covid-19
Eliane Cantanhêde: ‘Nova política’, vade retro!
Bolsonarista Daniel Silveira empurra os três poderes para um acordão e enterra a ‘nova política’
O presidente Jair Bolsonaro e o Exército fecharam a boca, os três poderes se articularam e prevaleceu o bom senso para evitar uma crise institucional e superar o episódio “Daniel, como é mesmo o nome dele?”. O Supremo cumpriu sua função, o Congresso reagiu com maturidade, o Planalto não atrapalhou e o resultado é que o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) passa uns dias em cana e está isolado na Câmara.
O ministro Alexandre de Moraes decretou a prisão em flagrante de Silveira, que faz apologia do AI-5 e agride violentamente os ministros do Supremo; o plenário da Corte ratificou a prisão por unanimidade e em tempo recorde; o presidente da Câmara, Arthur Lira, ouviu Planalto, Senado e líderes partidários e articulou o acordão com o próprio Supremo. Duas coisas podem atrapalhar tudo: as ligações do deputado com a milícia e os dois celulares encontrados com ele.
Pelo acordo, a Câmara mantém a prisão, Moraes dá um tempo e depois usa a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para relaxar a prisão e trocá-la por tornozeleira eletrônica. Resta saber o que de fato acontecerá com o bolsonarista Silveira, que é uma ameaça à democracia e à sociedade. Ele será investigado pelo Supremo e pelo Conselho de Ética da Câmara. Pode ser suspenso, cassado ou... nada.
Por isso o STF não aceitou a primeira proposta do Congresso: a Câmara derrubaria a prisão, mas com o compromisso de abrir processo contra Silveira no Conselho de Ética. Como confiar, se o conselho lava as mãos até para a deputada e pastora Flordelis, condenada pelo assassinato do marido?
Enquanto os poderes têm de perder tempo e energia com gente assim, vale refletir em que contexto Daniel Silveira foi eleito deputado federal, depois de expelido da Polícia Militar do Rio por 26 dias de prisão, 54 de detenção, 14 repreensões e duas advertências. Com esse currículo, ele só pôde ser eleito na onda Jair Bolsonaro, ele próprio um militar que saiu cedo do Exército por insubordinação.
Essa onda da “nova política” tirou do Congresso (e de legislativos e governos estaduais) políticos experientes e de bons serviços prestados em comissões, lideranças e relatorias de temas essenciais. E pôs no lugar policiais, bombeiros, militares, procuradores – entre eles, toda uma gente que sempre passou ao largo da política. Pior: com horror à política e à negociação, diálogo, contraditório. Para não dizer democracia e instituições. Ao destruir a placa para a vereadora assassinada Marielle Franco, Daniel Silveira atacou o que ela representava: a política (entrou nela para destruí-la por dentro), mulheres, negros, gays, inclusão social, justiça e humanidade.
Agora, ele está preso e foi abandonado, mas não fala sozinho. O deputado Eduardo Bolsonaro já defendeu a volta do AI-5, o mais feroz instrumento da ditadura militar, e que “basta um cabo e um soldado para fechar o STF”. E o presidente da República, além de ouvir em silêncio o então ministro da Educação propor a prisão dos membros do Supremo, atiçou e participou de atos contra as instituições.
A “nova política”, porém, envelheceu rapidamente, com Wilson Witzel afastado do governo Rio por desvios, governadores do PSL e do PSC em apuros, a deputada Bia Kicis (PSL-DF) rejeitada por multidões para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), um bando deles respondendo no Supremo por fake news e movimentos golpistas.
O próprio Bolsonaro está saindo de fininho, abraçado à “velha política” e ao Centrão e empenhado na aproximação com o Supremo. Os filhos que votem como bem entenderem sobre a prisão de Silveira, um bolsonarista raiz, porque papai Jair está mais preocupado em se dar bem no Congresso e no Supremo. Para os Silveiras e o resto, migalhas. Ou armas e munições à vontade.
Vera Magalhães: Governo normal faz diferença
Mais que o tradicional “bom dia” nos grupos de WhatsApp das famílias, uma expressão se espalhou pelas redes sociais no Brasil em tempos de governo Bolsonaro: “Não se tem um dia de paz”.
A constatação ganhou especial significado durante a pandemia. Nos aproximamos de forma célere dos 250 mil mortos, a vacinação se dá em ritmo de tartaruga, o auxílio emergencial ainda é um esboço, mas o país parou na Quarta-Feira sem Cinzas para acompanhar a prisão de um deputado da linha de frente da base bolsonarista que não via outra prioridade diante deste quadro que não fosse pregar a volta do AI-5, agressões físicas a ministros do Supremo e a troca sumária de todos os integrantes da Corte.
O chilique do valentão se deu porque o ministro Edson Fachin fez o óbvio: protestar contra a interferência indevida que o general Villas Bôas confessou ter sido feita com aval do Alto-Comando das Forças Armadas na decisão que o STF teria de tomar sobre um recurso do ex-presidente Lula em 2018.
A prisão do deputado ainda mobiliza os três Poderes da República três dias depois. Os deputados, antes prontos a correr em socorro do colega, agora entenderam que ele foi longe demais e que salvar sua pele pode implicar comprometer a própria. Da mesma maneira, Bolsonaro, sempre tão boquirroto quanto Daniel Silveira, fez boca de siri quando o amigo foi em cana. Natural: sabe que tem seus próprios passivos, que incluem os do filho Flávio e os do ministro Eduardo Pazuello, com o Supremo e não vai se queimar por um deputado de 31 mil votos que se notabilizou por rasgar uma placa com o nome de Marielle Franco.
Ainda que o presidente tenha esse gesto isolado de comedimento (que pode ser quebrado a qualquer momento, numa live ou num aglomeração no cercadinho do Alvorada), a própria existência de um Daniel Silveira como deputado e a necessidade de que ele seja preso para parar de atentar contra a democracia mostram quão disfuncional é o governo Bolsonaro, e quanto o Brasil paga dia a dia por isso.
A diferença entre um governo tresloucado e um minimamente normal pode ser vista de forma didática nos Estados Unidos. A simples retirada de Donald Trump de cena e sua substituição pela equipe de Joe Biden fez com que fosse triplicado o ritmo de vacinação no país, a média diária de casos de Covid-19 despencasse de 195.064 para 77.665, e coisas simples como usar uma máscara deixassem de ser tabus ideológicos.
Por aqui, o presidente segue buscando milagres para enfrentar o vírus, enquanto seu ministro faz promessas sem nenhum amparo na realidade de centenas de milhões de doses de vacinas, sem estipular um cronograma seguro e claro de como elas serão fornecidas a estados e municípios.
O resultado dessa completa inépcia de Bolsonaro e Pazuello e do show de horrores da ala bizarro-ideológica do bolsonarismo é que também a economia é profundamente afetada. Em vez de se ocupar do desenho do projeto para a volta do auxílio emergencial e das medidas adicionais necessárias para garantir que ele não estoure as já depauperadas contas públicas, o comando da Câmara passou os últimos dias quebrando a cabeça para tentar livrar a barra do troglodita sem afrontar o STF. Mas ficou claro que, desta vez, os ministros não deixariam barato nenhuma atitude corporativista que fragilizasse o Judiciário.
A votação unânime dos 11 ministros delimita uma risca no chão. O Congresso parece ter entendido isso. O silêncio de Bolsonaro mostra que ele também sentiu o golpe. Que os eleitores também entendam que só elegendo políticos comprometidos com a democracia, o que esses de turno não são, o país poderá sair da anormalidade absoluta para o mínimo de paz que todos pedem em vão nos seus posts no Twitter.
Valdir Oliveira: O justiceiro da vontade popular
Não existe quem possa defender a impunidade. As ações de combate a crimes de colarinho branco são apoiadas por toda a população. Não é de hoje que a sociedade repudia atos de corrupção. Noel Rosa, em 1933, já trazia essa pauta com a música Onde Está a Honestidade? O período do rock também foi muito rico nesse tema. Em Alvorada Voraz, Paulo Ricardo até citava os casos famosos de gente importante, como ele dizia. Com tantas insatisfações, Renato Russo chegou até a gritar: “Que pais é esse?”
Passaram-se ciclos de poder, com nomes e partidos diferentes, mas os casos de desvios se mantiveram presente como se a corrupção fosse parte do DNA do poder. A corrupção é parte da imperfeição humana, por isso, a sedução pelo dinheiro ou pelo poder é um perigo constante.Leia mais
Uma investigação mudou a história recente do Brasil e alterou os rumos do país. A partir dela, renasceu a esperança do fim da impunidade e, inevitavelmente, novos heróis nacionais. A operação, conhecida como Lava Jato, saiu da burocracia jurídica dos processos penais e ganhou as ruas, transformando-se em bandeira política de grande mobilização nacional. O que antes era crime de gente importante, como dizia a música de Paulo Ricardo, se transformou em crime hediondo, popularizando a repulsa pela corrupção, como a que sentimos com os crimes que nos chocam, nos atingem a alma.
Autores de crimes de colarinho branco sempre foram considerados inatingíveis pela polícia e pela Justiça. O dinheiro e o poder sempre foram a proteção à impunidade. A compreensão era de que, no campo jurídico, esse embate não lograria êxito. Assim como na operação italiana Mãos Limpas, que parece ter sido a inspiração para a operação Lava Jato, a estratégia usada foi levar a investigação e julgamento para as ruas, para que os acusadores conseguissem lutar no campo político, vez que no campo jurídico a lição mostrava insucessos.
Ao levar a investigação e o julgamento para as ruas, o juiz pôs em risco sua imparcialidade e comprometeu todo o processo. A política é tão sedutora quanto o dinheiro e a corrupção oriunda da vaidade é capciosa. O conhecimento público de um processo de interesse nacional não é ruim, desde que isso não seja maior do que o próprio processo e que não se torne bandeira de outros interesses que não o da própria Justiça. Caso ocorra, a mácula na Justiça atingirá a confiança daqueles que alimentaram a esperança de um país mais justo e colocará por terra a crença que a impunidade não resistirá aos homens de boa fé.
Ao ganhar as ruas, ancorado na esperança do povo brasileiro, o herói nacional correu o risco de transmudar seu papel, de juiz para justiceiro e, efetivamente, o fez. Adotou, como princípio, a máxima de que os fins justificavam os meios e transformou seu julgamento em guerra a qualquer custo, assumindo, também, o lado de acusador, abstendo-se, por consequência, da imparcialidade, fundamental em um processo justo. Existiram, assim, naquela operação, apenas dois polos: o da acusação e o da defesa.
Quem de nós já não se deparou com uma situação onde a raiva despertou a vontade de fazer justiça com as próprias mãos? Seja em um desencontro no trânsito ou no trabalho ou até em agressões a vulneráveis? O despertar da repulsa nos estimula a reagir impensada e impulsivamente, na profunda certeza de que, de fato, os fins justificam os meios. Porém, por vivermos em sociedade, não podemos permitir que esse limite seja ultrapassado. Caso contrário, como um bumerangue, tal processo tortuoso, um dia, voltará, inapelavelmente, contra nós mesmos.
Um justiceiro pode ser fruto de uma insatisfação profunda ou até da busca pelo fim impunidade. Pode ser, também, fruto da vaidade das conquistas individuais. Seja em um caso ou outro, o justiceiro sempre falha com a Justiça, porque, ao ultrapassar o limite da imparcialidade, da lei e das verdades dos fatos, ele contamina o resultado do seu trabalho. Um justiceiro, sob o manto da cegueira de suas razões, tende, ao final, a vitimizar o réu e passa a navegar, ele mesmo, nas águas da injustiça que se propôs a combater.
O fim da operação Lava Jato também traz nova mudança para os rumos do país. Assim, da mesma forma, a condenação a qualquer preço imperará no julgamento do justiceiro, decorrente da frustração, do engodo, do abuso da boa-fé, do sentimento da perda da oportunidade do combate eficaz e limpo da corrupção. O justiceiro se torna réu do próprio julgamento e, com isso, subtrai do povo a esperança da justiça e do fim da impunidade. A corrupção da vaidade é crime tanto quanto a corrupção de recursos públicos.
A história nos relega uma lição. O povo não deve personalizar irrevogavelmente a esperança. Afinal, somos todos imperfeitos, sujeitos a erros que, muitas vezes, nos igualam. O limite entre o juiz e o justiceiro está na lei e jamais devemos ultrapassa-lo, por mais que haja motivos que estimule essa ousadia. Afinal, como Júlio Cesar, na Roma antiga, devemos nos lembrar sempre que somos mortais e jamais poderemos estar acima do bem e do mal. A lei será sempre o limite do nosso poder.
*Valdir Oliveira é superintendente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) no Distrito Federal (DF).
Monica de Bolle: Auxílio Emergencial à deriva
Com o estado crítico em que o Brasil está, ainda pandêmico e com novas variantes perigosas do vírus em circulação, o governo contempla a adoção de um novo auxílio. Mas não se enganem. A proposta em nada se assemelhará ao esforço de 2020
Em 2020, quando o vírus chegou ao Brasil, escancarou-se uma porta para que discutíssemos medidas de proteção social, a despeito do desprezo do presidente pelos direitos humanos. A porta foi escancarada por uma conjunção de fatores fortuitos: o vírus ainda era uma novidade no país, todos o temiam — exceto o presidente —, as medidas de lockdown eram mais aceitas do que hoje, as mortes na Itália e na Espanha haviam impactado o país de um modo que as mortes de centenas de milhares de brasileiros não impactariam. A sociedade aproveitou então os espaços surgidos, tendo no Congresso um aliado de ocasião devido a suas lideranças, e pressionou para que o auxílio fosse criado rapidamente. A pressão de grupos e pessoas, ao lado da disposição do Congresso, foi capaz de implantar o maior programa de proteção social da história brasileira.
Apesar dos tropeços, mais de 70 milhões de pessoas foram atendidas, a economia foi sustentada e a catástrofe foi atenuada. A queda do PIB em 2020 foi da ordem de mais de 10%, tal como eu projetava em março, e só não foi maior por causa do auxílio. Infelizmente, tanto os líderes do Congresso quanto o governo se recusaram a agir em função do que já era sabido, ou seja, que a pandemia não terminaria em dezembro. Preferiram orientar sua ação por sua vontade e deixaram o auxílio expirar. Agora, com o estado crítico em que o Brasil está, ainda pandêmico e com novas variantes perigosas do vírus em circulação, as VOCs, o governo contempla a adoção de um novo auxílio emergencial. Mas não se enganem. A proposta, qualquer que seja, em nada se assemelhará ao esforço de 2020.
Sobram preocupações com tudo que não é urgente neste momento, em que a pandemia está prestes a se agravar. Sim, a se agravar. As VOCs são perigosas por serem mais transmissíveis, possivelmente causar doença mais grave, quiçá escapar do sistema imune. As vacinas nos protegem contra doença, não nos protegem contra infecção. E o Brasil está muito atrasado na campanha de vacinação. Logo, o cenário que temos hoje não se alterará tão cedo. Teremos uma prolongada pandemia aguda e depois, por conta da evolução do vírus, potencialmente uma pandemia crônica, como é hoje o caso da aids.
O que deveria ser o novo auxílio emergencial neste contexto? Minha proposta é de um benefício no valor de R$ 300, a ser pago, no mínimo, até o fim do ano, com cobertura equivalente ao programa que expirou em dezembro e com uma regra de transição. A regra de transição é importante, pois impede que o programa acabe subitamente, deixando dezenas de milhões de pessoas desassistidas, como ocorreu na passagem de 2020 para 2021. Imagino uma regra de transição de seis meses, em que o valor do benefício seja reduzido gradualmente, mês a mês, até chegar a zero. Em um país com um governo que não fosse antissociedade, a regra de transição estabeleceria a passagem para um programa de renda básica permanente, mas confesso que não tenho mais qualquer esperança de que algo do tipo venha a surgir em um governo que atua, por ação e omissão, para fazer e deixar morrer. Não é por acaso que se fala em necropolítica.
Antevejo a pergunta: De onde virá o dinheiro para isso? O programa é caro, evidentemente. Estamos falando de cerca de R$ 200 bilhões, caso os pagamentos se iniciassem em março para atender em torno de 70 milhões de pessoas. Já digo logo, sem qualquer temor de represálias, que certamente aparecerão: o programa deve ser financiado, majoritariamente, pela emissão de dívida pública.
O país não vai quebrar por causa disso. No ano passado, a dívida só não foi mais elevada por causa do auxílio emergencial.
Lembrem: ele evitou que tivéssemos uma recessão ainda mais profunda. E, convenhamos, o momento é de crise humanitária aguda. Estamos falando de salvar vidas, centenas de milhares de vidas. Trata-se de pôr o foco no lugar certo, nas pessoas. Não há nada mais importante nem mais responsável do que isso. Os tempos não são de normalidade. Não nos permitem ficar na ladainha da responsabilidade fiscal, porque, enquanto ela é desfiada, morre mais de uma pessoa por minuto por Covid. Em breve, esse número será ainda maior.
Portanto, é isso. Salvar vidas e reerguer o auxílio da forma como propus é encarar o problema tal qual ele se apresenta, a realidade tal qual ela é. Isso implica abrir mão da fantasia de que “a pandemia está acabando” e da ignomínia de que “é preciso salvar a economia, depois salvamos as pessoas”.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
RPD || Reportagem Especial: Uma cicatriz no mercado de trabalho
O impacto da pandemia atinge empregos, expõe as deficiências nas escolas e aprofunda as desigualdades no Brasil. Fim do Auxílio Emergencial e demora das vacinas aumentam as incertezas no país
Por Eumano Silva
Janeiro de 2021 chegou de forma trágica para o Brasil. O número de vítimas da pandemia de covid-19 deu um grande salto, depois das aglomerações de fim de ano, e do surgimento de uma nova cepa do coronavírus, em Manaus. Assim, os índices da catástrofe sanitária voltaram ao patamar dos piores dias de 2020. O colapso em unidades do sistema de saúde, os desacertos do governo federal e a demora na aplicação das vacinas contribuíram para o rebaixamento das perspectivas de uma recuperação consistente da economia do país.
O fim do Auxílio Emergencial no primeiro mês joga mais uma sombra sobre as expectativas para 2021. As restrições decorrentes das medidas contra o avanço do vírus acentuam as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, com especial repercussão nos segmentos com menor grau de instrução ou sem capacitação tecnológica. “Vivemos uma era de desigualdades e com muitas incertezas”, definiu o especialista em políticas sociais Marcelo Neri, economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em entrevista à Política Democrática.
Em consequência do impacto causado pela pandemia, o desemprego atinge e ameaça, sobretudo, os setores tradicionalmente marginalizados pelas atividades remuneradas formais. Esse fenômeno está ligado a aspectos estruturais como raça, gênero, faixa etária, diferenças regionais, acesso à tecnologia e à educação. Incide com maior rigor sobre negros, pardos, mulheres, jovens e nordestinos, observa Neri.
Por causa da Covid-19, as diferenças entre as escolas tornaram mais extensa a distância entre os pobres e os mais favorecidos. O acesso à tecnologia para aulas on-line, e o número de horas dedicadas ao aprendizado tiveram considerável variação, por exemplo, entre as escolas públicas e privadas. O professor da FGV aponta a interrupção de um período de 40 anos de redução dessa lacuna social. “Antes da pandemia, o Brasil estava rompendo o atraso. Isso se quebra e surge uma cicatriz no mercado de trabalho”, afirmou o economista.
Dados atualizados
Essas faixas mais vulneráveis da população atravessaram o primeiro ano da pandemia com a proteção do Auxílio Emergencial. Mais de 60 milhões de pessoas receberam a ajuda aprovada pelo Congresso Nacional para amparar as famílias e a economia do país.
Dados oficiais atualizados, em 2021, revelam a dimensão da calamidade no mercado de trabalho. Antes das restrições decorrentes da pandemia, no trimestre encerrado em março do ano passado, o índice de desemprego medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estava em 12,2%. Entre setembro e novembro de 2020, a taxa chegou a 14,1%, pouco abaixo dos 14,3% divulgados no mês anterior. Foi a segunda queda, depois do pico de 14,6% registrado em julho.
Os números fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), do IBGE, divulgada no dia 28 de janeiro. O indicador manteve o número de brasileiros à procura de trabalho, acima do patamar de 14 milhões. Chega-se a um contingente de 32,2 milhões de pessoas subutilizadas no país quando se leva em conta os subocupados, os que desistiram de procurar trabalho e as pessoas que por alguma razão estão impedidas de exercer atividades laborais.
Também no dia 28 de janeiro, o Ministério da Economia informou que em 2020 o Brasil abriu 142.690 novas vagas com carteira assinada, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED). Apesar do aumento de postos criados ao longo do ano, a tendência se inverteu em dezembro, com déficit de 67.906 na relação entre contratações e demissões.
O resultado anual positivo se deve, principalmente, ao socorro do governo. Como o Auxílio Emergencial acabou em janeiro, a pressão por empregos tende a aumentar ao longo do semestre. Simultaneamente, o Congresso Nacional discute formas de compensar o fim da ajuda oficial.
A implementação de novas medidas depende, entretanto, da negociação dos interesses do governo e dos parlamentares em um ambiente de reacomodação dos grupos internos, deslocados com os movimentos provocados pela sucessão nas Mesas Diretoras da Câmara e do Senado.
Desde meados de 2020, especialistas alertam para a deterioração do mercado de trabalho – formal e informal – em decorrência da Covid-19. Um estudo publicado em setembro de 2020, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), apresentou os primeiros efeitos da doença nos empregos. Assinado pelos pesquisadores Sandro Sacchet de Carvalho e Mauro Oddo Nogueira, o artigo “O trabalho precário e a pandemia: os grupos de risco na economia do trabalho” usou números coletados até julho de 2020. O estudo identificou perda na “segurança laboral” tanto no setor informal quanto no formal.
Renda interrompida
Ex-funcionária de um hotel em Brasília, Sandra Maria Rodrigues da Silva, 47 anos, enquadra-se no perfil dos que deixaram a formalidade. Trabalhava em um hotel, com carteira assinada, e tinha salário de R$ 1.400,00. Demitida no início da pandemia, teve a vida familiar abalada pela interrupção da renda. Com seis filhos para sustentar, passou por dificuldades e chegou a faltar comida em casa.
Sandra recebeu seguro-desemprego e não obteve o Auxílio Emergencial. Para suprir as necessidades, passou a fazer e vender bolos e marmitas. Também trabalha com faxina. “Não trabalho todos os dias, mas dá para manter as coisas”, afirmou a trabalhadora à reportagem. Nos últimos meses distribuiu currículo, no entanto, não teve retorno. Afrodescendente, Sandra não sente discriminação por causa da sua cor. Mas nota mais dificuldade em encontrar um novo emprego por causa da idade.
A reportagem procurou Oddo Nogueira, um dos autores do trabalho do Ipea, para analisar os dados atualizados do CAGED e da PNAD em comparação com as percepções registradas no artigo do ano passado. “O cenário está melhor por causa do Auxílio Emergencial, que segurou a demanda. As pessoas continuaram comprando, comendo, teve uma sobrevida, especialmente, das pequenas empresas”, avaliou o técnico do Ipea.
A concessão do benefício pelo governo permitiu a abertura de lojas em espaços fechados no início da pandemia e, com isso, reduziu a procura por vagas. “Se o auxílio não for prorrogado, vai ser outra pancada, fecha tudo de novo”, explicou Oddo Nogueira.
Mesmo com todo o impacto positivo, o alívio proporcionado pela verba federal foi insuficiente para derrubar a alta taxa de desemprego, mantida acima de 14%. Oddo Nogueira ressalta, ainda, que esse indicador não inclui cerca de 4 milhões de pessoas afetadas por um fenômeno chamado, pelos economistas, de “desalento imediato” – quando o trabalhador perde o emprego e não toma a iniciativa de procurar outro.
Industrialização e qualificação, males antigos do mercado de trabalho brasileiro
Ao mesmo tempo que sente o peso da pandemia, o mercado de trabalho, no Brasil, sofre de males antigos, como a falta de qualificação das empresas e dos empregados. Isso se verifica fortemente em função da desindustrialização do país, observa o Sociólogo Glauco Arbix, Coordenador do Observatório da Inovação da Universidade de São Paulo (USP). Nestas circunstâncias, prevê, haverá uma queda brutal da participação na renda dos trabalhadores do meio e da base da pirâmide.
“Vamos ter um Brasil com desigualdade, no mercado de trabalho, cada vez maior. Isso é um problema da estrutura da economia que é difícil resolver”, afirmou Arbix em entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, no dia 17 de janeiro. “Pode-se tentar resolver com sistema de educação e qualificação e, com isso, oferecer oportunidades, mas não há garantias de que esse pessoal vai encontrar uma posição melhor”, acrescentou.
Na análise do sociólogo, o Brasil passa por um fenômeno chamado pelos economistas de “desindustrialização prematura”, um processo rápido e intenso de mudança no setor. “Europa e EUA demoraram muito tempo para ter a transferência da manufatura para a área de serviços. Aqui, ela ocorre rapidamente, não há condições boas para requalificar empresas e trabalhadores e cria-se uma economia disfuncional. Parte das empresas e dos trabalhadores é qualificada; outra, não”, explicou o professor da USP.
As mudanças provocadas pelo isolamento social prejudicaram algumas áreas de forma mais dramática, caso da educação. Psicopedagoga e Professora de Língua Portuguesa, Jordana de Souza Rodrigues, 36 anos, foi demitida em julho de uma escola particular de ensino fundamental, no Distrito Federal. A queda na receita levou a empresa a reduzir as despesas com o quadro docente.
Com sete anos de empresa, Jordana teve uma carreira estável até a demissão no ano passado. Começou a trabalhar em sala de aula aos 21 anos, qualificou-se, trocou de emprego algumas vezes e, assim, obteve ganhos nos salários e melhores condições para lecionar. Ganhava R$ 3.500,00 na última escola, onde chegou sete anos antes. No início da pandemia, assim como os colegas, teve o salário reduzido. “Eu me dedicava ao máximo, gravava as aulas em casa, com dificuldade. Depois de dois meses voltaram com nosso salário normal e, logo, demitiram todo mundo”, conta a professora.
Jordana recebeu seguro-desemprego, mas o benefício acabou. O marido mantém a casa, enquanto ela aguarda o chamado para uma vaga de secretária escolar, o prazo de validade vai até o final de 2022. Também fez algumas entrevistas em escolas privadas, mas percebe a retração do mercado, ocupado por novos contratados. “Aguardo o dia de amanhã, esperando o que Deus proverá”, conforma-se.
Incógnitas afetam o destino de milhões de brasileiros
Dúvidas quanto ao futuro dos empregos, como ao da professora do Distrito Federal, inquietam habitantes do mundo todo, nestes tempos de pandemia. No Brasil, em particular, o horizonte da economia depende, em grande parte, do desempenho dos governos no enfrentamento do coronavírus.
Nesse sentido, como tratado acima, a pressão sobre os postos de trabalho está diretamente atrelada a alguns fatores ainda indefinidos. São incógnitas que, quando resolvidas, terão influência decisiva no destino de dezenas de milhões de brasileiros.
Uma das condicionantes é o Auxílio Emergencial. Se a ajuda oficial for prorrogada, segura, pelo menos em parte, a demanda por postos de trabalho, como ocorreu no ano passado. No início de fevereiro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou a intenção de retomar o benefício para cerca de 30 milhões de pessoas, metade do número alcançado em 2020. A possiblidade de postergação de regras de flexibilização dos contratos de trabalho também vai influir na capacidade das empresas de preservar o quadro de pessoal.
Por fim, todas as expectativas se voltam para a capacidade do Brasil de assegurar a imunização da população em ritmo mais célere. O país entrou atrasado na corrida por vacinas e, com isso, distanciou-se das nações desenvolvidas – condição que prejudica o reerguimento da economia nacional e, por causar impactos distintos na sociedade, aprofunda as desigualdades internas.
Quadro sem precedentes
Um relatório divulgado em janeiro pela Oxfam, entidade que reúne organizações governamentais de diferentes regiões do planeta, constata que a pandemia provocou aumento da desigualdade em praticamente todos os países do mundo – situação sem precedentes desde o início dos registros, há um século.
O agravamento do quadro se manifesta na rápida recuperação das fortunas perdidas por milionários no início da propagação da Covid-19, ao passo que entre os mais pobres o retorno à condição anterior pode levar mais de uma década. “A crise expôs nossa fragilidade coletiva e a incapacidade de nossa economia profundamente desigual trabalhar para todos. No entanto, também nos mostrou a importância vital da ação governamental para proteger nossa saúde e meios de subsistência”, afirma o documento da Oxfam.
No Brasil, como sabemos, estes sintomas são antigos e persistem na terceira década do século. A pandemia apenas tornou a injustiça mais evidente.
RPD || Entrevista Especial - Arminio Fraga: ‘O Brasil está dando um mergulho no passado e sem liderança’
Por Raul Jungmann e Caetano Araújo
Defensor do auxílio emergencial desde o início da pandemia diante de uma situação que não é típica do ciclo econômico, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central (1999-2003) durante o segundo mandato do Governo FHC é o entrevistado especial desta 28ª edição da Revista Política Democrática Online. Para 2021, o sócio fundador da Gávea Investimentos e um dos mais notórios economistas liberais do país avalia que um novo auxílio seja necessário para ajudar a sustentar a economia. "Há consenso a esse respeito, mas o governo enfrenta limites na sua capacidade de financiamento. Terá de ser, portanto, muito bem pensado", acredita.
Armínio Fraga também faz um alerta sobre a ideia de que o governo brasileiro vai continuar se endividando, na expectativa de que isso vai gerar um futuro melhor. “É um perigo monumental”, completa. Para ele, o governo Bolsonaro não está discutindo os problemas centrais da economia brasileiro. "Nossa taxa de investimento em torno 15%, 16% do PIB é muito baixa para sustentar o crescimento. Espelha enorme incerteza", acredita. Associado fundador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), Fraga também considera a derrota de Trump como muito importante para o Brasil e o mundo. "Se o Biden for na direção de Clinton, de Obama, será um espetáculo", avalia. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista à RPD Online.
Revista Política Democrática Online (RPD): Alguns analistas avaliam que, a partir de suas declarações e artigos mais recentes, você poderia considerado como uma ponte autorizada entre os setores liberais e a esquerda democrática. O que pensa a respeito?
Armínio Fraga (AF): É mais uma torcida do que uma análise. Eu vejo a necessidade de esquecer um pouco os rótulos e pensar nas propostas concretas. Estou convencido – e não digo que seja um teorema – da ideia de que no Brasil, como em muitos outros países, alguns grandes temas têm que andar juntos, eles se reforçam. Na economia são três. Macroeconomia saudável, para organizar um pouco a casa e impedir que haja uma crise a cada cinco, 10 anos. No plano do crescimento, importa cuidar da produtividade para o país crescer. Há décadas que crescemos muito pouco. Houve momentos de luz, mas sempre mais do que compensados por trevas, colapsos, uma desgraça.
Outro ponto não menos importante refere-se ao tema da desigualdade, que, embora não seja monopólio da esquerda, é sua essência. É fundamental olhar para a desigualdade de uma maneira ampla, completa. A pobreza é inaceitável, mas nós temos que ir muito além do combate à pobreza extrema. Temos que criar condições para que as pessoas tenham capacidade de se empregar, ter sua renda, seu espaço, portanto, de oportunidade e mobilidade, e por aí vai. Essa agenda, a meu ver, é de fato uma combinação liberal, social, que não difere muito da agenda do Fernando Henrique Cardoso, tampouco da do Lula em seu primeiro mandato. Naquele momento, parecia que o Brasil político fosse oscilar dentro de um espaço pequeno, um pêndulo que não se tornaria uma bola de demolição, como acho que acabou acontecendo.
Eu me vejo nessa posição. Não sou político, não tenho ambições eleitorais, mas tenho, sim, participado do debate público. Como me dão espaço, procuro aproveitar. E essa ponte, a meu ver, precisa ocorrer mais para o centro, algo mais equilibrado, e não essa loucura que temos hoje, de costumes e ameaças autoritárias, de comportamento truculento, nem tampouco de uma esquerda velha, sonho compreensível, mas que avalio nunca ter dado certo. Menos ainda uma esquerda, entre aspas, que produziu o bolsa-empresário de sete pontos do PIB, quando o Bolsa Família consome meio ponto do PIB. Isso não é esquerda, nem sei muito bem o que era. Embarcou-se numa canoa furada, abraçaram ideias equivocadas e, infelizmente, também a corrupção e tudo mais. Então, se é esse espaço de ponte que querem me atribuir, fico muito feliz, é onde eu gostaria de estar mesmo.
RPD: Você não estaria apostando muito na convicção das pessoas, na capacidade de elas reagirem da maneira descrita? Não faltaria um orquestrador, uma liderança que lhes abrisse o caminho e as conduzisse na aproximação entre o liberalismo e a esquerda?
AF: Não vejo o que eu faço como sendo uma tentativa política completa, sou apenas uma pessoa que disputa um espaço de opinião. Trata-se de uma tese a ser construída, o que será, em muitos aspectos, difícil. O lado liberal não é muito intuitivo, isso já vem desde Adam Smith. São receitas que, às vezes, levam as pessoas a se sentirem desprotegidas. Penso, assim, que caberia uma campanha de informação, mas isso me faria sair um pouco do meu quadrado.
Há muito tempo venho tentando entender a narrativa da história, por assim dizer. Tentei quando estive no governo. Depois, prossegui conversando com muita gente, inclusive com o próprio presidente Fernando Henrique. Mas como se faz, por exemplo, para lograr vencer o populismo? Muito difícil. Com meu chapéu de economista, diria que é quase impossível. Um dia, ele pode quebrar, mas, até lá, é imbatível, prometendo mundos e fundos, ninguém fazendo contas, ninguém entendendo coisa alguma e, num belo dia, quebramos de novo. Esse é um desafio político de primeira ordem.
Muito francamente, penso que acabaremos reinventando a socialdemocracia. Adaptada às coisas ao século 21. Ótimo: meio ambiente e tecnologia. Eu, por exemplo, sou bem verde. Mas acho que precisamos mais de ideias do que liderança. O Brasil tem de repensar o espaço partidário. Os partidos e suas siglas de hoje não valem nada. Escrevi recentemente na Folha artigo em que mencionei esse ponto. Precisamos evoluir nessa área. Entendo que o número de partidos tende a cair com as cláusulas de barreira e a proibição das coligações, mas, além de uma redução no número de partidos, acho que falta clareza programática, ideológica. Não é suficiente fazer, por exemplo, como tenta fazer o partido Novo que declarou “nós queremos honestidade e eficiência”. Todo partido deveria defender honestidade e eficiência. Falta ir muito mais longe. É necessário mais do que uma pessoa, embora isso sempre ajude. No mundo de redes e de comunicação direta com o eleitorado, o peso da candidata ou do candidato numa eleição presidencial é altamente relevante. Mas, se isso vier sem uma estrutura de valores, de propostas, inclusive no plano partidário, ainda que seja alguma coligação, desde que construída em cima de ideias, temo que o Brasil seguirá patinando.
RPD: Para a retomada do crescimento, o auxílio emergencial poderá ajudar? Qual é o dever de casa que o Guedes deve seguir?
AF: Guedes se define como um liberal. Ao tomar posse, disse que era um liberal político também, um defensor da democracia. Nada disso se revelou evidente. Há que se distinguir crescimento, que, para mim é algo mais sustentado, de recuperação, esta, mais cíclica, de curto prazo, basicamente o que ocorre na esteira de uma recessão, do que já tivemos dois exemplos gigantes nos últimos sete anos. Na primeira, a recuperação foi tímida, pífia, é um momento ainda muito complicado, mesmo que Temer tenha apresentado boa agenda de reformas. Mas, depois, tudo se complicou, como se sabe, e aí veio o que veio.
Para fazer o país crescer, é outra estória. Temos de incluir na política econômica a educação, a saúde. Depende também de confiança, estando tudo interligado. Uma empresa, quando explora a possibilidade de investir, tem que trabalhar com um horizonte de tempo que vá além da recessão.
Defendi o auxílio emergencial desde o início da pandemia diante de uma situação que não é típica do ciclo econômico; antes, uma calamidade colossal, agravada pela não resposta pronta do governo federal. Cabia, pois, um auxílio. Depois ocorreu, e forte, só que veio mal calibrado, talvez por razões meio populistas, talvez por uma expectativa de que o negócio não fosse tão sério ou duradouro assim. Não dá, portanto, para repetir o esforço do ano passado. Algum auxílio tem, porém, que acontecer, para ajudar a sustentar a economia. Há consenso a esse respeito, mas o governo enfrenta limites na sua capacidade de financiamento. Terá de ser, portanto, muito bem pensado.
Não acredito que se estejam discutindo os problemas centrais da economia brasileiro. Nossa taxa de investimento em torno 15%, 16% do PIB é muito baixa para sustentar o crescimento. É um nível que espelha enorme incerteza, grande falta de confiança. Em entrevista live recente, Larry Summers, indicou que, se tivesse de escolher um único indicador para entender o que está acontecendo num país, olharia para o que os investidores locais estão fazendo com o dinheiro deles. No nosso caso, a coisa complica.
Estamos tendo essa conversa logo após as votações do Congresso, e nada sugere uma situação que nos vá encher os olhos, com o Brasil embarcando num outro modelo. Ao contrário: acho que a gente está dando um mergulho no passado e sem liderança.
RPD: O enfrentamento da crise sanitária justificaria o abandono de toda preocupação relativa ao equilíbrio das contas públicas?
AF: Um governo pode se endividar, um governo que não seja um estado falido, mas isso obedece a várias restrições. Mas a restrição mais básica é ter alguém disposto a emprestar esse dinheiro para o governo. Começando por baixo, a ideia de que emitir moeda, emitir dívida na sua própria moeda, é uma garantia de que não há limite para seguir se endividando é um nonsense completo. Imagine se as pessoas seguirão comprando papel do governo, se entupindo de papel do governo, de um governo que não mostra um rumo, que repetir nossa própria história, a história de nossos vizinhos, de vários países, da própria Alemanha no passado? Acho surpreendente que alguém acredite nisso. Escrevi isso num dos meus artigos na Folha que essa ideia de que um governo, que pode emitir sua própria moeda, siga emitindo dívida sem limite é para mim na verdade uma ameaça. Não é à toa que o dólar está tão alto aqui.
Vamos aos fatos. A política fiscal no Brasil, desde a Dilma (2014), virou uma das políticas fiscais mais gastadoras do mundo. Essa política, que foi um total colapso fiscal, alguém pode defendê-la? Eu não sei como as pessoas falam em austeridade, num país que está com déficit primário e acumulando muita dívida desde 2014. Alguns alegam que valeria a pena se endividar para investir.
Os programas de investimento do governo são difíceis de administrar. Defendo mais investimento público, há muito tempo. Defendo mais eficiência do estado, mas isso não resolve, inclusive porque o investimento público é lento, e nós estamos precisando de uma resposta, do ponto de vista conjuntural, imediata.
Acho que é preciso separar. Reconheço alguns passos, mas a ideia de que o governo brasileiro vai continuar se endividando, na expectativa de que isso vai gerar um futuro melhor, é um perigo monumental. O investimento público cair de 5% do PIB para menos do que 1% é um problema. Mas isso é porque, do outro lado, vários outros gastos aumentaram muito e ocuparam o espaço. Vejamos. A folha de pagamento do governo como um todo cresceu imensamente, a previdência brasileira é extravagante dada nossa relativamente jovem estrutura etária, que vem mudando rapidamente, e, sobretudo a partir da gestão Dilma, o Brasil gastou uma fortuna em subsídios. Segundo relatórios muito bem feitos pelo tesouro nacional, a tal da bolsa empresário, se quiser, os gastos tributários, chegaram a 7% do PIB, inclusive os subsídios do BNDES. O Bolsa Família, só para comparar, é 0,5%.
É evidente que o Brasil precisa reorganizar seus gastos, redirecioná-los na direção de mais produtividade e menos desigualdade, esse é o jogo. De onde vem o dinheiro? Dos gastos e subsídios que mencionei há pouco. Ao contrário dos países avançados, no Brasil, com juros de longo prazos ainda altos, e pouco crescimento e credibilidade, a opção de financiar com mais dívida seria muito arriscada.
RPD: A crise do estado de bem-estar social, na década de 1970, foi seguida, a partir de 2008, pela crise do modelo de auto regulação dos mercados mundiais. Está aberto o caminho para estratégias intermediárias de desenvolvimento?
AF: A pergunta remete a um mundo que desembarcou do “fim da história” do Fukuyama, onde se supunha a vitória de um modelo liberal-democrático. Mas nada disso aconteceu. O estado-nação está mais forte do que nunca. Estou falando de China, Índia, Turquia, os Estados Unidos sob Trump e de outros casos menores, mas não irrelevantes, como Filipinas e o Leste Europeu, para não mencionar um número de combinações entre modelos econômicos e políticos.
Não bastasse a disseminação de um viés autoritário em muitos países, preocupa ainda mais o modelo econômico chinês. Eles abraçaram o mercado, mas com um controle quase que absoluto do partido, com a presença obrigatória de um membro do partido em todos os conselhos das principais empresas. Quanto ao tratamento da informação, o sentido de privacidade sob o comando do Xi Jinping meio que deu um cavalo de pau. No que parecia ser uma suave caminhada para algum grau de abertura, a partir das bases, ele pisou no freio. Pisou no freio também na internacionalização da moeda chinesa. Várias dessas ideias foram deixadas de lado, ante a introdução do controle de câmbio e de outras medidas duras. É um modelo que assusta, como o foi, no passado, o modelo soviético. Mas o chinês, por estar mais adaptado às realidades do mercado, representa talvez desafio maior para a construção de um mundo livre, aberto e pacífico, bom de se viver.
Representa, no fundo, um desafio para a socialdemocracia, para o liberalismo também, e, embora não me sinta qualificado para dar grandes respostas, arrisco supor um repensar do modelo social-democrático, vale dizer, da ideia de um liberalismo progressista e da própria socialdemocracia, conceitos que considero muito parecidos e que estão em crise. Bastaria mencionar o descontentamento das classes médias, em especial nos países desenvolvidos, diante da concorrência global, de um lado, e dos avanços da tecnologia, de outro. É um quadro que requer respostas urgentes, entre as quais se destaca um desafio existencial, que é a questão da mudança climática. Espero que chegada do Biden force maior coordenação no mundo ocidental e que o chamado soft power, não só americano, mas também europeu, cada um do seu jeito, volte a prevalecer.
Quero dizer que a chance de o mundo se desenvolver de uma forma tranquila depende muito do êxito do modelo ocidental. Mas não só. As pessoas que vivem sob regimes autoritários têm que saber que existe um modelo melhor, na linha do que os americanos oferecem, por ser um lugar aberto.
Para o Brasil e o mundo, vejo como muito importante a derrota do Trump. Em que medida essa adaptação política vai acontecer, não saberia dizer. Imagino para o Brasil uma visão que seja solidária e capaz, ao mesmo tempo, de gerar crescimento. Incluiria também o uso de tecnologia para queimar etapas, desde que seja complementar às pessoas e não substitutiva, distinção nada trivial. Recomendaria também – e com ênfase especial – a ideia, que, aliás, tem nossa cara, de um Brasil Verde, que caiba no seu espaço, com qualidade de vida para as pessoas, isto é, a qualidade do ar, da água, da alimentação, comentário autorizado para quem, como eu, mora no Rio.
O Brasil tem tudo para num período de uma ou duas décadas transformar-se transformar num espaço verde extraordinário. Olhem a Nova Zelândia, a Costa Rica. Não importa o tamanho, o modelo é que tem de ser bom. Acho que nossa adaptação ter de ser nessa linha.
RPD: O governo Biden pode influir nessa adaptação?
AF: Indiretamente, sim, dando o exemplo. Só remover o exemplo péssimo do Trump já é bom. Se o Biden for na direção de Clinton, Obama, será um espetáculo. Mesmo que seja inevitável que os Estados Unidos, junto com os europeus, nos apertem um pouco. Podem até estender a pressão para outros temas, como Amazônia, direitos humanos, respeito à imprensa, respeito à própria democracia. Não dá para viver sem isso. Acho até bom para nós também. Talvez uma pressão externa não chegue a modificar muito o comportamento de nossas lideranças, mas a pressão do mercado pode: a pressão econômica eventualmente vai morder.
RPD: Executivo da BlackRock e Jorge Caldeira, em seu livro, Paraíso sustentável, defendem que a questão ambiental, a questão climática, tem influência direta nas finanças, na produtividade, nos lucros das empresas. Qual sua visão a respeito?
AF: Considero procedente essa visão. A BlackRock está certa em defender essas causas e trazê-las para o dia a dia das empresas, das pessoas, acho super saudável. Mas nada disso substitui o governo. Acredito em autorregulação, mas ela só funciona, se acima da autorregulação, tiver a regulação do Estado. E, claro, estou pressupondo um Estado de boa qualidade, sem a qual país algum se desenvolve. Essa é a estrutura básica. Vejo como muito positiva as opiniões acima indicadas. Esse movimento, que se identifica como ESG, a meu ver, é saudável, porque toca num nervo sensível das pessoas, uma alma solidária. E essa é uma crítica, inclusive uma autocrítica, que muitos economistas mundo afora vêm fazendo e que, a meu ver, faz todo sentido. Entendo que esse assunto vai longe. Não até onde precisa chegar, no entanto, sem uma participação concreta do Estado. As boas intenções do setor privado têm de ser complementadas por um Estado que também cumpra com o seu papel.
Venho refletindo muito sobre o tema ESG, em geral. O G, de governança, no Brasil tem avançado bastante. O que aconteceu com a Petrobras foi um enorme acidente de percurso, mas foi apenas isso, porque, no mundo privado, as empresas vêm evoluindo muito bem nessa direção, já não é de hoje. Foi um movimento que nasceu dentro do setor privado, na bolsa de valores em particular, no Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. É, sem dúvida, uma revolução, o que aconteceu aqui no Brasil, está dando muito certo.
O S de social é carente no Brasil, a despeito de governos socialdemocratas e do próprio PT. Ainda há muito a faze. Mas também penso que há alguma consciência, não no momento, mas há. E o A de ambiental é o que estamos discutindo. É indispensável, essencial, é uma questão de sobrevivência do planeta, que se faça a transição. Ela está acontecendo de forma lenta e perigosa. O governo Trump deu, na verdade, duro golpe nesse projeto, ao se afastar do acordo de Paris. Mas agora, com o Biden, pode voltar aos trilhos. Vejo, de novo, o Brasil numa posição muito boa para ocupar esse espaço e de uma forma que projete para o mundo a consciência de que essa é uma questão planetária, e boa para nós também.
*Arminio Fraga
Sócio fundador da Gávea Investimentos e presidente do conselho do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde. Membro do Group of Thirty e do Council on Foreign Relations. Foi presidente do Banco Central (1999-2003), presidente do conselho da B3, diretor do Soros Fund Management e trustee da Princeton University (EUA), onde obteve seu Ph.D.. Foi professor da PUC-Rio, da EPGE-FGV, da SIPA-Columbia (Nova York) e da Wharton School (Pensilvânia).
*Raul Jungmann
Ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
*Caetano Araújo
Consultor legislativo do Senado Federal, sociólogo. É diretor da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
RPD || Editorial: Congresso Nacional sob nova direção
O calendário político de fevereiro começou com a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e a vitória folgada, em ambos os casos, dos candidatos mais próximos ao Executivo. Difícil subestimar as consequências dessas trocas de comando. Afinal, ao longo dos dois primeiros anos do atual governo, Rodrigo Maia desempenhou papel relevante na contenção das iniciativas governistas de confronto com o ordenamento democrático vigente. Seu sucessor, ao que tudo indica, terá como prioridade, na direção oposta, acelerar a tramitação das pautas consideradas relevantes pelo governo.
Diversas lições podem ser extraídas desses acontecimentos. Em primeiro lugar, mais uma volta foi dada no parafuso que mantém juntos o governo e o grupo parlamentar conhecido como Centrão. É de se prever que diferenças remanescentes serão aparadas e nomes do primeiro escalão substituídos, sempre no sentido de aumentar a participação dos políticos pragmáticos que se reuniram no apoio à eleição da nova Mesa da Câmara.
Em segundo lugar, o decorrer do processo escancarou as fragilidades das oposições, em particular a dificuldade de cooperação em torno de um objetivo comum. Num primeiro momento, pareceu que o candidato da continuidade havia conseguido sucesso na construção de uma improvável frente em seu apoio, com partidos da esquerda, do centro e da direita.
Especulava-se, então, se as decisões coletivas tomadas por esses partidos viriam a prevalecer sobre o trabalho personalizado de convencimento e barganha desenvolvido pelo candidato do governo. O resultado da apuração, contudo, excedeu às previsões mais pessimistas da oposição. Não só houve defecções em grande número, mas siglas importantes migraram, na última hora, da posição de apoio ao candidato Baleia Rossi para uma neutralidade aberta e militante.
Ficou claro que, nas fileiras da oposição, prosperam, ao mesmo tempo, problemas de prioridade, uma vez que muitos decidiram seus votos em função da perspectiva de ganhos menores, e outros, mais profundos, de identidade, dado que, para vários eleitores, não houve razões claras e convincentes para negar o voto ao candidato governista.
A recomposição possível, o esclarecimento em torno das diferenças entre o relevante e o acessório, entre governo e oposição, será um processo complexo e demorado. Ao que tudo indica, o terreno da batalha será o debate e a votação em torno de cada um dos projetos prioritários do governo.
RPD || Paulo Fábio Dantas Neto: Crônica de um revés parcial - Duas arenas e a política de resistência democrática
Vitória com a eleição de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado, respectivamente, não é garantia de que Jair Bolsonaro vai ter sucesso na disputa eleitoral em 2022
Na análise das eleições às presidências e mesas diretoras do Congresso não se deve subestimar, ou exagerar, suas implicações sobre a política brasileira. Em especial na Câmara, houve vitória importante do governo federal, mas esteve longe de ser decisiva. É preciso cautela antes de tratá-la como prenúncio do que ocorrerá com o Executivo, a partir de 2022, ou antes. A dinâmica do Congresso é uma, a da disputa presidencial, outra. Na primeira arena, decidem deputados; na segunda, o povo, e inexiste coerência entre suas lógicas. Bolsonaro (sem partido) pode manter sua base na Câmara e perder a eleição apesar disso. Pode perder a base e ganhar a eleição apesar disso, ou justamente por isso.
Na Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) foi o foco de uma disputa politizada pela candidatura da frente partidária que liderou. A frente evoluiu da defesa da independência do Legislativo à oposição ao governo, entrelaçando lógicas das duas arenas. O adversário largara na frente e, pela lógica da arena interna, fez-se elo entre o governo e deputados, individualmente. A campanha de Baleia Rossi (MDB-SP), com discurso democrático, para fora da Câmara, vendo-se em desvantagem, jogou pedras nos votantes. Denunciar fisiologismo esmaeceu a valorização, pelo próprio Baleia, de serviços prestados pela Câmara ao país, sob a gestão de Maia. No contexto de pandemia, a “política dos políticos” tem dado mais do que recebe. Foi seu adversário quem disse isso sem ressalvas, com sotaque corporativo. Todavia, não foi o tom da campanha que derrotou a frente. Maia expressava um centro político contestado, com êxito, pela base governista, usando, em escala inabitual, recursos políticos habituais.
Num quadro de polarização entre governo e oposição, um centro independente, sob forte pressão, tende a ser sufocado se não adernar para um dos lados. A opção de olhar à direita e tentar dividi-la desvaneceu quando a base governista se organizou. Maia fez o que podia, isto é, olhou à esquerda e acenou à sociedade civil. Não bastou. Pode-se arguir que, ciente da inviabilidade eleitoral desse caminho, poderia assimilar a derrota e tentar confiná-la à Câmara, para manter a frente partidária de pé. As eleições presidenciais estão logo ali, caberia cuidar para que a derrota não contaminasse a outra arena.
O resultado da eleição no Senado dispensa resenha. O desfecho considerou a especificidade da arena parlamentar, mantendo teso o arco da promessa de frente democrática. A articulação incluiu partidos que formaram com Baleia na Câmara, ajudou a dissolver a polarização e mitigou a vitória governista. Pela agenda e perfil de Rodrigo Pacheco, o Senado pode ser âncora da resistência democrática, conter crises e construir governabilidade, papéis análogos aos que a Câmara vinha tendo e, por ora, não terá.
A postura de Arthur Lira assusta pelo tipo de populismo de plenário que pode levar a Câmara, sem freios, a votar com violência plebiscitaria. Uma casa como aquela, se não tiver um comando centralizado, é fonte de instabilidade e de pautas polarizadoras da sociedade. Lira prometeu previsibilidade só a seus pares. Se cumprir, a sociedade pode se deparar com um Nero, e Bolsonaro, talvez, com seu Eduardo Cunha.
A Câmara pode colidir com o STF e com o Senado, em autofagia institucional. E, encoberta pelo biombo ruidoso das pautas de costumes, prospera, com a vitória de Lira, uma discreta e concreta estratégia de solapa da Constituição. Ricardo Barros, líder do governo, parece ser o político selecionado para a missão da reforma constitucional que, por atacado ou a varejo, atenda ao continuísmo por três vias, não excludentes entre si: derrubar freios institucionais para que o Executivo se aproprie de joias eleitorais como vacina e auxílios emergenciais a pobres e distribua benesses a setores econômicos; alterar regras eleitorais para facilitar a reeleição de Bolsonaro, hoje dificultada pela regra dos dois turnos; e a “via russa”, da governabilidade semiautoritária à investidura do Gal. Mourão, tecida pelo centrão e militares do palácio, em caso da popularidade do presidente desabar.
Com ameaças de tal monta, que papel pode ter um centro político? Fazer intransigente oposição a desmandos e crimes. Valem manifestos, artigos, panelaços, processos judiciais e resistência parlamentar em defesa da Carta, com articulação entre oposição política e sociedade civil. De outro lado, diálogo constante com elos mais tênues da cadeia governista para bloquear a via russa, no que terão papel o Presidente do Congresso e a ambivalência estratégica de seu partido, o DEM. Assim, a derrota na Câmara será parcial.
Frente ampla ainda pode haver na arena congressual, mas é irrealismo vê-la na eleitoral. Se houver frentes no primeiro turno, tendem a ser duas. Mas há condição de derrotar Bolsonaro, fugindo da Rússia e caminhando, até 2022, colado à via agregadora que livrou o mundo de Trump. Uma sociedade civil que o rejeita, organizações e instituições que podem contestar cada passo extremista e, entre opções ao centro, é possível achar um candidato que fale de vacina, emprego e renda, democracia e pacificação política. Na esquerda, há gente capaz de fazê-la agir no segundo turno como Sanders nas eleições americanas. Desde que, no centro, haja análoga disposição, se a esquerda chegar lá.
RPD || Nelson Tavares: Múltiplas razões
Depois de derrocada no Brasil, Ford aposta seu futuro nos carros elétricos. Companhia, que fabricava veículos no país desde 1919, vinha fazendo cortes de pessoal nos últimos anos e sofrendo queda de vendas superior à do mercado
Qual a montadora de veículos de maior valor internacional?
Décadas atrás, a indústria automobilística era acompanhada, em proporções razoáveis, por parte da população. As pessoas seguiam o lançamento do modelo (o “design” do carro), a potência do motor, o volume de venda nos diversos mercados. Essa atitude se traduzia na admiração que alguns cultivavam por montadora A ou uma de suas irmãs.
Sim, todas eram consideradas “irmãs”. Tal como na indústria petrolífera, em que oito empresas forneciam o petróleo do mundo e se articulavam como um cartel, oito montadoras eram responsáveis pela produção da quase totalidade dos carros montados no mundo. A articulação que havia entre elas era menor do que a existente na área do petróleo. Concorriam no “design”, na potência dos motores e no padrão de qualidade imprimido, mas atuavam conjuntamente procurando sempre trazer “benesses” para o setor.
As indústrias petrolíferas e montadoras de veículos eram consideradas um “poder” à parte, capazes de interferir em governos de diversos países e mesmo desestabilizá-los. Nas bolsas de valores, mundo afora, estavam bem sempre bem representadas entre as maiores. No caso das montadoras, tudo com uma certa admiração de parte da população.
Respondo agora à pergunta acima feita. A maior montadora do mundo, em valor na bolsa de valores americana, é a TESLA. Foi fundada em 2003 e, em 2020, ultrapassou o valor de mercado da TOYOTA. Suas ações valem US$ 208 bi. Fabricou nesse ano pouco mais de 367 mil veículos e seus demais componentes, ao passo que a TOYOTA fabricou cerca de 10 milhões. O mercado está acompanhando a TESLA e verifica que se trata de uma empresa inovadora com lugar garantido no futuro.
A indústria automobilística está perdendo seu valor e espaço nas bolsas internacionais. Desde 1990, ocorrem fusões e aquisições entre elas, a mais recente Fiat-Peugeot. Algumas delas percorrem esse caminho da desvalorização de maneira mais rápida. A Ford internacional é uma dessas. Seus carros não conseguem atender todas as faixas de mercado. Nos EUA, seu carro mais vendido é a “EXPLORER” e suas variações, mas carros de passeio, construídos para a classe média/média e média/baixa, a FORD não consegue produzir com margens de lucro razoáveis.
As grandes montadoras têm buscado inovações no mundo inteiro, para tornar seus produtos mais atraentes. Investem alto em pesquisa de digitalização de seus veículos. Procuram se unir a empresas que complementem suas linhas de produto e de inovações. Mas têm um grande desafio pela frente: mudar sua base energética e adequar a emissão de carbono aos padrões que serão/estão sendo exigidos, à luz da proibição do uso de combustíveis fósseis nas grandes cidades, de acordo com o Tratado assinado em Paris sobre a redução da emissão de gases de efeito estufa. Algumas cidades já mencionam a possibilidade de proibir os carros que utilizam combustíveis fósseis, já em 2030.
A situação é agravada quando falamos do mercado interno brasileiro. E, mais uma vez, o exemplo é a Ford. Não foi a primeira vez que a empresa tentou sair do país. Na década de 80, entregou o design de seus veículos à Volkswagen, a quem se juntou formando a “Autolatina”.
Na década de 90, já separada da “coirmã”, sofreu dois outros golpes decisivos. No início da década, o governo federal diminuiu IPI dos motores até 1000 cilindradas, exigindo o devido repasse aos preços. Estendeu o mercado consumidor em uma nova faixa, que antes não tinha condição de comprar carro. A Fiat saiu na frente, com o carro Mille. E ocupou o devido espaço no mercado. As demais montadoras tiveram de criar produtos e adaptar suas linhas a essa nova realidade, em que o carro mais vendido estaria voltado para as classes média/média e média/baixa, com margens inferiores aos que existiam. Tanto a Ford como a Volkswagen obtiveram sucesso apenas relativo neste mercado.
A outra medida foi abrir o mercado para produtos importados, estimulando a concorrência. A alíquota de importação de veículos caiu paulatinamente de 80% para 35%, em quatro anos. A abertura do mercado foi decisiva para estimular novos investimentos. A realidade é que nesse setor vigorava certo acordo entre trabalhadores e empresários, que viam nas alíquotas maiores de importação a salvaguarda de seus empregos, ao passo que os empresários não faziam qualquer esforço de modernização de suas linhas de montagem e de seus produtos.
Na segunda metade da década de 90, novamente, o governo sinaliza para as montadoras com incentivos para fábricas novas, que deveriam ser montadas em locais diferentes das anteriores. Sem entrar em consideração sobre a política de descentralização regional promovida, a FORD montou nova unidade em Camaçari/BA, para montar um novo carro, com design brasileiro, o EcoSport. E mais uma vez obteve sucesso relativo, incapaz de remunerar de maneira satisfatória o investimento feito em seu lançamento.
Enfim, atualmente a FORD tem cerca de 7% do mercado, muito pouco para uma empresa que sempre se situou em torno do patamar de 20%. Diante das mudanças no mercado internacional e, após uma “década perdida”, na economia brasileira, e das perspectivas de crescimento modesto, tanto do mercado automobilístico interno, como das exportações, a empresa decidiu retirar-se do país. E tudo indica que irá fazê-lo em ritmo acelerado.
RPD || Mauro Oddo Nogueira: O Brasil tem jeito - Basta olhar para o BRASIL
Para falar sobre a economia brasileira, com bases reais, é preciso tratar da realidade dos autônomos e empregados informais invisíveis, que o Auxílio Emergencial tornou momentaneamente visíveis – e também, dos autônomos e empregados formais das nano, micro e pequenas empresas (MPEs), avalia Mauro Oddo
Por mais idas e vindas que se apresentem, a vacina não tarda. Então, é hora de refletir sobre como reconstruir o tecido produtivo do Brasil, após uma crise estrutural que se arrastava há 4 anos e à qual se somou o cataclismo da Covid-19. A resposta pressupõe uma reflexão sobre, afinal, de qual Brasil estamos falando? Pensamos somente no Brasil da Avenida Paulista ou incluímos o BRASIL no qual a renda média do trabalhador é de R$ 2.400,00 por mês (com uma mediana bem abaixo disso)?
Vamos, pois, falar um pouco do BRASIL. Ele é composto, basicamente, por dois segmentos de trabalhadores. O primeiro, autônomos e empregados informais, representando cerca da metade dos trabalhadores do país. São os invisíveis que o Auxílio Emergencial tornou momentaneamente visíveis. O segundo, os autônomos e empregados formais das nano, micro e pequenas empresas (MPEs): cerca da metade dos trabalhadores formais. Ou seja, ¾ dos trabalhadores é o contingente que dá forma à desigualdade no Brasil. Portanto, falar de economia brasileira sem falar deste BRASIL é falar de qualquer outra coisa, menos da economia brasileira.
Mas o fato é que só episodicamente essa realidade não foi marginal em nossos projetos de desenvolvimento. Desde a temática econômica da mídia às políticas públicas e às Universidades, com raríssimas exceções, esse mundo passa longe. Longe dos currículos dos cursos de Economia, Administração, Engenharia e Direito, aqueles que conformam o ethos das nossas “elites dirigentes”; das discussões na mídia; e, quando muito, é periférico nas ações governamentais. Não pensamos no BRASIL, pelo fato de o desconhecemos. O Brasil dos debates e das políticas econômicas é e sempre foi o Brasil da Avenida Paulista. O resto é “questão social” …
E o que nos diz o olhar em direção ao BRASIL? Diz, incialmente, que a lenda de “primeiro crescer o bolo para depois dividi-lo” – bordão da ditadura que continuou subjacente à boa parte das políticas econômicas que se seguiram – é uma falácia. Seja porque esse momento “da divisão” nunca chega, talvez seja porque a realidade mostra que a lógica deve ser exatamente a inversa. É pela criação de demanda que a economia se desenvolve. E criação de demanda em nosso país se traduz essencialmente em elevação da renda da população do BRASIL. Temos duas provas recentes disso. A política do salário mínimo conduzida por Lula é uma. A outra é a evidência de que só não ocorreu um colapso econômico por conta da pandemia, graças ao Auxílio Emergencial.
Mas aí caímos em uma outra questão: como elevar a renda dessa população? Não entrarei na questão das transferências e dos programas de renda mínima, tema merecedor de tratamento muito mais atencioso nos debates. Vou me ater à vertente produtiva e o que considero seu conceito chave: produtividade do trabalho. Como dito acima, o BRASIL produz, basicamente, na informalidade e nas MPEs. Apresentarei apenas uma comparação: aqui, a produtividade de um trabalhador de uma pequena empresa formal é 27% daquele de uma grande; e de uma micro, é de 10%.
Na Alemanha, essas relações são de 70% e 68%, respectivamente (dados da CEPAL de 2012). Imagine nas atividades informais! Por favor, não digam que esse trabalhador é, como indivíduo, muito menos produtivo que o alemão. Não! Se colocarmos um desses trabalhadores em um posto de trabalho de uma grande empresa nacional ou de uma microempresa alemã, sua produtividade rapidamente se igualará àquela normal dessa empresa. O problema está no conteúdo técnico do posto de trabalho. Em outras palavras, tecnologias de processo e de gestão.
Fica evidente que não há como aumentar a renda do trabalho sem aumento de produtividade. E não há como aumentar sistemicamente a produtividade sem demanda, isto é, sem renda. Assim, somente um círculo virtuoso de produtividade e renda pode nos levar a superar o atraso econômico e a desigualdade social. E não há outro caminho para tanto senão um investimento maciço por parte do Estado no conteúdo técnico dos postos de trabalho via modernização de processos organizacionais e produtivos das MPEs. Isso pressupõe profunda revisão (ou reinvenção) da arquitetura e dos montantes dos mecanismos de crédito, de apoio em qualificação gerencial e de regulação ora oferecidos para o BRASIL. O que, por sua vez, pressupõe tirar o binóculo da Avenida Paulista e colocar o BRASIL no “centro do prato” das políticas econômicas, deixando de destinar para ele apenas “as migalhas que caem da borda”, via programas sociais de “geração de emprego e renda”.
*Mauro Oddo Nogueira é doutor pela Coppe/UFRJ e pesquisador do Ipea. Autor de Um Pirilampo no Porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil.
RPD || Lilia Lustosa: É tudo pra ontem, tá ligado?
Dividido em três atos, AmarElo - é tudo pra ontem é uma aula de história da cultura brasileira que é também a própria história da cultura negra, herdeira da escravidão e dos maus-tratos, avalia Lilia Lustosa
O palco é o Theatro Municipal de São Paulo. O ano, 2019. Na programação, nada de óperas, orquestras sinfônicas ou coros líricos … A estrela hoje é o rapper Emicida em seu show de lançamento do disco AmarElo, premiado com o Grammy Latino de melhor disco de rock ou música alternativa em língua portuguesa. Show que virou filme pelas mãos do estreante Fred Ouro Preto e foi lançado recentemente em outro palco de elite: a Netflix.
Dividido em três atos, AmarElo - é tudo pra ontem é uma verdadeira aula de história da cultura brasileira que, como bem deveríamos saber (e não sabemos), é também a própria história da cultura negra, herdeira da escravidão e dos maus-tratos. História de um povo (nosso povo!) que foi apagada de nossos livros didáticos. História de personagens invisibilizados por tantos líderes brancos que ocuparam nossos tronos.
Impossível não nos sentirmos envergonhados de nossas ignorância, impotência e aquiescência diante do que vemos. Sentimentos que se misturam também ao da indignação: como não nos ensinaram tudo isso na escola? Por que não fomos incentivados a ler Lélia Gonzalez? Por que não aprendemos sobre Tebas – escravo que virou arquiteto e que tanto fez pela cidade de São Paulo? Por que não tivemos capítulos em nossos livros dedicados ao Movimento Negro Unificado (MNU) e à sua marcha de 1978? Por que não aprendemos sobre a força dessa gente de pele escura que, em plena ditadura, ousou subir as escadarias desse mesmo Theatro Municipal e fazer dali a tribuna de seu protesto?
AmarElo joga tudo na nossa cara! Mais que isso, esse filme-show-aula-de-história abre as portas do teatro mais importante de São Paulo para o brasileiro comum, para a gente pobre, de classe média baixa, vestida de jeans e camiseta. Gente de cabelo enrolado, liso ou afro, de pele escura, parda, branca, amarela. Uma amostra verdadeira de nosso povo que pode se ver ali enfim representado. Gente que nunca ousou pisar naquele palco, nem ocupar aquele espaço!
O filme ensina, toca, embala, enche nossa alma. Apresenta-nos músicas novas e antigas repaginadas, como a que dá nome ao disco (e ao filme), que tem como sample-base a Sujeito de Sorte (1976), de Belchior, e seu refrão mais que apropriado: “Ano passado eu morri, mas esse ano não morro!” AmarElo mostra-nos ainda variações do rap, gênero de protesto já consolidado no Brasil, mas que segue em eterna (r)evolução. Um rap menos masculizado, híbrido, fluido, que amplia sua área de atuação, fugindo dos padrões de uma arte feita por “machos”, ao incluir as artistas Majur e Pabllo Vittar em seu número principal. O resultado é de arrepiar! A música cola na cabeça, liberta a alma e instiga a criar coragem para fazer a diferença. Emicida impressiona por sua lucidez, seu pensamento filosófico e grandeza de sua arte.
Sem jamais cair no piegas, o filme, conduzido pela voz firme do rapper paulistano, navega por várias cores e texturas, formando uma espécie de colagem com imagens granuladas em preto e branco justapostas a imagens coloridas em alta definição, entremeadas por belas lustrações que se animam e dão cor e leveza à história ali apresentada. Emicida vai mostrando de forma não linear o caminho que o levou até ali, desde sua infância na periferia, passando pela confecção do disco, pelos encontros com personalidades artísticas, até a explosão do show no Municipal. Um caminho alimentado pelo resgate da verdadeira História do Brasil. Dá vontade de continuar assistindo, de descobrir um pouco mais, de puxar aquele novelo e desenrolá-lo por completo.
Só não entendi a menção ao filme Orfeu do Carnaval (1959), do francês Marcel Camus, que, apesar de ter levado a música brasileira mundo afora, mostra uma realidade caricata do Brasil e de suas favelas, pintando nossos negros como os “bons selvagens” de uma terra exótica e feliz. Melhor seria ter citado algum filme de Adélia Sampaio, primeira mulher negra a dirigir um longa em nosso país. Ou obras como Ganza Zumba (1964), de Cacá Diegues, e Barravento(1962), de Glauber Rocha, que inovaram ao dar protagonismo a personagens negros até então relegados à subalternidade.
De toda maneira, o AmarElo de Emicida é um filme urgente para estes tempos tão sombrios, já que traz à tona e põe em xeque temas da ordem do dia: gentrificação, apagamento histórico, masculinidade, racismo estrutural, genocídio negro… Seus densos 89 minutos de duração nos obrigam a olhar para trás e entender que é preciso reescrever nossa história, reparando injustiças e erros cometidos. E é pra ontem!
*Lilia Lustosa é crítica de cinema. Doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL).