covid-19
O Estado de S. Paulo: Eduardo Bolsonaro manda população ‘enfiar no rabo’ máscara contra covid-19
Filho do presidente, deputado federal critica cobertura da imprensa sobre uso de itens de proteção contra infecções pelo coronavírus
André Borges, Lorenna Rodrigues e André Shalders, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Visivelmente irritado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) mandou a população brasileira enfiar as máscaras de proteção contra a covid-19 “no rabo”. Em uma aparição ao vivo que fez em seu perfil pelo Instagram, o filho “03” de Bolsonaro criticou o uso do principal item de proteção contra a contaminação do vírus que, dia após dia, causa recordes de mortes no País.
“Eu acho uma pena, né, (que) essa imprensa mequetrefe que a gente tem aqui no Brasil fique dando conta de cobrir apenas a máscara. 'Ah a máscara, está sem máscara, está com máscara'. Enfia no rabo gente, porra! A gente está lá trabalhando, ralando”, afirmou o deputado. As declarações de Eduardo foram feitas no dia em que o presidente Jair Bolsonaro mudou o discurso, usou máscara e passou a defender as vacinas. Nesta quarta-feira, 10, o Brasil também atingiu mais um recorde de mortes: pela primeira vez foram registradas 2.349 mortes por covid-19 em 24 horas.
Em tom agressivo, enquanto seguia em um carro no banco de carona, o deputado comentou, ainda, o caso das rachadinhas de Fabrício Queiroz e a compra de uma mansão de R$ 6 milhões por seu irmão, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).
“Você, retardado mental, que fica falando ‘o problema são os filhos, cadê o Queiroz?’, pagou o apartamento R$ 50 mil em dinheiro. Seu animal, larga de ser um peão nesse tabuleiro de xadrez chamado política e começa a pensar um pouquinho, ver o perigo que está por vir e ver como o sistema trabalha porque não dá ponto sem nó, não. Fique com Deus e não consuma cachaça em excesso igual a uns e outros aí”, disse.
Eduardo Bolsonaro também afirmou que iria comentar o resultado da viagem que fez com uma comitiva para conhecer o spray contra a covid-19 em testes iniciais em Israel. Na prática, porém, o que acabou dizendo é que o Brasil é que está desenvolvendo a sua vacina. E não só uma, mas três vacinas próprias.
“Você sabia que o Brasil está desenvolvendo três vacinas?”, perguntou. “A vacina brasileira ainda está em desenvolvimento, não é para agora”, comentou ele, acrescentando que o Brasil terá seu próprio spray e que outros países deverão vir ao País comprar esse produto. Ele não deu nenhum detalhe sobre o que estava falando.
“É importante a gente dominar essa tecnologia e dominar, ter a vacina brasileira. Além disso, isso coloca o Brasil em outro patamar internacional. Ao invés de nós irmos atrás de outros países, eles é que virão atrás de nós. Pode ser inaugurada uma vacina que não precise mais de insumos de outros países. Os israelenses gostaram muito disso”, afirmou.
Além do spray definido pelo presidente de “milagroso”, que atuaria em conjunto com uma vacina, Eduardo disse que o Brasil tem uma segunda tecnologia em análise, com efeito “dois em um”, que curaria covid-19 e influenza.
“A terceira vacina vai diretamente em seu sistema imunológico. O Brasil está desenvolvendo tecnologia nesta área”, observou, sem nenhum detalhe, data ou previsão de testes.
“Depois que está a invenção feita, aí ‘tá’ o mundo inteiro correndo atrás da vacina, o mundo inteiro correndo atrás dos insumos… Aí já era. Isso que a gente foi fazer em Israel é à semelhança do que ocorreu com a vacina de Oxford. É chegar primeiro, chegar no começo. Quando estávamos saindo de Israel, estava chegando uma delegação de outro país, da República Checa”, lembrou o deputado. “Já procurou Israel não só a Grécia, mas também a Dinamarca, o Chipre, e alguns outros países. Acho que a Áustria também. Então, onde há tecnologia, o mundo inteiro está proativamente se deslocando.”
Eugênio Bucci: Justiça performática
Vivemos num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do STF nos sobressaltam
Em dois dias, mudou tudo. Na segunda-feira, em despacho monocrático, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), devolveu os direitos políticos a Luiz Inácio Lula da Silva. Ao anular as sentenças da Lava Jato contra o ex-presidente, sob o argumento de que o juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro, não era aquele a quem cabia a competência para decidir sobre as acusações que pesavam contra o réu, Fachin limpou a ficha de Lula, que agora está livre para se candidatar em 2022.
No dia seguinte veio mais. A Segunda Turma do mesmo STF começou a julgar a parcialidade e a suspeição do juiz Sergio Moro nas sentenças contra Lula. O julgamento levado a efeito pela Segunda Turma ainda não foi concluído, pois o ministro Nunes Marques pediu vista, dizendo que precisava estudar melhor o processo antes de votar, mas o que os ministros disseram na tarde de anteontem abalou o que se tinha por certo e sabido. Quando se referiu à Operação Lava Jato como “o maior escândalo judicial da nossa história”, o ministro Gilmar Mendes deixou claro: tudo mudou.
Nada contra o veredicto de segunda. Nada contra a sessão de terça. As razões processuais alegadas pela defesa do ex-presidente Lula vão se demonstrando irrefutáveis. A incompetência do juízo de Curitiba só demorou uns anos para ser admitida no STF, mas é cristalina. Ninguém mais parece disposto a refutá-la, a não ser que tudo mude de novo. Quanto aos sinais de parcialidade do magistrado responsável pela Operação Lava Jato, que foram enumerados na terça pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, não há peneira hermenêutica que dê conta de encobri-los. Houve abusos, alguns provados, outros até tacitamente admitidos.
Ao menos no caso de Lula, o juiz da Lava Jato perpetrou injustiças em série, ainda que tenham sido injustiças estritamente processuais, formais, como vem postulando a defesa. Por isso já se sabia que, em algum prazo, de alguma forma, essas injustiças acabariam sendo reconhecidas pelo Supremo, como começou a ser feito nestes dois dias. Só não se sabia que as coisas viriam assim, tão espetaculosas, alvoroçadas e atordoantes.
Portanto, o problema não é o que se decidiu. Ao contrário, a nova postura do STF sobre a matéria talvez seja até parte da solução. O problema é o risco imenso de se aprofundar uma impressão generalizada de que a mais alta instância da Justiça no Brasil se pauta pela inconsistência e pela imprevisibilidade errática. O risco não deveria ser desprezado. Justiça não combina com ciclotimia.
A instituição incumbida de julgar todos nós não deveria sentir-se à vontade para mudar assim ao sabor das brisas, dos ventos e mesmo dos furacões. Alguma linha de coerência há de perdurar entre as decisões, sob pena de a sociedade parar de acreditar de vez na magistratura. Deus, que é Deus, pode escrever por linhas tortas. Os juízes, não, por mais que alguns insistam.
E agora? A sociedade brasileira assimilará bem a incongruência entre os acórdãos impenetráveis da mais alta Corte do País? Qual o limite para tantas idas e vindas? Se as arbitrariedades contra Lula eram patentes e gritantes, como eram, por que se permitiu que elas fossem tão longe? Por que se permitiu que elas o tirassem da eleição de 2018 e o enjaulassem. E por que reconsiderá-las agora, justo agora e só agora?
Se Moro praticou atos inadequados, que incidiram sobre o andamento de momentos históricos de enorme repercussão, por que ele seguiu imune e adulado por tanto tempo? E por que questioná-lo agora, assim? A impressão que se tem é que no Brasil de hoje tudo está sub judice: a prisão de Lula, que agora transparece como uma violência indizível, está sub judice e, junto com ela, a posse de Michel Temer na Presidência da República, a abolição da escravatura, a Guerra do Paraguai e o descobrimento do Brasil. É como se na segunda que vem o STF declarasse nulas as violações ao Tratado de Tordesilhas e, em seguida, anulasse também o próprio tratado, porque uma das firmas não foi devidamente reconhecida. Vai saber... O STF parece acreditar que faz o tempo retroceder.
Normalmente os críticos do Judiciário, focados nas tecnicalidades da aplicação da lei, esmiúçam a observância ou a inobservância dos ritos e o rigor ou a frouxidão das derivações jurisprudenciais de cada fundamentação. A esta altura nós deveríamos preocupar-nos igualmente com a percepção que os brasileiros terão da Justiça nos próximos anos.
O leigo pode não saber o que é heurística, pode não entender o significado de expressões como ex ofício ou ex ante e ex post, mas sabe perfeitamente o que é certo e o que é errado. Todo ser humano tem senso moral, percebe intuitivamente a iniquidade, separa o justo do injusto. Se, por algum motivo, os seres humanos deste país não virem mais no Poder Judiciário a encarnação legítima da justiça, tudo o que está mudando vai abaixo.
Eis o “ó do borogodó”, para invocarmos o novo brocardo jurídico. Vivemos num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do Supremo Tribunal nos sobressaltam. Enquanto tudo muda, e alguma coisa está fora de prumo.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Ascânio Seleme: Lula foi ainda mais Lula
Depois de dois anos ouvindo Bolsonaro, qualquer um que lhe fizesse frente se destacaria com louvor. Mas ex-presidente foi mais longe
Retire os excessos de retórica e as figuras de linguagem, sublime os trechos destinados ao público interno e à militância. Ignore os erros involuntários e mesmo os estudados. Esqueça o tom de campanha. O resultado será um discurso grande, importante. Lula voltou com tudo. É verdade que o ex-presidente foi beneficiado pela torpeza e pela ignorância do seu oposto.
Depois de dois anos ouvindo Bolsonaro, qualquer um que lhe fizesse frente se destacaria com louvor. Mas Lula foi mais longe. Falou de política, economia, saúde; conversou com os brasileiros nos seus termos; mostrou que está pronto para negociar em todos os âmbitos; e apontou quem é o seu inimigo.
Isso, sem texto pronto, sem teleprompter, apenas com uma lista de tópicos em sua frente.
Com a mesma empatia de sempre, mas sério, sem se permitir às gracinhas habituais de seus discursos, Lula se posicionou de maneira inequívoca como uma opção para o Brasil e os brasileiros. Os diversos pontos do discurso, mesmo os que não pareciam apontar na mesma direção, tinham Bolsonaro como alvo. Mas sempre com postura presidencial.
Ao lembrar que a terra é redonda ou ao criticar a política de liberação de armas, o tom foi de compromisso, não de chacota. Mesmo ao defender uma política econômica não liberal, dizendo que o governo não tem ministro da Economia, o ex-presidente queria mesmo era mostrar seu apoio à política de distribuição de renda através do salário emergencial, substituto provisório do seu Bolsa Família.
A insistência ao tratar do coronavírus também tinha endereço. E o destinatário do Palácio do Planalto recebeu a mensagem no mesmo dia, se apresentando logo em seguida para falar sobre a vacinação e, incrível, usando máscara.
Aos brasileiros, Lula falou da fome, do preço da gasolina, da picanha na mesa do trabalhador, do seu eterno objetivo de chegar à raiz dos problemas nacionais por querer um mundo mais justo. Retórica, claro, mas que toca no coração das pessoas. Se Bolsonaro consegue acertar o estômago dos brasileiros com suas grosserias, Lula busca o coração com suas sutilezas. E é isso o que o distingue do outro.
Negociação com o Congresso, com toda a classe política, nas suas palavras, e com os empresários é aceno do Lulinha, Paz e Amor. O mesmo que disse não guardar mágoas, apesar das chibatadas que levou.
Os claros exageros, como a afirmação de que Marisa, sua mulher, morreu por causa da Lava Jato, serviram apenas para ele reiterar que apesar de tudo não tem mágoas. Porque, disse, não há espaço nem tempo para guardar ódio. Mesmo quando atacou injustamente jornais e jornalistas, ofereceu um afago ao defender a liberdade de imprensa e ao elogiar a edição de ontem do Jornal Nacional.
Aliás, uma frase do discurso explica o morde e assopra de Lula com relação à imprensa.
“A gente começa a gostar da vida quando está mais perto do céu”, disse o ex-presidente.
Pois Lula esteve muito perto do inferno, quando aliados seus, do seu partido e dos que o apoiavam, saquearam em conjunto a Petrobras. Também quando seu governo foi denunciado por pagar por apoio de partidos com dinheiro público, o famoso mensalão. Ou quando sua sucessora, Dilma Rousseff, quase quebrou o país. Ou ainda quando um apartamento e um sítio foram estruturados por empreiteiras para atender o gosto da sua família.
Nestes momentos em que esteve bem próximo do fogo eterno, Lula não gostava dos jornais e muito menos do JN.
Mas mesmo esse desvio pode rapidamente virar passado na retórica política de Lula. O que não mudou e não vai mudar, é a grandeza do seu discurso. Lula sabe com quem fala, sabe bem o que quer falar e sabe melhor ainda como falar. Bolsonaro não está mais só.
Carlos Andreazza: O discurso de Lula
Não vi “paz e amor”. E nem me pareceu que fosse essa a intenção. Seria falso. Um sujeito, depois de mais de quinhentos dias de cana, cujo algoz – um juiz – decompõe-se em (justa) suspeição quer é guerra. Mas sem pressa; e de paletó, camisa impecavelmente passada. Sem pressa para se declarar candidato; antes – senhor do tempo – à frente do projeto que difundirá a sua inocência. Inocente não é; mas inocente será o que julgado por um acusador. Não havia “paz e amor”. Havia essa verdade; a de Gilmar Mendes: a de que corrupção nenhuma pode ser condenada com corrupção. Errado não está.
Esse foi o palanque – armado na altitude de quem conversa com o Papa – desde o qual falou Lula. Uma aula de discurso político – admita-se. (E seria aula mesmo se estivesse o sarrafo lá no alto.) Construção de profissional a serviço de rara capacidade de farejar para onde os ventos pandêmicos levam as demandas da sociedade. Articulação retórica de mestre para, se quiserem mesmo estabelecer o debate na cancha da polarização, aceitá-la nas bases que ditou: ele sendo o que usa máscara, prega distanciamento social e defende vacinação em massa. Radicalmente.
Com cálculo de provocador: se Bolsonaro, o capitão, investe em facilitar o comércio – sem fiscalização – de armas, Lula será o preocupado com o sucateamento das Forças Armadas.
Aula – e aqui fala Carlos Andreazza, jamais um esquerdista.
Para que fiquem claros os termos em que topa polarizar com o presidente: Lula associou Bolsonaro – com ênfase – às milícias. Será assim doravante. O discurso: não pode admitir que o país que governou – que fez respeitado no mundo – ora vá nas mãos de um miliciano.
Nem tudo foi verdadeiro, porém. Mentiu um lote – disparou números como nem Ciro Gomes. (As agência de checagem cortarão um dobrado.) E foi especialmente duro vê-lo falar sobre uma bem-sucedida gestão petista na Petrobras, como se não houvesse, entre esses gestores, Paulo Roberto Costa, Renato Duque e Nestor Cerveró – como se não houvesse, apenas como um exemplo, a barbaridade chamada Pasadena.
É um fato que a petroleira foi pilhada durante os governos do PT – fato também sendo que, como empresa, em função das escolhas lulopetistas para sua administração, quebrou. E a esse prejuízo – bilionário – não se referiu; pancada que ceifou empregos.
Mas aqui se analisa o discurso e só discurso; sendo fato também que a Petrobras de Lula – aquela onipresente, indutora maior da economia – simboliza um projeto de Brasil; de Brasil grande, independente, autossuficiente. (Que exportava óleo; e que, por isso, jamais poderia ser refém do dólar. O que fizeram
com essa nação para que se achatasse assim?) O Brasil de Lula – em que havia fábrica da Ford e onde quatro milhões de carros eram vendidos por ano – comunica. Alcança. Mobiliza. Atrai.
É um fato que a Petrobras de Lula – apesar da corrupção que abrigou profundamente – mobiliza memórias. Boas. A estatal que se expandia, quase uma casa moeda, distribuindo riquezas e gerando oportunidades – e não apenas, atenção, aos pobres. O ex-presidente jogou várias iscas. Quer ouvir os empresários – diz. Quer mesmo é lembrá-los de que foram felizes com ele; naquele Brasil-Petrobras que fabricava navios-sonda e multiplicava postos de trabalho (e propinas). Quer conversar com os políticos – com o Centrão. Quer de todos – e também dos mercados – compreender (como se Dilma Rousseff não tivesse existido) por que se foram associar ao liberal-bolsonarismo. Quer mesmo é fazer ver a todos que foram muito felizes com ele; e sem (promessas de) privatizações.
Um projeto de Brasil. Foi com isto que o ex-presidente jogou em seu primeiro pronunciamento – a aula – após reaver os direitos políticos: ele tem um projeto de Brasil. Goste-se ou não, Lula tem um. Em resumo: um país miserável como o Brasil não pode prescindir da mão forte do Estado. Simples e poderoso; tanto mais em meio a uma pandemia de efeito depauperante sobre os mais pobres.
É para onde o vento varrido pela peste levou o desejo da sociedade: para um lugar – espaço natural a Lula, que joga em casa – em que o governo injete dinheiros emergenciais na economia de modo a que o povo empobrecido sobreviva à falta de empregos, circunstância agravada pela incompetência-insensibilidade de Bolsonaro/Guedes.
Esse foi o discurso. O recado. Mais claro impossível. Lula – sangue nos olhos – desdobrar-se-á daí. Vem para a guerra – ou não seria um miliciano o seu adversário. E vem gigante. A caneta, porém, está com o outro. Que reagirá – acelerando o populismo que já vai em curso – com um derramamento de Estado. Precisa amarrar o Centrão, cujo preço subiu pela hora do almoço.
Fernando Schüler: Sinal de alerta para o centro político
A polarização tende a produzir uma fuga do centro, que deve buscar consenso
Lula fez discurso de candidato, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e era seu direito fazê-lo. Disse que no seu governo a Petrobras era bem administrada e que o Brasil era o país “mais admirado do mundo”. Chamou a turma da Lava Jato de “quadrilha” e culpou a operação pela perda de mais de 4 milhões de empregos.
Mas o centro do discurso foi mesmo sobre Bolsonaro. Governo de milicianos, eleito pelas fake news, feito de gente que acredita que a Terra é plana. Governo de “imbecis”, em relação ao qual “alguma atitude nós vamos ter que tomar”.
É interessante que Lula não investiu na retórica da “ameaça à democracia”, que é a marca registrada da oposição a Bolsonaro desde a campanha de Fernando Haddad. Sua ênfase é no “pão com manteiga” na mesa do trabalhador, emprego, investimento público (“o que faz o país crescer). Talvez vá aí uma mudança, quem sabe um esgotamento do tema. Ou tenha apenas faltado combinar isso melhor.
A “narrativa”, como agora é moda dizer, parece clara: a decisão de Fachin foi, para todos os efeitos, uma absolvição, um reconhecimento tardio da inocência de Lula. Lava Jato, pois, é coisa do passado. Lula aguentou firme e sempre soube que este dia (esta quarta) iria chegar. E chegou.
OK, discurso político nem sempre se pode levar ao pé da letra, e sempre há aqui e ali algum excesso retórico. Mas o fato é que, escutando essas coisas, é surpreendente que alguém diga que a polarização política não tenha voltado, e voltado com tudo, com a entrada de Lula no jogo.
Se a disputa entre Lula e Bolsonaro é uma polarização entre dois “extremos” e se são extremos “equivalentes”, é um debate para a militância política. Um lado irá falar da corrupção, da quebradeira econômica e o risco de “venezuelização” (como li de um porta-voz bolsonarista), e o outro dirá o que Lula disse nesta quarta. Governo de milicianos, imbecis, feito à base de fake news etc. Não vi Lula usando a palavra “fascista”, mas é possível que ela apareça logo à frente.
Se isso não é uma polarização, o que seria, exatamente? Mais do que isto: é um tipo de debate de baixíssima qualidade política, que infelizmente preside nossa democracia.
É previsível que interlocutores do lulismo no debate público fiquem nervosos com a tese da “polarização entre os extremos”. Seu desejo é de que Lula pudesse liderar uma ampla frente, envolvendo o centro político, contra Bolsonaro. Ouvi de alguém que os elogios de Rodrigo Maia a Lula indicavam algo nesta direção.
Seria curioso uma aliança entre Lula e o Democratas, reunindo todos os que lutaram bravamente a favor das reformas, nos últimos anos, e todos os que o fizeram, também bravamente, na direção oposta. O lógico é que Lula seja candidato de uma frente reunindo seus tradicionais aliados na esquerda.
Se a polarização agrada ao Palácio do Planalto? Parece evidente que sim. À parte desviar o foco das debilidades do governo, a curto prazo, a presença de Lula permite a Bolsonaro reanimar a militância entediada ao ressuscitar sua retórica “identitária”, com um olhar no passado, reanimando velhos fantasmas do embate político brasileiro.
O principal motivo da discreta satisfação do Planalto, no entanto, é outro. A entrada de Lula e a crispação política criam um efeito de fuga do centro político. Eleitores à direita, decepcionados com Bolsonaro e dispostos a uma alternativa, tendem a reconsiderar diante do espectro de Lula. Nesse plano arriscamos enveredar em uma disputa de rejeições: o antipetismo contra o antibolsonarismo.
A conclusão é que o principal sinal de alerta soou para o centro político. Em 2018, vamos lembrar, Alckmin, Meirelles e Amoêdo somaram menos de 10% dos votos. É apenas uma lembrança. O centro político não tem, no atual cenário, outra tarefa a não ser buscar um candidato de consenso e um programa capaz de se colocar consistentemente como alternativa a Lula e a Bolsonaro.
Observando a nova coalizão majoritária em funcionamento no Congresso, não penso que seja uma tarefa simples.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
Maria Hermínia Tavares: O dilema dos democratas
Esquerda, centro ou direita falam uma coisa e fazem o contrário diariamente.
A mais de um ano das eleições presidenciais, tudo que se diga sobre seu desfecho é temerário, todo prognóstico corre o risco de ser desmentido, com ou sem Lula no páreo. Isso posto, afastada ao que parece a hipótese de impeachment, o endosso da robusta minoria que ainda apoia Bolsonaro, se não derreter até lá, bastará para levá-lo ao segundo turno.
Democratas de esquerda, centro ou direita não se cansam de dizer que a ampla união de forças será necessária em 2022 para impedir que ele se reeleja e, assim, continue a destruir o país e a democracia a duras penas construída. Falam uma coisa e fazem o contrário diariamente.
O centro-direita e a direita não bolsonaristas se movem em torno de seus possíveis candidatos, como se não existisse no país esquerda com enraizamento social e expressão eleitoral consideráveis. Como se pudessem ganhar a Presidência sem o seu apoio.
Já os líderes mais destacados da esquerda dedicam-se com afinco a se atacar uns aos outros —veja-se o tiroteio entre Ciro Gomes e Fernando Haddad. Enquanto isso, intelectuais progressistas gastam tinta para demonstrar que todos os economistas liberais, mesmo os mais críticos ao governo, se igualam a Paulo Guedes e que todos os possíveis candidatos da direita são bolsonaristas envergonhados, ainda que hoje façam oposição aberta ao ocupante do Planalto. Não custa lembrar que Lula e Dilma foram a segundo turno, quando venceram com o imprescindível apoio de forças que não se situam no campo da esquerda.
No fundo, uns e outros continuam a se movimentar em torno da linha divisória traçada em 2016, com a derrubada de Dilma Rousseff, que consolidou a polarização política e abriu espaço para a disparada do ex-capitão. Mas, então, a minoria de extrema direita existente na sociedade não tinha expressão política nacional. Agora tem um líder à altura do seu primitivismo e da sua brutalidade.
As regras eleitorais incentivam a multiplicação de candidaturas no primeiro turno das eleições presidenciais. Mas não limitam conversas prévias que aplainem o caminho para entendimentos na rodada final nem impedem o trato civilizado entre os concorrentes do campo democrático. Nada indica que isso esteja sendo buscado.
Cientistas políticos estudam os chamados dilemas da ação coletiva, situações em que pessoas ou organizações agindo em prol de seus interesses, sem a possibilidade de coordenar seus atos, terminam por produzir desastres para si e para a sociedade. A volta de Lula ao jogo político não afasta o risco de que as próximas eleições venham a ser mais um episódio dessa história de final infeliz.
*Maria Hermínia Tavares -professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Luiz Carlos Azedo: Cadê as vacinas, Bolsonaro?
As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), que sanitaristas e infectologistas vinham fazendo desde o mês passado, estão se confirmando
A cúpula do governo já se deu conta de que está protagonizando a maior tragédia sanitária da nossa história, ao fracassar no combate à covid-19, com o negacionismo reiterado do presidente Jair Bolsonaro e a incompetência do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. Ontem, em solenidade no Palácio do Planalto, bem que Bolsonaro tentou dar um cavalo de pau e mudou o discurso em relação às vacinas, até disse que a senhora sua mãe foi vacinada em São Paulo (com a Coronavac do instituto Butantan, quanta ironia, a vacina do governador João Doria). Somente fez isso porque foi duramente atacado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por sua atuação como presidente da República durante a pandemia.
As previsões de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), advertência que os sanitaristas e infectologistas vinha fazendo desde o mês passado, estão se confirmando. O Brasil registrou nas últimas 24 horas 2.286 mortes por Covid-19 e 79.876 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). O número de vítimas fatais da doença no Brasil chegou a 270.65 e o total de casos aumentou para 11,202 milhões. Mesmo assim, Bolsonaro continua sabotando os esforços de governadores e prefeitos para conter a propagação da pandemia com o isolamento social, enquanto não há vacinas suficientes para imunizar a população.
“A política do lockdown adotada no passado, o isolamento ou confinamento, visava tão somente dar tempo para que hospitais fossem aparelhados com leitos de UTI e respiradores. O governo federal não poupou esforços, não economizou recursos para atender todos estados e municípios”, disse Bolsonaro. O presidente anunciou que o Brasil já adquiriu 270 milhões de doses de vacinas, a maioria para o primeiro semestre deste ano, mas as vacinas não chegam na frequência que a velocidade de propagação do vírus exige, por causa da incompetência do governo nas negociações. Voltou a defender o “tratamento imediato” com medicamentos não recomendados pelas autoridades de saúde, ao sancionar uma lei que prorroga a suspensão do cumprimento de metas pelos prestadores de serviço do Sistema Único de Saúde (SUS).
Patentes
O general Pazuello, atarantado com a ameaça de que a crise de Manaus se repita simultaneamente em várias capitais do país, também corre atrás do prejuízo. Tenta minimizar seu fracasso e ressalta os esforços dos principais centros de produção de vacinas: “Sem a produção da Fiocruz e do Butantan, nós hoje praticamente não teríamos vacinado ninguém. Essa é a realidade”. Desde janeiro, o país utiliza os imunizantes CoronaVac e Oxford/AstraZeneca.
Ontem, na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Genebra (Suíça), porém, o Brasil voltou a se manifestar contra a suspensão dos dispositivos de propriedade intelectual sobre patentes de remédios, vacinas e outros produtos de combate à pandemia da Covid-19. A proposta apresentada pela Índia e pela África do Sul em outubro de 2020 visa a suspender patentes ligadas a tratamentos e métodos de prevenção para a Covid-19. Na epidemia de AIDS, a quebra de patentes foi fundamental para controlar a doença.
Diante do fracasso, Pazuello pediu ajuda à China, que tanto foi hostilizada pelos filhos do presidente Bolsonaro e integrantes do governo, inclusive o chanceler Ernesto Araújo. Enviou ofício à embaixada da China no Brasil para pedir auxílio para a compra de 30 milhões de doses da vacina da farmacêutica chinesa Sinopharm, que havia sido ofertada pelo governo chinês no ano passado, pois trata-se de um laboratório estatal, mas à época não houve interesse do governo. Pazuello também negocia a compra de outros imunizantes, como o produzido pela Pfizer, único com registro definitivo concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o que é outra novela.
Cristovam Buarque: Sequestradores sonsos e tolos
Convencionou-se dizer que “crianças abandonam a escola”, quando o certo seria dizer que elas são “arrancadas da escola”, por um conjunto de forças: pobreza da família, inospitalidade dos prédios, descontinuidade por interrupção das aulas, desmotivação familiar ou dos professores, equipamentos obsoletos, métodos ultrapassados, falta de perspectiva de futuro, merenda ruim, desincentivo ao estudo. Tudo se passa como se o Brasil conspirasse para sequestrar as crianças para fora da escola. Isto acontecia no século XIX, nos Estados Unidos, contra as crianças negras.
Por quase um século, aquele país foi dividido entre estados escravocratas no Sul e abolicionistas no Norte, com permanente fuga de escravos em busca da liberdade do outro lado da fronteira. Havia rede de apoio aos fugitivos, da mesma forma que havia redes de políticos, advogados, policiais, que agiam no sentido contrário, sequestrando afro-americanos no Norte para levá-los de volta ao Sul. O “Clube do Sequestro”, como ficou chamado o mecanismo que fazia este processo, tinha agentes que retiravam crianças negras das escolas, e as levavam para juízes que autorizavam o envio para seus senhores, no Sul.
Ao conhecer a maldade destes sequestradores organizados, percebe-se que isto é feito no século XXI com nossas crianças que abandonam a escola e caem na escravidão que aprisiona e devora os sem educação. No Brasil não é necessário “Clube de Sequestro”, porque as condições sociais e educacionais forçam as crianças a abandonar a escola. Agimos como o “Clube do Sequestro” norte-americano, levando estas crianças à escravidão do desemprego, baixos salários, despreparo para enfrentar e usufruir do mundo moderno.
Os sequestradores americanos eram movidos por ganhos pessoais, a recuperação do patrimônio do proprietário e os honorários aos membros do “clube”. No Brasil, somos sequestradores sonos, com a hipocrisia de ignorar o analfabetismo como uma algema mental e a falta de educação como escravidão; não tiramos a criança da escola com nossos braços, apenas assistimos que ela fuja da escola sem qualidade. Fecham-se os olhos, deixam-se que elas se condenem, escondendo que se tira proveito disto.
A parcela que concentra a renda e a educação usufrui do trabalho com baixos salários dos que não estudaram: pedreiros que fazem suas mansões, vendedores nas praias, cuidadores de carro, empregados domésticos. O abandono das crianças e das escolas se explica porque a má educação é uma trincheira da escravidão ainda não plenamente abolida.
Para que os ex-escravos não se libertem plenamente, não se assegura boas escolas para eles nem para seus filhos. Aqui não fogem para Estados abolicionistas no Norte, mergulham no mar da deseducação e continuam escravas, servindo aos seus sequestradores sonsos. Esta é a lógica da perversa desigualdade escolar, que condena nossas crianças a abandonarem a escola, como fazia o “Clube do Sequestro” nos Estados Unidos, no século XIX. No lugar de trazer de volta para antes de 1888, simplesmente fechamos os olhos à fuga das crianças em direção à escravidão moderna.
Mas além da perversidade sonsa, somos tolos, porque não medimos o custo do sequestro para todos os brasileiros. Cada criança que abandona a escola provoca uma perda para o país e, portanto, para cada brasileiro.
Comparando com países que cuidaram da educação de suas crianças, como a Coreia do Sul, pode-se estimar que o PIB brasileiro seria o dobro do atual se na infância nossos trabalhadores não tivessem sido sequestrados para fora da escola. Fazendo o Brasil mais pobre do que seu potencial permite, tanto quanto a escravidão nos amarrava no século XIX. Além desta perda, a falta de educação exige gastos gigantes com assistência social, porque os sequestrados na infância não são capazes de se manter na vida adulta. Sequestramos crianças negando-lhes futuro, e todos perdem o que elas poderiam oferecer ao Brasil se tivessem recebido boa educação.
Somos sequestradores sonsos individualmente, ao explorarmos as crianças sequestradas quando adultas, e tolos socialmente, ao impedi-las de se prepararem para construir um país moderno que beneficiaria a todos.
*Cristovam Buarque, Professor Emérito da Universidade de Brasília
Demétrio Magnoli: Lockdown, só usa quem pode
Bolsonaro afirmou que lockdowns “não funcionaram em lugar nenhum do mundo”. É cascata, como tudo que escorre da boca do presidente. Doria retrocedeu São Paulo para a “fase vermelha”. Atenção: não é, nem de longe, lockdown. Brasil afora, em meio à escalada da pandemia, governadores e prefeitos tornaram-se alvo de um bombardeio de críticas por não declararem lockdowns. No caso, os gestores têm razão: lockdown, só usa quem pode.
Lockdown é um extensivo congelamento da economia e da sociedade. Só os setores mais essenciais são autorizados a funcionar. A circulação de pessoas é restringida ao máximo. Funciona, pois a drástica redução de interações sociais ao longo de dois a três meses diminui radicalmente a taxa de transmissão do vírus. Não é, porém, uma varinha mágica. Como persiste alguma mobilidade social, e o vírus atravessa, impávido, a porta das residências, continuam a ocorrer contágios. Lockdowns não substituem a imunização coletiva.
A Nova Zelândia eliminou o vírus combinando lockdowns com fechamento de fronteiras. O sucesso, replicado por raros países, deve-se à circunstância de que, na etapa inicial (e oculta) da pandemia, as ilhas neozelandesas não experimentaram elevadas taxas de contágio. Hoje, porém, a reabertura de fronteiras depende da vacinação em massa da população. Na Europa, os lockdowns só conseguiram achatar temporariamente as curvas pandêmicas, impondo repetições do traumático processo.
O lockdown tem impactos políticos, econômicos, sociais e psicossociais devastadores. A restrição de direitos e liberdades, as perdas de negócios e renda, a insegurança e a solidão que provocam não devem ser menosprezados. Como a amputação, lockdown é um recurso extremo destinado a salvar o bem mais precioso — no caso, a funcionalidade do sistema hospitalar. Bolsonaro é incapaz de entender isso, mas as sociedades modernas proíbem-se, moralmente, de assistir à morte de pacientes sem atendimento.
Estados totalitários, como a China, podem deflagrar lockdowns à vontade. Basta girar a chave do maquinário estabelecido de controle social. Nas nações democráticas, há pré-condições indispensáveis para implantar o lockdown: um consenso político mínimo, um nível razoável de coesão social e o monopólio estatal do uso da força. Os EUA jamais aplicaram um lockdown nacional pela ausência da primeira dessas condições. No Brasil, faltam as três.
O voto tem consequências, acima e abaixo do Equador. Bolsonaro ainda comanda cerca de um terço dos eleitores e conta com um apoio amorfo de uma maioria parlamentar, como ficou evidenciado na eleição das mesas do Congresso. Nas esferas estadual e municipal, o bolsonarismo representa uma força política significativa. Não se fará lockdown sob o atual governo. O Brasil vive — e morre — com suas escolhas democráticas.
Nas nações europeias, formadas por extensas classes médias, os lockdowns sustentaram-se sobre o pilar do Estado de Bem-Estar. As duras restrições foram compensadas por políticas de preservação das empresas e dos empregos. Nada disso evitou a eclosão de manifestações de massa contrárias às medidas sanitárias emergenciais. No Brasil, porém, a extensão da pobreza e da informalidade exigiria, para a imposição de lockdown nas nossas derramadas periferias urbanas, a mobilização generalizada dos aparatos de repressão. Os gestores, felizmente, não se engajarão em desvarios desse tipo. Nota importante: a esquerda que clama por lockdown seria a primeira voz a condenar as violências policiais decorrentes.
O Brasil não é Araraquara. Há tempos, o Estado brasileiro perdeu o controle sobre a totalidade do território nacional. No Rio de Janeiro, um lockdown exigiria negociações das autoridades com chefes de milícias e do narcotráfico, algo que também seria necessário em favelas fincadas noutras metrópoles. Quando Eduardo Paes descarta a alternativa, não opta pela morte, mas meramente pelo realismo.
Compreendo o desespero dos epidemiologistas que exigem lockdown. Desconfio do discernimento dos comentaristas políticos que ecoam o mantra desses dias sombrios.
Sergio Lamucci: Economia caminha para um semestre perdido
Primeira metade do ano deverá ser marcada pela combinação de atividade fraca e inflação ainda elevada
A economia brasileira terá mais um ano difícil em 2021, especialmente no primeiro semestre, marcado pela combinação de atividade fraca e inflação ainda elevada. Com o avanço do número de casos e mortes pela covid-19 e a vacinação lenta, a adoção de medidas mais rigorosas de isolamento social se tornou necessária em muitos Estados e municípios, o que vai afetar especialmente o setor de serviços. Além disso, a volta do auxílio emergencial demorou, prejudicando a demanda nos primeiros três meses do ano, e não foi acompanhada de iniciativas mais firmes para controlar a expansão dos gastos públicos obrigatórios, o que mantém o câmbio sob pressão, num momento de alta dos preços de commodities. Em resposta à inflação mais elevada, o Banco Central (BC) deverá começar neste mês um ciclo de aumento dos juros, apesar da falta de fôlego da economia.
Além do ambiente doméstico difícil, o cenário externo pode ficar menos favorável para países emergentes como o Brasil. A alta das taxas de retorno dos títulos de 10 anos do Tesouro americano aponta para um quadro complicado para esse grupo de economias. A expectativa de um ritmo forte de crescimento nos EUA pode resultar numa elevação precoce da inflação, levando o Federal Reserve a retirar parte dos estímulos monetários antecipadamente, ainda que esse não seja o cenário com que trabalham os dirigentes do BC americano. O risco de um quadro externo mais adverso é causar uma desvalorização adicional do real, que segue muito mais depreciado do que sugerem fatores como os termos de troca (a diferença entre preços de exportação e importação) e a situação das contas externas.
O governo federal é o grande responsável pelo cenário negativo. A economia só terá chance de deslanchar com a vacinação em ritmo acelerado. Com a falta de planejamento na compra de imunizantes pelo Ministério da Saúde, o processo avança lentamente, custando milhares de vidas e atrasando a normalização da economia. Na semana passada, o país teve mais de 10 mil mortes por covid-19. Enquanto isso, o presidente Jair Bolsonaro minimiza a gravidade da crise sanitária, desdenha de medidas como o uso de máscaras e se opõe a decisões de maior isolamento social, apesar da escalada do número de casos e de óbitos, num momento em que o sistema de saúde de diversos Estados se aproxima do colapso.
A Tendências Consultoria projeta um crescimento de 2,9% em 2021, menos que a herança estatística que o ano passado deixou para este ano, de 3,6%. Isso significa que, se PIB não crescer nada em relação ao fim de 2020, a expansão será da magnitude do carregamento estatístico. “Ainda estamos trabalhando nos números trimestrais, mas a projeção de 2,9% embute a perspectiva de contração no primeiro semestre”, diz a economista Alessandra Ribeiro, sócia e diretora de macroeconomia e análise setorial da consultoria.
Em relatório da Tendências, os economistas Thiago Xavier e Lucas Assis destacam os fatores que contribuem para interromper a retomada da economia no começo do ano. “Do ponto de vista qualitativo, o contexto é de elevação de casos de covid-19, já superando os patamares registrados no auge do contágio em 2020, de redução do arsenal de políticas fiscal e monetária anticíclicas e de persistência da relativa pressão inflacionária corrente.” Segundo eles, é um ambiente especialmente difícil para os vetores fundamentais para a recuperação sustentável da economia no curto prazo, como a demanda das famílias, a atividade de serviços, o mercado de trabalho e a confiança do consumidor.
Os dois notam que a suspensão do auxílio emergencial desde janeiro é “uma limitação importante” para o consumo das famílias e para o PIB. O benefício vai voltar, mas num valor mais baixo e para um público menor, devendo vigorar por um período de quatro meses. O volume total do auxílio em 2020 superou R$ 293 bilhões, o que representa 4% do PIB total e 6% do PIB das famílias, observam os analistas da Tendências. Em tese, o auxílio neste ano estará limitado a R$ 44 bilhões, dadas as restrições fiscais.
O cenário para o investimento também se turva. O descontrole da doença gera tanto efeitos diretos, ao impedir a retomada do mercado de trabalho da construção civil e limitar a demanda por bens industriais, quanto efeitos indiretos, uma vez que a persistência de um quadro complicado para a pandemia é fonte expressiva de incertezas, afetando as decisões das empresas de investir, dizem Xavier e Assis. “Ao final, não há saída na direção de uma recuperação econômica sem superar inevitavelmente a pandemia da covid-19”, resumem eles.
Também atrapalham a retomada a taxa de câmbio excessivamente desvalorizada e os juros futuros elevados, pressionados pelas incertezas no campo fiscal e por fatores como a atitude mais intervencionista de Bolsonaro na economia. A volta do auxílio é necessária, mas deveria ser acompanhada por medidas mais consistentes de ajuste das contas públicas, como de controle dos gastos com pessoal. A versão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial aprovada na sexta-feira pelo Senado não tirou o Bolsa Família do teto de gastos, mas não embute regras mais duras de consolidação fiscal num prazo mais curto. Nesta semana, a Câmara dos Deputados deverá analisar o texto.
O dólar está próximo de R$ 5,70, afetando a inflação num quadro de alta forte das commodities. Para piorar, as taxas mais elevadas dos títulos de longo prazo dos EUA são preocupantes para emergentes como o Brasil - o rendimento dos papéis do Tesouro americano de 10 anos está perto de 1,6% ao ano, depois de começar 2021 em 0,93%. A aprovação do pacote de estímulo fiscal nos EUA, de US$ 1,9 trilhão, deve ajudar a manter essas taxas em nível alto.
Ao comentar o ambiente externo, Alessandra diz que, “de um lado, há crescimento mais expressivo nas principais economias e alta de commodities, o que seria positivo para o Brasil”, mas, de outro, há uma expectativa antecipada de aumento dos juros, com o receio de inflação maior. “Esse cenário pode ser mais difícil para emergentes, em especial para aqueles com fundamentos mais frágeis”, afirma ela. “No Brasil, o risco é um câmbio mais depreciado, maiores pressões inflacionárias, alta mais expressiva dos juros futuros e o BC tendo que ser mais agressivo no processo de normalização da política monetária”. Se concretizado, esse quadro vai afetar ainda mais o ritmo da economia brasileira, minando uma eventual retomada no segundo semestre, que depende primordialmente de um processo mais rápido de vacinação.
Bruno Carazza: São todos coniventes
O silêncio cúmplice dos pré-candidatos diante da pandemia
Há exatamente um ano, 45 pessoas - incluindo ministros, assessores, parlamentares e empresários - acompanharam o encontro de Jair Bolsonaro com o então presidente dos Estados Unidos Donald Trump.
O jantar no famoso resort de Mar-a-Lago, na Flórida, não trouxe nenhum resultado concreto em termos diplomáticos ou comerciais. Em compensação, 23 integrantes da comitiva brasileira retornaram contaminados com o novo coronavírus. Começava ali uma longa história de negativa da doença, dos seus efeitos e dos métodos cientificamente comprovados para combatê-la.
Bolsonaro é insensível à morte. Ao ordenar, na quinta-feira, “chega de frescura e mimimi”, nosso governante mais uma vez desrespeitou o luto nacional permanente em que vivemos desde o início do ano passado.
Logo no dia seguinte, porém, ao sair do Palácio do Alvorada, assegurou: “Até o final do ano acabou o vírus já, com toda a certeza". Essa frase deixa claro que há um cálculo bastante racional por trás de toda a sua psicopatia.
Na lógica macabra do presidente, mais dia, menos dia a maioria da população será vacinada e em outubro de 2022 o pior terá passado. Com um pouco de sorte - a manutenção das baixas taxas de juros internacionais, um novo boom de commodities e um generoso bônus estatístico depois das quedas de 2020 e do primeiro semestre de 2021 -, o candidato à reeleição poderá até se vangloriar de uma boa taxa de crescimento do PIB durante a campanha.
Com um exército de milhões de seguidores nas redes sociais e uma teia de grupos de WhatsApp com capilaridade em todo o Brasil, editoriais da imprensa, manchetes negativas na TV e notas de repúdio não o comovem - pelo contrário, lhe servem de alimento e incentivo.
Adorado por 30% do eleitorado, blindado pelo Ministério Público e com o Supremo Tribunal Federal acuado, não lhe interessa se morrem a cada dia mil, duas mil ou cinco mil pessoas.
Na sua desastrosa gestão da pandemia, só houve um episódio em que o presidente foi obrigado a recuar na irresponsabilidade. No início do ano, ameaçado duplamente pela possibilidade, ainda que remota, de aceitação de um pedido de impeachment por Rodrigo Maia e pelo marketing agressivo de João Doria com a vacina do Butantã, optou por moderar o discurso e tratou de acelerar os processos de aprovação e obtenção dos imunizantes.
Contudo, afastado o risco político com a vitória de Lira e Pacheco no Congresso e vislumbrando que Doria não decolou nas pesquisas, a morbidez voltou a ditar o rumo das ações presidenciais.
Esse episódio demonstra que Bolsonaro não se importa se ao final serão 300, 400 ou 500 mil brasileiros mortos - o que o move é o instinto de sobrevivência para permanecer no Palácio do Planalto até 2026.
Está cada vez mais claro que não há outro caminho para o governo adotar um comportamento responsável no combate à covid-19 se não for pela política. E tão chocante quanto a postura de Bolsonaro é a inação dos seus potenciais adversários nas próximas eleições.
No PT, Lula e Haddad concentram todos os seus esforços na reversão das condenações dos integrantes do partido na Lava-Jato. Enquanto isso, Ciro Gomes atira em todas as direções com o objetivo único de ser a alternativa da esquerda num eventual segundo turno em 2022.
Sergio Moro, por sua vez, submergiu diante das novas atividades profissionais como diretor de empresa que presta consultoria jurídica para empreiteiras envolvidas com corrupção.
Quanto a Luciano Huck, há quatro anos continua seu chove-não-molha de tuítes e artigos publicados em jornais, repletos de belas palavras e ótimas ideias, mas carentes da coragem de assumir-se como um verdadeiro político.
Cada um à sua maneira, todos parecem apostar na velha estratégia do “quanto pior, melhor”. Ao torcerem para a pandemia e a crise econômica corroerem a popularidade de Bolsonaro até as eleições, indiretamente Lula, Haddad, Ciro, Moro e Huck se mostram coniventes com as centenas de milhares de mortes pela covid-19.
O caos que se dissemina nas ruas, hospitais e cemitérios de todo o país exige que cada eventual candidato saia do conforto das suas contas de Twitter, onde criticam os descalabros do atual mandatário para seus seguidores, e assumam desde já a postura de liderança que prometem exercer a partir de 1º de janeiro de 2023.
Não se trata aqui da defesa de uma utópica formação de uma “frente ampla” com a definição antecipada de uma chapa única para concorrer à Presidência em 2022.
Há várias ações que os principais pré-candidatos poderiam tomar em conjunto para encurralar Bolsonaro politicamente e, assim, forçá-lo a combater seriamente a pandemia, a começar por uma intensa campanha na mídia tradicional e nas redes sociais em que todos se colocariam lado a lado na defesa da vacinação, do uso de máscaras e de ações efetivas de distanciamento social.
No Congresso, os pré-candidatos também poderiam se lançar num processo articulado com vistas, pelo menos, à aprovação de uma CPI mista para investigar as responsabilidades do governo federal pelas mortes pela covid.
Unidos, os aspirantes ao Planalto também poderiam empreender um giro internacional buscando alertar os demais países da gravidade da situação brasileira e dos riscos que ela representa para o mundo em termos de novas variantes do vírus, tentando assim acelerar a obtenção de novas doses das vacinas.
Em botânica, existe um outro sentido para o termo “conivente”. Trata-se de estruturas que na base são separadas, mas cujos ápices se inclinam e se aproximam até se contactarem, mas sem se fundir - como certas flores, em que filetes independentes se unem para tornar mais eficiente o processo de polinização.
Lula, Haddad, Ciro, Moro, Huck, Doria e qualquer um que queira se lançar candidato no ano que vem têm diante de si a escolha de qual significado darão para sua “conivência”: se, pela omissão, serão sócios de Bolsonaro na morte de outros milhares de brasileiros ou se, juntos, abrem mão de diferenças pessoais e ideológicas para pressionar o governo a pôr fim ao estado de calamidade em que nos encontramos.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Gil Alessi: No auge da pandemia, Governo Bolsonaro censura professores e acelera desmonte ambiental e de direitos humanos
Após facilitar acesso a armas e munições no começo do ano, gestão volta a fragilizar fiscalização ambiental e coloca em xeque o futuro do Programa Nacional de Direitos Humanos. Na última sexta, ofício circular constrangeu servidores do IPEA
Em meio a recordes de morte pela covid-19 no Brasil, atraso na vacinação e resultados pífios no desempenho econômico, o Governo de Jair Bolsonaro continua centrando sua artilharia em algumas de suas principais bandeiras desde o início do mandato, em acenos claros à sua base eleitoral mais ideológica. Após uma série de decretos ampliando acesso e compra de armas de fogo e munições no início do ano, agora a gestão investe na desregulamentação ambiental —a “passada da boiada” antecipada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricado Salles—, e em medidas que, na visão das ONGs do setor, atacam os direitos humanos. Na última semana, dois episódios também acenderam o alerta: a Controladoria Geral da República, subordinada à Presidência, abriu procedimento contra dois professores que haviam criticado Bolsonaro enquanto uma circular constrangeu pesquisadores do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), ligado à pasta da Economia, a não divulgar nada sem a estrita supervisão da cúpula.
Na área ambiental o novo golpe veio com a nomeação, feita pelo ministro Salles e publicada no Diário Oficial da União na quarta-feira, da advogada Helen de Freitas Cavalcante como superintendente do Ibama no Acre, um Estado-chave para a preservação da floresta amazônica. As credenciais da indicada para o cargo, no entanto, contrariam a finalidade do órgão, que é o responsável pela fiscalização e preservação dos ecossistemas brasileiros. Cavalcante fez carreira advogando em prol de infratores ambientais que eram autuados não apenas pelo Ibama, mas também pelo Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio).
A defensora divulga vídeos em suas redes sociais nos quais vende seus serviços como uma maneira de evitar que os produtores rurais sejam alvo de multas e outras sanções por parte da fiscalização. “Com uma assistência jurídica especializada não será a Justiça que lhe citará como um executado em (...) multa do Ibama, mas você como autor de uma ação anulatória do auto [de infração] do Ibama, mandará citar o Ibama”, diz Cavalcante. Em outro trecho, ela indaga: “Você que já recebeu aquela multinha do Ibama, aquela que vai de 100.000 reais pra frente? E pensa que é só isso? Mas esse é só o início da sua saga. Você se vê respondendo aqui: na Justiça Federal. Se você tiver um bom advogado, você vai ser autor [de um processo contra o órgão]”.
Após ter a nomeação criticada por ambientalistas e partidos de oposição, a nova superintendente divulgou nota afirmando que sua atuação à frente da entidade se pautará pelos “ditames da legalidade observando as leis e diretrizes ambientais pertinentes ao órgão”. Ainda segundo o texto, Cavalcante diz que sua experiência na área “só acrescentam lisura aos atos perpetrados, pois é necessário um pessoa tecnicamente preparada para a condução do órgão”.
A nomeação de uma advogada que defendia infratores ambientais é mais um capítulo na novela do desmonte e flexibilização de políticas conservacionistas pelo Governo Bolsonaro, que já o colocou em rota de colisão com diversos países europeus e mais recentemente com o recém-empossado presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. O mandatário americano já havia afirmado durante a campanha que a preservação da Amazônia é um ponto central de sua política. Ainda não está claro quais mecanismos ele deve usar para pressionar o Planalto a mudar suas diretrizes na área, mas existe a expectativa de que a floresta deve entrar na pauta das relações bilaterais entre os países.
O outro front de embate do Governo é ideológico, e envolve a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Ela criou em fevereiro um grupo de trabalho com a finalidade de rever e analisar as políticas da pasta, e em especial o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3). O documento foi aprovado em 2009 durante o segundo mandato do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e é considerado um plano progressista. Ligada a grupos evangélicos e com uma atuação marcada por acenos à base conservadora do bolsonarismo, Damares foi criticada por entidades da sociedade civil por excluí-los das discussões sobre o tema. Como pano de fundo existe o temor de que pontos do programa ligados a diversidade, gênero e até mesmo educação sexual sejam excluídos ou alterados pelo ministério sem o devido debate.
Em um vídeo de quatro minutos publicado na última segunda-feira, Damares se defende e ataca “a esquerda” e ministros de Governos anteriores. “Sabe por que deu esse barulho [confusão]? Porque os ex-ministros e a esquerda, que já deixaram o poder, disseram que vamos mexer no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). É claro que vamos rever e avaliar esse plano”, afirma a ministra. De acordo com ela, a avaliação será “tão transparente e participativa que será conduzida pela Escola Nacional de Administração Pública’'. “E nessa avaliação todos vocês vão participar!”. Até o momento, o grupo criado pela ministra conta com 14 integrantes, todos de sua pasta.
A Human Rights Watch divulgou nota na qual insta o Governo de Bolsonaro a “garantir que quaisquer discussões sobre mudanças das políticas de Direitos Humanos no país ocorram de forma transparente, com amplo debate e participação da sociedade civil e dos grupos envolvidos”. A diretora da entidade no Brasil, Maria Laura Canineu, destacou também que o Planalto “vem promovendo uma agenda antidireitos”, e que agora planeja mudar o PNDH-3 “em segredo absoluto e sem a participação de qualquer um que discordar de suas políticas”.
Por fim, dois episódios acendem alerta para táticas do Governo para silenciar seus críticos. Nesta semana, a Controladoria Geral da União, subordinada à Presidência, lançou uma ofensiva contra dois professores da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), no Rio Grande do Sul. Na linha pregada pelo movimento Escola Sem Partido, que visa monitorar e tolher a liberdade de expressão dos docentes nas escolas, o órgão subordinado ao Planalto fez com que o epidemiologista e ex-reitor da Universidade Pedro Rodrigues Curi Hallal e Eraldo dos Santos Pinheiro tivessem que assinar um termo de ajustamento de conduta. Ambos haviam criticado Bolsonaro durante uma transmissão ao vivo em janeiro. O deputado federal Bibo Nunes (PSL-RS) acionou a CGU pedindo a exoneração dos dois —o que ainda não conseguiu. Agora eles terão que ficar dois anos seguindo à risca a lei 8.112, que veta a funcionários públicos ”promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição”, sob pena de sofrerem sanções mais graves.
Eu sua conta no Twitter, o professor Hallal resumiu nesta quinta-feira seu ponto de vista sobre o ocorrido. “Existe um ditado alemão que diz: ‘Se há dez pessoas numa mesa, um nazista chega e se senta, e nenhuma pessoa se levanta, então existem onze nazistas numa mesa. Não se pode tolerar o intolerável”, escreveu. Ao EL PAÍS, o ex-reitor que coordenou o maior estudo epidemiológico do país sobre a covid-19, disse: “Não me lembro de nada do tipo partindo diretamente do Governo Federal. Processos disciplinares acontecem com frequência, envolvendo acusações de assédio, prestação de contas errada e uso inadequado de recursos. Agora um processo disparado por um deputado ligado ao presidente da República diretamente contra um professor, é a primeira vez que eu vejo”.
Nesta sexta, os pesquisadores do IPEA foram surpreendidos por um ofício assinado pelo presidente do órgão, Carlos Von Doellinger, que lembra a todos que os estudos e pesquisas “são direito patrimonial do Ipea” e que a divulgação “pode ocorrer após sua conclusão e aprovação definitiva, devendo serem seguidos normais, protocolos e rotinas internas, inclusive quanto à interação com os órgãos de imprensa”. O texto lembra que, caso a ordem não for seguida, pode haver punições. Ainda que a normativa se baseei em regras internas do órgão, subordinado ao Ministério da Economia, o ofício foi visto como intimidatório pelos funcionários. Circula internamente que o detonador do ofício, classificado de “lei da mordaça” e “censura prévia” pelo sindicato do IPEA, foi a publicação de um trabalho ainda em andamento do economista Marcos Hecksher pela BBC Brasil. Segundo a estudo, “o risco de morrer de covid-19 no Brasil foi mais de 3 vezes maior que no resto do mundo. Constrangimentos no órgão não são exatamente novidade ―em 2014, pesquisadores relataram ter sofrido pressão do Governo Dilma Rousseff para não publicar um estudo que falava sobre a alta da pobreza extrema―, mas a percepção é de que a atual cúpula foi além com a determinação de que as pesquisas são “propriedade” do IPEA.