covid-19

Ruy Castro: 'Presidente, por que o senhor...?'

Se a pergunta for curta, direta e objetiva, a resposta de Bolsonaro pode consagrar o repórter

Em novembro de 1979, na campanha por sua indicação à disputa da Presidência dos EUA pelo Partido Democrata, o senador Ted Kennedy foi entrevistado pelo repórter da CBS Roger Mudd. O qual só precisou lhe fazer a primeira pergunta: "Senador, por que o senhor quer ser presidente dos EUA?". Kennedy vacilou, engoliu e gaguejou: "Bem, eu--- se eu for--- eu acho--- se disser que--- concorrer--- uma das razões---", para terminar num clichê de quinta categoria: "É que--- eu acredito neste país".

Sepultava ali sua chance de enfrentar o republicano Ronald Reagan. Os americanos não perdoam hesitação e despreparo num político, e, se Kennedy não conseguia responder a algo tão simples, o que seria quando voltassem a cobrá-lo sobre a morte por afogamento de sua secretária num acidente de carro dirigido por ele, em Chappaquiddick, Massachussetts, em 1969, e que ele nunca explicara direito?

Roger Mudd morreu na semana passada, em Nova York, aos 93 anos, de causas naturais, e a notícia trouxe de volta essa entrevista --uma aula para repórteres, principalmente de televisão. Ela mostra que não há nada mais mortífero para um político do que uma pergunta curta, objetiva, rápida e que termine com ponto de interrogação --porque não lhe dá tempo para pensar. Ou ele responde de bate pronto, arriscando-se a dizer o que não quer, ou embatuca ou dá uma resposta agressiva e malcriada. E, de qualquer maneira, reveladora.

No caso de Jair Bolsonaro, cuja relação com a imprensa independente é a de um javali acuado e excretando, seu atual estado de nervos pode desencadear uma agressão ao repórter por ferrabrases. Mas qualquer oportunidade de se lhe fazer uma pergunta educada, porém direta, de primeira e com um máximo de dez palavras —como a de Mudd—, deve ser aproveitada.

Não que se espere dele uma resposta racional. Nem precisa. A que vier arrisca consagrar o repórter.


Reinaldo Azevedo: Sem juízo e as regras do jogo, morreremos todos sufocados

Que os políticos e os magistrados se lembrem de que a destruição do devido processo legal nos legou a Terra dos Mortos

Na minha contabilidade, Jair Bolsonaro cometeu 26 crimes de responsabilidade, alguns deles também crimes comuns. Por qualquer caminho, não entrarei em minudências, seriam necessários dois terços da Câmara para retirar das suas mãos os instrumentos de Estado que servem, por ação e omissão, ao morticínio em massa. Os etimologistas do caos contestam a palavra "genocídio". Mesmo diante do genocídio. Se operadores da política e da Justiça cometerem erros importantes agora, morreremos todos. Sem estrondo nem respiradores.

O país já enfrenta a falta de anestésicos e de neurobloqueadores para intubar pacientes. Entes públicos e privados precisam da autorização imediata para tentar comprá-los onde quer que estejam disponíveis no mundo. O colapso chegou. O caos se avizinha. Não temos mais UTIs. Não temos mais respiradores. Não temos mais mão de obra disponível. E agora o pior: há o risco de a infraestrutura existente se tornar inútil porque faltam as drogas necessárias.

Não obstante, até esta quinta, tínhamos, na prática, dois ministros da Saúde que não valiam por um. Porque, de fato, a pasta é conduzida por Bolsonaro. Marcelo Queiroga chegou simulando apego à ciência. Indagado sobre o uso da cloroquina, afirmou: "É algo que precisa ser analisado para que a gente consiga chegar a um ponto comum que permita contextualizar essa questão no âmbito da evidência científica e da ciência".

Madame Natasha, fonte exclusiva de Elio Gaspari, fiquei sabendo, deu o rapaz como caso perdido. E aí digo eu, não ela: há uma dimensão da linguagem que não guarda relação com a sintaxe ou com a etimologia. O conteúdo, ainda que meio atrapalhado, tem mais intimidade é com o caráter mesmo.

Quanto ao ministro que está saindo, um general da ativa, não resisto a lembrar aqui, mais uma vez —e o farei quantas forem necessárias—, o tuíte do general Villas Bôas, então comandante do Exército, escrito para intimidar magistrados e pavimentar, querendo ou não, o terreno para homicidas em massa: "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?".

No começo, como é mesmo?, a Covid-19 matava "nossas avós", como discursava o "Lírico da Cloroquina". Eram as gerações passadas. "Todo mundo morre um dia", ele avançou, com o realismo típico aprendido ali pelas bandas da zona oeste do Rio. Jovens e crianças estão morrendo agora. São as "gerações futuras", em nome das quais o general ameaçou civis desarmados, ora vítimas da irresponsabilidade, da ignorância, da mesquinharia sórdida.

E agora retomo o fio que deixei lá no primeiro parágrafo. As forças e lideranças que se opõem a Bolsonaro e os operadores da Justiça comprometidos com a Constituição têm de se perguntar, a cada dia, se sua ação pode concorrer para a eventual reeleição do mandatário. Sairemos lanhados dessa tragédia humanitária e civilizatória. Precisaremos reconstruir o tecido esgarçado da democracia. Ainda é possível. Resta-nos a esperança no fundo da caixa.

governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B), num raciocínio essencialmente correto e moral, falou sobre a necessidade de as esquerdas e o centro se unirem em defesa de algum futuro. É pouco provável que aconteça no primeiro turno. Mas saibam todos: discursos e postulações, no terreno antibolsonarista, que criem zonas de exclusão —dando mais relevo ao inconciliável do que a uma pauta mínima de defesa da ordem democrática— concorrem para a permanência daquilo que nos mata como indivíduos e nos inviabiliza como país.

Da mesma sorte, nunca foi tão grande a responsabilidade dos togados. A destruição do devido processo legal e da política como espaço de resolução de conflitos nos conduziu ao desastre. A exemplo de todo salvacionismo, também o dos fanáticos de Curitiba resultou em devastação e morte. Tenham a coragem, senhores ministros, de resgatar as regras do jogo. Não é um golpe que nos ameaça. É a desordem. Ou morreremos todos. Sem estrondo nem respiradores.


Bruno Boghossian: Aparato de intimidação de Bolsonaro reflete governo enfraquecido

Ministério persegue críticos do presidente e estimula polícias a seguir diretriz

O governo criou um aparato para perseguir críticos de Jair Bolsonaro. O Ministério da Justiça, a Polícia Federal, o Ministério da Educação, a Controladoria-Geral da União e polícias locais já foram atrás de gente que chamou o presidente de genocida ou de "pequi roído". Não é coincidência, é doutrina.

A política oficial desceu dos gabinetes de Brasília para os quartéis. Nesta quinta (18), um grupo foi detido pela Polícia Militar da capital por estender um cartaz que criticava Bolsonaro e o associava a uma suástica. Os agentes viram uma ameaça à segurança nacional e levaram os manifestantes para a Polícia Federal. Eles foram liberados porque o delegado viu o óbvio: não havia crime.

As polícias locais não têm competência para investigar infrações à ordem política e social, como as previstas da Lei de Segurança Nacional. Ainda assim, outras autoridades nos estados passaram a lançar acusações contra críticos de Bolsonaro.

No Rio, a Polícia Civil intimou o youtuber Felipe Neto por ter se referido ao presidente como genocida. A juíza Gisele Guida de Faria reconheceu que um delegado estadual não poderia abrir o caso e mandou suspender a investigação.

A inspiração partiu do Ministério da Justiça. A pasta já acionou a Polícia Federal para investigar jornalistas, advogados e outros críticos do presidente. Num dos casos, o ministro André Mendonça ficou incomodado com o autor de um outdoor em Palmas que dizia que Bolsonaro valia menos do que um "pequi roído".

Boa parte desses procedimentos deve ser barrada na Justiça ou acabar numa gaveta, mas o objetivo não é levar a investigação adiante. A ideia é acuar os críticos de Bolsonaro e estimular a polícia dos estados a seguir essa diretriz, mesmo que cometa abusos no caminho.

A campanha reflete a essência autoritária do bolsonarismo, que busca um dispositivo da ditadura para calar desafetos. Mas o movimento também revela o medo de um governo fragilizado. Nenhum presidente forte precisa intimidar seus críticos.


Vinicius Torres Freire: Comando do Congresso se torna cúmplice do matadouro de Bolsonaro

Em um país sob risco de ficar sem remédio e UTI, lideranças não reagem a Bolsonaro

No dia mais sombrio da epidemia no Reino Unido, soube-se da morte de 1.253 pessoas. Quer dizer, mais de 18 britânicos mortos por milhão de habitantes do país. No Brasil, seria o equivalente a 3.913 mortes, considerada apenas a diferença de tamanho da população, sem outros ajustes estatísticos. O Reino Unido levou mais de 20 dias para reduzir o número de mortes diário à metade.

No Brasil de agora, anotamos nas nossas lápides mais de 2 mil mortos por dia. Isto é, mais de 9 mortos por milhão de habitantes (na média móvel de sete dias). Algo menos que os picos da Alemanha em janeiro, da Espanha em fevereiro ou da França em novembro. Esses países levaram mais de um mês para reduzir o morticínio à metade. Isso porque, mal ou bem, têm governo. E aqui?

Por sabotagem de Jair Bolsonaro, pela pobreza, pela desigualdade ou por diferenças na interação social, as medidas de restrição tendem a funcionar menos. Mesmo se a onda de mortes diminuísse como nos grandes países europeus, ainda teríamos mil mortes por dia em meados de abril. Mas o Brasil nem sabe se chegou ao pico do monte diário de cadáveres. No presente ritmo da epidemia e pelo número de leitos por ora disponível, não haverá mais UTIs em uns dez dias, antes do fim de março.

O clamor do desastre era alto nesta quinta-feira. Os remédios necessários para entubar os doentes estariam para acabar em 20 dias, noticiou Mônica Bergamo nesta Folha. Associações de prefeitos, de secretários de saúde, de hospitais privados, de farmacêuticos ou de médicos intensivistas avisavam do colapso dentro do colapso. A cidade de São Paulo vai praticamente parar na segunda quinzena de março, pelo menos (a economia paulistana faz 11% do PIB do país).

O Brasil vai para o matadouro bolsonariano quase em silêncio político, sem reação maior de sua elite. Os governadores tentam administrar a crise, na ausência de governo federal, isso quando não têm de se defender na guerra civil midiática promovida por Jair Bolsonaro. Os estados tentam articular uma vaga e frágil tentativa de coordenação nacional. Mas parece haver um acordo para evitar o confronto com o genocida.

As lideranças do Congresso estão à beira de se transformar em cúmplices de Bolsonaro. Os presidentes de Câmara e Senado contemporizam e querem manter de pé o acordão que os colocou nos comandos do Parlamento.

Rodrigo Pacheco (DEM-MG), do Senado, fez declaração protocolar de interesse de agir: “Sentar à mesa, planejar e agir o mais rapidamente possível. Isso é fundamental! A situação crítica do Brasil exige a coordenação do presidente da República, ações do Ministério da Saúde e toda colaboração dos demais Poderes, governadores, prefeitos e instituições”.

Arthur Lira (PP-AL), da Câmara, menos do que isso: “Os brasileiros precisam ter esse conforto, e nós precisamos evitar essa agonia e esse vexame internacional... Então nós temos, sim, que nos unir, sem estar apontando justamente culpados”.

Isso é conversa fiada.

Parece que o apoio restante a Bolsonaro, 30% do povo, serve de baliza para justificar a contemporização oportunista com a morte, ao menos na política de governistas, agregados ou cúmplices. O possível efeito de uma convulsão política na economia, afora os colaboracionismos animados, parece o motivo do imobilismo da elite econômica. A morte tem um preço que, parece, vale pagar.

Não é fácil entender os motivos da apatia ou da cumplicidade. Mas era certo que neste 18 de março de 2021, o Brasil se dirigia quase sem reação para o abatedouro de Jair Bolsonaro.


Fernando Abrucio: Bolsonaro é o adversário do centro

O cenário mais provável para 2022 é de um peso enorme para o antibolsonarismo

A volta de Lula para a ribalta da política fez as peças do tabuleiro de 2022 se mexerem. O primeiro a sentir essa mudança foi o presidente Bolsonaro, que colocou até máscara e teve de trocar o ministro da Saúde, mais pelo discurso de São Bernardo do que pelas mais de 270 mil mortes causadas pela covid-19. Já a oposição de Centro ficou muito abalada pela decisão do STF e reagiu na linha do antipetismo. É natural que a maioria dos contrários ao PT reagisse negativamente, inclusive Ciro Gomes, que terá de conquistar boa parte da centro-esquerda. Passado o choque inicial, deveria vir o diagnóstico eleitoral. Neste ponto, uma coisa é clara: o principal adversário do Centro é Bolsonaro.

Entender quem é seu oponente central e descobrir como enfrentá-lo são os dois passos estratégicos para quem quer entrar na disputa política. O posicionamento de Bolsonaro e do lulismo no jogo político está bem claro. Ainda há dúvidas sobre como Ciro Gomes vai se reposicionar. Mas a maior incógnita está no Centro oposicionista (em contraposição ao Centrão), que congrega vários partidos e candidatos com pretensões presidenciais, tem importantes governos estaduais e capitais em suas mãos, além de ter um suporte de importantes grupos sociais. É um cabedal político muito forte, mas que por ora está fragmentado e não consegue produzir um projeto eleitoral nítido.

O discurso contra a polarização gerada pelo bolsonarismo versus o lulismo serve para criar uma identidade, mas é claramente insuficiente para se vencer a eleição. Três razões embasam esse argumento. A primeira é que o jogo político da redemocratização tem se organizado de forma polarizada, no sentido estrito da ciência política: duas forças têm predominado na eleição presidencial, com pouco espaço para uma terceira via.

Na primeira eleição direta da redemocratização, houve uma grande dispersão no primeiro turno, particularmente porque os partidos estavam ainda se organizando e se posicionando frente à sociedade. Foi só depois do impeachment do presidente Collor que se estruturou o eixo polarizado do sistema político brasileiro. Assim, de 1994 a 2014, a disputa presidencial brasileira foi orientada pela competição entre PSDB e PT. Ou, nos termos do excelente livro de César Zucco e David Samuels (“Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil”), criou-se uma dicotomia entre petismo e antipetismo que estruturou as preferências dos eleitores por pelo menos 20 anos. Em todas as eleições presidenciais da redemocratização, o Partido dos Trabalhadores esteve no segundo turno, perdendo em quatro ocasiões (1989, 1994, 1998 e 2018) e ganhando nas outras quatro vezes (2002, 2006, 2010 e 2014).

A força petista, bastante vinculada à liderança do ex-presidente Lula, é algo que tem levado os demais grupos políticos a lutar para ser o outro lado desse jogo. Seguindo essa lógica, o Centro disputa com Bolsonaro para ver quem será o adversário do petismo. Esse raciocínio foi esquecido por muitos analistas políticos e, especialmente, por lideranças centristas de oposição. Talvez estivessem pensando que tal fator não apareceria mais em 2022, pois o antipetismo cresceria de tal forma que a escolha seria de um nome não-petista para competir com Bolsonaro.

E aqui entra a segunda razão pela qual o Centro tem de ir além da narrativa da polarização entre PT e Bolsonaro: o principal eixo da eleição de 2022 será o antibolsonarismo, do mesmo modo que a disputa presidencial de 2018 teve no antipetismo sua peça-chave. A crise atual é imensa, mas claro que o governo pode se recuperar às vésperas do pleito. Só que o cenário político aparenta ter mais pedras e espinhos no caminho bolsonarista do que esperança de uma reeleição tranquila.

A lista de fatos problemáticos para o governo é extensa. A crise da pandemia terá seus piores momentos nos próximos três meses, quando a cobertura vacinal será muito baixa e não haverá ainda vacinas para um bom contingente da população. As mortes se multiplicarão e serão cada vez mais dramáticas, como foram em Manaus. Num cenário como esse, além da revolta de boa parte da população com o fracasso da política de saúde, não há a menor chance de a economia andar no primeiro semestre. O auxilio emergencial agora será bem menor e a popularidade obtida no ano passado não se repetirá.

Nos próximos meses, incluindo o início do segundo semestre, Bolsonaro perderá muita popularidade. Não se sabe ainda qual é o seu piso, mas se chegar mais próximo dos 20%, o Centrão cobrará caro para evitar o impeachment ou a transformação do presidente num “lame duck” (pato manco), sem autoridade até com quem lhe serve o café. Esse preço causará mais danos sobre a imagem presidencial, bem como uma possível piora na parte fiscal. Tudo isso num contexto em que os juros poderão subir para se evitar a inflação, em que o dólar não vai cair porque o descrédito do Brasil só acabará com uma mudança radical desse governo (algo difícil de acontecer) ou quando assumir o próximo.

O aumento da cobertura vacinal e o impulso econômico vindo de fora poderiam ser dois empurrões para a recuperação econômica brasileira e, com isso, o presidente poderia subir novamente nos indicadores de popularidade. É uma hipótese possível, mas que ainda terá que competir com vários escândalos envolvendo a família Bolsonaro e que vão assombrar o Planalto até o fim do mandato. Soma-se a isso o fracasso em outras áreas de políticas públicas, como educação, meio ambiente e garantia de direitos humanos nas questões de gênero e raça, para não falar do sepultamento de qualquer política anticorrupção.

Todos esses fatos tendem a levar um grande contingente de eleitores a não votar em Bolsonaro, mesmo que ocorra alguma bonança econômica, até porque esta será suave e sem as proporções de um Plano Real ou do desempenho do segundo governo Lula. Neste sentido, uma eventual reeleição de Bolsonaro tenderia a ser mais parecida com a de Dilma, isto é, de alguém que ganha com uma diferença ínfima e que teria uma altíssima rejeição, inclusive de grupos com forte capacidade de mobilização. Uma vitória assim é a antessala para a ingovernabilidade, como já vimos por duas vezes desde a redemocratização.

O cenário mais provável para 2022, portanto, é de um peso enorme para o discurso antibolsonarista. Isso não impede Bolsonaro de chegar ao segundo turno, do mesmo modo que o PT foi para a disputa final em 2018 quando foi o auge do antipetismo. Mas, nesta situação, Bolsonaro e suas ideias se transformam no espantalho a ser batido. Quem percebeu isso? Lula, muito mais do que o PT, e num só discurso se colocou como mais antibolsonarista do que o Centro em dois anos de mandato. Ao fazer esse movimento, o ex-presidente tornou-se o líder mais apto a conquistar o eleitorado mais de centro-esquerda e os eleitores das classes D e E. Se o centrismo de oposição não radicalizar seu viés contrário ao presidente da República, inclusive encampando o impeachment ou atuando para criar CPIs, perderá o trem da história.

Uma ressalva poderia ser feita pela oposição de Centro: contava-se com uma candidatura petista que não fosse Lula. Na verdade, não há ainda nem a certeza de que o ex-presidente poderá ser candidato, visto que o STF é a instituição menos previsível da democracia brasileira. O que poderia ser um alento para os antipetistas é, antes de mais nada, miopia, uma vez que, sendo candidato ou não, Lula terá muito mais influência do que na eleição de 2018, seja porque o antipetismo será menor e a história da “prisão injusta” vai conquistar mais gente agora, seja porque Bolsonaro estará em declínio.

Esta é a terceira razão que deveria levar o Centro a criar uma estratégia mais consistente do que o mero discurso da polarização: sendo ou não candidato, a influência de Lula tende a ser capaz de garantir mais de 30% dos votos do primeiro turno, se não mais - afinal, Fernando Haddad, nome nacionalmente pouco conhecido, com Lula preso e no auge do antipetismo, teve 29,28% na votação inicial. Em outras palavras: é muito difícil que um representante do lulismo não esteja no segundo turno. O outro oponente sairá da luta entre Bolsonaro e seus outros adversários.

Encurralar Bolsonaro e lhe fazer uma dura oposição, que torne claro o seu antibolsonarismo para a população, é o melhor caminho para o Centro ganhar um lugar no segundo turno da eleição presidencial. Para tanto, é preciso começar agora esta tarefa, e não deixar para o ano que vem, marcando por um longo tempo uma posição, de modo a torná-la eleitoralmente consistente. Poderia começar por defender uma visão favorável ao impeachment ou a uma responsabilização pública mais forte do presidente. Quem estiver nitidamente com a maioria do povo nos próximos meses, que serão os piores da pandemia, poderá ser recompensado em termos de apoio político.

Mas essa atuação centrista deve ser precedida por uma proposta alternativa de políticas públicas e, sobretudo, da união em torno de uma posição antibolsonarista, criando uma identidade mais relevante do que a narrativa da polarização. Muitos do Centro já falam num candidato único, que seria a solução política mais efetiva, porém, esse esforço só fará sentido para se chegar ao segundo turno se conseguirem destronar Bolsonaro da posição de adversário preferencial do PT.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas


Eliane Cantanhêde: Causa e efeito - Brasil afunda na pandemia, Bolsonaro cai nas pesquisas e no Centrão

Quem planta vento colhe tempestade e presidente que trata a covid-19 com sarcasmo paga com impopularidade

Quem planta vento colhe tempestade e presidente que trata a covid-19 com sarcasmo paga com impopularidade. Numa profunda e drástica relação de causa e efeito, o Brasil vive uma catástrofe sem precedentes com a pandemia e o presidente Jair Bolsonaro passa por seu pior momento, uma ilha cercada de desastres e más notícias por todos os lados.

O melhor índice do Ministério da Saúde no combate à pandemia, de 76%, foi quando o então ministro Luiz Henrique Mandetta traçava estratégias, tomava providências efetivas e mantinha a população rigorosamente informada. Segundo o Datafolha, esse índice esfarelou para 28% desde Mandetta até o general Eduardo Pazuello.

Assim como não consegue admitir a gravidade da covid-19, Bolsonaro nunca foi capaz de compreender duas obviedades: 1) só combatendo a pandemia é possível reduzir os danos na economia, na renda e nos empregos; 2) o sucesso de Mandetta e da Saúde seria o seu próprio sucesso, seu passaporte para a reeleição.

Por ignorância, teimosia e a mania de dar ouvidos a idiotas, Bolsonaro fez o oposto, demitiu Mandetta e desdenhou a pandemia. O resultado está aí, com recordes de mortos e contaminados, vacinas a conta-gotascolapso da saúde, descontrole fiscal, quebra-quebra de empresas e... queda de popularidade e de confiança em Bolsonaro: 56% consideram Bolsonaro incapaz de liderar o País.

Pandemia, crescimento baixo, inflação alta (sobretudo para alimentos), aumento dos juros básicos após seis anos dos menores níveis da história e sucessivas altas dos combustíveis têm efeito direito sobre o humor da população – e dos eleitores. E o auxílio emergencial, que demora, é muito menor do que já foi.

No Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que parecia tão amigável, impôs duas derrotas ao “01”, senador Flávio Bolsonaro. Isso nos lembra que oito dos 11 ministros do STF tinham sido nomeados nos mandatos petistas, mas seis deles votaram contra o habeas corpus que livraria o ex-presidente Lula da cadeia. Amigos, amigos, votos à parte. E eles nem são tão amigos assim dos Bolsonaros.

Papai Bolsonaro, assim, está sendo compelido a tomar várias medidas em prol da sobrevivência. A mais vistosa é que ele continua negacionista e falando absurdos como sempre, mas demitiu o general da Saúde e nomeou o quarto ministro em dois anos, Marcelo Queiroga, sem alterar a máxima de que “um manda, o outro obedece”.

Na economia, o presidente continua corporativista, antiliberal e oportunista, fingindo que prestigia o ex-Posto Ipiranga Paulo Guedes, enquanto puxa o tapete dele dia sim, outro também. A última: depois de acertar com Guedes o veto à anulação de dívidas de igrejas com a Receita Federal, ele avalizou a derrubada do próprio veto no Congresso. Jogo duplo. E sujo.

Na política, presidente fraco equivale a Legislativo forte – e a Centrão ganancioso. A aliança fica mais cara quando Bolsonaro cai nas pesquisas e desconvida a médica Ludhmila Hajjar, indicada pelo Centrão, para pôr na Saúde o Queiroga, amigo dos filhos. O presidente da Câmara, Arthur Lira, defensor de Hajjar, agora, bem atrasado, teme que a crise da covid “vire vexame internacional”. E o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tem uma carta na manga: a CPI da Pandemia.

Bolsonaro está diante de 300 mil mortos de covid, colapso da saúde, desemprego, inflação, dólar alto, gasolina cara, aumento de juros, queda nas pesquisas, agitação no Centrão, risco de CPI e Lula no cangote. Lula é o catalisador das esquerdas. As conversas do centro com a esquerda esquentam. O senador Major Olimpio, morto ontem de covid, fortalece o bolsonarismo arrependido à direita. Nada, porém, tão devastador contra Bolsonaro do que o próprio Bolsonaro.


Folha de S. Paulo: Para 79%, pandemia de coronavírus está fora do controle, e medo é recorde, mostra Datafolha

Pesquisa coincide com colapso hospitalar país afora e registros diários de quase 3000 mortes por Covid

Angela Pinho, Folha de S. Paulo

No momento em que o sistema de saúde entra em colapso por todo o país e o governo Bolsonaro anuncia seu quarto ministro da área, o medo de pegar o coronavírus e a percepção de que a pandemia está fora de controle atingem níveis recordes.

Pesquisa Datafolha mostra que 79% dos brasileiros acham que a pandemia está sem controle, ante 62% que manifestavam essa opinião em janeiro.

Outros 18% dizem que a situação está parcialmente controlada, 2% que está totalmente controlada, e 1% não sabe.

O levantamento, com margem de erro de dois pontos percentuais, foi feito por telefone com 2.023 pessoas de todos os estados do país nos dias 15 e 16 de março.

No domingo (14), as movimentações para a substituição do general Eduardo Pazuello do posto de ministro da Saúde ganharam força, com a ida da médica Ludhmila Hajjar a Brasília para uma conversa com o presidente Jair Bolsonaro.

Ela acabou por recusar o cargo, e a troca foi efetivada na segunda-feira, com o cardiologista Marcelo Queiroga no lugar de Pazuello, desgastado após a crise da falta de oxigênio em Manaus e atrasos e falhas logísticas na distribuição de vacinas.[ x ]

Queiroga assume em meio a uma rápida e trágica escalada de mortes pela Covid-19. Nesta quinta-feira (18), o país completou 20 dias seguidos de recordes na média móvel de óbitos, que chegou a 2.096.

Desde o início da pandemia, quase 288 mil brasileiros já morreram pela doença.

Em meio às notícias sobre falta de leitos para pacientes em diversas partes do país, a parcela da população com temor de se infectar pelo vírus alcançou nível recorde.

A pesquisa Datafolha mostra que 55% dos entrevistados declaram ter muito medo, enquanto o levantamento anterior, de janeiro, registrou 44%. Outros 27% têm um pouco de medo, 12% não têm, e 7% relataram já ter contraído a doença.

Diz ter muito medo uma parcela mais expressiva das mulheres (61% ante 48% dos homens), dos mais velhos (58% da faixa etária com 45 anos ou mais, ante 48% dos de 16 a 24) e moradores do Nordeste (61% contra 44% da região Sul).

Mas mesmo entre os homens houve aumento significativo entre os que manifestaram ter muito temor da doença: de 33% no levantamento em janeiro, essa parcela foi para 48% entre eles. Entre elas, passou de 55% para 61%.

Também passou a declarar muito medo uma parcela maior dos segmentos de jovens de 16 a 24 anos (foi de 34% para 48%) e dos mais ricos, com renda mensal de mais de dez salários mínimos (passou de 41% para 55%).

Esses estratos têm sido particularmente afetados na atual fase da pandemia. Na esteira de aglomerações no final do ano e no Carnaval, médicos têm observado uma presença maior de pacientes jovens nas UTIs.

Em um cenário de esgotamento generalizado da capacidade de atendimento, o acesso a plano de saúde não é mais suficiente para garantir atendimento. Hospitais privados de ponta têm unidades lotadas, e parte deles já chegou a pedir leitos para o SUS em São Paulo.

O colapso na saúde no país contrasta com cenas de aglomerações e eventos clandestinos. Em São Paulo, onde já se registra morte por falta de leito de UTI, o índice de de isolamento social estava em 43% na quarta-feira (17), longe da meta do governo paulista de 50%.

A pesquisa Datafolha mostra que a não adoção de distanciamento não decorre necessariamente de desconhecimento sobre a gravidade da pandemia.

A percepção de que a disseminação da doença está fora de controle é majoritária mesmo entre os que estão vivendo normalmente, sem nenhuma medida extra de isolamento.

Nessa parcela da população, a maioria ou tem muito medo (26%) ou um pouco de medo (29%) de contrair a Covid-19. Já 34% declaram não ter receio.

Consenso entre especialistas para frear um vírus transmitido principalmente por gotículas de saliva e aerossóis, o isolamento social vem sendo combatido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) desde o início da pandemia, com aglomerações e falas nesse sentido.

Ele chamou de histeria, mimimi e fantasia a reação ao vírus. “Vão ficar chorando até quando?”, indagou no início do mês.

A alternativa mais eficiente ao distanciamento social é a vacinação, que patina no país. Além da demora em firmar contratos com fornecedores, o governo Bolsonaro já adiou sucessivas vezes o cronograma de aplicação dos imunizantes já aprovados na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Não por acaso, a percepção de que a pandemia está fora do controle é mais alta entre os que reprovam o governo Bolsonaro (94%) e entre os que não confiam em suas declarações (93%).

É maior também entre mulheres (85%, contra 73% entre os homens) e entre os mais pobres (82% ante 69% dos mais ricos).

Considerando-se a religião, a parcela dos entrevistados pelo Datafolha que declara ter muito medo de pegar a Covid é maior entre os católicos (61%) do que entre os evangélicos (45%). Já a percepção de que a pandemia está fora de controle não varia tanto entre os dois grupos —fica em 81% e 76%, respectivamente.

Diante do pior momento da pandemia e da possibilidade concreta de enfrentar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na disputa eleitoral de 2022, Bolsonaro agora ensaia discurso a favor da vacinação em massa, contrariando diversas declarações pelas quais colocou em dúvida a confiabilidade dos imunizantes.


Bernardo Mello Franco: Estado de intimidação

A PM de Brasília prendeu cinco manifestantes que abriram uma faixa contra o presidente na Praça dos Três Poderes. A notícia remete aos anos de chumbo, quando os militares perseguiam quem ousasse contestar a ditadura. Aconteceu ontem, sob o governo de Jair Bolsonaro.

A escalada autoritária é liderada pelo Planalto. O ministro da Justiça, André Mendonça, ressuscitou a Lei de Segurança Nacional para enquadrar os críticos do chefe. Já mandou a Polícia Federal instaurar inquéritos contra jornalistas, advogados e até cartunistas.

Agora o exemplo do pastor inspira bolsonaristas nas polícias civis e militares. Num país governado por um fã do AI-5, há sempre um guarda da esquina disposto a rasgar a Constituição.

O professor Conrado Hübner Mendes, da Faculdade de Direito da USP, considera que o Brasil já vive sob um “estado de intimidação”. “O objetivo das investidas policialescas é gerar um clima de medo e autocensura. É uma forma de repressão preventiva”, define.

A crônica dos abusos só aumenta. No Rio Grande do Sul, professores foram processados por criticar o presidente. No Rio de Janeiro, pesquisadores foram intimados por denunciar o desmonte da Casa de Rui Barbosa.

No Tocantins, o ministro Mendonça mandou a PF investigar um sociólogo que pede impeachment de Bolsonaro. Seu crime foi escrever, num outdoor, que o capitão “não vale um pequi roído”. O pequi ainda não foi ouvido para se defender da comparação.

Os manifestantes de Brasília foram enquadrados na LSN porque chamaram o presidente de “genocida”. Três dias antes, o youtuber Felipe Neto foi convocado a depor pelo mesmo motivo. Em ambos os casos, recorre-se a uma lei da ditadura para sufocar a liberdade de expressão na democracia.

“A LSN está sendo usada para perseguir quem critica o governo. Isso é um abuso de autoridade e um ataque ao Estado democrático de direito”, diz o advogado Augusto de Arruda Botelho. Ele ajudou a fundar o grupo Cala a Boca Já Morreu, que vai oferecer defesa gratuita a novas vítimas da caça às bruxas.

Enquanto o Supremo não varre o entulho autoritário da LSN, o bolsonarismo continua a cultuar a tirania. A Justiça Federal acaba de autorizar o Exército a festejar o 57º aniversário do golpe de 1964. Se a decisão não for reformada, os militares poderão praticar o esporte preferido do seu comandante em chefe.


Vera Magalhães: Sociedade civil, finalmente, inicia reação ao arbítrio

E pur si muove!

Não se sabe se Galileu Galilei de fato proferiu a famosa frase depois de ter renegado a teoria heliocêntrica e se retratado perante a Inquisição, mas ela é, até hoje, um libelo em favor da razão e da Ciência — e contra a censura e a perseguição político-religiosa.

Sim, a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário. (Além de se mover, ela é redonda, como recentemente atestou até Jair Bolsonaro, ao aparecer com um globo terrestre movido a pilha numa das suas infernais lives semanais.)

A frase imputada a Galileu me voltou à mente diante da resistência cívico-jurídica organizada pelo influenciador Felipe Neto, que, diante da tentativa de intimidação judicial que sofreu por parte de Carlos Bolsonaro, filho e guarda-costas do presidente da República, montou uma rede com alguns dos melhores advogados criminalistas do Brasil, para defender gratuitamente aqueles que vierem a ser perseguidos por se manifestar contra o governo e o capitão.

A inaceitável tentativa de enquadrar o youtuber na Lei de Segurança Nacional caiu por ora, graças a uma liminar, mas a ameaça autoritária já há muito saiu do campo da possibilidade e da retórica para virar realidade cotidiana.

Nesta quinta-feira, foi a vez de manifestantes serem presos por protestar em frente ao Palácio do Planalto portando cartazes e faixas chamando Bolsonaro de “genocida”.

A Polícia Militar do Distrito Federal executou a ação e tentou envolver a Polícia Federal, que liberou os manifestantes e, desta vez, não participou da tentativa de cerceamento à livre manifestação.

Digo “desta vez” porque, acionada diretamente pelo ministro da Justiça, André Mendonça, a mesma PF abriu recentemente inquérito contra um sociólogo do Tocantins que confeccionou um outdoor dizendo que o presidente vale menos que um caroço de pequi roído.

O cerco não é hipotético, não se trata de paranoia da oposição nem de exagero dos críticos. Mais: ele é alimentado pelo recurso cada vez mais frequente do próprio presidente a ameaças veladas ou abertas a medidas “drásticas” ou “precipitadas”, como ele fez nesta quinta naquele bate-papo com puxa-sacos no cercadinho do Alvorada.

Que haja por parte da sociedade civil organizada — influenciadores, advogados, artistas, jornalistas — a organização de respostas claras, imediatas, destemidas e, sobretudo, concretas a esse caldo de cultura golpista é, finalmente, um alento, uma vez que as instituições, que tenho cobrado a cada artigo neste espaço, seguem inertes.

Bolsonaro é, cada vez mais, um bicho acuado. Pela própria covardia, pelo negacionismo que praticou neste ano de pandemia — e que é, sim, o grande responsável pela maioria das mais de 287 mil mortes registradas pela Covid-19 — e pela falta de equipe e de bússola que tire a ele e ao país desta gravíssima crise sanitária, econômica, social, moral e política que atravessamos.

Alguém com pendor autoritário assim assustado é um perigo para um país já traumatizado e com instituições frouxas, dirigidas por homens frouxos. Ainda bem que alguém encabeçou uma ação de fácil compreensão e rápida eficácia.

Felipe Neto, diante dos inquisidores, berrou que a Terra se move, sim, e continuará se movendo a despeito da tentativa de mordaça. E não é a primeira vez: no episódio na censura do ex-prefeito Marcelo Crivella a quadrinhos na Bienal do Rio, em 2019, foi o “moleque”, como gostam de bradar os bolsonaristas, a ir lá e comprar todos os livros com temática LGBTQIA+ e distribuir gratuitamente.

Para além das notas de repúdio e da indignação diluída das redes sociais, esse tipo de iniciativa gera resultado. Que ela inspire os que são pagos por nós para zelar pela democracia.


Fernando Gabeira: Sombrio panorama na terra do sol

São os preconceitos e o obscurantismo de um obtuso que definem a política contra a covid

Quando desistiu do cargo de ministro da Saúde, a dra. Ludhmila Hajjar afirmou que o panorama no Brasil é sombrio. Diria que é singularmente sombrio, por algumas razões. O Brasil é o único país que teve quatro ministro diferentes durante a pandemia. E desponta como o segundo colocado no mundo em número de mortos, que deve chegar próximo dos 300 mil neste fim de semana.

Para completar o quadro, uma nova variante do coronavírus não só tem contribuído para expandir o vírus, esgotando os leitos de hospital, mas também vai devastando uma parte da juventude, setor da população que estava mais protegido na primeira onda da pandemia.

Apesar de toda a gravidade do momento, a dra. Ludhmila tinha esperanças. Afinal, fora chamada para conversar sobre o cargo pelo presidente Bolsonaro. Isso significava, aparentemente, que o próprio governo queria mudar. Convocava uma especialista para quem a política do governo contra a covid-19 é um conjunto de erros.

A dra. Ludhmila foi massacrada pelos hostes bolsonaristas e o presidente recuou. Ela falava uma linguagem muito próxima do que dizem os médicos e a maioria esmagadora dos políticos. E, consequentemente, muito distante da família Bolsonaro e de seus dogmas diante da pandemia.

Embora não tenha sido escolhida para o ministério, a dra. Ludhmila, em curtas e fragmentadas declarações, acabou reafirmando uma série de pontos vitais no combate ao coronavírus, uma espécie de consenso nacional do qual só não participam a família Bolsonaro e seus seguidores.

Ponto decisivo no seu programa de trabalho era criar um comitê de crise que atendesse governadores e prefeitos 24 horas por dia. Uma resposta ao clamor de todos por uma coordenação nacional.

Outra indicação importante é a ideia de ser preciso adotar medidas de isolamento social, mesmo que se chegue necessariamente a um lockdown em todo o País, grande e complexo demais para ser abordado com uma única medida.

Admitir que não existem remédios eficazes contra a covid-19 não significa que se deva deixar de buscar contatos com todo o mundo científico, com abertura a todas as iniciativas que se mostrem eficazes e seguras. Mas tudo dentro de uma linha de raciocínio que privilegie a vacina.

Esse ponto de intensificar a vacinação como saída não só para poupar vidas, como retomar a economia, é tão consensual que o próprio governo Bolsonaro decidiu adotá-lo depois de meses de hesitação e sabotagem. O ex-ministro Mandetta calcula que era possível começar a vacinação nos últimos meses de 2020 se o governo tivesse aproveitado a oportunidade. Perdemos meses e continuamos perdendo tempo, apesar da contratação de 545 milhões de doses.

Ao falar do tratamento da covid, a dra. Ludhmila mencionou também a necessidade de protocolos e treinamento adequado. Há gente morrendo porque foi intubada de forma equivocada.

Acrescentaria a isso algo que ela não mencionou, mas circula nos meios especializados: a necessidade de contratar mais gente, no mínimo 50 mil novos funcionários. De fato, as equipes de trabalho estão esgotadas, física e psicologicamente.

Um ponto novo no debate foi incluído também nas declarações da dra Ludhmila: a necessidade de um esforço nacional para recuperar vítimas de covid-19, tratar as sequelas, propiciar que voltem ao trabalho. É uma tarefa também para o SUS, uma vez que milhares de pessoas não têm recursos para pagar um processo de reabilitação. Os preços são muito altos. Na briga de governo federal e Estados para que Brasília pagasse leitos de UTI, ficou claro que um único leito desses custa R$ 1.600 por dia. Sem o SUS os pobres morreriam nas enfermarias.

Um novo ministro da Saúde foi escolhido e esses temas foram varridos para debaixo do tapete, ao menos por enquanto. O ministro Marcelo Queiroga não tem projeto próprio. Já disse que executará uma política do governo. É uma versão mais palatável do general Pazuello: um manda, o outro obedece. No fundo, Queiroga está dizendo a mesma coisa, sem refletir como é limitada uma política de governo definida pelos preconceitos e pelo obscurantismo de Bolsonaro.

O presidente sempre subestimou a pandemia, sempre considerou um ato contra o seu governo restringir a circulação de pessoas, sempre acreditou em remédios milagrosos, em vez de investir na vacina, que bombardeou das trincheiras da ideologia e da pura superstição.

O fato de ter-se recusado a aceitar os seus erros e investir na mudança personificada pela dra. Ludhmila mostra também como Bolsonaro está isolado. Nem os presidentes da Câmara e do Senado, ambos eleitos com seu apoio, o acompanham em sua política contra a pandemia.

Ainda não se percebeu que a tão decantada frente ampla existe de uma forma que beira o consenso quando se trata da pandemia. Bolsonaro está só com sua família e a minoria de seguidores. A existência de um quase consenso dessa importância é animadora, mas o fato de instrumentos tão poderosos estarem nas mãos de um presidente obtuso torna o panorama sombrio.


Armando Castelar Pinheiro: Heranças da pandemia

O Brasil terá pressões inflacionárias, juros externos mais altos, desemprego elevado e alimentos mais caros

 Chegamos ao meio de março sem conseguir acelerar o ritmo da vacinação nacional. Ao todo, foram 12 milhões de vacinas aplicadas a pouco mais de 4% da população brasileira. Em termos de vacinas por 100 habitantes (5,5 no Brasil), somos o 39º país de uma lista que tem Israel (110) no topo e, na sequência, Emirados Árabes Unidos (67), Reino Unido (40), Chile (40) e Estados Unidos (35). Por conta da focalização nos grupos de maior risco, nesses países já há alguma normalização da atividade econômica, como refletido em indicadores de mobilidade e emprego, por exemplo.

Essa “luz no fim do túnel” tem estimulado trabalhos que discutem a herança deixada pela pandemia, seja em termos de problemas que ficam por resolver, seja de lições para lidar com futuras crises.

Alguns desses temas foram discutidos no workshop “Macroeconomia de la pandemia y los impactos de Covid-19 en América Latina”, promovido pelo Grupo de Conjuntura do IE/UFRJ, que cobriu a experiência não apenas do Brasil, mas também de outros países da região. Destaco três dos tópicos vistos no workshop.

Primeiro, o atraso da América Latina na retomada da atividade econômica, em termos de PIB e emprego, por conta da forma ineficiente com que a região lidou com a pandemia. As novas projeções econômicas da OCDE reforçam esse ponto: tomando a média de Argentina, Brasil e México, as três maiores economias da região, tem-se que em 2022 seu PIB ainda estará um pouco abaixo do de 2019 (-0,2%). O mesmo estudo projeta um PIB mundial 6,1% maior ano que vem do que em 2019.

Ou seja, ficaremos relativamente mais pobres e, se vamos nos beneficiar do aumento da demanda externa por nossos produtos, em especial com preços mais altos de commodities, vamos também sofrer com pressões inflacionárias e juros externos mais altos. Desemprego elevado e preços altos de alimentos são uma combinação politicamente perigosa, especialmente quando as pessoas se sentirem seguras de voltar a se aglomerar.

Esse quadro complica outras duas heranças discutidas no workshop. Uma, a preocupação com a saúde financeira das instituições financeiras. Saberemos mais sobre isso conforme fique mais fácil diferenciar problemas de liquidez daqueles de solvência. Outra, a difícil situação fiscal de alguns dos países da região, com destaque para o Brasil que, junto com o Peru, gastaram muito em programas públicos de combate à crise. É fácil ver que baixo crescimento e juros em alta são agravantes de uma situação fiscal já difícil.

Este último ponto também é discutido no livro “Legado de uma Pandemia”, publicado no início do mês pelo Insper, com organização de Laura Muller Machado. O livro tem 17 capítulos, agrupados em quatro partes que lidam, respectivamente, com a ordem social, a ordem econômica, a organização do Estado e política e comunicação. Em todos os capítulos há uma preocupação em explicitar legados deixados pela pandemia e em fazer recomendações.

Dentre os diversos temas tratados no livro, os impactos distributivos, fortes e negativos, são um dos destaques. Foram os trabalhadores mais pobres que mais sofreram com a perda de ocupações e renda. Os negros também sofreram mais que os brancos, enquanto outras análises mostram que as mulheres saíram em maior proporção do mercado de trabalho do que os homens. O livro dá grande ênfase a um ponto em geral pouco discutido: houve um significativo impacto negativo sobre as crianças, pela falta de aulas, que foi mais importante para as crianças mais pobres, com menos acesso a equipamentos de informática e assistência familiar.

Essa discussão desemboca no livro em um debate que também apareceu no workshop do IE/UFRJ: quão desejável é redistribuir o custo econômico da pandemia por meio de tributações que retirem renda de grupos que sofreram menos para financiar os programas públicos de assistência social, evitando transferir todo esse custo para gerações futuras, por meio de mais dívida pública.

O livro do Insper também trata de como a separação entre o que é feito pelo Estado e o que cabe ao setor privado pode ser repensada após a pandemia. Uma conclusão é que, em crises, pode ser desejável o Estado participar mais planejando e coordenando as atividades, no financiamento e na produção, e se preocupando menos com temas como a defesa da concorrência. Esse quadro deve, porém, ser transitório. Mais permanente deve ser o apoio estatal a pesquisas científicas relacionadas à pandemia, mesmo que indiretamente, como na segurança alimentar, e a capacitar servidores públicos para lidar com momentos como o atual.

Diversos capítulos, ainda que não todos, encerram com uma visão positiva sobre o futuro, prevendo que a sociedade acordou para os problemas revelados pela pandemia. É o caso, em especial, dos “invisíveis”, aí compreendidos os inúmeros pobres que acorreram ao Auxílio Emergencial e dos quais não havia registro anterior. Não me convenci dessa visão. Mas concordo que, para avançar, precisamos de mais discussão pública sobre os temas tão oportunamente trazidos por todos esses pesquisadores. Parabéns.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ 


Ribamar Oliveira: O enigma do novo gatilho de 95%

PEC 186 não resolve problema de acionar as medidas de ajuste

Há uma unanimidade entre os analistas de que a despesa obrigatória da União, submetida ao teto de gastos, só vai ultrapassar 95% da despesa total em 2024 ou 2025. Este é o novo gatilho que dispara as medidas de ajuste das contas, introduzido pela PEC Emergencial, promulgada como emenda constitucional 109.

O problema do novo gatilho, no entanto, não está apenas na demora para ele ser acionado, mas também no fato de que se a despesa obrigatória chegar a 95% da despesa total, vários serviços públicos à população já estarão paralisados, ou, como preferem dizer os economistas, a administração estará em “shutdown”. Assim, a fixação do gatilho em 95% foi claramente um erro.

Em ofício ao Congresso Nacional, datado de 14 de dezembro de 2020, o ministro da Economia, Paulo Guedes, propôs mudança na meta fiscal deste ano e reestimou a receita e a despesa da União para 2021, uma vez que os parâmetros utilizados na elaboração do projeto de lei orçamentária anual (PLOA), em agosto do ano passado, estavam ultrapassados.

Nele, Guedes informa que o governo passou a trabalhar com despesas discricionárias de R$ 96,2 bilhões, incluindo neste valor as emendas parlamentares, que, embora sejam impositivas, podem sofrer contingenciamento. O valor corresponde a 6,47% da despesa total da União submetida ao teto. As despesas discricionárias são os investimentos e o custeio da máquina, que o governo não é obrigado por lei a executar.

As despesas obrigatórias submetidas ao teto, por sua vez, estão em 93,53% do limite total do gasto definido para este ano, de R$ 1.485,9 bilhões. Este percentual é uma aproximação porque o cálculo tem que ser feito, de acordo com a EC 109, para cada Poder e órgão público, pois eles possuem limites de despesa individualizados. Mas essa abertura de dados não está disponível no ofício do ministro. Sem as emendas parlamentares, as despesas discricionárias caem para R$ 79,9 bilhões neste ano, o menor patamar da série histórica.

Mesmo com esse nível muito baixo para os investimentos e o custeio da máquina, o gatilho não é acionado, o que mostra o equívoco cometido. Uma conta simples demonstra a armadilha que foi criada. As despesas discricionárias teriam que cair mais 1,47 ponto percentual (6,47% menos 5%) da despesa total para que as medidas de ajuste possam ser adotadas. Ou seja, para chegar a 5% da despesa total neste ano, as discricionárias teriam que ser reduzidas para R$ 74,3 bilhões, incluindo as emendas parlamentares, o que inviabilizaria a administração.

Em resumo, a EC 109 estabeleceu um gatilho que só poderá ser acionado quando a administração pública estiver em “shutdown”. Com um agravante: como não se pode reduzir as emendas parlamentares, que estão indexadas pela inflação, o aumento futuro das despesas obrigatórias terá que ser compensado sempre com o corte do investimento e do custeio.

As razões que levaram à escolha de 95% como novo gatilho das medidas de ajuste são um enigma. Importantes integrantes da equipe econômica do governo defenderam que o gatilho ficasse em 94%. Então, porque o percentual de 95% prevaleceu? Este colunista apurou que foi uma decisão política do governo e ouviu que, até hoje, ela gera incômodo na área técnica.

Se o gatilho tivesse ficado em 94%, havia o risco de ele disparar já em 2022, ano eleitoral, com a adoção obrigatória de medidas impopulares de contenção de despesas. É difícil acreditar que a razão tenha sido esta porque, para evitar desgaste eleitoral, o governo optou por um percentual que não será atingido, pois, antes disso, a administração estará em “shutdown”.

Para que o leitor não perca o fio da meada, o objetivo original da PEC 186 era corrigir o principal problema do teto de gastos. Devido à má redação da emenda constitucional 95/2016, que instituiu o teto, o gatilho que acionava as medidas de ajuste das contas não disparava. Não havia maneira de o governo adotar medidas de contenção das despesas. Como as despesas obrigatórias não param de crescer, os investimentos e o custeio foram minguando cada vez mais.

No texto da PEC 186 que o governo enviou ao Congresso, em novembro de 2019, o gatilho disparava toda vez que a chamada “regra de ouro” das finanças públicas, que proíbe o aumento da dívida para pagar despesas correntes, não estivesse sendo cumprida.

Este referencial foi alterado e o relator da proposta, senador Márcio Bittar (MDB-AC), com a concordância do governo, foi buscar o gatilho de 95% que constava da PEC 188. O resultado de tudo isso é que o gatilho que consta da EC 109 não permite acionar as medidas de ajuste para evitar o “shutdown” da administração e, portanto, não resolve o problema que estava colocado na EC 95.

Nova polêmica

Uma nova polêmica ganhou corpo entre os especialistas em finanças públicas. A PEC 186 instituiu, como foi dito nesta coluna em fevereiro passado, um novo marco para as finanças públicas. A âncora fiscal passou a ser a trajetória da dívida pública que será perseguida pelos governos federal, estadual e municipal. As metas de resultado primário serão definidas de forma a permitir que a trajetória da dívida seja cumprida. Para isso, os governos terão que adotar medidas de contenção de despesas e elevação de receitas que permitam alcançar as metas.

A raiz da polêmica está no fato de que o artigo da EC 109, ao tratar desta questão, prevê aprovação de lei complementar especificando “a trajetória de convergência do montante da dívida com limites definidos em legislação”. O artigo 52 da Constituição define que é competência privativa do Senado fixar, por proposta do presidente da República, limites globais para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados e dos municípios. A discussão é se a EC 109 invadiu uma competência do Senado.

Na interpretação do Ministério da Economia, não há conflito entre o artigo 52 da Constituição e a EC 109. A atribuição do Senado, de acordo com esse entendimento, é fixar limite máximo para o endividamento dos entes. E o objetivo da EC 109 é fixar limites prudenciais para definir uma trajetória para a dívida, que, se superados, acionam os gatilhos das medidas de ajuste.