência para conversas sobre as virtudes cantadas por Trump e seu seguidor brasileiro do remédio antimalária cloroquina e do antibiótico azitromicina no tratamento dos males causados pela covid-19. “É um completo absurdo”, afirmou ela ao Times. “Disse à minha família que, se eu pegar a covid, não me deem esse coquetel.”
O potencial de colaboração na luta contra a pandemia entre cientistas, empresários e formuladores de políticas públicas nos dois países indica o caminho de relações produtivas que o Brasil e os Estados Unidos podem construir para além da retórica diplomática vazia. Foi o que aconselhou Thomas A. Shannon em palestra no Wilson Center, no final de 2013, depois de servir como embaixador dos EUA em Brasília. O diplomata afirmou que a conectividade crescente entre os dois países em vários campos tornaria suas sociedades os vetores principais do relacionamento entre os dois países e mais importante do que as ações dos governos.
Hoje, os governos Trump e Bolsonaro, populistas ultraconservadores adeptos da estratégia do caos, não apenas não ajudam, como atrapalham. Isso foi ilustrado há poucas semanas pelo injustificável desvio, por ordem da Casa Branca, de respiradores e materiais de proteção hospitalar comprados na China pelo governo da Bahia, durante uma escala em Miami. De nada adiantou a suposta proximidade entre Trump e Bolsonaro ante a necessidade premente do líder americano de lidar com as consequências da resposta tardia e errática que deu à pandemia, interceptando em aeroportos dos EUA voos carregados de mercadoria médica destinados não apenas ao Brasil, mas também ao Canadá, à Alemanha e à Espanha.
A perda de popularidade de Trump e suas chances minguantes de reeleição em novembro, que o levam a atribuir a adversários internos e externos a culpa pela calamidade econômica e social que o flagelo do vírus provoca nos EUA, promete novas frustrações entre Washington e Brasília. O presidente brasileiro é visto com repugnância por assessores para a América Latina da campanha do ex-vice-presidente e ex-senador Joseph Biden, democrata que terá a incumbência de tirar Trump da Casa Branca. Essa é mais uma razão para que os interessados no Brasil no aprofundamento de um diálogo consequente com os Estados Unidos torçam por Biden e apostem em ações que envolvam uma maior cooperação entre cientistas, educadores, empresários e líderes de organizações sociais e culturais dos dois países.
* JORNALISTA, É PESQUISADOR SÊNIOR DO BRAZIL INSTITUTE NO WOODROW WILSON CENTER, EM WASHINGTON
Hernan Chaimovich: As carreatas da morte
O Brasil é, aparentemente, o único país do mundo onde carreatas que podem ser consideradas verdadeiras manifestações a favor da pandemia COVID-19 se realizam com certa frequência em várias cidades, sem que o Estado tome qualquer providência.
Poder-se-ia pensar que a única ação possível para os que induzem, organizam e participam dessas atividades, que, além de irem contra qualquer racionalidade, são um chamado à morte, seria a recomendação de tratamento ou de internação psiquiátrica. Além de serem medidas de difícil implementação, existem ações bem mais concretas, legítimas e legais, que, por serem de implementação bem mais realista, devem ser praticadas com urgência, sob o risco de a loucura imperar em nosso país.
Para começar, transcrevo aqui um tweet de um médico que eu, por não estar autorizado, não posso identificar, mas com o qual me identifico “Eu trabalho em dois dos hospitais pelos quais passou a carreata da morte em São Paulo hoje. Saí de um deles as 7h a caminho de outro plantão. Na frente da gente, nas UTI´s gente lutando para não morrer de COVID. Do lado de fora “gente” querendo ver mais gente morrer. É desesperador”. Simultaneamente, compartilho uma notícia recente: “Presidente foi em comitiva ao Setor Militar Urbano, e participa de ato contra a quarentena e pró-intervenção militar em frente ao Quartel Geral do Exército, em Brasília” (@reporterenato).
Perante esta situação, nada mais eficiente do que sugerir algumas ações que dizem respeito às pessoas e às Instituições.
Começo pelo indutor mor, Jair Messias Bolsonaro. Um dos pedidos de afastamento do Presidente da República foi encaminhado à Procuradoria Geral da República pelo Ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, onde cita diversas condutas de Bolsonaro que colocam em risco o país em relação à epidemia de COVID-19. Esse pedido, se a PGR aceitar, segue para o STF, que, se aceitar, pede autorização à Câmara para dar andamento. Como se pode perceber, esse procedimento é lento, e, no meio da pandemia, se requer ação rápida e processo pode não afetar tão cedo as carreatas da morte.
Outras ações que podem ser tomadas contra organizadores e participantes das carreatas estão em Leis e Decretos. O que chamo de “caravanas pró-pandemia” acontecem em cidades onde decretos estaduais e municipais impõem distanciamento social e uso de máscaras protetoras em público. Assim, burlar os Decretos estaduais de quarentena e de isolamento social deveria resultar em ação policial direta, pois o direito de ir e vir não colide com determinações legais que, por causa de uma emergência sanitária, limitam esses direitos.
Estas carreatas, com seus carros de som, fazem questão de se deter frente a hospitais e clínicas, afrontando as leis de Contravenções Penais além de diversas outras leis e decretos estaduais e municipais. A produção de sons acima de 50 dB no entorno de hospitais é passível de pena de reclusão. É evidente, pois, que existem condições onde o Estado está legalmente obrigado a coibir com força policial carreatas como a caravana a favor da pandemia.
Ora, se o Estado permanece inerte e as carreatas continuam, é dever dos indivíduos e das associações clamar contra o Estado na justiça. Desde os níveis mais básicos até o foro maior, o Supremo Tribunal Federal, se instâncias anteriores não forem efetivas, é imperioso recorrer contra um Estado que permite caravanas da morte. Por último, se nenhuma das instâncias nacionais aceitar que estas manifestações soturnas deveriam ser banidas, restam os foros internacionais que protegem os direitos humanos. Afinal de contas, dentro do rol dos diretos humanos, a vida é o direito mais fundamental.
Hernan Chaimovich, Professor Emérito do Instituto de Química da USP
Fernando Gabeira: Viver na incerteza
O que nos favorece é a grande capacidade humana de se adaptar
Simone de Beauvoir escreveu no célebre livro “O segundo sexo” que era difícil se sentir uma princesa, em tempos de menstruação, com um incômodo pano entre as pernas.
É difícil se sentir o rei da cocada preta fechado em casa, com um medo de uma invisível partícula proteica que mata as pessoas e devasta a economia planetária. Sobretudo, é difícil sentir-se dono de grandes certezas, num mundo em que a normalidade foi para o espaço.
Edgard Morin merece admiração por isso. É quase centenário, e seu pensamento ao longo dos anos evoluiu para enfatizar a complexidade e a incerteza.
Apesar de ter escrito muitas vezes sobre segurança biológica e ter detectado o impacto desse vírus nos seus primórdios, confesso que, como quase todos os outros, o subestimei.
Ao sair de Fernando de Noronha, em 16 de março, ainda tinha esperanças de seguir viajando pelo Brasil, na presunção de que o vírus não chegaria aos lugares onde vou.
De fato, tenho tido contato permanente com pontos remotos do Brasil e, à exceção de Fernando de Noronha e grandes cidades, o vírus ainda não chegou lá.
Esqueci-me das estradas, dos postos de gasolina, dos restaurantes e hotéis no caminho, dos perigosos aeroportos e aviões. E esqueci que estava bem próximo dos 80 anos.
Interessante nesse mundo de grandes incertezas como as pequenas certezas nos mobilizam. As redes estão cheias de conselhos sobre o que ler, como se exercitar, rezar, o que comer, a que filmes assistir, como organizar toda a rotina.
Essa enxurrada de conselhos às vezes confunde. Por isso, achei engraçado um áudio que caiu na rede. Era de um homem que lamentava com a amiga: todos dizem que tenho de lavar as mãos, lavar as mãos, não se esqueça de lavar as mãos, mas eu queria também tomar um banho, será que pode?
Da mesma forma, achei interessante o desabafo de uma jovem diante de um certo otimismo exagerado, do gênero “o coronavírus veio para melhorar nossos sentimentos, aumentar a solidariedade, mudar o mundo”.
O vírus veio para nos destruir e devastar a economia. Essa é a verdade inicial. Ele não é revolucionário. Tudo vai depender de nossas escolhas daqui para a frente.
Sem dúvida, bons sentimentos afloraram, milhares de profissionais de saúde arriscam suas vidas pelas nossas, mas houve também quem tentasse aplicar golpe nas pessoas que precisam dos R$ 600 emergenciais, gente que hostilizou enfermeiros em transporte público, países que confiscam carregamento de máscaras ou especulam com o preço de equipamentos médicos.
O mundo continua um espaço onde bem e mal coexistem, assim como a grandeza e a miséria dos seres humanos não desapareceram com o vírus.
Certamente, ficaremos materialmente mais pobres, com movimentos mais limitados e sempre sujeitos a um novo recolhimento forçado, enquanto não aparecer uma vacina.
Certamente, sairemos mais humildes e não pronunciaremos o termo civilização com arrogância. Mas o que nos favorece é a grande capacidade humana de se adaptar às novas situações, e encontrar uma centelha de felicidade mesmo nos lugares e momentos mais difíceis.
Às vezes, à noite, depois de uma torrente de notícias pesadas, acordo sobressaltado, qualquer tosse noturna traz sempre a pergunta: será ele, o vírus, será essa a hora?
Tomei todas as precauções. Se ele entrou pelo vão da porta, se veio navegando pelo suave vento que entra pela janela, o que fazer?
Nessas horas, respira-se fundo e se reafirma o compromisso com a vida. No mais é como dizem nos países hispânicos: que vengan los toros, let it be, na linguagem dos 60.
Assim como as viagens, segundo o poeta, nos lembram que estamos sós ao nascer, o vírus pelo menos tem a utilidade de nos lembrar que somos mortais. Com ou sem ele, temos de usar bem esse tesouro: o tempo que nos resta.
Não quero adicionar mais uma avalanche de conselhos que nos soterra desde o início da crise.
Mas já parou para sentir como é bom respirar?
Eliane Cantanhêde: De caminhões a aviões
Fim de isolamento com mortos de 9 Boeings e corpos na rua? Teich e governadores não farão
O Brasil ainda não chegou na fase de “caminhões do Exército transportando corpos pelas ruas”, como advertia o agora ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, mas já exibe cenas horripilantes de caminhões frigoríficos à saída de hospitais em Manaus para evitar outras cenas horripilantes, de corpos e pacientes, lado a lado, pelos corredores. Preparem suas almas e estômagos, porque o Brasil não é uma bolha e essas imagens vão se repetir.
Por ora, alternam-se números da realidade com imagens da realidade paralela em que habitam milhões de brasileiros e o presidente da República. São mais de 2 milhões de contaminados e 150 mil mortos no mundo, mais de 33 mil e 2 mil no Brasil, mas incautos amontoam-se pelas ruas, sem máscara, cuidado e medo. “Indo para o matadouro”, definiu a jornalista Monica Waldvogel.
Na mesma reunião com Bolsonaro e ministros em que falou dos “caminhões do Exército”, Mandetta comparou: se morressem mil pessoas, seria o correspondente à queda de quatro Boeings. Logo, hoje já seriam nove. Em frente ao aeroporto de Congonhas, o Memorial 17 de julho lembra os 199 mortos do voo TAM 3054, em 2007, meses depois que um Legacy se chocou no ar com o Gol 1907, deixando 154 vítimas. Foram os dois maiores acidentes aéreos brasileiros, com grande comoção nacional. Hoje, a Covid-19 já faz 2.347 mortos e famílias destroçadas, quase 12 vezes que em cada acidente, num só mês.
E o mundo parou (dizem que nunca mais voltou a ser o mesmo) naquele 11 de Setembro em que ataques terroristas fizeram 3 mil mortos em Nova York. Pois o terrorista coronavírus agora mata mais de 2 mil por dia – por dia! As vítimas já beiram 15 mil em NY e 35 mil na maior potência do mundo. Quantas Torres Gêmeas dá isso? E que mundo sairá dessa pandemia, que não tem ideologia, religião, raça e não poupa ricos e pobres?
No Brasil, como nos EUA, o coronavírus atacou “por cima”, os que podiam passear pelo mundo, e chega aos “de baixo”, que mal têm onde morar. Se em Nova York o maior índice de mortos é de negros e pobres, o que prever quando a Covid-19 sair dos bairros elegantes e se espraiar por periferias e favelas? E já saiu, está se espraiando.
E quando a pandemia deixar seu rastro macabro na Ásia, Europa e EUA, sossegar no resto das Américas e desabar na África? Não haverá caminhões do Exército nem frigoríficos suficientes e o continente pode se transformar num imenso Guayaquil, cidade do Equador com cadáveres pelas ruas.
Chocante? Sim, a realidade é chocante e quem ainda está sonhando precisa de uma chacoalhada. E é aí que entram as dúvidas sobre o novo ministro da Saúde, Nelson Teich. Com belo currículo e respeito dos pares, ele já defendeu publicamente o isolamento como principal arma para evitar uma tragédia maior, mas assumiu o ministério prometendo “alinhamento total” com um presidente que confronta, petulantemente, o isolamento.
Na conversa decisiva, Teich deixou boa impressão nos presentes, mas dúvidas na cabeça conturbada do presidente: seria capaz de transformar os achismos presidenciais em política de saúde? O mundo inteiro está aflito com os efeitos calamitosos da pandemia nas empresas e nos empregos, mas, como médico, gestor e especialista em saúde e economia, é improvável que o novo ministro jogue fora sua biografia assumindo o “risco” de um chefe eventual.
A melhor aposta está na senha do próprio presidente para Teich na posse: “Junte eu e o Mandetta e divida por dois”. Leia-se: o governo vai relaxar o isolamento, mas o ministro não topa loucuras e planeja um pouso controlado. Mesmo que topasse, governadores, Supremo e Congresso barrariam. Oremos!
Dorrit Harazim: Agora é pra valer
Brutalidade da disseminação da Covid-19 no Brasil começa a exibir suas entranhas
‘Tudo sob controle... Não sabemos de quem”, gracejou o vice-presidente Hamilton Mourão para jornalistas à saída da cerimônia de posse do novo ministro da Saúde. Comentário ligeirinho, espirituoso e ferino de quem sabe que não pode ser demitido do cargo pelo presidente da República. Nesta toada a autofagia em Brasília avança mais rápido do que o coronavírus. Em tempos normais, os embates intestinos no poder federal talvez fossem o mais alarmante para este momento de calamidade. Em tempos anormais como agora, eles consomem o resquício de lucidez que o país algum dia achou que tinha.
Quem fica mais nu a cada dia não é apenas o chefe da nação que se pensava rei — é o Brasil cru, sem fantasia, que vai emergir da pandemia. “Vai ser a devastação de uma raça chamada favela”, alerta Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa), do Data Favela e da FHolding. Athayde nada tem de incendiário. Ele se faz ouvir por conhecer o universo do qual fala. Em recente entrevista ao “Jornal do Commercio”, elencou as duas únicas opções para os 13,5 milhões que moram em favelas no Brasil — correr ou morrer afogado. “A favela está se contaminando. É gente que não pode parar, mas que ninguém vê...”, disse, referindo-se à base da pirâmide de serviços essenciais sem a qual o resto do país em quarentena entra em colapso. Athayde preferiria não falar de convulsão social, mas adverte que “as pessoas não vão morrer de sede do lado de uma caixa d’água porque ela tem dono”. E conclui: “A pior crise é a crise de perspectiva. A favela não quer desordem, sabe que é ela quem vai tomar o tiro de borracha. Mas ela perde a capacidade de sonhar. Por não ter mais nada, vai fazer o quê?”
Uma amostra do horizonte social se estreitando pode ser visto na tumultuada disponibilização do auxílio emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais mais vulneráveis. Pela previsão inicial do governo, o total de beneficiados alcançaria 51,4 milhões, número já corrigido para mais de 70 milhões, ou 40% da força de trabalho nacional em idade adulta. É tentacular o tamanho desse Brasil carente de rede de amparo que agora sai da invisibilidade e se posta em filas de até 10 horas em frente a agências da Caixa Econômica Federal. É todo um povo fora dos cadastros do governo, ou cujos dados são precários, irregulares, e que sempre viveu na berlinda da cidadania. Uma parcela de povo que tinha mais o que fazer do que regularizar sua pendência eleitoral. Voto obrigatório também dá nisso.
A operação de fazer chegar R$ 600 a esse mundão invisível é das mais complexas, sem dúvida. Como supor que ela seria alcançável apenas via internet, realizável através do preenchimento de um aplicativo de cadastramento? Na aflição de perder a vez, quem ficou horas tentando contornar as dificuldades do sistema tratou de se garantir correndo inutilmente para agências físicas da Caixa e da Receita, formando muralhas humanas hospitaleiras ao vírus. Quem sempre recebeu migalhas confia pouco em promessas.
Mais tarde do que cedo, o fluxo emergencial haverá de se regularizar, mas até lá a Covid-19, nascida na China mais de quatro meses atrás e aportada no Brasil em fevereiro, terá feito outras tantas vítimas. Que haverão de se somar ao passivo social da era anterior ao coronavírus — entre outros, uma fila de espera no INSS de 1,6 milhão de pedidos de benefícios aguardando análise.
O temido colapso das redes públicas de saúde agora bate com impiedade à porta do Brasil. Metade dos leitos de UTI do país, ou quase a metade, está instalada em hospitais privados. Considerando-se que 75% dos brasileiros dependem exclusivamente do SUS, e que é esta faixa da população que começa a ser ceifada pelo vírus, a tragédia anunciada se instala pra valer.
A história já comprovou que ser humano (do verbo ser, não do substantivo “ser humano”) é uma atividade coletiva. Veremos o quanto. A partir desta semana a brutalidade da disseminação da Covid-19 no Brasil começa a exibir suas entranhas. Com a nau em Brasília em modo disfuncional.
Hamilton Garcia: A covid-19, os interesses e a política
Faz um mês estamos imersos em intensa discussão sobre a COVID-19, sob a ótica dos infectologistas e epidemiologistas, o que foi importantíssimo para aprendermos como lidar com a moléstia e sua propagação – não obstante as inevitáveis tolices, como a da ineficácia das máscaras para a proteção individual e coletiva. Aprendida a lição, cuja divulgação não pode cessar, é chegada a hora de abrirmos o leque da discussão sobre a pandemia, sobretudo em relação a seus efeitos de médio e longo-prazos.
Tornada pública em dezembro de 2019 pelas autoridades chinesas – depois de três semanas de abafamento por meio de prisões e censura[i] –, a epidemia está provocando, além de muitas mortes, um colapso nas economias, em escala mundial, cujos desdobramentos políticos ainda são incertos. O consenso é que sérias consequências sociais advirão do esforço de contenção da doença, embora se esteja longe de qualquer convergência programática de como lidar com o problema.
A crença ingênua de que a emergência faria cessar a disputa entre indivíduos e povos pela supremacia não resiste à simples observação da vida cotidiana. Ao contrário, o medo e as incertezas se constituem em ingredientes ainda mais picantes em meio aos dilemas e desafios políticos e econômicos que o mundo e o Brasil já vinham enfrentando, onde as fraturas entre sociedade e Estado apresentam cenários potencialmente explosivos de solução.
No caso brasileiro, o Governo Bolsonaro saiu em desvantagem ao menosprezar os sinais vindos do exterior e tentar minimizar os riscos e custos locais da epidemia – mesmo sendo observador privilegiado do erro dos governos europeus, enredados em querelas ideológicas sobre a globalização –, deixando seu Ministério sem rumo e o terreno aberto aos opositores acantonados nos Governos estaduais e no Congresso.
Já em fevereiro, a evolução da COVID-19 no Irã e na Itália chamavam atenção pelo crescimento rápido dos casos e mortes, e, embora o intercâmbio turístico entre Brasil e Itália fosse intenso, o Governo, por meio do Ministério da Saúde, se limitou a alterar a definição de casos suspeitos, incluindo pacientes provenientes destes países – no mesmo dia, o primeiro caso, importado da Itália, foi identificado em São Paulo[ii] –, deixando abertos portos e aeroportos sem qualquer alerta ou triagem sanitária, possibilitando a penetração livre do vírus no país.
A medida capital para frear o início da doença, em todos os países depois da China – e tempo, nesses casos, é vida, como se viu no bem sucedido caso alemão[iii] –, seria o confinamento temporário dos viajantes e/ou o fechamentos das fronteiras, o que, àquela altura, parecia inconcebível pelo perfil do público afetado (turistas e negociantes) e pelas políticas abusivas das empresas aéreas e hoteleiras, resistentes ao cancelamento/adiamento das viagens. A resistência também vinha dos devotos da globalização, que tachavam a medida de xenófoba e inócua, como fez o comentarista Demétrio Magnoli, na GloboNews, às vésperas do fechamento das fronteiras europeias, críticando os líderes da extrema-direita europeia nos seguintes termos: “o vírus não tem nação”.
As névoas ideológicas não cessariam, desde então, de prejudicar a discussão sobre o combate à pandemia e Bolsonaro não deixaria de se contrapor à torrente dominante (politicamente correta) com sua própria crença (politicamente incorreta), embora ambas, como dizia Marx&Engels[iv] há 174 anos, "de modo algum combatem o mundo real lutando contra a 'fraseologia' do mundo".
Os erros estratégicos do Governo e o desprezo do Presidente pela “gripezinha”, todavia, são apenas parte da explicação do problema. Em boa medida, ele e outros líderes mundiais se viram diante de poderosos interesses econômicos e de classe que os constrangeram no enfrentamento do problema ainda em fevereiro, quando os boletins epidemiológicos[v] já registravam sinais do poder de disseminação do vírus pelo mundo. China excetuada, dos 37 casos confirmados, no dia 04/02, em 11 países, sem óbitos, pulava-se para 216 casos confirmados, no dia 12/02, em 24 países, com um óbito, saltando-se para 1.200 casos confirmados, no dia 21/02, em 26 países, com oito óbitos.
Os interesses em questão giravam em torno das cadeias econômicas globalizadas, em particular o turismo que representa 10,4% do PIB mundial (US$8,8 trilhões) e emprega 319 milhões de pessoas, tendo os EUA a UE como principais destinos. No Brasil, embora menores, os números são igualmente significativos: 8,1% do PIB (US$152,5 bilhões) e 6,9 milhões de empregados[vi]. Tais interesses, contrários às medidas restritivas ao fluxo de viajantes, tiveram no Prefeito de Milão (Giuseppe Sala), do Partido Democrático, seu momento emblemático com sua malfadada campanha “Milão não para”, que chafurdou o Norte da Itália no caos hospitalar, para seus padrões.
O problema econômico seria uma explicação suficiente para o titubeio da maioria dos governos pelo mundo, mas deve-se acrescentar outra, não menos importante, de cunho ideológico e mesmo afetivo, que fez governos progressistas europeus, em guerra com a extrema-direita, verem o vírus como um estorvo às suas causas liberais, ao mesmo tempo que as classes altas faziam vista grossa às ameaças ao seu estilo de vida, baseado no consumo de luxo, da qual faz parte o turismo internacional. Neste quesito, a China se saiu bem melhor, não titubeando em fechar suas fronteiras assim que deixou de ser exportadora e se tornou importadora de casos.
Embaraçados por esses e outros constrangimentos, e com a proliferação da doença em meados de março, restou aos governantes correr atrás do prejuízo, inclusive no Brasil, impondo a quarentena horizontal como medida de emergência para por freio à avalanche prenunciada, sem planejamento ou medidas preparatórias para o fechamento de escolas, universidades, comércios, etc., tudo feito de supetão numa sexta-feira treze.
O problema pôde ser minorado, até aqui, por nossa condição de economia periférica, relativamente fechada, onde a população se distribui em vasto território por meio de precária rede de transporte, e cujas diferenças de classe produzem distanciamento social permanente sem a necessidade de decretos governamentais, para não falarmos na limitação da renda e das condições climáticas – a epidemia, aqui, teve início no verão –, fatores inicialmente inibidores do ritmo da proliferação viral, embora também potencializadores do tempo de sua duração.
O saldo final dos fatores, entre outros aqui não abordados (demográficos, comportamentais, políticos, etc.), aponta para um impacto da doença, até aqui, inferior aos padrões internacionais, em termos de mortes e hospitalizados.
Todavia, os mesmos fatores também indicam a probabilidade de um hiato entre as curvas, fazendo com que não só tenhamos curvas epidemiológicas mais socialmente segmentadas (classes altas, médias e baixas), como intervalos maiores entre elas, alongando a tensão temporal da crise e abrindo espaço para o esgotamento financeiro e psicológico dos setores mais vulneráveis, que entraram na quarentena em março quando só os mais ricos estavam sendo afetados, o que já impactou o isolamento/distanciamento social no momento em que ele é mais importante para os pobres.
Caso tal hipótese esteja correta, a quarentena precoce das classes populares, nas periferias urbanas e no interior, deverá entrar no rol dos erros estratégicos dos epidemiologistas, tanto pela ausência de modelos que levem em conta nossas especificidades, como pela subestimação de medidas cruciais como as barreiras sanitárias intermunicipais – que vêm se constituindo em freio importante à interiorização do vírus, onde foi implementada – e o próprio impacto da informação sobre os menos escolarizados.
Infelizmente, a vida é assim: aprendemos aos trancos e barrancos, muitas vezes a um custo acima do razoável se apenas a razão contasse – razão que, infelizmente, também foi infectada pelo vírus do sectarismo partidário. Mas, se pelo menos, ao final, tivermos aprendido a enfrentar a atual crise levando em conta nossos problemas concretos – em meio às inevitáveis narrativas ideológicas e inexoráveis rinhas político-corporativas –, ouvindo nossas inteligências autênticas, em diálogo com o mundo, então talvez tenhamos forjado a chave para o enfrentamento de toda nossa imensa gama de problemas que, no passado, nos esmeramos por esconder debaixo do tapete.
Notas
[i] Vide Crusoé, in. <https://crusoe.com.br/edicoes/101/a-verdade-abafada/>.
[ii] Portal PEBMED, In. <https://pebmed.com.br/coronavirus-tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-a-nova-pandemia/>.
[iii] “A Alemanha reconheceu seu surto muito cedo. Duas ou três semanas antes do que alguns países vizinhos”, disse o virologista Christian Drosten; vide El Pais de 21/0320, Baixa letalidade do coronavírus na Alemanha: três hipóteses sobre o fenômeno; in. <https://brasil.elpais.com/brasil/2020/03/20/ciencia/1584729408_422864.html>, em 13/04/20.
[iv] A Ideologia Alemã – crítica da filosofia alemã mais recente nos seus representantes L.Feuerbach, B.Bauer e M.Stirner e do Socialismo Alemão nos seus diferentes profetas; Ed. Centauro/SP-2006, p.14.
[v] Do Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública para o Novo Coronavírus, vide Plataforma Integrada de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Boletins 1-3, in. <https://www.saude.gov.br/boletins-epidemiologicos>, em 13/04/20.
[vi] Vide Folha de Londrina, in. <https://www.folhadelondrina.com.br/economia/turismo-movimenta-roda-da-economia-no-brasil-e-no-mundo-1028761.html>
Rogério L. Furquim Werneck: O que mais falta é lucidez
É preciso assegurar que a colossal expansão de dispêndio público que terá lugar em 2020 seja reversível
É hora de reler os parágrafos iniciais do famoso ensaio “How to Pay for the War”, sobre o financiamento do esforço de guerra britânico, escrito por John Maynard Keynes, em fevereiro de 1940, para aprimorar propostas preliminares que já tinha feito em dois artigos no “Times”, em novembro de 1939, logo no início da guerra.
“Não é fácil, para uma democracia, se preparar para a guerra. Não é da nossa índole dar ouvidos a analistas e cassandras. Nosso forte é saber improvisar. Mas é hora de dar mais atenção ao que andam dizendo. Ninguém sabe quanto tempo isso vai durar. Na área militar, há convicção de que o mais seguro, por ora, é nos prepararmos para um longo enfrentamento. É inadmissível que, na área econômica do governo, continuem a se pautar por perspectiva distinta. O que nos falta, no front econômico, é lucidez e coragem. Não recursos materiais.”
“Coragem acabará surgindo se, da fadiga e do tumulto da guerra, as lideranças políticas conseguirem extrair a lucidez requerida para perceber o que está ocorrendo e conseguir explicar ao público o que se faz necessário. E aí propor um plano socialmente justo, que saiba fazer desse momento de tamanho sacrifício, não uma desculpa para adiar reformas que terão de ser feitas, mas uma oportunidade para ir além do que até agora conseguimos, na redução das desigualdades.”
“Mais lucidez, portanto, é o que mais precisamos. E isso não é fácil. Porque, como os muitos aspectos do problema econômico a enfrentar estão inter-relacionados, nada pode ser resolvido isoladamente. Cada uso dos recursos disponíveis se faz à custa de um uso alternativo. E, uma vez decidido quanto poderá ficar disponível para consumo civil, ainda restará a mais intrincada de todas as questões, que é determinar a forma mais sábia de distribuir o consumo.”
O que é notável, passados 80 anos, em meio aos enormes desafios econômicos e sociais impostos pela pandemia, é quão atual continua sendo a preocupação central externada por Keynes nesses três parágrafos. O que ele mais temia, em 1940, é que faltasse a seu país a lucidez necessária para equacionar a penosa mobilização de recursos que uma guerra prolongada passara a exigir.
O que, no Brasil de hoje, mais se teme, no front econômico, é que, na tumultuada mobilização de recursos públicos que o combate à pandemia e a atenuação de seus desdobramentos socioeconômicos vêm exigindo, o país se perca nos excessos do imediatismo. E bote a perder suas possibilidades de enfrentar com sucesso os desafios com que terá de voltar a lidar, quando a Covid-19 tiver ficado para trás.
Não é o momento de medir esforços no combate à epidemia e a seus complexos efeitos colaterais. Mas é preciso assegurar que a colossal expansão de dispêndio público que terá lugar em 2020 seja reversível. E que tal expansão não seja perdulariamente amplificada, na esteira de pressões indefensáveis dos aproveitadores de sempre, que agora tentam fazer bom uso da consternação do país com a pandemia, para orquestrar nova e devastadora pilhagem do Tesouro.
É preciso, sobretudo, que as lideranças mais lúcidas do Congresso saibam separar o joio do trigo e conter a voracidade de governadores e prefeitos, que vêm tentando se aproveitar do tumulto para repassar aos contribuintes federais parte substancial da conta acumulada do descontrole fiscal dos governos subnacionais.
É preciso ter em mente que, passada a epidemia, o país estará no fundo de uma recessão de profundidade ainda não sabida, com um exército de desempregados muito maior que os 12 milhões de desocupados do início deste ano. E que, quando tivermos de voltar a encarar a difícil agenda da retomada do crescimento, o desafio da consolidação fiscal terá assumido proporções que, há três meses, pareceriam inimagináveis.
Na penosa construção de uma sociedade mais próspera e mais equânime, precisamos estar preparados para um longo embate, em muitas frentes, que mal terá começado quando a pandemia for superada. Não é hora de complacência com assaltos ao Tesouro.
*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
O Globo: Número de infectados pelo coronavírus é quinze vezes maior, aponta estudo
Estimativa de cientistas da USP e UNB apontam que o Brasil tem 313 mil casos, em vez de 23 mil anunciados pelo Ministério da Saúde
Ana Lucia Azevedo e Roberto Maltchik, O Globo
RIO - O número de casos de infecção pelo novo coronavírus no Brasil supera 313 mil pessoas, segundo uma nova análise de modelagem numérica da Covid-19 — o último boletim do Ministério da Saúde fala em 23.430 casos confirmados. A estimativa foi apresentada ontem pelo portal Covid-19 Brasil, que reúne cientistas e estudantes da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Brasília (UnB), entre outros centros de pesquisa do país. Para a data de 11 de abril, a modelagem estimou haver 313.288 infectados, número mais de 15 vezes maior que o oficial naquela data, de 20.727.
O Brasil é um dos países que menos testam no mundo, embora seja o 14° mais afetado. Se o número de casos subnotificados projetado fosse considerado, seria o segundo do mundo, atrás somente dos EUA, que testam 8.866 pessoas por milhão, enquanto o Brasil faz 296 testes por milhão de habitantes.
Medidas mais rígidas
O grupo, que tem acertado as projeções sobre a doença desde o início da epidemia, também projeta as estimativas de ocupação dos leitos de emergência e de UTIs nos estados. A primeira projeção detalhada, para o Distrito Federal, traça três cenários. Em todos, a situação é dramática.
— O modelo que trabalhamos considera que para os três cenários todos os leitos estão disponíveis no começo da epidemia. Mas, como segundo o próprio Ministério da Saúde informa, estamos em média com uma taxa de ocupação de 75%, e essas previsões podem ser mais dramáticas — observa o especialista em modelagem computacional Domingos Alves, integrante do grupo e líder do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP).
O caos na rede de saúde em São Paulo poderá acontecer ainda mais cedo do que nos demais estados. A análise detalhada não foi realizada ainda para São Paulo, mas, devido ao número de infectados ser muito maior do que o notificado e ao fato de a população ter reduzido o engajamento às medidas de distanciamento social. Alves diz que o cenário é muito negativo.
— Se não houver medidas de distanciamento mais restritivas e o isolamento for reduzido, a cidade de São Paulo poderá ver o colapso de sua rede hospitalar já na próxima segunda-feira. Em Manaus, a rede já colapsou, a taxa de hospitalização está muito acima da capacidade de atendimento — afirma Alves.
O Maranhão, a despeito do número pequeno de casos notificados, é o estado que tem a maior discrepância com as projeções de casos subnotificados, em torno de 5.177,91%, segundo o estudo. No Rio de Janeiro, essa diferença foi estimada em 1.427,5%. Em São Paulo, 1.496,31%. E no Amazonas, 3.745,62%.
Para estimar o número de casos subnotificados de infecção por coronavírus no Brasil, os pesquisadores fizeram uma modelagem reversa para superar a colossal falta de dados sobre a doença no país devido à falta de testagem em massa. Os cientistas usaram como base de cálculo o número de mortes notificadas. Embora estas também sejam subnotificadas, é o indicador mais consolidado no país, explicou o cientista Rodrigo Gaete. Eles aplicaram a taxa de letalidade da Coreia do Sul e ajustaram os números à pirâmide etária do Brasil. A Coreia do Sul foi escolhida porque o país é um dos poucos com dados consolidados sobre testagem em massa desde os primeiros casos.
A modelagem numérica empregou ainda um ajuste no cálculo da letalidade proposto por cientistas chineses na revista Lancet e considerado o mais acurado. O ajuste foi feito para levar em conta o período entre o registro do óbito e a confirmação de caso. Se considerou para cálculo da taxa de letalidade a data em que a pessoa teria adoecido e não a em que morreu.
Com isso, para o cálculo, a data foi fixada em dez dias antes do registro, uma vez que os testes no Brasil têm sido realizados já em processo de agravamento da doença e não nos sintomas iniciais. No fim, a taxa de mortalidade real para o Brasil seria de 1,08%, muito menor que a de 5,7% registrada oficialmente.
— O número de mortos ainda assim é enorme, e deve ser ainda maior, porque o número real de infectados é muito grande — salienta Gaete.
Considerando o número de 1.124 óbitos em 11 de abril e o valor ajustado estimado de população infectada, de dez dias antes, naquela data, dia 1° de abril, haveria 104.368 brasileiros com coronavírus, em vez dos 6.836 casos notificados. Isso dá um percentual de 93,45% de subnotificação.
‘Testes são essenciais’
Gaete acredita que Manaus vive o caos agora porque olhou para os números errados no início da epidemia.
— Quando se pensava que tinha cerca de mil pessoas com o coronavírus, na verdade, já existiam 40 mil. Por isso, testes são essenciais, e o Brasil precisa desesperadamente fazer isolamento social se quiser evitar o colapso da rede de saúde e o caos — destaca o pesquisador.
Alves diz que as medidas de distanciamento social tomadas por Rio de Janeiro e São Paulo ajudaram a evitar que o pico da doença acontecesse em abril e a ganhar algum tempo, mas não o suficiente para os estados se prepararem. Ele observa que, conforme afirmou o ministro Luiz Henrique Mandetta ao Fantástico, anteontem, o pico dos casos deve acontecer em maio e junho, e haverá uma explosão de mortes, se o número de infecções continuar a crescer devido à redução do isolamento social daqueles que podem ficar em casa:
— Teremos em muitas cidades um cenário como o de Guaiaquil, no Equador, com pessoas mortas em casa e corpos nas ruas, porque os hospitais estarão lotados.
Hélio Schwartsman: O êxito alemão
Junto com Coreia do Sul, país já passou pelo primeiro pico epidêmico
Qual o segredo do sucesso da Alemanha no manejo da Covid-19? São vários. O mais óbvio deles é matemático. Por testar muito mais que outros países, os números teutônicos estão um pouco menos distantes dos reais.
Se você só testar cadáveres, terá 100% de letalidade; se testar apenas casos graves, essa cifra cai um pouco, chegando a índices como o italiano (12%), o britânico e o espanhol (10%). Mas, se testar de forma mais indiscriminada (o que também facilita identificar precocemente as cadeias de transmissão e desfazê-las), as taxas caem para menos de 2%, como é o caso da Alemanha e da Coreia do Sul, dois países duramente atingidos e que já passaram pelo primeiro pico epidêmico.
Isso, porém, é só parte da história. A Alemanha não se sai melhor apenas por apresentar números menos distorcidos. Ela também conseguiu achatar a curva exponencial, evitando sobrecarga sobre seu sistema de saúde, que já era bom e foi reforçado. Médicos alemães, ao contrário de italianos, não tiveram de decidir entre quem iria ou não para o ventilador, o que significa que salvaram proporcionalmente mais pacientes críticos que os colegas da Lombardia.
Um aspecto menos comentado do sucesso dos alemães é que, mesmo em condições normais, eles já vivem em maior isolamento social que os italianos (e ao menos outros seis povos europeus). Num interessante trabalho de 2008, com o objetivo de reunir dados comportamentais para a modelagem de infecções respiratórias, Joël Mossong e colaboradores monitoraram os contatos sociais de 7.290 participantes de oito países europeus. Enquanto os italianos apresentaram média de 19,77 interações diárias (a maior das oito nações), os alemães mantiveram apenas 7,95 (a menor).
Pode haver algo de verdade no clichê de que povos latinos são calorosos e efusivos enquanto os germânicos são frios e distantes. Não é uma constatação de muito bom augúrio para nós brasileiros.
Guilherme Amado: A democracia em quarentena
Há justificativa neste momento para vetar aglomerações, fechar igrejas e limitar o direito de ir e vir. Mas a vigilância é fundamental
Direito de livre assembleia proibido, ir e vir restrito, liberdade de culto com limitações. O coronavírus parece também ter obrigado a democracia a entrar em quarentena, com o mundo afundado em um misto de medidas necessárias para vencer a pandemia, mas também tentativas de líderes autoritários de se aproveitarem dela para ganhar mais poder e populistas que, usando a recorrente tática de vender soluções fáceis para problemas complexos, mais atrapalham do que ajudam seus países no combate à doença.
Scholars especializados no tema têm acompanhado com preocupação o impacto que o enfrentamento ao vírus pode ter na democracia de diversos países, muitos já convivendo com retrocessos nos últimos anos. Desde 2006, mais países veem suas democracias erodindo do que outros as têm fortalecido. De acordo com a Freedom House, organização sem fins lucrativos baseada nos Estados Unidos e que monitora os avanços e recuos das democracias de todo o mundo, 64 países se tornaram menos democráticos e somente 37 se fortaleceram em 2019. A perspectiva para este ano é que esse número seja ainda maior, por causa da pandemia.
Mas, onde muitos só veem janelas para o autoritarismo ganhar espaço, há quem aposte também na oportunidade que a Covid-19 está dando para as populações perceberem quão perigoso é entregar o comando do país a um populista.
Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán agora pode governar por decretos. Em Israel, o Parlamento e tribunais foram fechados, e Benjamin Netanyahu conseguiu adiar seu julgamento por corrupção por dois meses. Na Sérvia e na Turquia, veículos pró-regime deram voz a falsos especialistas que defenderam que suas populações são geneticamente protegidas do vírus. No México, López Obrador abriu mão da máscara e do álcool em gel e se apegou a imagens religiosas, sugerindo que os governados fizessem o mesmo, e demorou a admitir a gravidade do problema. No vizinho Estados Unidos, enquanto a governista Fox News culpava o Partido Democrata por espalhar medo, Donald Trump também passou por diversas fases, da banalização da doença à tentativa de criar o rótulo de “vírus chinês”, desaguando agora numa guerra à Organização Mundial da Saúde (OMS).
Por aqui, Jair Bolsonaro embarcou forte na onda negacionista. Perdeu três semanas batendo na tecla da “gripezinha”, pregando contra o isolamento, enquanto um de seus filhos e sua tropa digital escolhiam a China como bode expiatório. Não deu certo. O Datafolha apontou que 76% da população concorda com a quarentena como está sendo feita hoje, e houve um esforço diplomático de diferentes instituições para apaziguar as relações com a China. Diante do fracasso das duas tentativas iniciais, Bolsonaro apostou em badalar a cloroquina e a hidroxicloroquina como as soluções para a Covid-19, novamente à revelia da comunidade científica mundial e de seu próprio ministro da Saúde. E, ao menos para sua popularidade, deu certo.
Depois de dias enfraquecido nas redes sociais, começou uma reação. Segundo medição da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas, antes de o presidente e seus apoiadores concentrarem esforços na promoção da cloroquina e na associação da imagem de Bolsonaro a ela, a base bolsonarista representava apenas 12,3% das interações em torno do coronavírus no Twitter. A oposição tinha 59,6%. Ainda que possa ser uma vantagem momentânea, colou o discurso do “remédio de Bolsonaro”, maneira pela qual a militância passou a chamar os dois medicamentos. De acordo com medição da consultoria Bites, também na análise do sentimento dos internautas nas redes sociais, até às 21 horas da quarta-feira 8, eram 249 mil menções associando a cloroquina a Bolsonaro, pouco menos da metade de todos os tuítes de brasileiros sobre o coronavírus naquele dia. Os bolsonaristas saíram-se bem na ação para criar a percepção de que o presidente estava certo desde o começo, quando defendeu a cloroquina no combate à Covid-19 — o que, ressalte-se, ainda não é comprovado pela ciência.
Medidas severas para combater a pandemia, ainda que infrinjam temporariamente liberdades e direitos, não são por si só antidemocráticas.
Na Áustria, o ministro da Saúde tentou editar um decreto de Páscoa que autorizaria a polícia a entrar nas casas para checar se as famílias estavam se reunindo em almoços do feriado religioso. Uma medida como essa, um recurso extremo, não faria sentido sem o consentimento do Parlamento. Não à toa, o Ministério da Saúde austríaco desistiu após protestos da oposição e da sociedade civil.
No Brasil, algo desse tipo foi a tentativa de Bolsonaro de mudar a Lei de Acesso à Informação, praticamente suspendendo-a durante a pandemia, o que não só dificultaria a capacidade da sociedade de fiscalizar o poder público, como restringiria o direito à informação, fundamental para que a população esteja preparada para se prevenir e enfrentar a doença. O contrapeso dos outros Poderes se fez necessário. O Supremo Tribunal Federal suspendeu o efeito imediato da Medida Provisória que mudara a lei e o Congresso provavelmente alterará seu teor nas próximas semanas.
Autor de O povo contra a democracia, uma das bíblias para entender a ascensão do populismo autocrata, o alemão Yascha Mounk, professor em Harvard, é o âncora semanal de um dos mais interessantes podcasts para quem gosta de debates aprofundados sobre política. Em The good fight, disponível gratuitamente no site de Mounk, ele conversa com professores, jornalistas, diplomatas e outros profissionais envolvidos no debate sobre os rumos da democracia mundo afora. No último episódio, Mounk recebeu Daniel Ziblatt, também professor de Harvard, coautor de outro livro essencial para entender o populismo de direita atual, Como as democracias morrem. Os dois avaliam na conversa que a pandemia poderá atrapalhar os autocratas populistas que já estão no poder, quando táticas de usar bodes expiatórios falharem e os cidadãos perceberem a falta que fazem instituições fortes e sérias funcionando.
“Essa situação (a pandemia) favorecerá a oposição aos governos. Vai prejudicar os populistas que já estão no cargo. Acho que na verdade reduz as chances de reeleição. Pode enfraquecer alguém como Jair Bolsonaro, no Brasil”, analisa Mounk.
Blatt lembra que a crise econômica poderá enfraquecer quem já está no poder. “Essa crise de saúde torna-se uma crise econômica. Isso é bem provável. Isso vai enfraquecer dramaticamente tanto Bolsonaro quanto Trump”, afirma, lembrando que os populistas que estão na oposição, a exemplo da França, podem sair fortalecidos, se forem enxergados como alternativa.
As próximas semanas mostrarão quanto tempo vai durar o sucesso do discurso salvacionista da cloroquina. E se saberá se o Brasil está no grupo de países em que a pandemia fortaleceu o populismo ou naquele em que mais pessoas perceberam que não existem remédios milagrosos para problemas complexos.
Juan Arias: Bolsonaro se isola do resto do mundo obcecado por seu messianismo perigoso
Ao longo da história os falsos profetas acabaram sendo os maiores assassinos e enganadores das pessoas simples e menos escolarizadas
Entre os transtornos psiquiátricos que afetariam o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, apontados por um grupo de psicanalistas à Folha de S. Paulo figura seu messianismo de querer resolver o drama do coronavírus de forma milagrosa. Assim, se distancia do consenso mundial da ciência que afirma que ainda não existe nenhuma evidência médica de cura fora de uma possível vacina.
Esse messianismo do líder brasileiro e seu falso dilema de que seria preciso escolher que as pessoas morram de fome se forem isoladas ou do novo coronavírus pode levar a um perigoso e fatal equívoco.
Desse modo, o presidente isola o Brasil do resto do mundo, onde ainda não foi encontrada uma forma melhor de evitar que o novo vírus continue matando milhares de pessoas do que o isolamento social. Não por acaso estão sendo aconselhados Governos de unidade nacional para melhor fazer frente à tragédia. O inimigo que assombra o mundo é forte demais para que se possa brincar com ele com cálculos simplistas de política menor. É hora de o mundo estar nas mãos de todas as forças mais bem preparadas para enfrentar o perigo juntos, sem distinções ideológicas.
Já se sabe que todos os messianismos, usados e abusados pelos líderes populistas de todas as tendências políticas, são perigosos porque o ser humano é inclinado a acreditar em receitas milagrosas. Assim, os brasileiros podem acabar sendo arrastados pela miragem do presidente, desobedecendo autoridades ao afrouxar o isolamento, como já se viu em São Paulo e em outras localidades, com consequências que podem ser fatais.
Ao longo da história, os falsos profetas acabaram sendo os maiores assassinos e enganadores das pessoas simples e menos escolarizadas.
Em um país como o Brasil, com um forte componente religioso, brincar com receitas oferecidas pelos pastores ao presidente que consideram ungido por Deus para acabar com a peste é voltar ao obscurantismo da Idade Média, como já lembrei em outra coluna. Pretende-se, como então, substituir a ciência e a medicina por receitas de cunho messiânico.
Insistir como faz o presidente nessa volta aos tempos tristes em que a religião se apoderava da ciência e da medicina hoje significa isolar o Brasil do resto do mundo, onde a ciência está se unindo para dar uma resposta segura à doença mortal que possa evitar tanta morte e tanta dor.
Hoje está claro que nada nem ninguém será capaz de fazer o presidente brasileiro recuar de seu messianismo. Assim, os altos militares de seu Governo se equivocam se acreditam que basta que eles retoquem os discursos do presidente nas redes de rádio e televisão.
Vimos como essa falsa conversão dura menos de 24 horas para o presidente e em seguida sintoniza com o chamado “gabinete do ódio”, e multiplicado pelas redes sociais dominadas pelo seu pequeno grupo de seus seguidores mais fanáticos.
Daí a responsabilidade dos militares presentes no Governo, que deveriam entender neste momento que nem eles são mais capazes de fazer mudar a índole psicológica do ex-capitão Bolsonaro nem de conter seus arroubos autoritários. Não é um paradoxo que, na esperança de que o Brasil possa continuar sendo uma democracia sem ameaças contínuas de golpes autoritários, o país esteja hoje nas mãos dos militares?
Que a democracia conquistada no Brasil com dor e lágrimas depois da ditadura militar esteja hoje ameaçada pela personalidade totalitária do presidente já não é um segredo. Como tampouco o é que o presidente continue defendendo e exaltando a ditadura e a tortura, algo que o melhor do Exército, especialmente os mais jovens, hoje rejeitam e desejam esquecer, como soube esta coluna de testemunhas nos quartéis.
Esses ímpetos absolutistas do presidente só poderiam ser paralisados pelos importantes militares que continuam em seu Governo e que se equivocariam se pensarem que são capazes de detê-lo. Eles deveriam entender que, na realidade, o presidente já não governa.
Quando os militares decidiram entrar em um Governo saído das urnas foi dito que era uma maneira de mostrar que eles respeitariam a democracia e a Constituição.
Portanto, a esperança de que Bolsonaro renuncie a um poder que já não consegue exercer não passa tanto pela longa e complexa liturgia do impeachment ou pelas formas jurídicas de demissão forçada, mas pela esperança de que os militares sejam capazes de convencê-lo a se retirar para o bem da nação.
Depois da ditadura, os militares brasileiros deram provas de ter abraçado os valores da democracia e aceitado a Constituição. E assim foi entendido pela opinião pública, que, segundo as pesquisas, considera o Exército uma das instituições mais confiáveis do país.
São horas difíceis e perigosas para um país da importância do Brasil no xadrez mundial e, embora possa parecer um paradoxo em um país sul-americano, hoje a resolução da crise de Governo por que o país está passando, e que flerta com os tempos sombrios do autoritarismo, recai nas mãos dos militares.
Seria trágico se hoje a opinião pública brasileira também perdesse sua confiança nessa instituição se ela se mostrasse incapaz de deter os arroubos messiânicos e autoritários do presidente capitão aposentado, que muito jovem foi expulso do Exército. E que hoje ameaça até os generais de seu Governo, lembrando-lhe que agora o presidente é ele e somente ele.
O Brasil vive um daqueles momentos históricos em que um erro de cálculo pode arrastar o país para uma aventura da qual um dia terá de se arrepender.