covid-19

O Estado de S. Paulo: Bolsonarismo usa covid-19 para desestabilizar PMs e governos estaduais

Objetivo seria disputa pela Segurança Pública nos Estados; ataques às ações das polícias cresceram em 2021 e são monitorados pelos comandos das corporações

(Marcelo Godoy e Pedro Venceslau)

Quando a Polícia Militar de São Paulo anunciou que a vacinação para seus integrantes ia começar no dia 12 de abril, no mesmo dia todos os posts publicados pela corporação em uma rede social foram atacados por bolsonaristas, que afirmaram: “Vocês são covardes! Estão batendo em trabalhadores, seus capachos do calcinha apertada”. Outro bolsonarista, crítico à vacina Coronavac, do Instituto Butantan, escreveu: “Fico em dúvida se comemoro. Orações para vocês”.

O ataque às polícias nas redes sociais com informações falsas se multiplicaram em 2021, transformando a atuação da extremadireita no principal fator de instabilidade política para as forças de Segurança. “Já faz algum tempo que estamos sofrendo estes ataques. Alguns perfis lançam vídeos de abusos policiais de outros contextos ou mais antigos e fazem parecer que são atuais e contra a população”, disse o coronel Robson Cabanas Duque diretor da Comunicação da PM.

O fenômeno não atinge apenas a polícia paulista e o governador João Doria (PSDB), mas também as polícias de outros Estados, em que os governadores adotaram medidas de restrição à circulação de pessoas para controlar a pandemia de covid-19, como a Bahia e o Rio Grande do Sul. Também são alvo os governadores adversários do presidente Jair Bolsonaro, como os do Piauí e do Maranhão.

“Tem digitais bolsonaristas em questões locais. Eles se aproveitam para uso politiqueiro. A raiva dele (Bolsonaro) é não poder demitir ou prender governadores. Então tenta sabotar”, disse o governador Flávio Dino (PCdoB), do Maranhão. De acordo com o coronel Lindomar Castilho, comandante da PM do Piauí, há pessoas que “tentam desinformar e fazer a cabeça dos policiais” sob seu comando.

Em São Paulo, a PM tenta identificar o centro difusor dos ataques à corporação que buscam minar a disciplina da tropa. Entre as postagens monitoradas pela polícia está uma do ex-deputado Roberto Jefferson, aliado de Bolsonaro, e outra do blogueiro Allan dos Santos, ligado ao deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). “Somos fiéis à Constituição, à lei, não importam quais sejam as orientações políticas dos governos. Somos uma instituição de 189 anos. Se cumprir a lei desagradará a A ou a B, assim será”, afirmou o coronel Cabanas.

Vacinação
Em carta divulgada dia 29, 16 governadores afirmaram que “os agentes públicos precisam de paz para prosseguir com o seu trabalho, salvando vidas e empregos”. “Estimular motins policiais, divulgar fake news, agredir governadores e adversários políticos, são procedimentos repugnantes, que não podem prosperar em um país livre e democrático”. O documento declarava ainda o apoio dos governados ao desejo das entidades de policiais de vacinação imediata de seus integrantes. A estratégia visava a retratar o bolsonarismo como responsável por opor a população aos PMs.

“A gente procura não entrar na questão política e se manter fiel ao regulamento e à nossa missão, contra esse jogo que pretende envolver as forças estaduais e federais”, afirmou o coronel Castilho. O Piauí, governado por Wellington Dias (PT) deve começar nesta segunda-feira a vacinar seus 6.140 PMs. A covid-19 havia matado 35 policiais militares e contaminado 1.283 no Estado até sexta-feira passada.

A reação dos governadores aconteceu após a ação coordenada do bolsonarismo de insuflar um motim na PM da Bahia em 28 de março. Naquele dia, o soldado Wesley Soares Góes teve um surto e, com um fuzil, foi ao Farol da Barra, em Salvador, onde passou a fazer disparos. Após atirar em direção aos colegas, acabou morto. De imediato, parlamentares bolsonaristas, como a deputada Bia Kicis (PSL-DF), passaram a tratá-lo como mártir por se recusar a cumprir as ordens do governador Rui Costa (PT). Mais tarde, ela removeu a publicação.

A estratégia de provocar um motim na Bahia só não foi para frente porque a ação foi filmada, confirmando que o soldado tentara matar os colegas. “A Bahia é o lugar mais frágil, em razão dos problemas enfrentados pelo governador na Segurança. Por isso foi atacada”, disse Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Entre os problemas de Costa, estaria a contestação feita por sua gestão no Supremo Tribunal Federal da lei que acabou com as prisões disciplinares dos PMs.

Risco
Se a ação do bolsonarismo incomoda as PMs, ela não seria, no entanto, suficiente para, segundo especialistas em Segurança Pública, provocar uma ruptura da ordem. “Não há possibilidade de se repetir no Brasil a situação da Bolívia (onde uma revolta policial levou à deposição de Evo Morales). Os policiais têm diversas vantagens que não vão colocar em risco por razões ideológicas”, disse Leandro Piquet Carneiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Além disso, para Piquet, a aprovação do congelamento de salários na PEC Emergencial esvaziou o discurso sindicalista de Bolsonaro, diminuindo sua capacidade de mobilização. O Estadão não conseguiu contato com Santos e Jefferson.

Comandos das PMs pedem cautela a policiais em operações

Os comandos das PMs estaduais estão recomendando o máximo de cautela aos seus homens no cumprimento de medidas de restrição à circulação de pessoas durante a pandemia. Temem que qualquer incidente seja usado politicamente contra as corporações. “Recomendamos aos nossos homens que tenham bom senso em todas as ações”, disse o subsecretário de Segurança Pública, coronel Alvaro Camilo. Para o coronel Lindomar Castilho Melo, comandante da PM do Piauí, “bom senso e conversa não podem faltar. O policial não pode cair em provocações. Tem de colocar como autoridade.”

Para o oficial da PM e deputado federal Paulo Ramos (PDT-RJ), repercutiu mal na categoria a ação de bolsonaristas após o incidente com o soldado Wesley Góes, em Salvador. “Tentaram jogar companheiros contra companheiros, dividir a tropa”, diz Ramos. “Mas não deu certo, a repercussão (das iniciativas dos aliados de Jair Bolsonaro) foi negativa, tanto na Bahia como nos outros Estados.” Segundo ele, a identificação ideológica entre Bolsonaro e muitos PMs permanece.

Mas as expectativas práticas se romperam. “No discurso, o presidente incentiva o confronto (entre policiais e criminosos), mas nunca esteve nessa situação ou correu riscos. Ele só empurra os outros, incentiva os outros a se expor.” Para o coronel Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM do Rio, o discurso de Bolsonaro está enfraquecido. “O que ele fez pelas polícias ou pelos policiais? É só discurso, e o discurso está enfraquecido.”

Outra aposta para a manutenção da disciplina diante das investidas do bolsonarismo nas corporações contra é sistema de liderança e a efetividade da Justiça Militar. Diretor do Fórum Brasileiro de Segurança, Renato Sérgio d e Lima lembra que na semana passada a Justiça Militar paulista condenou a 6 anos e meio de prisão um policial que sacou um arma e ameaçou matar seu sargento no centro de São Paulo, em 2020. “A sentença do juiz Ronaldo João Roth foi dura.”

/ COLABOROU FÁBIO GRELLET


Cristiano Romero: Sem nação, pandemia é mais devastadora

Manifesto é tardio, mas é cinismo criticar iniciativa

É de um cinismo atroz a crítica feita, principalmente por alguns setores da esquerda, ao contundente manifesto, assinado por 500 economistas e lançado no fim de semana passado, que cobra do governo Bolsonaro mudança radical no enfrentamento da pandemia. Subscrito por economistas de orientação ideológica distinta, o manifesto, intitulado “O País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo”, é uma forma de sensibilizar a opinião pública para a tragédia que assola o país devido ao inacreditável negacionismo do presidente da República diante da maior crise sanitária vivida pela humanidade em cem anos.

O movimento é tardio? Sim, não se tenha dúvida disso. Mas, o que explica o imobilismo da elite intelectual brasileira, assim como de todos os outros setores da vida nacional, é o fato de, infelizmente, não sermos uma nação. Esta só existe quando cada cidadão se reconhece no outro, quando compartilha valores e aspirações, quando todos são rigorosamente iguais perante as leis, quando não existe discriminação de qualquer espécie, quando o Estado assegura a todos oportunidades iguais de formação educacional e acesso a serviços, como a saúde e segurança pública.

Na Ilha de Vera Cruz, regimes ditatoriais procuraram forjar simulacros de identidade nacional, como a paixão pelo futebol. Pelé, o melhor jogador de futebol de todos os tempos (do passado e do que ainda virá), carregou nos ombros, talvez inconscientemente, o peso da responsabilidade de ajudar a Seleção Brasileira a vencer a qualquer custo a Copa do Mundo de 1970, no México.

Em documentário produzido pela Netflix, aos 80 anos, envelhecido pelos problemas de saúde que vem enfrentando nos últimos anos, Pelé relata, de uma maneira que nunca se viu antes, a carga sobre-humana que a falsa nação exigiu dele, em meio aos anos de chumbo da longa ditadura militar instaurada no país (1964-1985).

Em outubro do ano passado, o governador de São Paulo, João Doria, fechou acordo com o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, para a compra de vacina da China, primeiro passo para a produção de imunizante em larga escala, no Instituto Butantan (estadual) e na Fiocruz (federal). Doria começou a negociar com os chineses em abril. O acerto envolvia outros Estados, uma vez que, com exceção da União e do governo paulista, as unidades da Federação não possuem dinheiro nem tecnologia para produzir vacinas.

Num sinal claro de que está ali para atrapalhar e não para ajudar, no tema gravíssimo da pandemia, o presidente Jair Bossonaro desautorizou o acordo. A pergunta que fica no ar é uma só e não se dirige apenas aos 500 economistas do manifesto lançado há poucos dias: onde estávamos todos, os cidadãos instruídos deste imenso país, os sindicatos patronais e de trabalhadores, os artistas, todos aqueles sabedores de que o presidente negacionista estava usando a tragédia para fazer política, jogando governadores e prefeitos, diante da ausência de vacina, na armadilha da necessidade de adotar medidas de isolamento social?

Sem nação, seremos sempre uma democracia manca porque nunca teremos institucionalizado para defender a sociedade de maus governantes.

Pelé

A propósito de Edson Arantes do Nascimento, eleito o maior atleta do século XX e que fez 80 anos no ano passado, sob o silêncio constrangedor de seus compatriotas, que juravam ver nele um dos símbolos de nossa identidade nacional _ mentira, claro _, este humilde colunista diz o seguinte:

Monstro, extra-terrestre, gênio, fora-de-série, fenomenal, absoluto, artista, maestro, rei, inigualável, inalcançável, Deus, enfim. Foi em todos os quesitos do esporte bretão o melhor da história, inclusive, no gol. Sua arrancada rumo ao gol adversário não era engenho humano. Sua habilidade tinha a precisão de um relógio suíço e a plasticidade de um balé russo.

Pelé não “matava” a bola. Esta, na verdade, perdia a fúria ao se aproximar de seu peito. Acolchoava-se nos braços do ente querido como se estivesse retornando depois de um dia longe de casa.

O craque do Santos e do Brasil usava régua e compasso, mas, em seus pés, a redonda ia sempre em direção à meta adversária. Irascível, muitas vezes batia na canela dos marcadores, como se esses fossem cones em dia de treino. O drible era pura arte, mas a serviço da missão jamais negligenciada: furar o bloqueio e colocar a bola na rede.

Para Pelé, não havia “russos”, mas jogo contra em pelada de várzea. “Último a ir no gol”, apressam-se os maganos onde começa _ ou começava _ o sonho do futebol na pelada atéia, sem uniforme, paixão clubística, mancha verde, fiel corintiana, young Flu ou religião de qualquer natureza.

Assim como no “jogo contra”, adversários de Pelé não tinham naturalidade nem nacionalidade; nem registro profissional ou passaporte; carteira de identidade ou de motorista. Não chegavam a ser pedras no caminho do poeta, mas estavam ali para cumprir o destino histórico de testemunhar o sobrenatural, o indizível, o inacreditável, o indomável.

Se tivesse sido jogador ao tempo em que Pelé ainda não havia estreado como jogador profissional, eu certamente sonharia “perder” para Pelé. Ganhar seria perigoso, afinal, ninguém acreditaria e eu passaria por mentiroso e megalômano: “Acreditem, ganhei dele, venci-o, é verdade!”. É quase como sonhar em ser o substituto de Lennon nos Beatles, ainda que este seja um desafio mais palatável do que jogar e vencer o maior jogador de futebol de todos os tempos, aqui e alhures, nesta e em todas as dimensões.

Edson Nascimento é parte do maior grupo populacional deste país, cujo nome _ Brasil _ nada diz, ao contrário da maioria dos territórios deste planeta. Pelé é negro como 56% dos habitantes da Ilha de Vera Cruz. Pergunte a um quatrocentão paulista, a um galego do Sul, a um carioca de sobrenome de diplomata e a um descendente de usineiro de Pernambuco se ele se reconhece minimamente no “ídolo" que os fizeram sentir orgulho, por alguns anos, de serem brasileiros. As respostas mostrarão o quão distantes estamos de um projeto de nação.


O Estado de S. Paulo: Após um ano de pandemia, Bolsonaro anuncia comitê para coordenar ações contra covid-19

Um dia após recorde de mortes diárias no País, presidente anuncia comitê para coordenar ações em conjunto com governadores, Legislativo e Judiciário

Emilly Behnke, Camila Turtelli e Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Mais de um ano após o início da pandemia do novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro anunciou nesta quarta-feira, 24, a criação de um comitê para coordenar ações no País contra a doença. A formação do grupo foi definida em reunião do presidente da República com os presidentes do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), do procurador-geral da República, Augusto Aras, governadores e ministros. 

No encontro, o presidente foi cobrado a liderar um "pacto nacional" e ouviu ser preciso "despolitizar a pandemia". Em pronunciamento em seguida, Bolsonaro voltou a defender o tratamento precoce, composto por medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento da covid-19.

Segundo declarou Bolsonaro, a ideia é que haja uma coordenação destas ações em conjunto com os governadores e chefes do Congresso. O grupo deve se reunir semanalmente com as autoridades para, de acordo com o presidente, "redirecionarmos o rumo do combate ao coronavírus".

"Sem que haja qualquer conflito, sem que haja politização, creio que seja esse o caminho para o Brasil sair dessa situação bastante complicada que se encontra", afirmou o presidente após o encontro, realizado na manhã de hoje no Palácio da Alvorada.

Os confrontos, no entanto, têm sido a marca da relação de Bolsonaro com governadores e prefeitos desde o início da pandemia. O presidente é crítico a medidas de isolamento social determinadas pelos governos locais e chegou a ingressar com uma ação no Supremo para reverter restrições em três Estados: Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. O pedido foi negado ontem pelo ministro Marco Aurélio Mello.

Participaram da reunião no Alvorada os presidentes do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), o procurador-geral da República, Augusto Aras, governadores e ministros. 

Nenhum dos três governadores alvo da ação participou da reunião de hoje em Brasília. Na lista de convidados estavam apenas aliados, como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), e o do Paraná, Ratinho Junior (PR), que também adotaram restrições de circulação e o fechamento de comércio para conter a propagação da doença.

"(Vamos) pedir a todos que entendam que, em situações delicadas, em situações críticas como a que estamos vivendo, muitas vezes se faz também necessário o isolamento social", afirmou Caiado. O governador reforçou que a responsabilidade de todos é "salvar vidas" e disse que o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, terá as credenciais para adotar ações técnicas e habilitar leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). 

O encontro no Alvorada foi realizado no momento mais agudo da pandemia, no dia em que o País deve atingir a marca de 300 mil mortos pela doença. Após a explosão de casos, cidades passaram a registrar filas para leitos de UTI e a falta de oxigênio e medicamentos usados no processo de intubação, necessários para o atendimento a pacientes.

O presidente também afirmou que o governo está focado na vacinação em massa da população, mas insistiu na defesa do chamado "tratamento precoce", que utiliza medicamentos sem eficácia comprovada para tratar a doença. "Tratamos também da possibilidade de tratamento precoce, isso fica a cargo do ministro da Saúde (Marcelo Queiroga), que respeita o direito e o dever do médico 'off label' (fora da bula) tratar os infectados. É uma doença como todos sabem, ainda desconhecida", disse. "Uma nova cepa, ou um novo vírus, apareceu e nós, obviamente, cada vez mais, nos preocupamos em dar o atendimento adequado a essas pessoas", acrescentou Bolsonaro.

"Não temos ainda um remédio", citou. "Mas, a nossa união, o nosso esforço, entre os três Poderes da República, ao nos direcionarmos para aquilo que realmente interessa - sem que haja qualquer conflito, qualquer politização da solução do problema - creio que essa seja realmente o caminho para o Brasil sair dessa situação bastante complicada que se encontra", afirmou.

União
Após a reunião, o presidente do Senado afirmou que a expectativa é de que Bolsonaro lidere um "pacto nacional" para enfrentar a doença. "Há a compreensão de que medidas precisam ser urgentemente tomadas. Com a liderança do presidente da República e a liderança técnica do Ministério da Saúde, por meio do ministro Marcelo Queiroga, e os demais Poderes da República", disse Pacheco.

Tanto o presidente do Senado quanto o da Câmara disseram que a reunião foi uma expressão do que a sociedade brasileira espera dos Poderes no enfrentamento da pandemia. Os dois estiveram, na segunda-feira, em um jantar com empresários na capital paulista, na casa do dono da Gocil, Washington Cinel. Entre os participantes, estavam signatários da carta divulgada no fim de semana para cobrar o governo federal por vacinas e uma avaliação sobre a necessidade de um lockdown.

No comitê que deve ser criado para o combate a pandemia, Pacheco ficou responsável por ouvir as demandas dos governadores. Lira ressaltou ser preciso “despolitizar a pandemia”. “Desarmar os espíritos e tratar como um problema de todos nós”, disse o presidente da Câmara.

Para o deputado, a reunião foi uma demonstração de diálogo e de união para que os poderes passem a falar uma “linguagem só” para assistir à população. 

Fux, por sua vez, afirmou que o Supremo buscará estratégias para diminuir a judicialização da pandemia, mas que nenhum integrante do Judiciário deverá participar do comitê anunciado por Bolsonaro.  "O Supremo Tribunal Federal, o Poder Judiciário, como último player para aferir a legitimidade dos atos que serão praticados, não pode participar diretamente desse comitê", afirmou Fux. "Entretanto, como esse problema da pandemia exigem soluções rápidas, nós vamos verificar estratégias capazes de evitar a judicialização, que é um fato de demora na tomada dessas decisões." 

Pronunciamento 
Ontem, em pronunciamento em rede nacional de TV e rádio, Bolsonaro mentiu ou exagerou sobre ações do governo contra a covid-19. Pressionado a moderar o tom, Bolsonaro disse que 2021 será "o ano da vacinação". 

No discurso, Bolsonaro tentou desfazer a imagem de negacionista e de que impôs barreiras para a chegada das vacinas, apesar de ter rejeitado por meses propostas de imunizantes e até ter levantado dúvidas, sem provas, sobre a eficácia dos produtos. Abaixo, trechos com mentiras ou exageros do presidente. 


MENTIRAS

Ações do governo

Logo no começo do discurso, Bolsonaro disse que "em nenhum momento" o governo deixou de tomar medidas contra o vírus e o "caos" na pandemia. O presidente, porém, desestimula desde o começo da pandemia a adoção de medidas básicas de combate à doença, como distanciamento social e o uso de máscaras. Bolsonaro só começou a usar a proteção facial mais regularmente nas últimas semanas, mas mesmo assim segue desacreditando os benefícios de medidas de restrição de circulação. Ele chegou a ir ao Supremo Tribunal Federal (STF) para impedir que alguns Estados adotem lockdowns ou toque de recolher.

Doses distribuídas

Bolsonaro disse que o Ministério da Saúde já entregou "mais de 32 milhões de doses" da vacina contra a covid-19. Segundo dados da própria pasta, porém, foram cerca de 29,9 milhões até agora.

Pessoas vacinadas

O presidente disse que mais de 14 milhões já foram vacinados no País contra a covid-19. Na verdade, 11,4 milhões receberam pelo menos a primeira dose da vacina. Destes, somente 3,62 milhões receberam a segunda dose, que garante a eficácia do produto.

Compra da Coronavac

Bolsonaro disse que sempre ter dito que compraria "qualquer vacina", desde que aprovada pela Anvisa. Não é verdade. Irado com possível ganho político do governador paulista, João Doria (PSDB), pela entrega da Coronavac, Bolsonaro mandou o Ministério da Saúde recuar de uma promessa de compra deste imunizante, em outubro de 2020. Em entrevista, ele ainda disse que a vacina não seria comprada de forma alguma por causa de sua "origem". A Coronavac foi desenvolvida pela chinesa Sinovac. “Da China nós não compraremos. É decisão minha. Não acredito que ela transmita segurança suficiente a população pela sua origem, esse é o pensamento nosso", diz Bolsonaro, em 21/10 em entrevista à Jovem Pan.

EXAGEROS

Ranking de vacinados

Bolsonaro voltou a afirmar que o Brasil é o 5º país que mais vacina no mundo. O presidente, porém, considera o número total de doses aplicadas. Quando a comparação é ajustada à população de cada País, o Brasil é o 18º no ranking mundial, segundo dados do Our World in Data, que usa informações oficiais.

Pfizer e Janssen

Bolsonaro disse que intercedeu "pessoalmente" para antecipar o calendário da vacina da Pfizer e garantir as doses da Janssen. De fato, Bolsonaro realizou uma reunião com a Pfizer neste mês, mas o atraso na compra destas vacinas deve-se justamente à resistência e até desdém de Bolsonaro sobre a oferta destas empresas. Por meses, o presidente classificou como "abusiva" a exigência da empresa de que governo assumisse riscos e custos por eventuais efeitos adversos das vacinas. Trata-se da mesma cláusula colocada por fornecedoras do consórcio Covax Facility, entre outras companhias. “Lá no contrato da Pfizer está bem claro: ‘Não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema de você’”, afirmou o presidente, em 17 de dezembro do ano passado. Como revelou o Estadão, um dispositivo para destravar a compra foi inserido em minuta da medida provisória 1026/2021, com respaldo da Saúde, mas acabou excluído da versão final, publicada em janeiro.

500 milhões de doses

Bolsonaro disse que o País terá alcançado mais de 500 milhões de doses de vacina até o fim do ano. Essa conta, porém, considera imunizantes que ainda tem barreiras no País, como a Covaxin (20 milhões de doses contratadas) e a Sputnik V (10 milhões). Ambas não entregaram ainda dados exigidos pela Anvisa para liberar o uso emergencial dos imunizantes. Há ainda 8 milhões de doses da vacina de AstraZeneca/Oxford, fabricada pelo Instituto Serum, da Índia, nesta conta. O governo indiano, porém, tem travado as exportações.


Judith Butler: 'Trump e Bolsonaro são sádicos desavergonhados'

'Bolsonaro e Trump são os rostos da crueldade do nosso tempo, e cada um é responsável por incontáveis mortes', afirma Judith Butler

Filósofa americana, que participa nesta quarta (24) de seminário virtual sobre feminismo, fala sobre as perdas da pandemia agravadas pela desigualdade e o novo livro que chegará ao Brasil, em julho, pela Boitempo

Renata Izaal, O Globo

Na última vez em que esteve no Brasil, em 2017, Judith Butler foi alvo de petições on-line e ações judiciais de grupos conservadores que tentaram impedir sua vinda ao país para um seminário sobre democracia. Ela veio, cumpriu sua agenda, mas, na volta para casa, foi agredida no Aeroporto de Congonhas por quem acredita que a filósofa americana é a fundadora da “ideologia de gênero”.

Mas Butler não fundou coisa nenhuma. O que ela fez, de modo muito resumido, foi teorizar sobre o gênero como algo socialmente construído, uma performance. Sua obra, na verdade, é muito mais extensa e avança sobre política e democracia; violência de Estado; luto; poder, discurso e sexualidade; sionismo e a questão palestina.

Hoje, às 14h, Butler voltará a se encontrar com o Brasil, mesmo que remotamente. Ela vai discutir feminismo, corpo e território com a cantora, compositora e ativista Preta Ferreira, dentro da programação do ciclo de debates on-line “Feminismo para os 99%”, realizado pela Boitempo. O encontro será transmitido no canal no YouTube da editora, que publicará, em julho, o livro mais recente de Butler. Em “A força da não violência”, ela critica o individualismo na ética e na política e defende a “igualdade radical” para que se possa construir algo bom juntos.

Em uma breve entrevista, Judith Butler, que leciona na Universidade da Califórnia, Berkeley, reflete sobre pandemia e luto, o negacionismo de Bolsonaro e de Trump e vibra com o feminismo latino-americano: “Movimentos como o Ni Una Menos e o Las Tesis me tocam e inspiram muito”, afirma.

Seu novo livro defende uma igualdade radical, mas a pandemia tem aprofundado as desigualdades em todo o mundo. Como analisa a crise atual e suas possíveis consequências?

Acho que estamos vendo com mais clareza do que nunca as desigualdades econômicas e raciais que foram geradas pelo capitalismo global, além da situação terrível imposta a mulheres, pessoas trans e não binárias, que foram confinadas nas casas onde sofrem violência e degradação. É ainda mais doloroso ver os lucros das farmacêuticas. Mas, mesmo assim, também vivemos num tempo em que a ação contra as mudanças climáticas é imperativa, em que a luta pelas vidas negras soa mais alto e é mais persuasiva, e em que as várias formas de feminismo conquistam apoio. Não está claro em qual direção o mundo irá, mas a sensação de que as lutas estão entrelaçadas me dá esperança.

O luto é um tema importante em sua obra e tem sido debatido na pandemia, que trancou as relações nos meios digitais e impediu tantas despedidas. Qual o impacto disso?

Tem sido devastador para tantas pessoas não poderem se aproximar dos que estão morrendo, terem apenas o Zoom como um meio para o luto e, ao final, serem deixadas com um isolamento que é insuportável e debilitante. Precisamos uns dos outros para vivermos o luto. É importante estar perto fisicamente e regenerar o sentido de uma vida conjunta a partir dessa perda devastadora e, agora, rápida. A arte pública que marca as nossas perdas vai continuar sendo importante, assim como as pequenas reuniões e, eventualmente, as grandes.

Manifestações, como as do movimento Black Lives Matter, foram ao mesmo tempo atos públicos de luto e protesto. Sabemos que tantas pessoas não precisavam ter morrido, que elas sofreram da perda de cuidado adequado com a saúde e que as razões para isso foram a marginalização social, o racismo e a desigualdade econômica. Então teremos que refletir sobre a morte que poderia ser evitada: quem ou o que deixou tantas pessoas morrerem?

O governo dos Estados Unidos levou muito tempo para organizar sua resposta à pandemia, já o brasileiro ainda não o fez adequadamente. Isso é uma forma de violência?

Talvez tenhamos que revisar o nosso entendimento de assassinato, ou que aceitar que há muitas maneiras de lidar com a morte. Esta última está distribuída por toda a sociedade, e os trabalhadores só têm valor quando são produtivos. É o momento para uma renovação das ideias socialistas, começando com uma renda nacional garantida. Trump e Bolsonaro são sádicos desavergonhados. Com isto, quero dizer: se, em algum momento, eles sentem vergonha, a superam por meio do sadismo. São os rostos da crueldade do nosso tempo, e cada um é responsável por incontáveis mortes.

Trump não se encerra com a eleição de Biden e Kamala.

É ótimo que Trump tenha saído. Mas o que seu governo deixou claro é que a supremacia branca, o masculinismo (ideologia que prega a superioridade dos homens e a exclusão das mulheres), a transfobia, a homofobia e o antifeminismo têm raízes profundas na cultura americana. Nossa luta será longa.

Depois da agressão que sofreu no Brasil em 2017, você ainda acompanha o que se passa no país?

Sim, acompanho a situação política no Brasil e as operações do movimento contra a ideologia de gênero. O incidente comigo foi pequeno se comparado com o que aconteceu com feministas e pessoas LGBTQIA+ que perderam suas vidas para a violência, o abuso sexual, o racismo e a transfobia. A questão é: por que é permitido que essas violências aconteçam? Temos que perguntar sobre polícia e complacência do Estado e sobre as notícias falsas e fomentadoras de ódio geradas on-line.

A América Latina tem sido apontada como o epicentro do feminismo hoje. Você concorda?

Movimentos como o Ni Una Menos (que, desde 2015, organiza manifestações contra a violência de gênero na Argentina) e o Las Tesis (coletivo chileno que criou performance contra a cultura do estupro reproduzida em diversos países) me tocam e inspiram muito. São corajosas, enfurecidas e alegres, e o feminismo precisa envolver todo esse arco afetivo para conseguir apoio e exemplificar a nova forma de vida que substituirá a violência, a exclusão e a desigualdade.


Hélio Schwartsman: Paradoxos da Covid-19

Contra a pandemia, tudo importa um pouco, mas nada explica tudo

Assim como o câmbio existe para humilhar economistas, a Covid-19 existe para humilhar epidemiologistas. Estou sendo injusto, pelo menos com os epidemiologistas. O chiste, porém, ajuda a mostrar que ninguém ainda entendeu direito essa moléstia. É claro que há aspectos básicos que estão bem estabelecidos, mas há algumas diferenças de desempenho entre países que desafiam as explicações.

Dinheiro? Temos nações muito ricas que foram extremamente mal, e outras quase miseráveis que foram muito bem, como é o caso, respectivamente, de EUA e Vietnã. Recursos são um fator relevante, mas não dão conta de explicar o todo.Governança? É importantíssima. Ilustram-no EUA e Brasil sob Trump e Bolsonaro. Mas também temos a Alemanha, que, dirigida pela competente Angela Merkel, foi bem na primeira onda, mas mal na segunda.
Testar e isolar? Outro par fundamental. Testar, testar e testar é o que tornou a Coreia do Sul um caso de sucesso. Lockdowns também funcionam. Portugal, que viveu semanas de pesadelo, conseguiu dobrar a curva de contágios com um lockdown bem feito. Algo parecido vale para Araraquara. Mas, na coluna dos contraexemplos, temos o Japão, que testou pouco, isolou pouco e vem passando pela crise com poucas mortes. Mistério extra, o Japão tem uma das populações mais idosas do mundo, o que deveria ter agravado a situação.

Geografia? Todos esperavam um desastre na África subsaariana, a parte do globo que sofre mais em quase todas as epidemias, mas a região se saiu relativamente bem, com exceção da África do Sul, para não desmentir a regra de que tudo tem exceções.

Um fator frequentemente negligenciado é o acaso. Sim, ele é relevante e se materializa em coisas como eventos de superinfecção, que são basicamente o sujeito errado, na hora errada, cercado pelas pessoas erradas.

A conclusão que me parece possível é que tudo importa um pouco, mas nada explica tudo.


Cláudio Gonçalves Couto: Golpismo e destruição

Não é só o discurso de Bolsonaro que atenta contra a democracia, mas também medidas concretas de articulação autoritária

Com o Brasil à beira de atingir 300 mil mortos oficiais por covid-19, o presidente Jair Bolsonaro achou por bem se refestelar com seus apoiadores, à frente do Alvorada, no dia de seu aniversário. Fosse só isso, seria indecoroso, mas não ultrapassaria os limites do que a democracia admite. Contudo, houve mais. Novamente o chefe do governo federal investiu contra seus pares nos Estados, acusando-os de serem tiranetes e emendando: “Podem ter certeza, o nosso Exército é o verde oliva e é vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade.”

Ou seja, o presidente da República sugeriu que contra a “tirania” de governadores e prefeitos - que apenas exercem suas competências constitucionais no combate à pandemia - pode usar o poder armado dos militares por ele chefiados e, ainda, mobilizar suas tropas civis - formadas por aqueles que ajuda a armar. Não é novidade. Na famigerada reunião ministerial tornada pública por decisão do ex-ministro do STF, Celso de Mello, Bolsonaro deixou claro que armava as pessoas para que pudessem se insurgir contra governadores e prefeitos cujas ações divergem das que preconiza.

Ainda na festa de aniversário, o presidente disse: “Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”.

O que é “esticar a corda” nesse caso? É não lhe obedecer? É seguir políticas distintas daquelas por ele preferidas, optando pelo que preconizam autoridades sanitárias e científicas mundo afora? Por que isso seria “esticar a corda” e não apenas atuar como governos subnacionais autônomos numa federação? Ou ainda, na realidade, não é ele quem estica a corda, desrespeitando a autonomia política dos entes federados?

Bolsonaro é incapaz de reconhecer como legítima qualquer ação que não lhe seja subserviente - e isso, mesmo quando promovida por quem não lhe deve obediência alguma. Diante disso, como fazem os populistas autoritários (com o perdão da redundância), recorre ao “seu povo” - composto apenas por aqueles que o apoiam e seguem. Ao dizer que esse povo particular compõe, junto com as “suas” Forças Armadas, um corpo de combate em prol da sua noção também particular de democracia ¬- que contempla apenas esse povo particular -, Bolsonaro ameaça com um golpe de Estado. Não há como interpretar diferentemente, considerando a forma como trata atores políticos que a ele se opõem ou simplesmente não se curvam.

Alguém poderia replicar que Bolsonaro apenas diz que fará “qualquer coisa... que está na nossa Constituição” (o presidente tem fixação por pronomes possessivos). O problema é que a leitura constitucional bolsonarista também é muito particular. Não fosse, ele reconheceria as competências de Estados e municípios, o papel do governo federal como coordenador (mas não comandante) de políticas intergovernamentais e a decisão do STF relativa a isto - que não lhe desobrigou de nada, pelo contrário. Portanto, quando Bolsonaro invoca a Constituição é preciso ter clara a forma como a interpreta. E, assim como em todos os outros casos, ele a vê como mero instrumento de seus objetivos e desejos particulares.

Fossem apenas palavras ao vento, seria grave, mas não tão perigoso. O problema é que o presidente toma providências concretas. Ao aboletar milhares de militares em cargos comissionados, com suas respectivas gratificações, Bolsonaro aparelha o Estado e coopta o segmento armado da burocracia pública. Ao dar a esse mesmo grupo benesses corporativas, como o singular aumento previsto no orçamento, reforça essa cooptação. Por esses meios, busca de fato tornar “suas” as Forças Armadas.

Já com as normas sobre armas baixadas pelo Executivo, o presidente municia grupos na sociedade com os quais tem vínculos antigos e que lhe apoiam - notadamente os Clubes de Atiradores e Caçadores (CACs). Ao transferir a tais organizações privadas até mesmo a prerrogativa eminentemente estatal de certificar quem está ou não apto a se armar, Bolsonaro facilita a criação de potenciais tropas de assalto privadas. É esse “povo” que compõe seu exército, ao lado dos verde oliva - como ele mesmo disse. Portanto, as diatribes bolsonarescas não são meras palavras ao vento; elas têm lastro na construção de uma aliança armada e apostam na violência como solução para os impasses políticos em que a liderança de Bolsonaro enreda o país.

Em paralelo a essa construção de um poder paralelo, ocorre também uma desconstrução. Desde o começo, a Presidência de Bolsonaro tem obrado para desmontar instituições, políticas públicas longamente consolidadas, espaços de participação democrática e noções de convivência política e social. A devastação ambiental, a radicalização política, o ataque violento e intimidatório a críticos e à imprensa não alinhada, bem como as mortes evitáveis produzidas pelo descalabro sanitário, tudo é resultado de iniciativas governamentais claras - não são ocorrências fortuitas.

Esse desmonte favorece o cenário de caos, em que o recurso a soluções extremas e ilegais se torna mais propício. O ambiente anômico esboçado pela greve dos caminhoneiros, em 2018, tornou mais plausível o discurso extremista do então candidato, Jair Bolsonaro. O colapso sanitário e econômico que agora se produz, por empenho do próprio governo que o deveria mitigar, novamente abre espaço para aventuras.

O contrapeso vem do fato de que a Bolsonaro se opõem, cada vez mais fortemente, atores de peso no concerto político, como governadores, empresários, órgãos de imprensa e lideranças internacionais - que se dão conta da ameaça por ele representada e do estrago que promove. Esses atores têm dois desafios pela frente: primeiro, deter a escalada autoritária e destruidora do presidente da República, talvez o apeando do cargo; segundo, preparar-se para um logo e penoso processo de reconstrução nacional, que será inescapável diante da destruição humana, ambiental, institucional social e econômica produzida pelo bolsonarismo.

*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP


Alon Feuerwerker: Monitorar a vacinação

A primeira é que o imunizante de Oxford e da AstraZeneca conseguiu 79% de eficácia na prevenção de casos sintomáticos. A vacina também revelou 100% de eficácia contra casos graves. 
Além disso, não aumentou o risco de coágulos sanguíneos (leia). O estudo foi conduzido com mais de 30 mil vacinados nos Estados Unidos, Chile e Peru.

A segunda é que o imunizante da chinesa Sinovac é efetivo e seguro para crianças e adolescentes (leia).

Parece que as duas escolhas, do governo de São Paulo e do federal, vão se provando adequadas, resta agora torcer para que as entregas prometidas se realizem conforme o planejamento. A velocidade na vacinação é importante para ganhar a corrida contra as novas cepas que a seleção natural produz.

Para quem deseja acompanhar em tempo (quase) real a vacinação pelo mundo, no Financial Times tem os dados absolutos e proporcionalmente à população. Eu escolhi comparar Brics, México e Argentina (leia). Mas você pode comparar o que quiser. Vale favoritar. 

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Pedro Cafardo: Empresários acordam e Brasil pede socorro

Crise deixa como lição que empresários precisam se manifestar

Finalmente, as classes empresariais, os economistas e até líderes do mercado financeiro acordaram. No fim de semana, duas robustas e corretas manifestações pediram que o país seja respeitado. Mais de 500 economistas e banqueiros divulgaram uma longa carta aberta à sociedade pedindo, principalmente, a adoção de medidas efetivas para conter a pandemia. Em outra manifestação, um grupo de empresários e executivos lançou uma ofensiva no Congresso, não só pelo auxílio emergencial, mas também em favor da discussão de outras medidas sociais para socorrer as empobrecidas famílias brasileiras.

É redundante citar aqui as sugestões feitas pelas classes empresariais, inclusive do setor financeiro. As propostas são, basicamente, aquelas que vemos diariamente na grande imprensa, nas entrevistas desesperadas de médicos, cientistas e familiares de mortos, à medida que avança o número de vítimas fatais da pandemia, que se aproxima de 300 mil pessoas. Em resumo, as propostas combatem o negacionismo e pedem ação urgente do governo.

Tão importante quanto as sugestões feitas nos dois documentos é o fato de que os empresários acordaram para uma realidade: o país pede socorro e não pode continuar nessa marcha insensata, com o chefe de governo não só ignorando a pandemia como também incentivando comportamento suicida de brasileiros desavisados.

É preciso adotar a sinceridade e admitir que as classes empresariais tiveram importância fundamental na eleição do atual presidente da República. Não é necessário lembrar que a sustentação dessa escolha se baseou na ideia de que, para o bem ou para o mal, qualquer governo seria aceitável, desde que não representasse a continuidade dos quatro mandatos do PT. Ainda hoje, com todas as terríveis consequências de mais de dois anos de mandato, o índice de apoio dos empresários ao atual governo, em todas as pesquisas, segue muito maior que o da média nacional.

Houve, certamente, omissão, comportamento que parece estar mudando agora. Acreditou-se, antes e depois do início do governo eleito em 2018, que uma política econômica liberal e exclusivamente voltada ao aperto fiscal, deixando de considerar o impacto dessa política sobre a vida das pessoas que perdem o emprego, poderia salvar o país. Durante certo período, essa crença se materializou na reforma da Previdência, que sanearia as contas públicas nos próximos dez anos e impulsionaria os investimentos e o crescimento. Toda aquela economia que se imaginou para os dez anos já foi gasta com a pandemia.

Acreditou-se que o BNDES não era necessário para financiar a empresa brasileira e que, portanto, poderia ser, aos poucos, desidratado. Praticamente nenhum discurso em defesa do banco foi feito pelas entidades empresariais. E a palavra desenvolvimento foi extinta do vocabulário do governo.

Durante muitos anos, muito antes da administração liberal de hoje, aceitou-se nos meios empresariais, sem gritos ou sussurros, uma política de juros elevados que claramente desestimulava os investimentos produtivos e destruía a indústria no país. Agora, com a maior recessão da história à vista, o Banco Central volta a elevar juros.

Poucas e honrosas têm sido as reações contra a calamitosa política ambiental deste governo, que arruína a reputação brasileira no exterior e expõe o país a sanções internacionais.

Foram toleradas, sem reação, políticas que confessadamente se destinavam a punir alguns setores empresariais. Foram toleradas ações de procuradores em conluio com juízes para condenar réus, ainda que houvesse o nobre objetivo de combate à corrupção, sem preocupação com destruição de grupos empresariais. Foi tolerado o estímulo ao uso de armas de fogo. Foi tolerada a protelação por três anos da investigação do assassinato de uma vereadora do Rio. Foram tolerados o nepotismo descarado, a ação nefasta na educação, a tentativa de militarização do ensino e a exaltação de ditadores e torturadores.

Por fim, e mais importante, foi tolerada durante um ano inteiro, a negação da ciência e da importância da pandemia, bem como a completa omissão do Ministério da Saúde na condução do combate à doença. Não é razoável acreditar que as classes empresariais estivessem anestesiadas pelo dilema entre salvar vidas e salvar a economia. Agora, os hospitais estão abarrotados de doentes, morrem quase 3 mil pessoas por dia e há 12 milhões de pessoas infectadas com o vírus. Não há mais dúvidas de que a recessão econômica não será superada enquanto a pandemia não for controlada. E isso, segundo a nota assinada por banqueiros, economistas e empresários, exige “uma atuação competente do governo federal”, que “utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia”.

Esse triste momento do país traz uma lição que não pode ser esquecida: as classes empresariais precisam se manifestar. Dá tudo errado quando se amedrontam ou se omitem diante das ações do governo. Gostemos ou não dessas opiniões, elas precisam ser explicitadas, até para que sejam confrontadas com propostas de outras representações, como as de trabalhadores, que praticamente sumiram do mapa depois da reforma trabalhista do governo Michel Temer.

Esta coluna já lamentou, anos atrás, a falta que nos faz Antônio Ermírio de Moraes, um dos donos do Grupo Votorantim, morto em agosto de 2014. Enquanto teve forças, ele foi um barulhento e corajoso representante do chamado “setor produtivo”, com apoios à direita e à esquerda, de empresários e trabalhadores.

A Segunda Guerra Mundial é pródiga em lições, e a mais importante delas se refere exatamente a omissões. É impossível não voltar a lembrar o que Winston Churchill disse em suas memórias: teria sido muito fácil evitar a tragédia da Segunda Guerra. Bastava, no fim da Primeira Guerra, manter a derrotada Alemanha desarmada e os vencedores aliados armados. Com isso, seria possível desfrutar de um longo período de paz na Europa. Os aliados viram quando Adolf Hitler tornou o serviço militar obrigatório, foi ampliando seus exércitos e transformou toda a indústria do país em um arsenal bélico. Viram, mas se omitiram. E deu no que deu, 60 milhões de mortos.

É hora de identificar e desarmar perdedores.


Igor Gielow: Novas falas de Bolsonaro sobre Forças Armadas incomodam militares

Sob pressão, presidente reprisa tática de 2020 e faz insinuações de uso de força

A nova tentativa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de envolver as Forças Armadas na defesa de suas bandeiras está incomodando os altos escalões militares.

Oficiais-generais influentes da ativa e da reserva passaram o domingo (21) e a segunda (22) conversando entre si após Bolsonaro ter sugerido o uso do Exército contra governadores de estado que aplicam medidas para reduzir a circulação de pessoas para tentar coibir a transmissão do novo coronavírus.

“Alguns tiranetes ou tiranos tolhem a liberdade de muitos de vocês. Pode ter certeza, o nosso Exército é o verde oliva e é vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade”, disse o presidente a uma multidão aglomerada na frente do Palácio da Alvorada no domingo.

“Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”, afirmou Bolsonaro, que celebrava seus 66 anos.

É um filme conhecido. Sempre que Bolsonaro se vê pressionado politicamente, ele "grita lobo", nas palavras de um oficial da Marinha. No caso, o "lobo" da fábula é algum tipo de intervenção militar.

No ensaio de crise constitucional do primeiro semestre do ano passado, quando o presidente estimulou atos golpistas que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro arrastou consigo a cúpula militar.

O presidente levou o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, para sobrevoar de helicóptero um desses atos. Ao mesmo tempo, as cúpulas das Forças tiveram de emitir duas notas para negar que houvesse tentações golpistas e reafirmando o compromisso com a Constituição.

Por outro lado, o mesmo Azevedo apoiou seu colega Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), que "gritou lobo" ao divulgar nota na qual alertava para "consequências imprevisíveis" devido à tramitação de um pedido para apreensão do celular de Bolsonaro, na apuração sobre interferência do presidente na Polícia Federal.

Essa posição ambígua acabou contribuindo para a desconfiança em diversos meios políticos. Com o desanuviamento da crise, a partir da melhora da popularidade de Bolsonaro durante os meses em que concedeu auxílio emergencial na pandemia e a associação com o centrão, os militares saíram do holofote.

A criticada gestão do general Eduardo Pazuello como ministro da Saúde os trouxe negativamente para a ribalta de novo, e agora Bolsonaro volta a insinuar que os militares estariam prontos para agir.

O presidente trocou sua ofensiva para barrar vacinas, em especial a Coronavac promovida pelo rival João Doria (PSDB-SP), por críticas ao isolamento social.

Com o colapso nacional do sistema de saúde neste momento agudo da pandemia, governadores estão endurecendo cada vez mais medidas. Pequenas manifestações contra os chefes estaduais e pedindo "intervenção militar com Bolsonaro no poder" reapareceram em diversos pontos do país.

Não por acaso, o presidente está em momento de grande fragilidade. Está em processo de troca de Pazuello pelo médico Marcelo Queiroga, uma transição atabalhoada que só lhe rendeu críticas.

Sua rejeição voltou ao pior patamar desde que assumiu, conforme mostrou pesquisa do Datafolha na semana passada, com especial repúdio à sua condução da crise sanitária. Mas ele mantém uma aprovação alta, de 30%.

Como a Folha ouviu de um dirigente do centrão nesta segunda, ninguém acredita que a inciativa de Bolsonaro de criar um comitê para lidar com a pandemia, passado um ano do seu início, irá dar algum resultado concreto.

Ele vê os esperneios do presidente junto à sua base mais radicalizada como um caminho natural, e brinca que se houvesse "dez pessoas na rua contra o Bolsonaro", o clima para um processo de impeachment no Congresso estaria dado, tal o azedume entre as forças que apoiam o governo e seu hospedeiro.

Nesse ambiente, os militares surgem como referência, e não exatamente positiva. Dois ministros do Supremo conversaram com um importante general da reserva sobre as inclinações das Forças e ouviram que não haveria risco de apoio a qualquer iniciativa autoritária ou inconstitucional.

Segundo ele, o nó para os militares se chama hierarquia, que impossibilita críticas públicas ao governo, não menos pela simbiose que há entre Forças Armadas e a gestão Bolsonaro, por mais que a cúpula da ativa tente evitar.

O maior temor entre esses oficiais céticos em relação ao governo tomou forma na sexta-feira (19), quando Bolsonaro afirmou que poderia tomar "medidas duras" na pandemia, uma semana depois de insistir que tinha apoio do "meu Exército", Força da qual é capitão reformado.

No mundo político, correu a versão segundo a qual Planalto estudava adotar estado de sítio, situação na qual as Forças Armadas têm papel central e na qual alguns direitos constitucionais são suspensos. O rumor foi tão forte que o presidente do Supremo, Luiz Fux, ligou para Bolsonaro para ouvi-lo negar a hipótese.

O mal-estar perpassou o fim de semana, com políticos consultando militares sobre o burburinho. A fala presidencial no domingo só acirrou mais os ânimos, e aos poucos a sensação de sobressalto que marcou 2020 vai ganhando corpo entre esses atores.


Cristina Serra: A carta tardia do PIB

Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami?

Quer dizer que foi preciso um ano de pandemia, quase 300 mil cadáveres, o colapso dos hospitais e um tombo colossal na economia para que parte expressiva do PIB se manifestasse publicamente sobre a catástrofe humanitária que nos põe de joelhos? Tirante honrosas exceções que assinam a carta divulgada neste fim de semana, a maioria permanecera em indiferente pachorra.

São mais de 500 assinaturas; alguns sobrenomes reluzentes, de banqueiros, empresários, ex-ministros, ex-dirigentes do Banco Central e economistas que, até outro dia, clamavam pela urgência das reformas, mas não mostravam a mesma preocupação com a premência de salvar vidas.

Muitos até devem ter achado, como disse o famoso animador de auditório, que Bolsonaro teria uma "chance de ouro de ressignificar a política", seja qual for o sentido disso no dialeto da Faria Lima. Agora, com as UTIs dos hospitais privados lotadas, parecem ter despertado do modo "repouso em berço esplêndido".

O que mudou? Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami? Que não somos bem-vindos em nenhum país porque cevamos um criadouro de variantes agressivas do vírus? Que estamos todos na mesma tormenta, embora milhões a enfrentem agarrados a um pedaço de pau e pouquíssimos em um transatlântico? Simplesmente perceberam que Paulo Guedes não tem força para demolir o Estado, como esperavam ? Ou a soma disso tudo?

Com tal carta, nossa elite mostra como é elástica sua tolerância diante de uma tragédia que atinge principalmente os mais pobres. Ao ler o documento, procurei menção a, quem sabe, aumento de imposto sobre suas imensas fortunas. Nenhum palavra. Apesar de tardia, a carta pode até ajudar a controlar rompantes autoritários de Bolsonaro. Daí a conter o genocídio que nos abate há longa distância. Para isso, é preciso combinar com os mercenários e franco atiradores do centrão. E enquanto você lê esse texto, mais um coração brasileiro parou de bater.


Hélio Schwartsman: Se o vírus tivesse me ouvido...

O corona, porém, não atendeu a meus apelos

Em julho, quando o presidente anunciou que tinha contraído a Covid-19, escrevi a coluna "Por que torço para que Bolsonaro morra". Ganhei uma enxurrada de emails irados e um inquérito com base na LSN. Riscos da profissão.

A título de experimento mental, convido o leitor a adentrar no fantástico mundo dos contrafactuais e imaginar o que teria acontecido caso o vírus tivesse atendido a meu desejo.

Em princípio, nada muito animador. Bolsonaro teria sido substituído pelo vice-presidente, general Hamilton Mourão, que tem ideias parecidas com as do titular e também nutre crenças exóticas (cloroquina) em relação à Covid-19. Mas Mourão, admita-se, vem com uma demão de verniz civilizacional e parece mais disposto a seguir conselhos de especialistas.

De todo modo, as inclinações naturais do general nem são tão relevantes. Ao assumir a vaga de alguém que morrera de Covid-19, Mourão não teria alternativa que não a de declarar guerra ao vírus. Àquela altura, vale destacar, teria sido possível comprar antecipadamente grandes quantidades de vacinas, que talvez tivessem evitado as consequências mais catastróficas desta segunda onda que enfrentamos.

A própria população teria ficado assustada com a morte precoce do presidente e, presume-se, não resistiria a medidas de distanciamento social nos momentos em que elas se mostrassem necessárias.

Em 7 de julho de 2020, o Brasil contabilizava 1.658.589 casos confirmados da doença e 66.741 mortes. Hoje, esses números são 11.998.233 e 294.042 e aumentam rapidamente. Não dá para precisar quantos óbitos teriam sido evitados se Bolsonaro tivesse sucumbido à moléstia, mas não teriam sido poucos.

O vírus, porém, não atendeu a meus apelos. Para quem gosta de ciência e flerta com a teoria dos muitos mundos, resta o consolo de que existe um universo onde o Sars-CoV-2 levou Bolsonaro e, depois disso, o Brasil se tornou um exemplo no combate à epidemia.


François Hollande: Papel da esquerda é tirar populistas do poder democraticamente

Ex-presidente francês afirma discutir com Lula como construir forças políticas capazes de encarnar a alternância

Beatriz Peres, Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - O ex-presidente francês François Hollande, 66, que comandou o país entre 2012 e 2017, considera palpáveis os danos causados pelo populismo que ascendeu em diferentes partes do mundo.

"A eleição de Jair Bolsonaro resultou em destruições importantes da floresta amazônica, em um declínio da democracia e das liberdades e em políticas muito duras com os mais pobres e muito complacentes com os mais ricos", diz o socialista. "Sem esquecer a gestão da crise sanitária, que, tanto no Brasil quanto nos EUA —quando Donald Trump estava no poder—, fez vítimas demais, por falta de medidas restritivas."

Em entrevista à Folha, por email, Hollande defende uma reação em bloco, como afirma ter acontecido com a candidatura do democrata Joe Biden na vitória sobre Trump. "Foi por pouco, e isso só foi possível porque o conjunto dos democratas, para além de suas diferenças, juntaram suas forças."

Depois da condenação do ex-presidente Nicolas Sarkozy, o senhor criticou o que chamou de “ataques repetidos contra a Justiça”. Por que considerou necessário defender a Justiça francesa neste momento? 

A separação dos Poderes é o fundamento da democracia. Na França, a Justiça é independente do Executivo. Os magistrados, os juízes e os procuradores conduzem suas investigações e proferem suas sentenças sem intervenção nenhuma do poder político. As decisões podem ser contestadas por todas as vias de recurso, o que Nicolas Sarkozy já fez em seguida à condenação. Por isso não aceitei os ataques vindos da direita e dos apoiadores do ex-presidente que visam desacreditar a autoridade judiciária.

No Brasil, a Justiça também está sendo criticada devido ao processo contra o ex-presidente Lula. É preciso defender a Justiça também no Brasil? 

A Justiça brasileira vai estabelecer ela mesma a verdade e poderá um dia verificar se as acusações contra o ex-presidente Lula tinham fundamento. Mas já parece claro que tudo foi feito no plano político para impedir Lula de se candidatar na última eleição presidencial. Foi isso que justificou minha tomada de posição, com outros chefes de Estado e de governo, desde 2018, para que Lula pudesse, livre, ser candidato à eleição presidencial. Hoje é um novo momento que se abre, e fico feliz de ver Lula recuperar plenamente seu espaço na vida política brasileira.

Nos EUA, a eleição de Joe Biden freou a onda populista de Donald Trump. Mas os movimentos populistas de extrema direita e de ultradireita estão espalhados pela Europa e também pelo Brasil. Qual é o papel da esquerda neste momento? 

Nós já podemos facilmente constatar os danos causados pelos populistas. A eleição de Jair Bolsonaro resultou em destruições importantes da floresta amazônica, em um declínio da democracia e das liberdades e em políticas muito duras com os mais pobres e muito complacentes com os mais ricos. Sem esquecer a gestão da crise sanitária, que, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos —quando Donald Trump estava no poder—, fez vítimas demais, por falta de medidas restritivas.

A esquerda nos Estados Unidos –porque é assim que podemos considerar os democratas americanos– foi capaz de se unir em torno de Joe Biden, cujo passado e experiência eram testemunhas de seu compromisso e despertaram confiança. Foi assim que Trump pôde ser derrotado. Foi por pouco, e isso só foi possível porque o conjunto dos democratas, para além de suas diferenças, juntaram suas forças. O papel da esquerda, portanto, é fazer de tudo para impedir que os populistas cheguem ao poder e, quando eles chegam, de retirá-los democraticamente propondo ao povo uma solução crível.

Na França, o Partido Socialista está programando um congresso de “refundação”, para definir um novo ciclo e renomear o partido. Do que se trata esse movimento de refundação? 

Em um mundo que evolui rapidamente e diante de desafios enormes como as desigualdades, a democracia e o aquecimento climático, cada geração deve assumir suas responsabilidades. Os partidos progressistas precisam se renovar, se refundar e se repensar, tanto do ponto de vista de sua organização como de seu projeto. Mas sem nunca se esquecer de sua história e sem perder os valores sobre os quais foram fundados. É essa a tarefa atual dos socialistas franceses.

O senhor tem discutido a renovação da esquerda com o ex-presidente Lula? 

Sim, nós concordamos em trocar experiências, em defender as mesmas posições em nível internacional e em construir, em nossos respectivos países, as forças políticas capazes de encarnar a alternância. Trabalharemos com todos que quiserem se juntar a nós para devolver a esperança à política. Nós compartilhamos os valores da liberdade, da democracia e da justiça social.

A França ainda vive o luto de atentados terroristas recentes, incluindo a decapitação do professor Samuel Paty, e os deputados aprovaram um projeto de lei contra os separatismos, que será examinado pelo Senado. As discussões do chamado “islamoesquerdismo” eclipsam o problema real? 

A França ama as polêmicas. Algumas podem ser frutíferas, outras ocultam os problemas reais. Sejamos lúcidos, existem fenômenos de radicalização, de divisão e mesmo de separatismo. E há até teorias que os justificam. Eles precisam ser discutidos e combatidos. Mas não vamos acreditar que eles sejam majoritários na esquerda, pelo contrário. É uma fração muito pequena que mantém esses movimentos para viver em protesto, em exclusão e na recusa de suas responsabilidades. Eu sou socialista e, portanto, universalista e não me satisfaço com os combates parciais. Tudo deve convergir para uma mudança global da sociedade. Quanto ao terrorismo, ele tenta nos assustar e nos dividir, não podemos ceder a ele.

O senhor concorda com a gestão do presidente Emmanuel Macron durante a pandemia

A gestão da pandemia é uma das crises mais difíceis que se poderia conceber, já que o vírus é resistente, a vacinação demora a produzir seus efeitos e uma parcela da população continua vulnerável. A gestão do governo pode ter parecido às vezes hesitante ou contraditória, mas foi assim em todos os países. Ao menos eu reconheço o mérito de Emmanuel Macron, ao contrário de Jair Bolsonaro, de ter admitido que o vírus era perigoso, que poderia matar e que era preciso tomar medidas restritivas, especialmente o confinamento.

O senhor se arrepende de não ter disputado as últimas eleições presidenciais? 

Eu deveria ter demorado mais para anunciar minha escolha, talvez um pouco mais tarde tivesse sido diferente. Eu me arrependo de não ter podido perseguir por mais tempo a política de redução das desigualdades, a priorização da educação e da inserção dos jovens, assim como a luta por uma ecologia social.

O senhor acredita ter um papel na eleição de 2022? Qual? 

Eu não sou mais dirigente do Partido Socialista. Tenho orgulho do que fiz pelo meu país, ainda que reconheça determinadas falhas, mas meu papel é contribuir para o debate de ideias, fazer propostas, expressar minhas convicções quando os pontos essenciais estão em questão e transmitir minha experiência às novas gerações.

*François Hollande, 66, Formado pela École des Hautes Études Commerciales de Paris e pelo Institut d'Études Politiques de Paris (Sciences Po), entrou para o Partido Socialista em 1979. Foi deputado pelo departamento de Corrèze e prefeito da capital, Tulle. Foi o sétimo presidente da quinta República Francesa.