covid-19

Bernardo Mello Franco: A mansão de Flávio Bolsonaro e a profecia de Dom Bosco

Na noite de 30 de agosto de 1883, o padre italiano Giovanni Bosco sonhou que fazia uma viagem pela América do Sul. Entre os paralelos 15 e 20, ele vislumbrou uma “enseada bastante longa e larga, que partia de um ponto onde se formava um lago”. Uma voz divina assoprava em seu ouvido: “Quando vierem a escavar as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá a terra prometida, de onde jorrará leite e mel. Será uma riqueza inconcebível”.

Dom Bosco morreu em 1888, virou santo em 1934 e inspirou os fundadores de Brasília em 1960. A cidade foi erguida entre as coordenadas geográficas do sonho e à beira de um lago artificial, o Paranoá. O sacerdote se tornou onipresente no Planalto Central: batiza igreja, colégio, farmácia e pizzaria. Agora seu santo nome também está associado aos negócios da família presidencial.

Flávio Bolsonaro virou morador do Setor de Mansões Dom Bosco, uma das áreas mais valorizadas da capital. O senador comprou uma casa de 1.100 m² de área construída, com quatro suítes, oito vagas de garagem, piso de mármore e piscina aquecida. Com salário líquido de R$ 24 mil, ele arrematou o imóvel por R$ 6 milhões.

A mansão é o mais novo símbolo do enriquecimento dos Bolsonaro na política. Quando disputou sua primeira eleição, em 2002, o primeiro-filho declarava como único bem um Gol 1.0. Cinco mandatos depois, ele pilota um Volvo XC e acaba de adquirir seu 20º imóvel em 16 anos.

A casa também simboliza a crença da família na impunidade. Em novembro, o Ministério Público do Rio denunciou o senador por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Ele fechou o negócio dois meses depois, às vésperas de o Superior Tribunal de Justiça julgar seus recursos contra a investigação.

Seguindo a tradição da família, a transação está encoberta por mistérios. O Zero Um registrou a compra do imóvel na cidade-satélite de Brazlândia, a 58 quilômetros da mansão. O cartório atropelou a Lei de Registro Público e tarjou a escritura pública para ocultar seus dados patrimoniais. O Banco de Brasília (BRB), ligado ao governo do Distrito Federal, financiou parte da operação com juros abaixo do mercado.

Irritado com a descoberta da mansão, Flávio atacou a imprensa e negou irregularidades. Ele disse ter comprado o imóvel com o valor da venda de um apartamento e de uma franquia da Kopenhagen, apontada pelo MP como fachada para lavar dinheiro. “Tá tudo redondinho, dentro da lei e sem problema nenhum”, afirmou, em vídeo divulgado nas redes sociais.

Eleito com a promessa de combater a corrupção, o presidente ainda não falou sobre a casa milionária. Há poucos dias, ele abandonou uma entrevista para não responder sobre as manobras do herdeiro no STJ.

Depois de 138 anos, os Bolsonaro dão novo significado à profecia de Dom Bosco. Ao se instalar entre os paralelos 15 e 20, o clã passou a ostentar uma riqueza inconcebível. A diferença está no detalhe: em vez de leite e mel, a mina do primeiro-filho faz jorrar chocolate.


Dorrit Harazim: Medos múltiplos

No fundo, foram falas de poltrão. Cuspidas pelo presidente da República em tom estudadamente espontâneo esta semana, os disparates não precisam ser repetidos aqui — já ofenderam o suficiente a nesga de autoestima que ainda resiste no país. A necessidade de recorrer a falas tão odientas sugere que Jair Bolsonaro está com medo. Medo de que caia a casa ostentação comprada pelo filho Flávio, medo de seu pacto de morte com a Covid-19, medo de a rua pressionar o Congresso, medo de chegar lanhado em 2022 — ou de nem sequer chegar até lá. Agora está prisioneiro do descaminho escolhido, que não tem volta: por meio da retórica (e da política) sanhosa, procura apenas manter a fidelidade de rebanho dos que o elegeram.

Bolsonaro não foi o único a tratar a Covid-19 com nonchalance suicida. De início, por interesse eleitoral ou estupidez, uma parte do Brasil envergando paletó ou farda, toga ou chinelo de dedo, também não quis ver o tamanho do perigo. Quase sempre correndo atrás do atraso e adotando políticas ciclotímicas de abre/fecha, autoridades estaduais e municipais foram tateando. Hoje 1.703 prefeitos aprendem a formar consórcios para a compra de vacinas. O Congresso, que por um ano se fingiu de adormecido, por fim acorda algo sobressaltado.

Mas o grosso da responsabilidade, pelo imenso poder de liderança, comunicação e recursos que o cargo lhe dá, é do presidente da nação. Exatamente um ano atrás, neste espaço se comentava o registro de 13 casos positivos de Covid-19 entre os 209 milhões de brasileiros. O salto para os quase 11 milhões de casos atuais, com mais de 264 mil vidas perdidas no caminho, nasceu da cartilha manicomial de Jair Bolsonaro, e nada, daqui para a frente, conseguirá apagar esse rastro.

Nem mesmo o “Penguin Book of Lies”, trabalho investigativo-literário sobre as várias formas de mentir publicado em 1990 pelo britânico Philip Kerr, conseguiria dar conta das artimanhas mentais do presidente. Talvez nem Santo Agostinho sou besse fazê-lo. O santo sustentava que “nem todo aquele que diz falsidades está mentindo se crê ou presume ser verdadeiro o que diz...”. Mas como saber se o capitão sequer acredita nas sandices que professa? Possivelmente não, são apenas escapes.

Joseph Goebbels sabia que mentia. Exercitava o ofício da propaganda com total controle e convenceu os alemães da receita nazista. Ronald Reagan, ao contrário, realmente acreditava na “América” de John Wayne e das ilustrações de Norman Rockwell. Convenceu o eleitorado de que representava o país onde sempre é possível enriquecer. Suas crenças eram simples. Foi reeleito apesar de 138 membros de seu governo terem sido investigados, indiciados ou condenados por inúmeras encrencas.

Pensadores de calibre, como Hannah Arendt, já ensinaram quanto esconder a verdade faz parte das ferramentas necessárias e justificáveis não apenas para políticos demagogos, como para estadistas de verdade. Ademais, inexiste a política da autenticidade pura, da sinceridade não contaminada. Nem deve existir, aconselha o visionário George Orwell, cada vez mais lido nos dias de hoje. Para o autor de “1984”, pior do que a hipocrisia na política, é um mundo em que ninguém mais tem sentimentos privados para manter secretos. “Quando ninguém mais tiver nada para esconder, é onde reside o terror”, escreveu. A verdade absoluta, inequívoca, aquela que silencia os que dela discordam e cancela qualquer debate, pode ser tão opressora e inimiga da liberdade humana quanto uma imensa mentira.

Nenhuma dessas considerações nem sequer consegue ser aplicada a Jair Bolsonaro, que é apenas um terrível, lamentável , primitivo e danoso aspirante a chefete do Brasil. Nos primórdios da revista “Veja”, a redação brincava de dividir a chefia do semanário em três categorias: arquitetos do caos, simuladores de produtividade e falsos ecléticos. Bolsonaro consegue ser as três coisas ao mesmo tempo e tantas outras mais.

Apenas não consegue ser humano.


Merval Pereira: Guerra é guerra

O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem se mostrado competente na análise prospectiva de nossa economia, embora de nada isso lhe valha para evitar os fracassos que prenuncia. Disse que se fizéssemos muita besteira, o dólar chegaria a R$ 5,00. Chegamos a R$ 5,53 no fim de semana sem que o ministro tenha evitado. Recentemente, disse que poderíamos virar uma Argentina, ou quem sabe uma Venezuela, em poucos anos, se caminharmos para “o lado errado”.

Mais uma vez está certo, e nada indica que consiga frear essa caminhada célere para o abismo que o presidente Bolsonaro lidera. Bolsonaro sabe o que eu penso, eu sei o que ele pensa, disse Guedes durante a crise gerada pela intervenção presidencial nos preços da Petrobras. Só nós não sabemos por que Guedes não sai do governo se não consegue conter os ímpetos intervencionistas do chefe.

Por que, então, não nos transformamos em um Paraguai pelo menos por alguns dias, meses, e não saímos nas ruas até tirarmos Bolsonaro da presidência da República, cargo que ele não merece exercer pela falta de compostura, a incapacidade administrativa, e, sobretudo, a impossibilidade de enfrentar a pior pandemia em um século no Brasil e no mundo?  

“Estamos em guerra”, anunciou o Secretário de Saúde de São Paulo Jean Gorinchteyn. E se estivéssemos em guerra contra outro país, e não contra um vírus, como nos comportaríamos tendo à frente um líder como Bolsonaro, incapaz de oferecer a seus compatriotas “sangue, suor e lágrimas”?

Logo ele, sujeito de maus bofes, que vive procurando briga, irritadiço, violento, agressivo. Uma guerra de ocupação, de conquista ou defensiva, talvez encontrasse em Bolsonaro um comandante aguerrido, mas trapalhão, é o que se depreende de ele ter ameaçado pateticamente os Estados Unidos “com pólvora” numa imaginária guerra para proteger a Amazônia.

Capaz, mesmo tecnicamente sóbrio, de bravatas desastradas como a do General Leopoldo Galtieri, ditador argentino que, bêbado, declarou guerra à Inglaterra por causa das Ilhas Malvinas. Assim como não está preparado para comandar um Exército, pois falta-lhe bom-senso e não concluiu o curso de comando do Estado-Maior, Bolsonaro também não está preparado para exercer a presidência da República, mas foi eleito e tem sob seu comando vários oficiais superiores, que não lhe deixariam comandar pelotões em uma guerra, mas acham que podem ser comandados por um político medíocre, que já demonstrou o mal que pode fazer ao país.

Os militares que se subordinam ao capitão o fazem mais por uma hierarquia militar, que coloca o presidente como Comandante em Chefe das Forças Armadas, do que por amor à democracia.  Pois o amor à democracia os obrigaria a abandonar um presidente  tresloucado, que está levando a morte à população brasileira por caprichos, ignorância e cálculo político.

Em uma guerra, a morte é a regra, e, mesmo assim, o oficial que encaminha seus comandados a atos manifestamente criminosos, ou a excessos, pode ser condenado, mesmo em tempo de paz. Galtieri foi condenado por negligência na guerra das Malvinas, tendo sido anistiado depois por lei especial. A guerra contra a Covid-19, assim como na guerra tradicional, leva a morrer pela pátria, como no caso do pessoal da linha de frente médica, que se arrisca a morrer para salvar vidas. Desde o início da pandemia, segundo dados oficiais, quase mil mortes de profissionais de saúde - médicos, enfermeiros, técnicos - foram registradas.

Defender a saúde pública é dever das autoridades do país, e nenhuma delas, por mais elevado que seja seu cargo ou posto, pode desconhecer o perigo de morte, se omitir ou dificultar o seu combate, segundo juristas. Qualquer autoridade que não lute pela  preservação da vida ameaçada por uma crise de saúde pública comete  “crime de responsabilidade”, e seus atos devem ser apreciados e julgados. Sobretudo quando mais de 260 mil pessoas já morreram, grande parte por negligência governamental.

“Todo mundo vai morrer um dia”, disse o presidente Bolsonaro ao comentar o número de mortes pela pandemia. Mas apressar a morte em uma pandemia por falta de oxigênio, de leitos de UTI, ou de vacinas, é crime.


Marco Aurélio Nogueira: A pandemia, o futuro, a vida que flui

A época atual é de perplexidade, que ofusca o futuro e idealiza o passado. Com o capitalismo globalizado e a revolução tecnológica, a experiência sociocultural ingressou em uma dinâmica de aceleração que contagiou o conjunto da vida, incrementando ainda mais a obsessão produtivista e a pressão sobre o trabalho, com enormes repercussões existenciais. A pandemia do coronavírus agravou um quadro que já era dramático. Partindo desse pressuposto, o artigo procura refletir sobre algumas vias alternativas, que recuperem o diálogo, a cooperação e a solidariedade em escala global, valorizando ao mesmo tempo a democracia e o reformismo incremental

Decifrar o futuro sempre assustou e excitou os humanos. Da mítica Esfinge de Tebas, com seu enigma que exigia um esforço de autoconhecimento e de reflexão sobre os passos da humanidade (a criança, o adulto, o idoso), ao Iluminismo, com sua aposta no racionalismo como motor do progresso, o futuro fixou-se como imagem de desafio, promessa e possibilidade. Prevalecendo a razão, decifrado o enigma, o passado seria ultrapassado inapelavelmente, levando consigo um cortejo de perversidades acumuladas, sofrimentos ingentes e vidas desperdiçadas.

Utópicos variados floresceram, idealizando construções que conteriam em si a felicidade e a harmonia futura. Mas tarde, com o predomínio crescente da ciência e da técnica, defensores do progresso técnico e econômico inexorável e futurólogos se multiplicaram, convictos da capacidade que teriam de antecipar o que se teria pela frente. Com os avanços obtidos após a Segunda Guerra Mundial -- o Estado de Bem-Estar, o aumento de renda dos trabalhadores, o desenvolvimento da ciência aplicada nas áreas decisivas da saúde e do saneamento, os direitos sociais --, anunciou-se uma era de confiança no futuro.

Chegamos assim às últimas décadas do século XX, quando o aparato institucional, sociopolítico e cultural erguido no pós-guerra começou a ser abalado por uma combinação de fatores explosivos: crescimento das demandas dos cidadãos, aumento do custo das operações estatais, crise fiscal, mercado todo-poderoso, rápida evolução tecnológica, problemas de governabilidade, passagem de uma estrutura produtiva assentada na indústria metalomecânica para uma estrutura fundada na “economia da informação”, desemprego estrutural, expansão das redes de comunicação.

Deu-se então uma reversão das expectativas. Foram postas em xeque as promessas da modernização e do progresso. As ciências humanas e a filosofia ingressaram em uma fase dedicada ao mapeamento das modificações sofridas pelo moderno. Pós-modernidade, modernidade líquida, segunda modernidade, modernidade tardia, hipermodernidade tornaram-se expressões de uso generalizado, sobre uma base consensual de que a realidade se tornara muito mais difícil de ser conhecida. Formou-se assim um paradoxo: quando tudo parecia estar sob controle -- da natureza e do tempo à sociedade, dos corpos às mentes -- eis que uma névoa espessa desaba sobre o mundo, vedando-o ao conhecimento crítico e travando a imaginação sobre o futuro. As utopias cederam lugar às distopias e às “retrotopias”, utopias regressistas, que olham para trás e celebram a nostalgia dos tempos passados.

Leio em Bauman: “O caminho do futuro assemelha-se estranhamente a um percurso de corrupção e degeneração. O caminho reverso, direcionado para o passado, transforma-se assim em um itinerário de purificação dos danos que o futuro produziu toda vez que se fez presente”. As esperanças de melhoramento fogem de um futuro que assusta, buscam refúgio em um passado idealizado em que se confiaria. “Tal reviravolta transforma o futuro, de um habitat natural de esperanças e expectativas legítimas, em uma casa de pesadelos”. (Bauman, 2017: 16).

Na base dessa inflexão repousa o fato de que, com o capitalismo globalizado e a revolução tecnológica, a experiência sociocultural ingressou em uma dinâmica de aceleração que contagiou o conjunto da vida. Incrementou ainda mais a obsessão produtivista e a pressão sobre o trabalho, com enormes repercussões existenciais. O mundo enveredou por uma etapa que realiza in totum aquilo que em seus primórdios foi utilizado para definir a condição moderna: “estar em movimento”, mudar compulsivamente, agir para confrontar e transformar o mundo, tornando-o diferente.

Aceleração

Como enfatizou Hartmut Rosa, as sociedades tornam-se modernas quando ganham “estabilização dinâmica”, ou seja, quando ficam “sistematicamente dispostas ao crescimento, ao adensamento de inovações e à aceleração, como meio de manter e reproduzir sua estrutura” (Rosa, 2019: XI). Além de se racionalizarem, ganharem diversificação e se individualizarem, as sociedades modernas são atravessadas pela aceleração de processos, sensações e acontecimentos. Tal vetor torna-se sempre mais um princípio

básico da vida moderna, que comprime o tempo e suspende os momentos de fruição, nos quais deveria ocorrer alguma possibilidade de “desaceleração” e de repouso do guerreiro.

Hartmut Rosa explorou como esse processo ativado pela compulsão produtivista implica perdas existenciais, mal-estares e aflições (estresse, exaustão, burnout, falta de tempo, pressa permanente, depressão). A sensação de que o progresso técnico (a informatização) dilataria o tempo livre e agregaria mais horas de fruição à vida cotidiana é questionada em termos práticos pela constatação de que o tempo se tornou uma variável fora de controle.

Rosa segue uma trilha também frequentada por outros autores. Byung-Chul Han, por exemplo, constata que “a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho”. Seus habitantes não são mais “sujeitos da obediência”, mas “sujeitos de desempenho e produção, empresários de si mesmos”. Inerente a ela é a produção recorrente de transtornos e paralisias hiperativas. “A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados”, de certo modo seres de “almas consumidas”. Os transtornos que nela se reproduzem expressam “o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade”. Refletem uma “humanidade que está em guerra consigo mesma”, que vive sob o império do cansaço, do esgotamento, do excesso (de estímulos, informações, impulsos), que fragmenta e destrói a atenção. (Han, 2015).

A aceleração produz efeitos nos distintos planos da vida. Afeta o modo como se pensa, se estuda, se ensina e se aprende. O modo como se trabalha e se descansa, o lazer e a fruição cultural, os relacionamentos e os afetos. Põe em xeque os sistemas, o Estado, a família, a escola e as organizações da sociedade civil. Dificulta a compreensão da realidade e a ação sobre ela. Mundializa o mundo, mas provoca separações e desigualdades que freiam a formação de uma comunidade de destino internacional. Suspende, assim, a elaboração de visões sistemáticas do futuro e de projetos de sociedade.

Essa alteração do ritmo existencial combina-se com o fato de que, na modernidade tardia, os indivíduos desejam “dispor do mundo” livremente, tratá-lo como inesgotável, pronto para ser explorado e submetido. Essa tendência está inscrita desde sempre em nossa relação com o mundo, mas alcança nova radicalidade no século XXI, graças às possibilidades técnicas oferecidas pela digitalização e pelas restrições político-econômicas da extensão e da otimização do capitalismo financeiro e da competição desenfreada. Os humanos deparam-se, assim, com um mundo que se lhes aparece como uma sucessão de “pontos de agressão”, objetos que precisam ser conhecidos, conquistados, dominados, utilizados. A “vida”, portanto, torna-se uma luta que jamais pode ser interrompida. Turbinada pelos mecanismos do mercado e pelas ofertas várias do processo sociocultural, a

dinâmica vital termina por gerar frustrações seriais, raiva, medo e insatisfação, assim como comportamentos políticos fundados na violência e na agressão.

Na modernidade tardia, observa Hartmut Rosa, o “mundo da vida” torna-se cada vez mais indisponível, opaco e incerto. “Em consequência, a indisponibilidade retorna à vida concreta, mas modificada e angustiante, como uma espécie de monstro que teria se criado a si mesmo”. (Rosa, 2020). O programa moderno de extensão do acesso ao mundo, que transformou o mundo em um amontoado de “pontos de agressão”, produz assim, de duas formas concomitantes, “o medo do mutismo do mundo e da perda do mundo”. Se "tudo está disponível", o mundo não tem mais nada a nos dizer e “onde ele se tornou indisponível de uma nova maneira, não podemos mais entendê-lo porque ele não é mais alcançável”.

Com a “estabilização dinâmica” das sociedades modernas e os problemas dela derivados, processa-se uma mudança na percepção cultural. Crescer passa a significa mais risco e ameaça, às pessoas, às sociedades, ao Estado, à natureza. Ao futuro. Deixa de ser um valor inquestionável, ainda que não seja abandonado como vetor econômico. Estreitam-se as margens de manobra dos governos e dos sistemas políticos, que deixam de produzir resultados satisfatórios.

Grupos e indivíduos defrontam-se com a realidade estrutural da modernidade atual: “o que sustenta o jogo do crescimento não é a vontade de obter ainda mais, mas o medo de ter cada vez menos”. Grupos e indivíduos sentem-se “estruturalmente constrangidos (a partir de fora) e culturalmente empurrados (a partir de dentro) para fazer do mundo o ponto de agressão”, para converter o mundo em algo a ser conhecido, explorado, consumido, dominado. Não é difícil imaginar a repercussão explosiva e perturbadora desse processo quando ele atinge seu ápice. A sensação de um mundo indisponível invade o plano político, onde é processada de modo discursivo e reforçada pela dinâmica incontrolável da mídia e das redes sociais, “que desencadeiam em pouquíssimo tempo ondas de indignação - ou de entusiasmo -- insuspeitáveis e com consequências gigantescas, ondas cujos fluxos e refluxos são tão imprevisíveis e incontroláveis quanto suas interações”. (Rosa, 2020)

Basta girar o periscópio para constatar que não há lugar na Terra que esteja a exibir coesão, harmonia e satisfação. A fragmentação, o sentimento de impotência, a frustração, a raiva, os estados depressivos espalham-se como fogo pelas mais diferentes sociedades. A “crise” torna-se assim abrangente: põe em xeque o modo de vida moderno, o padrão de desenvolvimento, o modo como se dispõe do mundo, como ele é ocupado, utilizado, explorado. Edgar Morin fala em “megacrise” e em “poli-crises” para acentuar precisamente essa dimensão complexa e universal, em um processo que aproxima e afasta, unifica e separa: “A globalização, a ocidentalização, o desenvolvimento são os três alimentos da mesma dinâmica que produz uma pluralidade de crises interdependentes, emaranhadas, entre as quais estão a crise cognitiva, as crises políticas, as crises econômicas, as crises sociais, que são, elas mesmas, produtoras da crise da globalização, da ocidentalização, do desenvolvimento. A gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue chegar à humanidade”. (Morin, 2011).

Faltam lideranças que se disponham a pensar o futuro, praticando uma política inovadora e de civilidade, voltada para a solidariedade e a qualidade de vida, que ficam na dependência de “resistências colaborativas” e “oásis de fraternidade” (Morin) de pequena escala. A política sofre para falar com os cidadãos, deixa-se enredar nos mecanismos do poder e nas manobrar eleitorais. Afasta-se quando deveria se aproximar. “A nossa é uma era de crise permanente dos instrumentos para resolver problemas”, escreveu Bauman. O poder se separou da política, ficando solto e fora de controle. Em decorrência, as instituições ficam mais impotentes e mais submetidas aos técnicos. Os governos querem se agarrar ao terreno nacional, mas são pressionados pelo supranacional. A condição cosmopolita (a interdependência, as interações) não conta com uma consciência cosmopolita que a direcione e regule. O mundo global não conta com uma política global. Sem política, não se completa a formação de uma opinião pública global e de uma consciência de que os problemas são globais. (Bauman, 2017: 262).

Já estamos em processo de metamorfose: uma metamorfose “abrangente, não intencional, não ideológica, que se apodera da vida diária das pessoas, está acontecendo de maneira quase inexorável, com uma enorme aceleração que supera constantemente as possibilidades de pensamento e ação”. Ela “ocorre em segundos, com uma velocidade verdadeiramente inconcebível; em consequência, está ultrapassando e esmagando não apenas pessoas, mas também instituições”. É por isso que ela escapa da conceituação vigente da teoria social e leva as pessoas a terem a impressão de que o mundo está louco. (Beck, 2018, p. 79).

O tempo veloz e a política

Quem governa e exerce poder vale-se da lentidão: precisa dela para respirar, fazer cálculos e decidir. Em boa medida, o governante poderoso pretende prolongar o passado, aquilo que existe. As oposições e os cidadãos têm pressa: desejam para hoje tudo o que tem sido postergado e tudo a que aspiram. Querem antecipar o futuro. A lentidão precisa ser modulada com sabedoria e capacidade de comunicação persuasiva. Se for excessiva, pode fazer com que oportunidades de avanço se percam e apoios sejam desperdiçados, levando a que não se consiga governar os ambientes. A antecipação apressada do futuro, por sua vez, pode ser feita de forma voluntarista, em nome da vontade de mudar, perdendo de vista as determinações fundamentais e as possibilidades concretas de mudança.

Hoje, a velocidade dos fatos aumenta na mesma proporção em que cresce a complexidade social (a diferenciação, a individualização, a fragmentação, o desentendimento) e acelera-se a inovação tecnológica, sobretudo a que afeta a comunicação e a informação, internet à frente. Quanto mais tribos, nichos e redes, maior é o volume de fatos e mais veloz é a sucessão deles. Dadas as interações e as trocas amplificadas, fatos passam a significar também versões e interpretações. Narrativas proliferam.

O resultado é um agregado que se movimenta sozinho, sem que encontre um centro gerador claro e preciso. O bólido gira em alta velocidade, como slides que deslizam rapidamente em um carrossel, sem que os espectadores tenham tempo de assimilá-los. Como decorrência, verdade e mentira se misturam, palpites e opiniões caem sobre a população como uma tempestade de raios, a mídia é onipresente. Forma-se uma névoa densa, que ajuda a rebaixar a qualidade das “narrativas” individuais, coletivas, governamentais ou patrocinadas por organizações. Vozes se espalham em tom de “verdade categórica”, impulsionadas por postagens e boatos espalhados por aplicativos, bots ou empresas especializadas.

Fatos se sucedem com rapidez inusitada, movidos por expectativas inflacionadas, ódios e ressentimentos à flor da pele, notícias e informações multiplicadas, discursos, debates e falas incessantes, uma cacofonia inesgotável. Há movimentos de luta, reivindicação e protesto os mais variados, condizentes com uma época que fez dos direitos humanos e das postulações identitárias um de seus signos mais fortes. Mas os avanços por eles obtidos tardam para socializar seus efeitos. A desigualdade se reproduz e chega a se expandir, misturada com discriminações várias e preconceitos que se repõem. A vida cotidiana, como sempre, mostra-se dura e pouco flexível, sobretudo para os marginalizados, os que se deparam com empregos que escasseiam e salários que declinam. Para os jovens, que sofrem para encontrar seu lugar no mundo.

Tudo incide sobre o espaço em que atuam os políticos, com seus partidos e suas agendas, e no qual se organizam as escolhas dos eleitores e as decisões dos governantes. A política, em si mesma, é revolvida de cima a baixo, com a crise despontando em cada curva do caminho, ora sob a forma do questionamento da representação, ora sob a colocação em xeque da ideia mesma de democracia, ora problematizando a figura dos políticos, ora fomentando versões de populismo. A esquerda enfrenta dificuldades para se renovar e se repor, a extrema-direita ressurge com virulência e agressividade.

No plano do pensamento, o cenário célere e mutante desafia os analistas, obrigando-os a checar mais fontes, a incluir mais ângulos de observação e a atravessar uma muralha de interpretações que complicam a relação “normal” entre essência e aparência. As análises tornam-se mais tentativas, refugiam-se no academicismo típico da hipermodernidade, movido a citações e referências e pouco atento à dimensão pública do

trabalho reflexivo. Exige-se sempre mais a incorporação de formas de pensar próximas da dialética e da teoria da complexidade, capazes de considerar que espaços dispostos em redes costumam gerar modalidades permanentes de “caos estável” (Beck), que se reproduzem e se refazem, até mesmo quando se estabilizam.

Sobredeterminando tudo isso, há a ação da época histórica. O capitalismo globalizado ganhou alento e seguiu seu curso, alheio a controles, crises e regulações. A turbulência econômica passou a ser personagem usual no mundo. O fundamentalismo foi reforçado, ganhando agora a companhia de nacionalistas xenófobos e demagogos, a democracia representativa tornou-se sensível demais às transformações que sacodem a vida cotidiana, a cultura de esquerda não conheceu o necessário revigoramento, o mundo do trabalho se desorganizou, a robótica, a inteligência artificial movida a algoritmos, os celulares e a informatização generalizada redesenharam o modo com os humanos vivem, pensam e fazem coisas.

O cenário não se fixa, parece sempre em movimento, mesmo quando se repõe. O analista que se proponha a interagir com tal cenário deve tentar captar o essencial do slide disposto pelo carrossel enlouquecido, sem perder de vista aquilo que vem em seguida e se projeta no horizonte. Precisa ser rápido sem ser apressado.

A velocidade está intimamente associada ao ritmo das mudanças. Há mudanças rápidas, outras precisam de tempos longos para amadurecer. Há épocas velozes e épocas em que a vida nem parece mudar, sociedades que navegam com as ondas e outras que mal conseguem sair do lugar. Em nossa época, muda-se tanto que a mudança ficou fora de controle. Sabemos que ela já está aí, mas não podemos dosá-la, nem direcioná-la. Mesmo assim, vivemos todos querendo mudar mais e no menor intervalo de tempo, somos praticamente subsumidos pela fascinação do novo, do que virá amanhã.

A velocidade com que o “novo” substituirá o “velho” intriga, até mesmo por não poder ser projetada. Há modulações e determinações a serem consideradas. A repentina subida da temperatura política e social pode tanto desencadear mudanças não previstas quanto bloquear outras já delineadas. Pode também desorganizar de tal forma o quadro existente que a complicação se torna inevitável, fazendo crescer enganos e ilusões. “Explosões” são sempre risco e surpresa: fascinam, geram temor, excitam esperanças, alteram humores, disposições e resistências.

O “novo” – um sistema, uma sociedade, um partido, uma elite política, uma cultura, um comportamento – não brota somente por causa de iniciativas políticas. Atos de vontade são importantes, mas não podem tudo. Não basta existir disposição, empenho e dedicação para que o “velho” seja deslocado. Ele está enraizado em terrenos muitas vezes arados pelo tempo secular, funciona como referência essencial para condutas, hábitos e pensamentos. Somente a ingenuidade política e o desconhecimento dos ritmos da história

podem relativizar “o peso que as gerações mortas têm sobre o cérebro dos vivos”, como escreveu Marx no 18 Brumário. A resistência à mudança, extenso e conhecido capítulo dos estudos sociais, não se apoia exclusivamente em interesses prejudicados, mas obtém a maior parte de sua força precisamente do “velho” que repousa entranhado nas bases da vida coletiva. Recusa-se a mudança por temor a ela, por não se saber direito o que fazer se aquilo que é conhecido deixar de existir, porque não se consegue visualizar o futuro.

Reformas complexas como são as da educação, da saúde e da previdência – os sistemas básicos de proteção social – requerem tempo para serem gestadas com um mínimo de consenso e executadas com sustentabilidade. Os cidadãos, porém, querem respostas imediatas. Os efeitos e os resultados do reformismo não são imediatos, fazem-se sentir ao longo de décadas. Enfrentam bloqueios e oposições, seja porque afetam interesses constituídos, seja porque se deparam com hábitos cristalizados, que não podem ser substituídos de um dia para outro.

Mudanças sistêmicas, que mexem com organizações e instituições, com modos de agir, pensar e sentir, não têm como ocorrer de chofre, abruptamente. Tentativas nesse sentido costumam dar errado. Justamente porque são complexas, tais mudanças vêm a conta-gotas: vencem quando são incrementais e economizam rupturas bruscas. São alterações moleculares, muitas vezes microscópicas e silenciosas, que, com o tempo, tendem a se acumular e a metamorfosear o organismo social como um todo.

O incrementalismo persegue a mudança segura, processual, blindada contra retrocessos. É uma perspectiva que valoriza a negociação e o acúmulo de forças, requerendo, por isso, a presença em cena de sujeitos políticos qualificados, dispostos a fazer “sacrifícios” e a se distanciar dos aplausos fáceis das multidões. Qualificados para resgatar a confiança perdida das pessoas, mobilizando-as para que assimilem as pressões mais disruptivas, reúnam-se e produzam consensos É uma perspectiva que requer maiores doses de inteligência política, sofisticação intelectual, paciência, bem como daquilo que os gregos chamavam de phrónesis, prudência. O incrementalismo só é sábio quando se ajusta ao tempo e à “alma” das sociedades, quando encontra um “organismo” que saiba dominar a arte do governo e se ponha na perspectiva de valorização do Estado democrático e republicano, aprofundando os pactos básicos de convivência e a formação de novos alinhamentos políticos e intelectuais.

Olhar para frente

Mas não há somente destroços e derrotas. Há crises por todos os lados, mas também estão postas as condições de possibilidade de um reformismo de esquerda que dignifique a igualdade e a democracia política. Não estamos retrocedendo.

A ambivalência é parte integrante dos processos atuais. Crises são simultaneamente risco e oportunidade. É o que leva Morin a afirmar que a globalização constitui ao mesmo tempo o pior e o melhor da humanidade. O pior decorre de seu ímpeto destrutivo, de sua adesão a um padrão de desenvolvimento desconectado das economias reais, de sua capacidade de produzir catástrofes em cadeia, que atiram comunidades inteiras no abismo da incerteza e da insegurança, ou seja, a possibilidade de autodestruição da humanidade.

Mas a globalização também abre espaços para o melhor da humanidade. “Pela primeira vez na história humana, as condições para que se ultrapasse uma história feita de guerras, na qual as potências de morte foram reforçadas a ponto de permitir agora um suicídio global da humanidade”. Agora, aumentou a interdependência de cada um e de todos, nações, comunidades, indivíduos, no planeta Terra, “multiplicam-se simbioses e misturas culturais em todas as áreas, as diversidades resistem apesar dos processos de homogeneização que tendem a destruí-las”. Ameaças mortais e problemas fundamentais terminam, assim, por criar uma “comunidade de destino para toda a humanidade”. Em suma, a globalização produziu a “infra-textura de uma sociedade-mundo”, a partir da qual podemos “ver a Terra como pátria sem que isso negue as pátrias existentes, mas, pelo contrário, englobando-as e protegendo-as”. (Morin, 2011).

É evidente que a consciência dos perigos ainda é fraca e dispersa, a consciência de uma comunidade de destino permanece deficiente, a própria globalização, com suas ambivalências, impede a formação da sociedade mundial cujas bases ela cria sem cessar. Há contradições de todo tipo, que opõem, por exemplo, as soberanias nacionais e a necessidade de autoridades supranacionais que consigam lidar com os problemas vitais do planeta. Mas a sorte de algum modo está lançada, os espaços estão se abrindo. Do que se necessita é de uma mudança de via, uma metamorfose.

Quando um sistema é incapaz de resolver seus problemas vitais, observa Morin, ou ele se degrada e se desintegra, ou “revela-se capaz de criar um metassistema que o capacite para lidar com os problemas: ele se metamorfoseia”. Regeneram-se assim suas capacidades criadoras. “A noção de metamorfose é mais rica que a de revolução. Preserva sua radicalidade inovadora, mas a vincula à conservação (da vida, das culturas, dos legados do pensamento e da sabedoria da humanidade). Não há como prever suas modalidades e suas formas: toda mudança de escala leva a um surgimento criativo”. O que sabemos é que, para avançar em direção à metamorfose, é necessário mudar de via. “Mas se parece possível inverter certos caminhos, corrigir certos males, ainda assim não é possível frear a invasão técnico-científico-econômico-civilizacional que leva o planeta ao desastre”.

Nada está dado de antemão. Não é simples. É preciso ir além da denúncia e das declarações de intenção. Começar a construir alternativas e formar novas consciências. Reproblematizar, repensar, recomeçar. Conectar o que está disperso e separado. Explorar o que há de “efervescência criativa” pelo mundo. Completar uma metamorfose que já está em curso.

A situação atual está assentada sobre problemas de difícil solução, que são ampliados pela disrupção tecnológica e se projetam no tempo e causam aquela “sensação de desorientação e catástrofe iminente” registrada por Harari (2018). Mas há ferramentas disponíveis, a ciência mostra sua pujança e não é de se descartar que os povos do mundo consigam conter a onda de xenofobia, isolacionismo e desconfiança que hoje varre o sistema internacional. Pelos riscos gravíssimos que produz, a desunião global é uma ameaça que tem como ser compreendida e neutralizada.

Pandemia

É evidente que esse quadro não favorece o reconhecimento do futuro como promessa e possibilidade, nem sequer como desafio ou esperança: ele simplesmente cancela o futuro, apaga-o das conjecturas. O “projeto” passa a ser administrar o presente, torná-lo maleável a ponto de permitir que todos possam continuar a se mover com celeridade para tentar alcançar alguma estabilidade pessoal ou grupal ilusória.

O ano de 2020 acrescentou nova camada à já espessa neblina que distorce a visão do presente e encobre o futuro. Em poucos meses, foi como se os povos do mundo se deparassem com a fragilidade do humano e a insuficiência dos sistemas de proteção social e de cuidados com a saúde.

Parte expressiva disso deveu-se à irrupção catastrófica do coronavírus, que estava nos cálculos mas não era esperada. A humanidade se deparou com um processo de adoecimento e de mortes sequenciais que dramatizou os meandros de seus piores pesadelos, embora estivesse delineado por pesquisadores e estudiosos há tempo. A banalização dos efeitos perversos da vida atual, a dificuldade de aceitar e compreender as transformações estruturais em curso -- o modo do capitalismo se reproduzir na era digital --, ao lado da emergência de “narrativas” anticientíficas impulsionadas por lideranças políticas e intelectuais da nova extrema-direita, fizeram com que uma onda de brutalidade e ignorância se instalasse entre os humanos, comprometendo as respostas coletivas ao Covid-19.

Não foi a primeira pandemia da história recente, como sabemos bem. A gripe espanhola (1920) dizimou em larga escala. Deu-se o mesmo com a AIDS, síndrome que se espalhou a partir de 1985 ativada pelos fluídos do amor e do sangue. Houve as epidemias de Sars (2003) e de Mers (2012), igualmente provocadas por tipos de coronavírus. O surto de ebola foi grave na África.

Em 2020, todos os filmes de horror foram reprisados, as distopias ganharam destaque na imaginação popular, combinadas com doses-extra de incerteza e insegurança, derivadas das circunstâncias em que se passou a viver: o capitalismo digital, a invasão tecnológica, a reestruturação produtiva, a desorganização das classes e grupos sociais, a individualização crescente, as novas formas de emprego, a crise do trabalho, da política, da democracia. Tudo, no fundo, foi sendo articulado de modo a formar um único pacote, que, nos primeiros momentos, não tinha como ser decodificado e traduzido em termos de vida prática. O ano transcorreu na escuridão reflexiva.

As ameaças não se restringem ao vírus, por mais que sua disseminação tenha agravado a situação e exposto as fragilidades globais. A onda autoritária-populista, de base nacionalista, manteve-se em ação, desafiando as democracias instituídas e roubando dos cidadãos parte de um imaginário composto de tolerância, respeito e defesa dos direitos humanos, confiança na ciência, solidariedade e proteção.

A brutalidade gestual, verbal, procedimental, a falta de serenidade e compostura, a grosseria e a arrogância, invadiram os ambientes em geral, indiferentes a classes, grupos, gêneros, religiões e etnias. Os esforços de cooperação internacional e de articulação entre países – como a União Europeia, o Mercosul ou o BRICS – não avançaram, com o Brexit pondo em xeque a principal delas, na Europa. Os partidos democráticos perderam propulsão e muitos cidadãos viraram as costas para a política, numa inflexão “antipolítica” que terminou por convergir com o populismo em expansão. As políticas econômicas (as políticas públicas em geral) entregaram-se a uma ideia de austeridade indiferente à necessidade de reduzir as desigualdades e de prover os serviços de que necessitam as populações. A crise climática completou um quadro de gravidade extraordinária. Incêndios florestais, aquecimento global, águas marítimas em elevação, pessoas desalojadas por enchentes e desastres ecológicos, compõem um cenário de desolação e temor.

A pandemia trouxe mais problemas consigo. Agudizou a crise econômica e, com ela, agravou o desemprego e fez com que mais 130 milhões passassem a viver em extrema pobreza. Se em 2018 a proporção da população mundial vivendo em situação de extrema pobreza (menos de US$ 1,90 por dia) era de 8,6% (cerca de 650 milhões de pessoas), entre 2020 e 2021essa proporção chegará a 8,8%. A projeção foi feita em novembro de 2020 pela Conferência da ONU sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), cujo secretário- geral, Mukhisa Kituyi, observou: “O vírus se beneficiou das interconexões e fragilidades derivadas da globalização, transformando uma crise sanitária em um choque econômico global que atingiu principalmente os mais vulneráveis”. Ele também destacou: “A covid-19 causou dor e alterou o curso da história, mas pode ser um catalisador para uma mudança necessária”, contribuindo para que se reformem as redes globais de produção e se reinicie a cooperação multilateral.

O fato é que a pandemia produziu impactos generalizados na vida prática, na política e no pensamento. O léxico se modificou, passou a dar destaque a termos que antes frequentavam os ambientes especializados: risco, incerteza, insegurança, instabilidade, turbulência, imprevisibilidade. Evidenciou-se que não há como traduzir o mundo real com abordagens fracionadas e hiperespecializadas, que brotam automaticamente das apostas cegas que a hipermodernidade faz no “prometeísmo da ciência, da razão, do racionalismo, da racionalidade, da racionalização”, fazendo com que a inteligência se afaste das determinações fundamentais e dos esforços de totalização complexa. (Carvalho, 2017: 76-77).

Particularmente nas ciências da sociedade, ganhou impulso a teoria da complexidade, seja na versão mais tradicional (a dialética da totalização), seja na versão de Edgar Morin, que trabalha com novos entendimentos da relação tempo/espaço, refuta a linearidade e valoriza a ambiguidade e a ambivalência, abrindo-se para uma compreensão mais abrangente das tensões entre equilíbrio e desequilíbrio, auto-organização e caos, separação e reunião. Morin também insiste no valor da ciência e na necessidade de que ela se ligue aos saberes vários (mítico-imaginários) fornecidos pelas artes e ao trabalho de cooperação e solidariedade entre os próprios cientistas.

A pandemia não explica tudo, por certo. Mas fornece um excepcional posto de observação para que se compreenda melhor que as dores atuais são múltiplas e estão enraizadas nas estruturas da modernidade, hoje abaladas pela disruptiva revolução tecnológica que impõe uma nova formação social (a sociedade do conhecimento) e implode as diferentes práticas, as ideias, os modelos de organização, o Estado, as empresas, o trabalho, o ensino, a produção de conhecimentos.

A política recebe o impacto de todo esse processo. Mergulha numa crise que afeta os institutos de representação, os partidos e o próprio funcionamento da democracia. Os governos passam a governar menos e com mais dificuldades. A insatisfação social cresce e impulsiona reações variadas, que ajudam a alimentar a contestação e os movimentos de extrema-direita.

Os sinais de alerta têm sido constantes. Eles indicam com clareza que há de se retomar o empenho pela democratização, seja no plano da conduta governamental, seja em termos institucionais mais amplos, seja no plano dos relacionamentos sociais. Mais que isso: será preciso encontrar outro caminho, que consubstancie uma alternativa real ao modo como a humanidade tem vivido a vida. Não há como seguir em frente mediante a clonagem de modelos pré-existentes, o prolongamento de um padrão de desenvolvimento que produz sempre mais subdesenvolvimento, a reverberação de nacionalismos mais patrióticos ou menos, o desprezo pela ciência e pela natureza, a desconsideração de que a experiência humana é una e está radicalmente mundializada. Ou nos projetamos como integrantes de uma comunidade global de destino, ou ficaremos travados, às voltas com problemas que não conseguimos resolver.

Como acentuou Harari, “hoje, a humanidade enfrenta uma crise aguda não apenas por causa do coronavírus, mas também pela falta de confiança entre os seres humanos”. Nos últimos anos, acrescenta, “políticos irresponsáveis solaparam deliberadamente a confiança na ciência, nas instituições e na cooperação internacional. Como resultado, enfrentamos a crise atual sem líderes que possam inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada”. (Harari, 2020).

A saída não está em “desglobalizar” o mundo ou em fechar fronteiras: em vez de segregação, isolacionismo e medo dos “outros”, a solução passa por mais cooperação.

Vida que flui

Isolamento, distanciamento, quarentena. As palavras flutuam, como pluma ao vento, ao gosto. Briga-se por elas. Distanciar? Como assim, num país como o Brasil, em que a distância social já é em si mesmo obscena? Há muros que isolam brasileiros uns dos outros, os pobres e miseráveis separados dos demais.

A diretriz é evitar contatos dispensáveis e aglomerações. Ficar em casa, circular o menos possível. Confinamento, mais que isolamento: hibernação. O vírus proliferou, mesmo assim. Faltaram políticas claras, os sistemas de saúde mostraram deficiências, a população não aceitou as recomendações com facilidade. A surpresa com a agressividade da doença somou-se à surpresa com o aparecimento insidioso de um patógeno invisível que colocou a humanidade de joelhos. A perplexidade foi inevitável: numa era de revolução tecnológica intensiva, de transformações biotecnológicas profundas, como foi possível que os humanos tenham deixado que uma crise em seus ecossistemas se instalasse e ajudasse sobremaneira a facilitar a disseminação de vírus e bactérias que simplesmente não conseguem ser controlados? Como aceitar que o coronavírus avance e mate numa época em que a ciência é fulgurante e os conhecimentos estão disseminados, de braços dados com a “inteligência artificial” e a engenharia genética?

É importante lembrar que houve respostas imediatas. Em pouco tempo, os pesquisadores conseguiram sequenciar o genoma do vírus, criaram testes confiáveis para detectar pessoas infectadas e avançaram na elaboração de vacinas. Os profissionais da saúde se desdobraram para manter ativos os sistemas sanitários. Medicamentos foram testados e aperfeiçoados. Mas o número de mortes e doentes continuou a crescer.

O mundo teve então de se fechar sobre si mesmo: tornar-se menos disponível, ser menos consumido e explorado. A vida digital se sobrepôs à vida presencial e em poucos meses a humanidade ingressou em outra etapa.

Nela, foi preciso descobrir prazeres que estavam diluídos, recuperar filmes antigos, ouvir velhas e novas canções, chorar diante de fotos esmaecidas, tropeçar naqueles livros de que se esquecera, limpar gavetas e estantes. Descartar. Reorganizar. Reviver. Dar-se conta da inutilidade de certas coisas. O uso de notas e moedas. As idas diárias ao mercado, às caixas bancárias eletrônicas ou à farmácia.

Valorizar-se outras tantas. Pensar nas amizades, saber dos amigos. Saudades das praças e ruas, das visitas, dos cafés no bar da esquina, dos almoços em família, das salas de cinema. Curtir filhos e netos de modo não presencial. Amar de longe. Respeitar a ciência e seus pesquisadores. Confiar.

O confinamento acelerou processos que estavam em curso. O mergulho no mundo digital, os encontros virtuais, as calls conference, as aulas a distância, os memes, as conversas telegráficas, o teletrabalho, a velocidade, a profusão de imagens e informações. Tudo isso entrou de vez na corrente sanguínea, passou a plasmar o DNA humano. Será difícil que se volte a viver presencialmente com a mesma intensidade de antes.

A situação levou a uma espécie de introspecção coletiva, na qual se alojaram os “demônios internos” de cada um, os medos e a preocupação existencial. A perplexidade se instalou de forma plena, arrastando consigo paradigmas explicativos, convicções e certezas. A pandemia exacerbou a desconexão existente entre o pensamento crítico e a realidade fática, entre o pessoal e o global.

Por mais que os teóricos da conspiração digam, não há responsáveis pela disseminação do vírus. Não foram os chineses, nem o “globalismo”. Não se trata de “culpa”, mas do efeito colateral do tráfego humano pelo planeta, incessante e crescente desde a saída das cavernas. Decorrência, também, da incúria onipotente, da falta de higiene, da miséria produzida, da exploração desenfreada, da irresponsabilidade, dos deslocamentos desnecessários, da movimentação frenética. Da falta de solidariedade e fraternidade entre povos e pessoas.

Divergências, antagonismos, conflitos e contradições são parte da vida, e são também complementares às tendências de união e associação. Na rota de valorização de ambiguidades e ambivalência, sempre explorada por Morin, há que se “resistir à crueldade de tudo aquilo que é predador”, para com isso defender as “múltiplas solidariedades que são uma característica essencial da vida”. Ganhos consistentes de consciência planetária passam pelo reconhecimento dos paradoxos da mundialização, assim como requerem “o reconhecimento de nossa humanidade comum e o respeito das diferenças”. (Morin, 2019: 21, 40).

Boas doses de idealismo e de altruísmo nos farão bem. Podemos sair da crise em melhores condições. O importante é sobreviver, preservar o sistema de saúde e a capacidade dos hospitais, driblar o fluxo contínuo de informações contraditórias, com seus ecos paranoicos. Manter ativa a perspectiva de que lá fora, no exterior de nossos casulos, pulsa uma vida que ainda não perdemos.

O confinamento está a mostrar a cara feia do mundo, as iniquidades sociais, a ruindade dos governantes, a ausência de bússolas. O egoísmo e a generosidade. Está também a evidenciar que viver é mesmo perigoso e que precisamos nos dedicar a aprender sempre mais, a adquirir sensibilidade e empatia, a pensar no coletivo. Reaprender, quem sabe até mesmo começar de novo.

Há impactos evidentes: questionar tudo, mudar a rota, repensar o desenvolvimento, melhorar a formulação de políticas públicas, produzir consensos. Em particular no mundo da ciência, cresce a percepção de que o avanço depende do trabalho múltiplo e articulado de vários setores da sociedade e do Estado. Cooperação, articulação, coordenação. Entre gestores, pesquisadores, formadores de opinião, jornalistas, cidadãos. A comunicação pública torna-se vital. Dentro e fora de cada sociedade nacional: fortalecer as agências multilaterais, em especial as de perfil técnico, como a OMS, que se tornam estratégicas.

Será preciso pensar, também, no processamento das informações e no debate público. Os temas que estão na agenda são controversos, causam medo, desconfiança e reações irracionais. A desinformação agrava a polarização das opiniões, até porque dificulta a compreensão do que é verdade e do que é mentira. Nesse quadro, somente o diálogo permanente entre os agentes da sociedade pode produzir algum resultado. Toda opinião conta, mas será preciso levar na devida conta as evidências científicas.

O mundo impactado pela epidemia reverbera no movimento democrático. Impõe a ele a revisão de convicções e modos de atuação, a redução da ênfase nas identidades singulares e a valorização do que aproxima. Mais unidade na diversidade, mais diálogo e respeito pelas diferenças. Mais substância, menos adjetivações. Digerir derrotas e ressentimentos políticos, partir para a construção de novos patamares de atuação, fazendo o que não foi feito quando a situação era mais favorável. Em uma palavra: buscar a união e a articulação dos democratas, recurso básico para que se possa administrar a situação corrente e planejar minimamente o futuro. O diálogo e a cooperação serão os principais antídotos contra o acirramento das polarizações e da política do pior.

No horizonte descortina-se uma nova exigência de Estado ativo. O neoliberalismo, que já não vinha muito bem, tenderá a ser alijado do centro do palco. Mais gastos públicos, mais planejamento central, mais coordenação serão inevitáveis, e terão de ser equilibrados com uma economia de mercado que não tem como ser desativada e com uma sociedade que se mostra sempre mais desejosa de liberdade de iniciativa, inclusive no plano do empreendimento econômico. Continuará não havendo empregos para todos, o que exigirá grande flexibilidade em termos de política econômica, de equilíbrio fiscal e de investimentos públicos. Será um ciclo complexo e desafiador.

O núcleo desse ciclo estará preenchido por valores e critérios que devem ser considerados com atenção por ativistas, intelectuais, políticos e governantes. Generosidade, investimentos maciços em políticas públicas de inclusão e proteção social, distribuição de renda, combate firme à desigualdade, defesa dos direitos sociais, valorização da ciência, respeito ao meio ambiente e às mudanças climáticas, crescimento econômico sustentável: tudo isso precisará prevalecer como diretrizes a serem seguidas. A coesão e a pressão dos democratas serão fundamentais para que as coisas caminhem nessa direção.

*Marco Aurélio Nogueira é cientista politico, professor titular da UNESP, tradutor e colaborador do jornal O Estado de São Paulo.

Referências

BAUMAN, Zigmunt. Retrotopia. Tradução de Marco Cupellaro. Bari-Roma: Laterza, 2017.

BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo. Novos conceitos para uma nova realidade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

CARVALHO, Edgard de Assis. Espiral de ideias. Textos de Antropologia fundamental. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2017.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ : Vozes, 2015.

HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século XXI. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

HARARI, Yuval Noah. Na batalha contra o coronavírus, faltam  líderes  à  humanidade. Tradução de Odorico Leal. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MORIN, Edgar. La Voie: Pour l'avenir de l'humanité. Paris: Fayard, 2011. [Ed. Bras. A Via: para o futuro da humanidade. 2a ed. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013].

MORIN, Edgar. Fraternidade: para resistir à crueldade do mundo. Tradução de Edgard de Assis Carvalho. São Paulo: Palas Athena, 2019.

ROSA, Hartmut. Aceleração: a transformação das estruturas temporais na Modernidade. Tradução Rafael H. Silveira. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

ROSA, Hartmut. Rendre le monde indisponible. Paris: La Découverte, 2020.


Alon Feuerwerker: O ano dos balões de ensaio

A situação do governo Jair Bolsonaro, especialmente dele próprio, é contraditória. De um lado, o governismo venceu as eleições para a presidência da Câmara dos Deputados e ergueu um muro contra tentativas de impeachment. Também ganhou no Senado, o que completa o desenho favorável à aprovação das propostas centrais da equipe econômica. Desde que negociadas, claro, no Congresso Nacional. Mas isso é do jogo.

Ainda pelo lado favorável a Bolsonaro, todas as pesquisas apontam sua liderança na corrida presidencial para 2022, posição sustentada no cerca de um terço do eleitorado que, por enquanto, segue firme com ele. Isso o coloca facilmente no segundo turno. Para completar, o presidente parece ter sobre os mecanismos de Estado capazes de desestabilizá-lo uma ascendência bem maior que os dois antecessores imediatos.

Na outra face da moeda, Bolsonaro enfrenta problemas. O grau de liberdade para o presidente ser ele mesmo diminuiu. Diz a sabedoria filosófica que quando alguém transforma a realidade ela também modifica quem a transformou. Os partidos do dito centrão hoje são de fato governo e protegem o presidente. Porém este também passa a depender mais deles. Até aí, nada de muito novo no Brasil. Mas talvez para Bolsonaro seja novidade.

Outro complicador é o contra-ataque do Supremo Tribunal Federal, facilitado pelo passo em falso do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ). O potencial campo político antibolsonarista pode estar dividido nas ambições para 2022, mas anda coeso no apoio a iniciativas do STF que criem constrangimentos ao comandante do Planalto. Igualmente a esmagadora maioria da imprensa. É uma verdadeira frente ampla.

A resultante das forças no momento indica que nem a oposição tem músculos para retirar Bolsonaro da cadeira, nem este terá espaço e terreno livre para ganhar muita tração neste resto de primeiro mandato. Daí a tendência a se manter uma guerra de posição relativamente prolongada. A não ser, naturalmente, que sobrevenha o fato novo. Mas sempre repito por aqui que o imprevisível é muito difícil de prever.

E tem a pandemia. Até o momento, ela talvez tenha contido a capacidade de o presidente ampliar o mercado eleitoral dele, mas não corroeu significativamente sua fatia. E o que ele possa ter perdido com o divórcio da Lava-Jato ganhou a partir da operação do orçamento federal. Vamos ver como evolui. Se a vacinação contra a Covid-19 andar, é provável o cenário continuar meio congelado. Se der chabu, aí o voo de Bolsonaro enfrentará fortes turbulências.

A vacinação vai no Brasil mais ou menos em linha com a maior parte do mundo. Tudo meio devagar, desde que algumas potências reservaram para elas o grosso dos imunizantes nesta primeira etapa. Mas por aqui somou-se a isso a subestimação presidencial da necessidade de vacinar. Se o cronograma não andar conforme o projetado vai introduzir um forte elemento de instabilidade.

E o termômetro para medir a coisa será sempre a popularidade presidencial. Se baixar muito, os políticos ficarão tentados a pensar em alternativas imediatas. 

Se a eleição de 2022 fosse hoje o presidente provavelmente iria ao segundo turno e teria grande dificuldade para fechar a fatura. Pelas pressões em favor de uma frente ampla na reta final, dada a progressiva convergência dos opositores em torno da vontade de impedir a continuidade do capitão. Decorre também daí a briga de foice do outro lado. Pois o cenário atual faz do potencial adversário de Bolsonaro na reta final um nome bem forte, qualquer que seja ele. É um bolo apetitoso demais.

Por isso, é ilusão imaginar a sedimentação rápida do cenário para 2022. A hora é de testar as águas. E o que não falta são balões de ensaio. 2021 será o ano deles.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Cristovam Buarque: Insanidade e falta de lucidez

Esta semana comprovou que o presidente não é sano e que a oposição não é lúcida.

Em um gesto irresponsável, de voluntarismo e capricho infantil, o Presidente da República demitiu o presidente da Petrobrás, com a clara intenção de interferir nos preços dos combustíveis. Demonstrou o despreparo de quem não tem ideia das consequências de seu ato em uma economia já sofrendo forte escassez do fator Confiança e em uma empresa com capital no mercado aberto. Na mesma semana, no momento mais dramático da epidemia, repete apologia de desprezo às medidas protetoras e assusta os pais dizendo que a máscara prejudica às crianças.

Na mesma semana em que o presidente e seu governo demonstram insanidade, dois de seus principais opositores para 2022 demonstram falta de lucidez ao trombarem entre si. Ciro dizendo que seu papel é derrotar Lula, o que passa a ideia de que derrotar Bolsonaro é secundário, e como se ele fosse capaz de vencer a eleição sem o apoio de Lula e do PT. Haddad, por sua vez, responde dizendo que Ciro é de direita, como um adjetivo de desqualificação para enfrentar Bolsonaro, como se os dois fossem a mesma coisa.

Triste momento em que o presidente é insano e a oposição não é lúcida. De um lado o presidente brinca de governar irresponsavelmente, de outro os líderes da oposição brincam de disputar eleição. Quando esta seria a hora de perceberem a gravidade de uma reeleição do Bolsonaro. Declararem-se aliados, lançarem um manifesto ao país dizendo que estão juntos contra a tragédia, chamarem os outros candidatos que se opõem a Bolsonaro e proporem a escolha de um nome, entre todos, que passe credibilidade e apresente a menor rejeição entre os eleitores. Ciro e Haddad têm capacidade de reorientar suas posições para enfrentar Bolsonaro, unirem-se entre eles e com os demais candidatos democráticos. Mas cada dia isto fica mais difícil: cada um se consolida para realizar seu projeto pessoal e atender as estratégias de seus partidos. Como se o destino do Brasil não estivesse em jogo.

Pobre Brasil com um presidente insano a uma oposição sem lucidez, ou sem compromisso com o país. Felizmente ainda é tempo para a oposição mudar.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


George Gurgel de Oliveira: Brasil Insustentável - Um ano de pandemia

O Brasil, após um ano de pandemia, vive um momento trágico da sua realidade política, econômica e social.

Porque chegamos a esta situação?

Qual a responsabilidade de cada um de nós frente a esta tragédia que estamos vivendo?

Qual a responsabilidade dos que governam, da cidadania e da sociedade em geral?

A maneira como o Brasil enfrentou e está enfrentando a pandemia é causa e/ou consequência da sociedade brasileira historicamente construída ou é responsabilidade dos atuais governantes da Federação?

São estas as questões a ser enfrentadas por cada um e por todos nós se quisermos efetivamente superar a trágica realidade vivida atualmente, em plena pandemia, por toda a sociedade brasileira.

Desde o início da pandemia, a sociedade brasileira foi desafiada a mudar a sua maneira de viver, de se comportar nas suas relações políticas, econômicas e sociais frente aos desafios colocados para o enfrentamento da pandemia, causada pelo Covid 19.

Então, a atuação governamental e os resultados obtidos até agora no combate à pandemia no Brasil ficaram muito a desejar: não estão comprometidos com as agendas sociais, econômicas e ambientais necessárias para o enfrentamento dos desafios trazidos pela pandemia à sociedade brasileira, particularmente na área da saúde.

Ainda não temos um Programa Nacional de Vacinação confiável, com metas e cronogramas estabelecidos que tranquilize e passe confiança à sociedade brasileira, demonstrando a incapacidade governamental de planejar ações básicas de combate à pandemia – caso explícito da compra de vacinas: as evidências demonstram que o Governo Federal foi e está sendo negligente – não planejou a compra, e o processo de vacinação em curso é a mais completa tradução da tragédia.  O ritmo de vacinação continua lento por falta de vacinas, diferente da situação de muitos países da América Latina, cuja população já tem disponibilidade de vacinas de diferentes países, inclusive da China e da Rússia.

Assim, a ideologização da questão e a falta de planejamento caminharam juntos, com consequências graves para a sociedade brasileira.  Aqui a maior responsabilidade é do Governo Federal, que minimizou e minimiza a gravidade da situação vivida pela população, desde o início da pandemia. Some-se a isto a desconstrução e as inúmeras mudanças acontecidas nesse período na área de saúde, inclusive com a nomeação de três Ministros no período, o que retrata a maneira como o Governo Federal enfrentou e está enfrentando a situação. O comportamento bipolar de Bolsonaro, no dia-a-dia no exercício da Presidência, vem agravando a situação.

O cenário político atual é de judicialização da Saúde entre os entes federativos: os governadores foram ao Supremo Tribunal Federal para terem o direito de comprar as vacinas. Ao mesmo tempo foi deflagrado um movimento de governadores e prefeitos para a compra direta de vacinas – aumentando a pressão de toda a sociedade que quer ter a vacina como o único instrumento efetivo de combate à Covid 19.

A situação atual é caótica e preocupante frente à crise econômica e de saúde pública que vive o Brasil. Cenas de horror, de mortes por falta de leitos hospitalares e de oxigênio, da falta de assistência médica em geral, inclusive na área privada, coloca, após um ano de pandemia, a dimensão real da tragédia brasileira – a incapacidade do Governo Federal, dos Estados e dos Municípios de construir um programa mínimo, em diálogo com a sociedade, para o enfrentamento dos problemas urgentes provocados pela pandemia no Brasil.

Os brasileiros estão aterrorizados. A insegurança é total. Os dados em relação à contaminação e às mortes são assustadores. São milhões de contaminados e milhares de mortos – colocando o Brasil no segundo lugar em relação a contaminados e mortos pela Covid 19 no cenário internacional. 

Qual o limite da tragédia?

Banalizou-se a morte pela Covid-19 como um fenômeno natural: “todo mundo morre”, segundo o presidente Bolsonaro. A pandemia já faz parte do cotidiano da sociedade. As estatísticas negadas pela área federal estão sendo sistematizadas e espetacularizadas por um conglomerado da área de comunicação, chegando diariamente às nossas casas. Hoje, já não existem leitos disponíveis na área pública, nem privada, na maioria das capitais brasileiras.

Vivemos o pior momento da pandemia no Brasil. A população continua desnorteada. O Governo Federal, como principal responsável pela Política Nacional de Combate à Pandemia, com sua política negacionista, só faz agravar a situação com falas que agridem ao bom senso e à sociedade brasileira, e até a mundial. 

Portanto, os comportamentos políticos e sociais em questão refletem as disputas políticas e as narrativas extremas que pouco ajudam a resolver a crise, manifestando-se, por exemplo, no comportamento de uma parte considerável da população, particularmente da juventude: no auge da pandemia, continua afrontando o uso de máscaras e o isolamento social. Uma rebeldia inconsequente que está levando à morte de jovens e, muitas vezes, dos entes mais velhos da própria família, que mesmo isolados recebem a contaminação trazida das ruas pelos filhos e netos.

Como racionalizar tais comportamentos?

O que ainda pode acontecer?

As narrativas construídas na conveniência de cada discurso político trazem embates cotidianos sem nenhum foco na questão principal: o combate efetivo à pandemia que deveria unir toda a sociedade brasileira. Os interesses são outros: vislumbram a próxima disputa político-eleitoral de 2022 – em uma democracia avançada, essa gente estaria respondendo na sua maioria a processos em tribunais (alguns, a bem da verdade, já estão respondendo, principalmente por corrupção, antes e durante a pandemia – inclusive governadores, senadores, deputados e prefeitos).

Urge a Federação funcionar como Federação e a Cidadania como Cidadania. As narrativas hegemônicas no atual cenário político brasileiro e os embates entre os entes federativos não resolveram e nem vão resolver a difícil realidade em que estamos vivendo.

No Brasil, como sempre, os que mais precisam do Estado, milhões de brasileiros, estão abandonados à própria sorte - frente ao desemprego, à falta de uma renda emergencial que lhes assegurem o mínimo de dignidade para atravessar a crise social, agravada com as doenças trazidas pela  pandemia: já são milhões de contaminados e milhares de mortes durante o ano e o pior: a falta de medidas governamentais para o enfrentamento real dos problemas do cotidiano já existentes e os ampliados com a pandemia.

A sociedade está desafiada a se unir a favor de um Programa Nacional de Vacinação:   vacinar com a urgência devida toda a população é a única maneira de retornar à vida social com segurança. São estas as questões imediatas a serem enfrentadas pelos que detêm mandatos e toda a cidadania brasileira.

Nesta perspectiva é possível enfrentar a pandemia, abrindo o diálogo necessário entre as forças democráticas no caminho de uma pauta que leve a um efetivo enfrentamento dos reais problemas econômicos, sociais e ambientais vividos hoje pela sociedade brasileira. 

O protagonismo dos movimentos sociais em defesa de uma maior participação política das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos LGBT+, nas questões sociais e ambientais em geral e no enfrentamento da pandemia em particular, são aliados fundamentais nessa construção. Pode-se e deve-se trazer a voz rouca dos excluídos da sociedade para o exercício da política, pressionando os que governam a República para pautar os problemas urgentes da população, buscando a melhoria da qualidade de vida dos milhões de excluídos, que vivem em condições precárias de moradia, segurança, educação, saúde, saneamento e mobilidade urbana no Brasil.

Assim a Federação, a Sociedade e a Cidadania estão desafiados ao enfrentamento sistemático destes graves problemas sociais, econômicos e ambientais, agravados com a pandemia que deverá se estender por todo o ano de 2021. As polarizações das narrativas hoje existentes na sociedade não resolveram e não resolvem, neste ano de pandemia, as dificuldades cotidianas da população, muitas vezes, agravam, dificultando a enfrentar os reais problemas sociais. O Brasil bipolar, dos extremos, não conseguiu e nem consegue construir soluções para os complexos desafios da realidade brasileira, nem a nível municipal, estadual, muito menos, em escala nacional.

Finalmente, há que se considerar a necessidade de uma visão sistêmica e de escolha de prioridades para o combate à pandemia, através do diálogo permanente entre governantes e governados, que garantam a implementação de políticas públicas voltadas para a sustentabilidade, articuladas às políticas regionais, sob responsabilidade municipal, estadual e federal, construindo uma efetiva cooperação entre o Estado, o Mercado e a Sociedade Civil, através de redes regionais e nacionais, com foco na melhoria do bem-estar da população, ampliando a capacidade de diálogo e de construção  de pactos políticos e sociais que façam avançar e ampliar a democracia, no caminho da transformação da realidade brasileira.

São os desafios atuais dos brasileiros, durante e pós-pandemia.

*George Gurgel de Oliveira, Universidade Federal da Bahia, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia.


Fernando Henrique Cardoso: A epidemia e a política

Como disse o senador Jereissati, é preciso gritar alto um ‘basta’ e dar nome aos bois

Primeiro é bom ressaltar que a “crise” (usa-se tão amiúde o vocábulo que ele acaba por perder o significado) começou a se manifestar antes do maldito vírus ter sido percebido entre nós. Nisso me refiro à “crise econômica”, não à política, que parece ser permanente em nosso caso. Mas o certo é que o mar tranquilo em que navegaram os governos de Lula e, parcialmente, de Dilma perdeu-se no passado, antes da pandemia, apesar dos esforços corretos do governo Temer.

Com isso não quero dizer que o governo Bolsonaro seja “o” responsável pelos descaminhos por que passa a economia brasileira. A questão é mais complicada, depende de vários fatores, alguns internacionais. Tampouco seria correto imaginar que a pandemia seja “a causa” do fraco desempenho da economia. Este a antecedeu.

Mas, convenhamos, é muita má sorte do País ter de enfrentar, além da epidemia, uma economia trôpega, com exceção apenas do setor agrícola. Este já ia bem e assim continua, ao menos quanto às exportações. Pior, aos maus ventos anteriores somou-se o apego popular a um líder que não chega a ser populista, mas parece haver-se sentado numa cadeira na qual não se sente bem, ou não foi preparado para ela, apesar dos anos de Câmara. Os tempos de “baixo clero” fazem custar-lhe a se adaptar a situações novas. Coisas da democracia.

Os mais inquietos só veem uma saída, o impeachment. Eu, que já vi de perto dois, sou cauteloso: é alto o custo político de uma intervenção congressual no que foi popularmente decidido. Às vezes não há outro jeito. Mas tal desiderato depende mais das ações (ou inações) de quem foi eleito do que, como comumente se diz, da “vontade política”. É melhor ir devagar com o andor.

Melhor aguentar quem hoje manda – o quanto seja possível – e preparar candidatos para as próximas eleições que possam bem desempenhar a função presidencial. Enquanto isso não ocorre, aproveitemos o tempo para treinar civicamente o eleitorado. Ingenuidade? Talvez. Mas sem certa dose de otimismo corre-se o risco de jogar fora não só a água do banho, mas a criança, a democracia.

Quousque tandem?, perguntava Cícero na antiga Roma. Vale repetir a pergunta: até que ponto os “minimis” de Bolsonaro serão suportáveis? Ninguém sabe ao certo, e ele pode dar a volta por cima. Em larga medida depende não só da paciência do povo, mas dele próprio, Bolsonaro, manter seus “fiéis” e também conter seus impulsos de franqueza autoritária. Do ponto de vista político, mais que tudo depende de quem vocalize o “outro lado”. Por enquanto o que se vê é uma mídia quase unânime na crítica à falta de condições de quem nos governa para manter um mínimo de coerência na ação. É muito, mas é pouco. Enquanto não aparecer alguém com força para expressar outro caminho viável, o presidente leva vantagem.

A verdade é que os partidos ou não são capazes de se opor, ou quando o fazem não convencem os seguidores de forma a abalar quem está no poder. Será sempre assim? Depende, por exemplo, dos trejeitos do presidente, que costuma jogar a culpa nos outros, ou, em outro exemplo, menosprezar o sofrimento das vítimas da pandemia. Mas depende, sobretudo, do surgimento de quem encarne “o novo”. Como disse o senador Jereissati, é preciso gritar bem alto um “basta” e dar nome aos bois.

Não é novidade que o sistema de partidos, por si, perdeu a capacidade de guiar as escolhas populares. Daí que o que aparece como “personalismo” acaba por ser condição necessária para sair da paralisia em que nos encontramos. E enquanto houver democracia e liberdade de opinião, o verbo conta. As falas, por enquanto não chegam a ser ouvidas pelos eleitores. Há, sim, murmúrios no povo, mas não ainda contra quem governa, e sim contra a difícil situação de vida.

De imediato, o que interessa é a saúde. Logo depois será o emprego. Os dados recentes mostrando um encolhimento de 4,1% do PIB somam-se ao aumento consequente do desemprego, que vinha de antes. Se já havia 12% de desempregados, agora não se trata apenas de serem 13% ou 14%, mas de a economia não dar sinais de vida para absorver cerca de 25 milhões de pessoas, somando-se aos que procuram trabalho, os “inimpregáveis”. É muita gente. Terminada a pandemia (oxalá!), daremos com a insuficiência da economia para abrigar tantos, principalmente os de menor qualificação.

O panorama é desanimador. Para quem governa e para quem está contra os governantes. Só há um jeito: buscar uma trilha de maior prosperidade e alento. Recordo-me dos tempos de JK: ele “inventou” um país. Abriu a economia a capitais de fora, ampliou a produção de automóveis, expandiu a indústria naval, etc. E ainda por cima “inventou” Brasília. Reatou um sonho antigo num horizonte de esperanças. Não me esquecerei jamais da conferência que André Malraux fez na FFCL da USP, na qual mostrava a nós, críticos de tudo, o significado simbólico de transcendência da capital imaginada por Niemeyer e Lúcio Costa.

É disso que precisamos: de alguém que indique um caminho de superação e permita voltarmos a acreditar em nós próprios. E cujas palavras e ação não se percam na retórica chinfrim, mas animem muitos outros mais a dar vida ao que se propõe. Que se reinvente nosso futuro.

*Sociólogo, foi presidente da República


Alon Feuerwerker: Deslockdown

No Distrito Federal, o governo decidiu pela volta às aulas presenciais nas escolas e pela reabertura das academias (leia). Em Manaus (AM), cidade que semanas atrás atraiu a atenção pela trágica falta de oxigênio para os pacientes graves internados nos hospitais, a mesma coisa (leia).

Nas próximas semanas veremos se as decisões foram prudentes e se o sistema hospitalar em ambas as capitais está preparado para receber o impacto.

Em São Paulo, caminhoneiros bloquearam importantes estradas e vias urbanas protestando contra o endurecimento das medidas restritivas (leia). Ainda foi um movimento limitado, mas nada indica que não possa se repetir em escala ampliada.

Até porque reflete uma disputa mais no terreno da política que da economia. De um lado, os caminhoneiros apoiadores de Jair Bolsonaro. Do outro, o governador João Doria, que a pandemia e a corrida para 2022 colocaram no canto oposto do ringue.

Dois fatores dificultam a entrada e saída organizada de lockdowns país afora. Um é a disputa política entre o presidente da República e governadores, cada vez mais fora de controle. Outro é o cansaço da população. E o crescimento deste coloca lenha na fogueira daquela.
O vírus agradece.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Marcus Pestana: O agravamento da pandemia e a emergência

“Onde há vida há esperanças” (Miguel de Cervantes).

Não é fácil acalentar a esperança quando encaramos manchetes como “País tem recorde de mortes”, “No maior salto da pandemia, país perde 1.726 em 24 horas”. Mas a esperança é o motor da vida. Um misto de pessimismo, pânico e decepção tende a tomar conta de corações e mentes num momento tão trágico. O inimigo oculto é traiçoeiro e mutante. Quando muitos achavam que a pandemia estava em seu finalzinho, o coronavírus dobrou a aposta e apareceu com carga maior de transmissibilidade e elevou o número de mortes.

A realidade está a exigir não um esforço isolado de um cavaleiro errante como Dom Quixote e sua luta contra moinhos de vento, mas uma agressiva ação unificada de governos e sociedade. Infelizmente, o Brasil lidou mal com a crise sanitária da COVID-19. Subestimamos a gravidade da pandemia, apostamos em terapias de eficácia desmentida pela ciência, assistimos a predominância do conflito nas relações políticas, emitimos sinais equivocados na mobilização da população para o comportamento social e individual preventivo. Perdemos o bonde da história na compra de vacinas. Precisamos de liderança, competência e exemplos.

Não adianta chorar o leite derramado. A situação é dramática e de emergência nacional. É hora de aprender com os erros. O roteiro da esperança é claro e conhecido, mas uma névoa de polêmicas inúteis obscurece o debate.

O lema tem que ser “vacinar, vacinar e vacinar”. Comprar todas as vacinas disponíveis num mercado global superaquecido. Poderia ser pior se não fosse a corajosa aposta do Governo de São Paulo na produção da “Coronavac”.

É inadiável aprofundar o trabalho de orientação à população, diante da ocorrência de novas cepas do vírus e do atraso na imunização, acerca do distanciamento social necessário e dos hábitos coletivos e individuais de prevenção, e recuperar a cooperação interfederativa.

Por outro lado, não podemos negar apoio a milhões de brasileiros que vivem em extrema pobreza, reestabelecendo imediatamente o auxílio emergencial viabilizado pela votação da PEC Emergencial, evitando a fome e a extrema exclusão social.

Fundamental também é perceber que os gestores públicos precisam de ferramentas e instrumentos para enfrentar a emergência nacional, rompendo temporariamente com regras feitas para tempos de normalidade. Isto, a PEC Emergencial também oferece. Inútil discutir quem está financiando o que. As transferências constitucionais são obrigatórias. Os gastos extraordinários com a pandemia estão sendo bancados por endividamento público, ou seja, pelas gerações futuras.

Precisamos integrar a saúde pública e privada neste esforço. O vírus e as mortes atingem indiscriminadamente a todos. E ter maior compreensão com prefeitos e governadores, que certamente não gostariam de fazê-lo, quando decretam paralização de atividades como medida extrema para fazer frente à calamidade sanitária. As lágrimas do governador da Bahia foram eloquentes. É falso o conflito entre vida e emprego. Não haverá recuperação econômica consistente enquanto não derrotarmos a COVID-19.

Em suma, um pouco de bom senso nesta hora não faria mal. Somado à esperança, à coragem de corrigir erros e à clareza de diminuir tensões políticas, poderemos nos concentrar no essencial: defender a vida dos brasileiros.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


João Gabriel de Lima: Cabe ao eleitor encontrar o culpado

Nos regimes presidencialistas, o mordomo costuma ser o próprio presidente

De quem é a culpa por nossas tragédias simultâneas – a da pandemia e a da economia? Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro acusou os governadores de mau uso de repasses federais. Os governadores responderam – em entrevistas, nas redes sociais e até num manifesto – afirmando que Bolsonaro mente. Segundo eles, o presidente, além de falsear números, atrapalha o combate à pandemia ao ignorar a ciência. “Será que os principais países do mundo, que adotaram o distanciamento e a vacinação como estratégia de combate ao vírus, estão errados – e o Brasil, com 260 mil vidas ceifadas, está certo?”, perguntou no Twitter o governador gaúcho Eduardo Leite

As duas tragédias se expressam em números eloquentes. Na quarta-feira, o Brasil contabilizou 74 mil novos casos de infecções pelo coronavírus, assumindo a triste liderança nessa estatística, à frente dos Estados Unidos. No mesmo dia soube-se que a economia encolheu 4,1% em 2020. Segundo cálculos de Claudio Considera, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas e personagem do minipodcast da semana, a retração tira o Brasil do “top ten” da economia. Éramos o sétimo do mundo depois do ciclo social-democrata de Fernando Henrique e Lula. Com Dilma, caímos para o nono lugar. Sob Bolsonaro, passamos para décimo segundo. De quem é a culpa? 

Não importa se a crise é mundial. Os números doem na vida do eleitor. O Brasil hoje tem 32 milhões de desempregados, maior contingente dos últimos dez anos. E a inflação vem voltando aos poucos – o arroz subiu 74,1% e a carne, 22,8%, de acordo com dados do IPCA. O brasileiro está com medo de sair à rua e de perder o emprego, e falta dinheiro para comprar comida. De quem é a culpa? 

O jogo de empurra-empurra para livrar-se dela remete a um debate em curso na ciência política: o da responsabilização. Nas democracias, os cidadãos usam o voto para recompensar ou punir os governantes. Avalia-se principalmente o desempenho econômico – aquilo que sentimos no bolso. Mas o que acontece quando a responsabilidade é difusa? 

Pesquisas recentes mostraram que, durante a crise do euro, parte dos cidadãos da União Europeia relevou a responsabilidade de seus governantes, culpando os burocratas de Bruxelas. Em países semipresidencialistas, como França e Portugal, o crédito pelos sucessos e insucessos costuma se dividir entre Executivo e Legislativo. 

Em regimes presidencialistas, no entanto, o eleitor não costuma ter dúvidas. Estudos feitos nos Estados Unidos mostram que o presidente costuma ser responsabilizado pelo desempenho econômico, para o bem ou para o mal. No Brasil, é só olhar para o passado recente. Fernando Henrique e Lula foram recompensados com reeleições em períodos de crescimento. Collor e Dilma, que presidiram crises graves, enfrentaram ruas cheias e sofreram impeachments. 

Para Claudio Considera, o Brasil teria mais chance de voltar a crescer se adotasse as duas condutas-padrão no combate à pandemia: fechamento rigoroso por tempo limitado e vacinação em massa. Bolsonaro já zombou da vacina, e até hoje questiona o isolamento social. Se conseguir responsabilizar os governadores pela derrocada do País, será um caso de estudo em ciência política. Nas democracias, cabe ao eleitor o papel do detetive nos filmes policiais: encontrar o culpado. As evidências mostram que, nos regimes presidencialistas, o mordomo costuma ser o próprio presidente. 


Hélio Schwartsman: Com Bolsonaro e Araújo, Brasil corre risco de ficar sem aliados

Nas relações internacionais, vige o estado de natureza hobbesiano

Há uma diferença importante entre o policial e o diplomata. Diante de crimes mais sérios, policiais não têm opção que não a de indiciar os suspeitos, independentemente do que achem da lei ou das circunstâncias que levaram ao delito.

Nas relações internacionais, as coisas são um pouco mais complicadas. Mesmo quando a diplomacia está diante de um crime gravíssimo e muito bem documentado, pode ver-se compelida a pegar leve com o autor. É o que acaba de fazer o presidente dos EUA, Joe Biden, ao deixar de responsabilizar o príncipe saudita Mohammed bin Salman pelo assassinato e esquartejamento do jornalista Jamal Khashoggi em 2018.

O problema de base é que, nas relações internacionais, vige o estado de natureza hobbesiano. Sem uma autoridade central forte que a todos submeta, cada Estado é mais ou menos livre para agir como quiser. As principais limitações são a força de outros países, seguida de acordos e tratados internacionais, cuja imposição, entretanto, é fraca, e, no caso de democracias, da repercussão política que as ações possam ter para o público interno.

A resultante desses vetores em nível nacional costuma ser uma política externa pragmática, com algum tempero moral. Os EUA não podem dar-se ao luxo de romper com os sauditas, um de seus principais aliados na região, então Biden optou por pegar leve com o príncipe, mas sem deixar de sinalizar que reprova o homicídio e que poderá reagir de modo mais duro se violações desse tipo se repetirem.

Uma diplomacia totalmente pragmática, pautada exclusivamente por interesses, até pode funcionar para países autocráticos, onde o líder não deve satisfações a ninguém. Já uma diplomacia que se guie apenas por princípios acabaria rapidamente isolada, sem nenhum aliado.

O Brasil, com Bolsonaro e Ernesto Araújo no comando da política externa, corre o risco de terminar sem aliados e defendendo posições imorais.