covid-19
Ricardo Noblat: Bolsonaro coleciona derrotas na guerra contra a CPI da Covid
Um presidente em apuros
O presidente Jair Bolsonaro negou que soubesse que fora gravada sua conversa com o senador Jorge Kajuru (CIDADANIA) e que autorizou sua divulgação. Gravar conversa com presidente da República é crime, segundo ele. (Não é, mas deixa pra lá.) O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos) denunciou Kajuru ao Conselho de Ética do Senado que não se reúne há dois anos.
Kajuru disse que grava todas as suas conversas com políticos para poder se defender depois, caso digam que ele falou uma coisa que não tenha falado. Dispõe para isso de uma caneta-gravador que ganhou de presente. Disse que avisou, sim, a Bolsonaro, em um segundo telefonema, que divulgaria o conteúdo da conversa. E que o presidente não se opôs a isso.
Bolsonaro é presidente do baixo clero, como Kajuru é do baixo clero do Senado. Não se deve dar importância ao episódio, aconselham políticos experientes e ministros do Supremo Tribunal Federal. Valer-se de Kajuru como escada revela o crescente isolamento de Bolsonaro. Os dois formam uma dupla do barulho. Ambos se merecem. O país passaria muito bem sem eles.
Mas como ignorar que Bolsonaro, deputado do baixo clero por quase 30 anos, acidentalmente eleito presidente, governa – ou desgoverna – o país há 15 meses, e tem mais 20 pela frente? O fato é que ele perdeu a batalha inicial da CPI destinada a apurar os erros do seu governo no combate à Covid. Os senadores mantiveram suas assinaturas no pedido de convocação.
Para completar, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, ordenou a Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, que instalasse a CPI. É o que ele começará a fazer hoje. Restou a Bolsonaro, portanto, criar tumulto com o propósito de retardar o início da CPI, e uma narrativa a ser compartilhada com seus devotos mais radicais sempre dispostos a defendê-lo.
A conversa com Kajuru faz parte do tumulto. O pedido de convocação de outra CPI, essa para investigar as ações de governadores e de prefeitos durante a pandemia, também. Ocorre que o regimento interno do Senado, no seu artigo 146, diz que investigar ações de governadores e prefeitos não lhe cabe. Cabe às Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais.
Em 2014, para esvaziar a CPI que investigaria a roubalheira na Petrobras, Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, ampliou o seu alcance, determinando que também fossem investigadas supostas irregularidades em contratos relativos aos trens e metrôs de São Paulo e do Distrito Federal. A presidente da República era Dilma Rousseff, e Renan seu aliado.
A oposição acionou o Supremo, e a ministra Rosa Weber deferiu liminar determinando que a CPI fosse instalada com “objeto restrito”. Escreveu: “O procedimento adotado pelo eminente presidente do Senado Federal, ainda que amparado em preceitos regimentais, desfigura o instituto constitucional assegurado às minorias políticas”. E argumentou:
– Não se pode prever, ao certo, quais deliberações serão tomadas; mas é possível antecipar que, uma vez alterada a quantidade de fatos determinados objeto das investigações, o universo de deliberações e a dinâmica interna dessas já não serão os mesmos constantes da proposta original.
Seria tão simples Bolsonaro proceder como sugeriu o deputado Fábio Faria (PSD-RN), seu ministro das Comunicações. Faria condenou a CPI, mas disse que se ela fosse instalada, ficaria provado que o governo Bolsonaro acertou em cheio no combate à pandemia. Ora, pois, vamos lá! CPI para salvar o governo e parar com essa história de que Bolsonaro é um genocida.
Eliane Cantanhêde: Bolsonaro tenta fazer, do limão, da CPI e das mortes, uma limonada
Presidente finge que não tem nada a ver com pandemia e faz chantagens contra ministros do Supremo, governadores e prefeitos
O ambiente está como o diabo e o presidente Jair Bolsonaro gostam: uma verdadeira bagunça, com a pandemia fora de controle, as mortes disparando e as vacinas e leitos acabando, mas todas as atenções de Executivo, Legislativo e Judiciário estão na CPI da Covid no Senado. Em vez de discutir e agir contra a pandemia, Brasília faz o que Bolsonaro quer: esquece a covid para privilegiar a guerra política.
Em conversa gravada com o curioso senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO), Bolsonaro resumiu sua estratégia: fazer do limão uma limonada. Finge que não tem nada a ver com pandemia – nem com o próprio governo e os erros do governo – e faz chantagens contra ministros do Supremo, governadores e prefeitos, enquanto compra apoios no Senado.
A sensação, porém, é de que a CPI vai pegar fogo contra Bolsonaro e o Ministério da Saúde, porque há uma consciência generalizada, dentro e fora do Congresso, de que os fatos, as falas e os resultados não admitem tergiversação nem jogar a poeira – e os mortos – para debaixo do tapete.
No meio, entre os pró e os contra a CPI, o plenário do Supremo poderá dar uma mãozinha para Bolsonaro amanhã, ratificando a liminar do ministro Luís Roberto Barroso que mandou instalar a CPI, mas ressalvando que o funcionamento depende de condições práticas e reuniões presenciais. Em resumo: o STF mantém a instalação da CPI, mas liberando os trabalhos depois da pandemia. Esquisito? Muito. Mas o que não é esquisito no Brasil hoje em dia?
Desde que Barroso determinou a instalação da CPI, ninguém mais fala nos erros criminosos de Bolsonaro na pandemia e que faço questão de frisar aqui: troca de ministros na pior hora, desdém ao tratar da crise e das mortes, péssimos exemplos para a cidadania, gastança com remédios inúteis e perigosos e desleixo ao contratar vacinas.
Assim, Bolsonaro vai fazendo a limonada. Dá o grito de guerra à arquibancada bolsonarista e não se fala de seus erros, só contra ministros do STF e de estender as investigações para governadores e prefeitos. Exemplo: em vez de cuidar de Queiroz, rachadinhas, funcionários fantasmas e mansões de R$ 6 milhões, o senador Flávio Bolsonaro está a mil por hora para enlamear os outros.
Então, a CPI é boa para Bolsonaro e ruim para seus adversários e todos os demais? Não! Hoje será a leitura da CPI, e é hora de organizar os times para anunciar os 11 titulares e seus reservas amanhã. Apesar das chantagens de Bolsonaro e de eventuais saídas heterodoxas do Supremo, é isso, a composição da comissão, que vai definir o principal: até onde a CPI irá.
Pode até resvalar para Estados e municípios, mas seu alvo principal é, evidentemente, Jair Bolsonaro. É ele, sem sombra de dúvida, o grande responsável pela tragédia, pela carnificina. A pandemia, como o nome já diz, atingiu o mundo todo, mas cada país cuidou de um jeito. Bolsonaro foi quem cuidou pior e o resultado está aí.
Uma CPI paralela ou a inclusão de governadores e prefeitos no escopo da própria CPI da Covid enfrentam obstáculos, porque, segundo seu regimento interno, o Senado não pode investigar Estados e municípios. Mas há um atalho para chegar lá naturalmente, pela própria dinâmica das investigações. Basta seguir o dinheiro federal e apurar se houve desvios.
Quanto ao impeachment e à CPI contra ministros do STF, é para fazer barulho e dar carne aos leões bolsonaristas contra as instituições e a democracia. A oposição grita “genocida” para Bolsonaro e os bolsonaristas gritam contra ministros do STF e Congresso. Mas o passado, o presente e os fatos condenam Bolsonaro. Ele personaliza os ataques contra Barroso, mas, sem defesa, não tem interesse nenhum numa guerra desse tamanho contra o Judiciário e Legislativo.
Pedro Fernando Nery: Deveríamos falar em vacinar primeiro a população negra
Negros têm probabilidade maior tanto de morte quanto de internação do que brancos
A campanha de vacinação se iniciou pelos idosos, com taxas maiores de mortalidade. Estudos recentes para o Brasil têm mostrado que há outro grupo demográfico mais tendente a morrer de covid, bem como de se infectar e também de perder renda na pandemia. Se concordássemos em priorizá-lo na imunização, estaríamos falando de vacinar primeiro a população negra.
Aceito recentemente para publicação no periódico BMJ Global Health, um estudo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros promove uma detalhada descrição das diferenças sociais e raciais na pandemia (Li et al., 2021). De instituições como o Ipea e as Universidades de São Paulo e Oxford, a pesquisa faz uso de uma informação que só está disponível para os pacientes do Estado de São Paulo: o CEP. Assim, foi possível combinar o dado com outras pesquisas com informações espaciais.
Indivíduos de áreas mais pobres chegam a ter probabilidade 60% maior de morte do que aquelas de áreas mais ricas (que predominam nas internações no início da pandemia, mas não depois). E negros têm probabilidade maior tanto de morte quanto de internação do que brancos.
Parte da diferença parece associada ao tipo de hospital do paciente (público x privado), mas não toda. Negros apresentam maior probabilidade de morrer mesmo nos hospitais particulares.
A versão definitiva do trabalho ainda não está disponível, mas um pré-print foi publicado em dezembro e explicado por um dos principais autores – o economista Rafael Pereira, craque do Ipea em estudos espaciais: “A vulnerabilidade à covid-19 é fortemente moldada por diferenças de saúde preexistentes na incidência de comorbidades e por condições socioeconômicas, que afetam a capacidade dos indivíduos aderirem ao distanciamento social e a intervenções não farmacológicas, e acessarem serviços de saúde”.
A população negra e aqueles com menor nível educacional são mais afetados por se ocuparem mais em trabalhos com contato face a face com outros. Enquanto isso, brancos têm maior probabilidade de estarem em teletrabalho.
Assim, não é surpreendente também que os dados de telefones celulares na capital paulista indiquem que são nos bairros de maior população branca que há maior adesão ao isolamento social, que também dura por mais tempo nesses casos.
Por sua vez, a evidência de presença de anticorpos em doadores de sangue – mais um tema do estudo – parece confirmar uma taxa maior de contágio entre a população negra. Já outra pesquisa, do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made) da USP, mostra que a mulher negra é mais vulnerável à perda de renda na pandemia (Fares et al., 2021). Homens brancos perdem menos.
Passada a vacinação de idosos, não parece haver um critério consistente para a continuação da campanha. Grupos organizados têm conseguido prioridade, e em vários lugares vemos sendo vacinados jovens pouco expostos, apenas porque possuem nível superior em áreas como educação física, nutrição, veterinária ou psicologia – pegando carona na vacinação dos profissionais de saúde da linha de frente.
A prioridade para idades mais altas funcionou como um critério simples razoavelmente bem alinhado com os riscos da pandemia. Com o avanço da campanha, com as novas variantes e com as evidências existentes, faz sentido pensarmos em outro? Ou as prioridades vão ser dominadas pelos lobbies das carteirinhas, em prejuízo dos expostos que não podem ser organizados por conselhos ou associações?
Se negros perdem mais renda com as medidas sanitárias, se estão mais expostos ao contágio pelas diversas razões listadas e se correm maior risco de morte, não é absurdo pensar que essa parte da população seja prioridade – ainda que haja sobreposição entre baixa renda e raça nas vulnerabilidades na pandemia. A precedência para a população negra chegou a ser defendida nos EUA por Melinda Gates.
É ideal um homem de 40 anos em teletrabalho ser vacinado antes de um entregador de 25 anos? A alocação inteligente das vacinas pode reduzir mais rapidamente tanto o contágio quanto as mortes, assim como as taxas de pobreza. Devemos buscar vacinar os vulneráveis primeiro.
*DOUTOR EM ECONOMIA
Merval Pereira: Supremo sob pressão
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem amanhã em sua pauta dois julgamentos com implicações políticas relevantes, e, por isso, seus ministros estão sob intensa pressão dos extremos, de lulistas e bolsonaristas. O próprio presidente Bolsonaro tratou de explicitar essa pressão ao sugerir a um senador que impulsione um processo de impeachment de ministro do STF, afirmando que, fazendo isso, conseguiriam barrar a CPI da Covid que o ministro Luís Roberto Barroso autorizou o Senado a instalar, cumprindo o que manda a Constituição.
O outro tema a ser julgado, a suspeição do ex-ministro Sergio Moro, está sob intenso tiroteio de um grupo de advogados criminalistas chamado “Prerrogativas”, que soltaram suas baterias contra o ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo. Coadjuvantes do PT, que também ameaça o plenário do Supremo por meio de seu site oficial, colocando como pontos intocáveis “tanto a anulação das sentenças quanto o julgamento da suspeição de Moro”. E advertem: “Não toquem nos direitos de @LulaOficial”.
O diálogo do senador Kajuru com o presidente Bolsonaro, gravado pelo primeiro, que o divulgou, é uma prova evidente de uma conspiração de interferência do Executivo no Legislativo, embora a intenção do senador ao divulgar a conversa não tenha sido denunciar Bolsonaro, muito ao contrário. Bolsonaro acha que caiu numa armadilha, e Kajuru garante que o avisou de que divulgaria. Seja como for, o diálogo revela o baixo nível em que são tratados os assuntos mais importantes do país.
A CPI da Covid é fundamental para que sejam punidos os responsáveis por essa crise humanitária sem precedentes por que estamos passando, com a culpa claramente exposta do presidente da República, devido a sua intransigência quanto às orientações científicas de proteção da população que governa. Sua teimosia em rejeitar atitudes como distanciamento social ou uso de máscara tem fundamentos políticos rasteiros. Não compreende que o que permitirá a retomada econômica é a vacinação em massa, não o morticínio em busca de uma imunidade coletiva que não acontecerá.
O outro tema da tarde de amanhã, que deve entrar por quinta-feira, é a analise, pelo plenário do Supremo, da decisão do ministro Fachin de tirar de Curitiba os processos contra o ex-presidente Lula, enviando-os à Justiça Federal em Brasília. Com isso, as condenações foram anuladas, e Lula tornou-se elegível. Mas o PT e os membros do “Prerrogativas” não admitem que os 11 ministros votem com suas consciências e passaram a pressioná-los por meio de artigos em jornais, manifestos e declarações nas redes sociais.
A questão deles é temer que, derrubada a suspeição do ex-juiz Sergio Moro no plenário do Supremo, as provas e investigações contra Lula possam ser aproveitadas pelo novo juiz, já que não foram produzidas por um juiz suspeito, como definiu a Segunda Turma contra a decisão de Fachin, que considerou que o julgamento não deveria começar por ter perdido o objeto com a mudança de foro.
Três advogados membros do “Prerrogativas” escreveram um manifesto onde, depois de divagar filosófica e profundamente sobre o paradoxo do biscoito Tostines, que “vende mais porque é fresquinho, ou é fresquinho porque vende mais”?, dizem que nunca pressionaram o STF, mas advertem ao final, na mesma linha da postagem oficial do PT, que o grupo “Não se furtará, evidentemente, a denunciar estratégias processuais e interpretações regimentais heterodoxas para que determinado e especifico objetivo seja atingido”. Ou seja, não mudem nenhuma decisão que favoreça o ex-presidente Lula.
Um dos autores do texto, Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do “Prerrogativas”, já havia dito que o ministro Fachin estava arquitetando “uma manobra com objetivos políticos”. A advogada Carol Proner, também do grupo, afirmou numa entrevista no YouTube que o ministro Fachin, ao afirmar que o plenário do STF pode reverter a decisão da Segunda Turma, anulando a condenação por suspeição do ex-ministro Moro, está defendendo “um verdadeiro golpe jurídico”. Se isso não é pressão de uma parte interessada, por motivos diversos, em um determinado veredito, não sei o que é.
Fernando Gabeira: Do paraíso ao inferno tropical
Não consigo deixar de quebrar a cabeça para explicar nosso fracasso diante da pandemia. Pareço aquele personagem do romance de Vargas Llosa “Conversa na catedral”. Ele se debate com a pergunta: “Em que momento o Peru se fodeu?”.
Cada semana enveredo por uma trilha nova, sem saber direito onde dará essa patética aventura.
Alguns textos estimulam minha busca. Um deles é da economista Mariana Mazzucato, que, ao falar da importância de uma ação nacional coordenada, usa como exemplo o esforço americano para colocar o homem na Lua.
O livro dela chama-se “Missão economia” e pretende ser um guia para mudar o capitalismo. No prefácio, ela comenta a experiência vitoriosa do Vietnã contra a Covid-19, baseada na capacidade de unir todas as energias nacionais numa só direção.
Por minha conta, dei um balanço também em alguns momentos de êxito dos britânicos na pandemia. Um deles foi a capacidade de articular a energia e a criatividade no processo de conseguir vacinas e realizar a vacinação em massa. Outro foi o êxito em evitar, no auge da crise sanitária, que houvesse um colapso no sistema hospitalar.
Ambos os processos de vacinação e gestão de hospitais no Reino Unido foram capitaneados por mulheres. Mas envolveram um esforço mais amplo. Daí minha interrogação: sera que tanto o Vietnã como o Reino Unido não se aproveitaram da memória das guerras que viveram e encontraram mais facilidade para um esforço nacional?
Por meio de outro texto, tentei fazer o caminho oposto: examinar o fracasso de alguns países, como os Estados Unidos e o Brasil, que perderam muito mais gente na pandemia.
Refiro-me a um artigo publicado no ultimo número da “Foreign Affairs”, com o título de “O poder partido, como superar o tribalismo”, de Reuben E. Brigety. De forma simplificada, uma das características do tribalismo é o patrulhamento constante entre os membros de uma tribo, o que evita a possibilidade de cooperar com um adversário para o bem comum.
A superação do tribalismo pode se encontrar na coragem dos líderes, como nos processos da África do Sul e da Irlanda. Ou então na ajuda de entidades mediadoras. Mas tanto Trump quanto Bolsonaro jamais levariam em conta esse aspecto, precisamente porque sobrevivem na divisão.
Nem um nem outro jamais pensou em saída nacional e solidária, simplesmente porque isso implica dissolver diferenças secundárias em nome da tarefa de salvar vidas.
Já havia mencionado em alguns artigos como essa polarização intensa nos torna incapazes de certas conquistas. No caso americano, além de reduzir seu potencial, abre um flanco para a exploração dos inimigos externos.
No exemplo brasileiro, esse fator inimigo externo não tem tanto peso. São tantas as agressões entre nós, tantos insultos à razão e à lógica elementar, que um inimigo externo descansaria na certeza de que fatalmente nos autodestruiremos.
Uma das mais delicadas tarefas de Joe Biden é superar o tribalismo na política americana. E creio que a experiência de nosso fracasso na luta contra a pandemia aponta para a mesma direção no futuro: recriar as condições para que, em determinados momentos, possamos agir como um só país, com energia concentrada para derrotar um inimigo comum, seja ele um vírus, um desastre ambiental ou um grande sofrimento popular.
Quando o radicalismo de Bolsonaro e seus adeptos for superado, creio que, de todos os temas com que trabalho, a proteção ao meio ambiente e a sustentabilidade, ao lado da luta por melhorias reais da condição de vida, podem ser a base de um novo pacto. Ecologia e responsabilidade social.
Não creio que isso nos levaria a um mundo totalmente pacificado, muito menos ao paraíso.
Creio apenas que aqui fomos muito longe em nossa experiência infernal. Não me pergunto apenas quando é que o Brasil se fodeu, mas também por que se fodeu tanto.
Celso Rocha de Barros: CPI da Covid tem que ser início do julgamento de Nuremberg que bolsonarismo merece
Comissão instaurada meses atrás teria salvado milhares de vidas; talvez ainda dê para salvar algumas
O ministro Luís Roberto Barroso determinou que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tome vergonha na cara e instaure a CPI que investigará os crimes de Bolsonaro durante a pandemia.
O requerimento para abertura da CPI é assinado por 32 senadores, 5 a mais do que o legalmente requerido. A CPI só não havia sido aberta ainda por mutreta, falcatrua e sacanagem.
O senador Pacheco alega que a instauração da CPI pode prejudicar a ação conjunta dos Poderes contra a pandemia. Ele está mentindo. Não há ninguém na esfera federal tomando qualquer providência contra a pandemia. Cerca de 80% das vacinas aplicadas no Brasil até agora são da Coronavac do Butantan (e de Doria).
O presidente da Câmara, Arthur Lira, disse que não é “hora de apontar culpados”. Disse isso porque Bolsonaro, que é o culpado, concedeu a Lira e a seus aliados no centrão acesso a cargos e verbas da administração federal.
A hora de apontar culpados, se entendi bem, será quando esse dinheiro acabar. Talvez já não dê mais para evitar uma única morte brasileira.
Se vocês quiserem entender a diferença que instituições minimamente funcionais fazem, deem uma olhada no noticiário um dia antes da decisão de Barroso e um dia depois.
Um dia antes, a Câmara aprovou um projeto de lei que possibilita que vacinas sejam desviadas do SUS para empresários utilizando o Ministério da Saúde como laranja. Essa aliança de Chicago Boys inspirados em Milton Friedman com Chicago Boys inspirados em Al Capone só foi possível porque o bolsonarismo estava funcionando sem controle nenhum.
No dia seguinte à decisão de Barroso, o próprio Bolsonaro autorizou, pela primeira vez desde o início da pandemia, que o Ministério da Saúde promovesse campanhas pelo isolamento social e pelo uso de máscaras. Foi medo da CPI.
Agora calculem quantas vidas teriam sido salvas se a CPI tivesse sido instalada no ano passado. Se no começo da segunda onda Bolsonaro já tivesse medo de cair, se o medo de cair o tivesse feito comprar vacinas, defender o isolamento, distribuir máscaras. Teriam sido muitas dezenas, talvez centenas de milhares de brasileiros mortos a menos.
No sábado (10), cruzamos a marca de 350 mil mortos. Segundo as projeções, já temos pelo menos mais cem mil mortes contratadas, isto é, inevitáveis pela conjunção do ritmo de disseminação da doença com as políticas adotadas por Bolsonaro.
Cem mil brasileiros adicionais vão morrer com certeza de Covid-19. Já estão condenados, só não sabem disso ainda. Talvez um deles seja você, leitor. Talvez um deles seja eu.
Mas o risco de que morramos, além desses todos, mais outros 100, mais outros 200 mil, também é alto. Talvez derrubar e prender Bolsonaro não impeça essas mortes, mas manter Bolsonaro confortável no poder as garante.
Quem não trabalha para que Bolsonaro seja responsabilizado por seus crimes trabalha para matar 100, 200 mil brasileiros além dos que já morreram.
A CPI tem que ser o início do julgamento de Nuremberg que o bolsonarismo merece. Não haverá volta ao normal sem isso. Se deixarmos passar os crimes da pandemia, o que teremos direito de criticar nos próximos governos “normais”, seja lá quando for que eles voltem? Corrupção? Inflação alta? Seria falta de senso de ridículo.
Edmundo Machado de Oliveira: País precisa de uma nova Carta ao Povo Brasileiro para enfrentar desigualdade
Um dos redatores da carta de Lula de 2002 diz que forças democráticas devem convergir para a retomada do desenvolvimento
[RESUMO] Carta apresentada por Lula em 2002, mais que uma conciliação com o mercado, representou uma convergência histórica de forças opostas que permitiu alçar a promoção dos mais pobres a ponto central das políticas públicas. Tal conquista, porém, foi detida pela ruptura do impeachment, que culminou na vitória de Bolsonaro. Uma carta para 2022 teria que mirar na desigualdade e exigiria nova confluência democrática de grupos adversários.
A Carta ao Povo Brasileiro, lida por Lula na campanha de 2002, foi um ponto de luz na história brasileira. Muitos a entendem, ainda hoje, como uma manobra esperta para acalmar os mercados e pavimentar a sua via até a rampa do Planalto. Poucos a percebem, porém, como um momento de confluência da democracia brasileira.
A continuidade das políticas econômicas vigentes, embora em novas bases, foi uma primeira grande convergência entre forças sociais distintas e até conflituosas. Ao final do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, o país havia recorrido novamente ao FMI para um plano de resgate.
As reservas em moeda estrangeira no Banco Central eram de míseros US$ 30 bilhões —hoje temos US$ 350 bilhões—, mas havia um razoável equilíbrio de fundamentos macroeconômicos, sobretudo em termos de dívida pública.
O realismo falou ao bom senso, e o PT afastou qualquer sombra acerca de um extemporâneo cavalo de pau na economia. Não honrar contratos estava fora de questão. Fomentar bolhas artificiais de crescimento —como também tive a oportunidade de escrever no relatório de transição entre o futuro ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e o então ministro Pedro Malan—, sem chance.
Nada disso seria possível sem a visão periscópica de Lula e sua fixação no ponto essencial, que trouxe à tona uma confluência ainda mais abrangente: o encontro das variadas elites políticas, econômicas e sociais com o povo.
Até então, políticas sociais eram políticas compensatórias. Lula e sua carta foram além, mirando o que o ex-presidente elaborou, posteriormente, de forma sintética e compreensível em todas as ruas e praças do país —“colocar o pobre no Orçamento”, fazer a roda do desenvolvimento econômico e social girar novamente.
Esse foi o fato novo, o ponto de luz. A democracia não seria mais apenas voto na urna e liberdade de expressão, mas também carne nas mesas das famílias, proteína e letras para as crianças na idade certa, conta no banco, casa própria, emprego decente e tudo mais que se entenda por vida digna.
Esta é a necessidade permanente e inamovível do povo. Para responder a ela, há a política. Para instrumentalizá-la, o conhecimento e as ferramentas da economia. Para avançá-la, a ciência, a tecnologia e a inovação. Para ilustrá-la, a cultura. Pelo que disse que faria e pelo que entregou, Luiz Inácio Lula da Silva tornou-se incontornável.
Entretanto, a porcelana chinesa da confiança, que é a fina matéria das nações, quebrou-se. Nossa Constituição está avariada. Filho põe o dedo na cara de pai. Crentes descreem e amaldiçoam seus semelhantes. Muitos querem armas.
O ódio medra por todas as frestas. A cadela do fascismo cresce nos grupos de WhatsApp, espalhando fake news roboticamente e aos borbotões. Fanáticos sequestram as cores nacionais. O gabinete do ódio viceja dentro do próprio Palácio do Planalto. Seu chefe tenta sequestrar e subjugar as instituições de Estado, das Forças Armadas ao Supremo Tribunal Federal. A pandemia e a sinistra marcha rumo a 400 mil mortos pela Covid-19 nada dizem a Bolsonaro e ao círculo de militares. A empatia humana do presidente é zero, e a vida não vale uma “gripezinha”.
Como chegamos a isso? Por que a confiança deu lugar a sua antípoda?
A minha interpretação é a de que pagamos o preço pela ruptura institucional ocorrida em 31 de agosto de 2016. O impeachment de Dilma Rousseff foi uma fratura na Constituição brasileira, já sob pressão desmedida da flamejante Operação Lava Jato, em que o devido processo legal virou pó e a regra de exceção se impôs.
Nesse período infame deu-se a tempestade perfeita. Nas ruas pintadas de verde e amarelo, boa-fé, combate anticorrupção e ilusão de “limpar a política” respaldaram a abertura do processo de impeachment contra uma presidenta perdida no torvelinho político, mas inarredavelmente honesta.
O que poderia ter sido perfeitamente manejado como uma das tantas crises cíclicas a que países estão sujeitos, ainda mais diante da gravidade do segundo mergulho da crise de 2008 na Europa, em 2011-2012, foi utilitariamente transformado em antipetismo doentio.
Adotou-se uma nova carta-referência, denominada Ponte para o Futuro, que mal e porcamente tentou emular a carta de 2002. Ao reler esse documento, o que mais me choca é sua completa insensibilidade social, sem falar de sua ignorância acadêmica estratosférica. Não existe uma única menção à desigualdade social.
Depois dos trabalhos referenciais de Thomas Piketty (“O Capital no Século XXI”) e de Branko Milanović (“A Desigualdade no Mundo”), ousar falar em reformas desencarnadas do combate às desigualdades é comprar um bilhete para o inferno.
Por mais jucundas que fossem as boas intenções dos que redigiram aquela carta, a vida real é muito mais complexa que as ideias de cortes de gastos e celebração do mercado e do setor privado como valores absolutos, como propostas no documento.
A narrativa preguiçosa e interesseira contada por certos economistas de que o PT cometeu o pecado capital de escolher “campeões nacionais” só serviu mesmo para abrir o caminho aos ataques toscos de Bolsonaro e Guedes à famosa “caixa-preta” de uma das melhores instituições do Estado brasileiro, o BNDES. Estão até hoje, por sinal, procurando “aquela mutreta dos petistas malvados”, sem nada encontrar.
Só que, como o diabo gosta mesmo é de matéria, não de espírito, o inferno veio na forma da emenda à Constituição 95. Os gastos sociais foram congelados por 20 anos para dar garantia aos investidores de que o fiscalismo e o realismo tarifário criariam, automaticamente, as condições para que o setor privado voltasse a investir.
Sabemos bem hoje a quantas anda esse falso milagre. A taxa de investimento, rodando por volta de 15% do PIB nos últimos cinco anos, está em um dos mais baixos níveis históricos. E o desemprego, que agora atinge 14 milhões de pessoas, campeia solto.
Direitos sociais foram aniquilados, as verbas do Sistema Único de Saúde acabaram asfixiadas em mais de R$ 20 bilhões. A educação básica segue na mesma indigência de sempre.
Atingimos o paroxismo da repulsa à ação do Estado como agente indutor dos investimentos na promessa rude de Paulo Guedes de implantação de uma economia liberal, jogando na lata de lixo os 30 anos de “social-democracia” que teriam sido plantados pela Constituição de 1988. Uma aberração.
Aberração que está liquidando a Petrobras como patrimônio nacional e colocando o gás de cozinha na casa dos pobres a R$ 90 e até R$ 100. E o rico butim do Estado decadente ainda tem a Eletrobras, que pedem para privatizar logo. Pouco importa se o preço da energia subir 20% da noite para o dia em mãos privadas, eficientes para distribuir gordos dividendos nas bolsas, mas insensíveis ao bico de candeia que voltará depois de o povo ter experimentado o gostinho do Luz para Todos. Assim como voltaram o fogão a lenha e o cozimento a álcool nas periferias.
O Brasil precisa urgentemente de uma nova agenda, pela qual se empenhem honestamente todas as forças políticas e sociais democráticas. Os dados sobre a desigualdade social são bem conhecidos, embora pouco debatidos fora do âmbito acadêmico.
Este debate é insuficiente até mesmo no PT, partido ao qual sou filiado, que reagiu, ao primeiro choque da evidência, de forma imatura ao registro crítico de Marc Morgan e Thomas Piketty sobre os limites das políticas de distribuição de renda nos governos Lula e Dilma.
Eles apontaram nos dados da Receita Federal, coletados pela World Income Database, que a desigualdade social não caiu na proporção capaz de tirar o Brasil da posição de segundo país mais desigual do mundo. Pela análise de Morgan e Piketty, ganharam, sim, os mais pobres, mas também os mais ricos e os super-ricos, a famosa turma do 1%.
De fato, o Brasil precisa evoluir neste século 21 para uma distribuição de renda que, no mínimo, dobre os 30% do contingente intermediário de renda espremido entre os 60% mais pobres e os 10% mais ricos. Esta é uma discussão sobre regressividade tributária, pela qual os pobres pagam proporcionalmente mais tributos que os ricos, mas não apenas.
A renda é apenas uma das dimensões do bem-estar social, para o qual também concorrem outros fatores, como saúde, educação, serviços públicos essenciais e equilíbrio ambiental. O enfrentamento da desigualdade social, contudo, deve ser ainda maior, pois ela também tem cor e gênero.
Trabalhadores brancos ganham 74% mais do que negros e pardos, segundo o estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do IBGE. Mulheres recebem o equivalente a 58% da renda dos homens, segundo o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Ambos os dados são de 2019.
Agora, no pós-pandemia, a situação promete ficar ainda pior. Os poucos indicadores sobre desigualdade já evidenciados mostram um quadro dramático. De acordo com levantamento da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, os 20 distritos mais pobres da capital apresentam o dobro de mortes pela Covid-19 que os 20 distritos mais ricos. E, nada surpreendente, negros morrem mais que brancos.
Na redefinição de uma agenda convergente, outros dois pontos são fundamentais: a superação da estagnada produtividade do trabalho e a inserção internacional do Brasil. No primeiro caso, o dado imutável há anos da economia é que o brasileiro leva entre quatro e cinco vezes mais tempo para produzir a mesma unidade de trabalho que um trabalhador americano. A produtividade brasileira é 20% a 25% da americana.
Baixo investimento em fatores de produção e pobre qualificação da mão de obra, por má educação e carência tecnológica, deprimem a capacidade de produzir e distribuir riquezas. É o que cria o fosso entre países de renda média, como o Brasil, e países de renda alta, como os europeus, Estados Unidos e Japão.
Também neste ponto, nosso buraco é mais profundo. O primeiro auxílio emergencial beneficiou 68 milhões de brasileiros, mas revelou também a existência de mais de 46 milhões de invisíveis, pessoas que vivem na informalidade e sem registro de CPF.
O Brasil convive hoje com 20 milhões de desempregados, entre desocupados e desalentados, os que desistiram de buscar emprego. A eles se somam outros quase 40 milhões que vivem na informalidade. De novo aqui, pretos e pardos são os maiores contingentes de informais.
Há uma correlação pouco debatida na sociedade, e também no PT, entre desigualdade social, desemprego e informalidade. As resultantes dessa verdadeira tragédia humana, aguda falta de emprego decente, sobre a produtividade brasileira são epidérmicas. A desigualdade social e a baixa produtividade são males que se retroalimentam.
No segundo caso, vale retomar o debate sobre nossa inserção internacional. O Brasil, em seus melhores momentos, em 2011, rivalizou com o Reino Unido na posição de sexta maior economia do mundo. Goste-se ou não de Lula e Celso Amorim, o fato é que o país se tornou voz reconhecida no G20, impulsionou decisivamente o Brics, o Mercosul e a integração das Américas do Sul e Latina. Todavia, regredimos tanto que a China nos retirou o lugar de maior parceiro comercial da Argentina.
Ocorre, porém, que o Brasil tem porte populacional, densidade econômica e fluxo de comércio que lhe cobram dispor de uma agenda internacional, diplomática e econômica condizente com o seu peso de nação talhada para ser importante. Menos que isso é complexo de vira-latas.
Diante de tanta baixaria que vem do Planalto, muitos alimentam o desejo de que adversários furem suas bolhas e se falem. Alguns dós-de-peitos suspiram por um inviável encontro Lula-FHC. De minha parte, sempre dei muito valor à revisão crítica do senador Tasso Jereissati sobre o papel do PSDB na queda de Dilma Rousseff. Acho-o um homem honesto e decente. A mim bastaria ver o ex-presidente Lula recebê-lo no Instituto Lula ou Tasso convidá-lo para uma conversa em terreno neutro.
Se possível, tudo convergindo para uma singela nota comum: “Brasileiros, com Bolsonaro não dá. Ele é a morte dos homens e das mulheres, da inteligência e da democracia. O Congresso Nacional deve removê-lo. Ontem”.
*Jornalista e consultor político, é assessor da bancada do PT na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo). Foi um dos redatores da Carta ao Povo Brasileiro, proposta por Lula em 2002
Cacá Diegues: A imaginação de Bolsonaro não tem limites
Se a realidade o incomoda, ele encontra sempre um jeito de passar por cima dela
Ninguém me contou, eu mesmo vi Jair Bolsonaro declarar na televisão que tinha informação segura de que a eleição americana tinha sido fraudada. Como o vi, meses antes, dizer que, em 2018, tinha sido roubado, pois havia vencido a eleição para presidente no primeiro turno. Nos dois casos, como sempre faz, nunca apresentou prova alguma.<SW>
A imaginação do homem não tem limites. Se a realidade o incomoda, ele encontra sempre um jeito de passar por cima dela, contando uma história lá da cabeça dele. A gente até acha graça do que considera desinformação. Mas, de repente, paramos pra pensar e descobrimos uma certa coerência nisso tudo, uma teia que ele tece aos poucos com seus parceiros. Como os galos da manhã de João Cabral, eles nos anunciam um outro dia que nasce radiante. Um dia de radiante horror.
Sua eleição deu-se por infeliz coincidência entre um candidato que representava políticos de quem ninguém queria mais saber e outro que ninguém conhecia, mas se parecia com aquele simpático conversa mole de botequim, sempre dizendo besteiras que nos fazem rir amorosamente. Com ele eleito, descobrimos que era tudo uma peça que a democracia nos pregava. Alguém aí tem hoje alguma dúvida de que, quando ele perder a eleição de 2022, vai declarar que houve fraude e armar um fuzuê para não deixar o poder? O homem só pensa nisso.
Na política e na vida, a mentira é arma poderosa, sobretudo na mão de um candidato que tem poder porque está no poder. O ministro do governo no STF afirmou que esvaziar os templos por causa da Covid é impedir a liberdade religiosa, o ir e vir garantido pela Constituição. Ele propõe, em contrapartida, uma restrição no número de fiéis em cada espaço de oração. E os que, nesse caso, ficam fora desse espaço nos templos não estão sendo impedidos de ir e vir, de exercer sua liberdade religiosa? Esse é um excelente modo de admitir o óbvio inconveniente (a pandemia), propondo uma falsa solução que excita os interessados contra quem age com correção.
Quero ver nossos finos conservadores enfrentando o demônio armado. Já, já ele acaba de formar sua milícia com as armas que está fazendo entrar no país legalmente, a preço de banana. Como já pode ter empolgado os PMs iludidos pela ausência de repressão no levante do Ceará. Ou os negacionistas sinceros, pelas mentiras inventadas pela turma da Bia Kicis sobre a morte do pobre soldado doente da Bahia. E, sobretudo, pelo empenho junto às Forças Armadas, que parece não estar dando resultado, mas que ninguém sabe dizer direito a quantas anda.
Depois da longa ditadura e de tantos anos de uma democracia que julgávamos sólida, o novo regime começou a pifar a partir de erros graves cometidos por Dilma Rousseff. Como não sabemos debater sem eliminar o adversário, os erros foram agravados pelo impeachment dela, uma violência absurda e desnecessária. Um gesto de impotência disfarçada na aparente onipotência de uma oposição que não sabia o que fazer. Nem o que estava fazendo, o que ficava claro na sucessão de tolices ditas antes do voto, para justificar o que ninguém tinha certeza.
Hoje, vivemos nesse inferno de poderes que disputam a culpa da morte de quase 400 mil brasileiros, em vez de tentar impedir que eles morram. Um inferno em que, num plano fechado, um vereador mata seu enteado de 4 anos como se estivesse numa pelada de futebol e uma deputada manda seus 500 filhos acabarem com seu marido. Como diz o assassino do menino Henry, o importante “é virar a pagina”. Mas, no curso desse lodo geral, avançamos sem saber o que nos espera na página seguinte.
Dorrit Harazim: Terra em transe
O capitão Jair e o Dr. Jairinho têm algo em comum: gostariam de virar a página. O primeiro é presidente do Brasil. Como a responsabilidade pelo caos pandêmico não sai de seu colo, ele explora tentativas cada vez mais bizarras de virar a página, de varrer a realidade fúnebre do país nem que seja aprofundando ao extremo o precipício. A mortandade que o capitão semeia é coletiva.
Já o Dr. Jairinho prefere semear terror individual. Por espancamento. Foi preso com a mulher esta semana pelo assassinato do enteado Henry, de 4 anos. Vereador carioca no quinto mandato e habituado a trafegar nas paralelas, Jairo Souza Santos Junior procurou varrer a realidade de seu crime ainda no hospital — pediu, ao arrepio da lei, que o corpo do menino não fosse encaminhado para o Instituto Médico Legal. Pretendia encaminhá-lo a um legista particular para, em suas próprias palavras, “poder virar a página logo”. Felizmente, não foi atendido. Mais tarde, segundo relato do devastado pai biológico da criança, o vereador teria se dirigido a ele em termos ainda mais crus: “Mermão, vira essa página, vida que segue. Você faz outro filho”.
Frieza insaciável existe.
Jair e Jairinho têm em comum uma desumanidade doentia. Ela parece não ter fim neste Brasil em transe, resignado a chorar. É natural chorar pelo menino Henry mesmo sem tê-lo conhecido, pois os elementos conhecidos do caso geram empatia universal: o horror e medo de uma criança brutalizada até desfalecer, a animalidade de um padrasto espancador, a frieza criminosa da mãe. Como não querer escancarar os braços para proteger o miudinho indefeso?
Mais complexa é a subtração diária de vidas brasileiras levadas pela Covid-19, esse matador silencioso, invisível, não humano. Mesmo quando tentamos individualizar alguma morte anônima igualmente cruel, o pranto não vem fácil em meio aos outros 350 mil que já se foram. Tome-se o caso da menina de 4 anos, mesma idade de Henry, cujo corpo foi encontrado no Hospital Materno Infantil de Brasília por vigilantes da instituição. Segundo o portal “Metrópoles”, o corpo sem vida estava há mais de 24 horas numa salinha sem ventilação na entrada da emergência pediátrica, à vista de pacientes que por ali passassem. Só que o pavor da menina com suspeita de Covid-19, sua solidão e asfixia antes de morrer são mais difíceis de imaginar. Permaneceu anônima, exceto para quem a perdeu.
Tinha razão o dramaturgo e romancista Max Frisch quando escreveu que, mais cedo ou mais tarde, todo mundo inventa uma história que acredita ser sua vida. Nesse sentido — e apenas nesse sentido —, Jair Bolsonaro não é diferente do resto do mundo. Para manter sua vida ficcional vedada, ele precisaria “virar a página” de sua responsabilidade na tragédia brasileira. Não vai conseguir. Basta responder a uma pergunta de simplicidade cristalina que aponta a responsabilidade única do presidente da República no abandono do país: qual o único brasileiro que poderia ter mudado o curso da voracidade do vírus? A resposta independe das complexas deliberações do Judiciário e das tortuosidades do Legislativo. Ela se fundamenta no senso comum.
Desde o início da pandemia, a parte dos brasileiros em condição de optar pelo iluminismo entendeu a seriedade do perigo, adotou medidas protetivas individuais, assumiu sua responsabilidade coletiva. Sempre se manteve decidida a não compactuar com o obscurantismo. Para que o combate à Covid-19 tivesse alguma chance de êxito ou racionalidade, teria bastado convencer o outro Brasil. Esse outro Brasil em estado de mitomania, aguerrido, porém fiel, teria seguido com disciplina religiosa qualquer ordem de distanciamento, uso de máscara ou confinamento emanada da boca do seu líder. Tamanho poder e privilégio somente o presidente tinha, com tudo à disposição — cadeia nacional de rádio e TV diária, se quisesse, redes sociais, confiança cega de seguidores. Nenhum ministro da Saúde, nenhuma sumidade científica, nenhum acadêmico, celebridade ou vencedor do “BBB” teria, sozinho (nem em conjunto), eficácia semelhante. O presidente da República preferiu incentivar o descarrilamento de vidas.
Muito acima das lambanças generalizadas deste Brasil esgarçado, a responsabilidade de Bolsonaro é única. Apenas ele, sem precisar de mais ninguém, dado que o governo o seguiria, teve a chance de evitar o naufrágio. Nem sequer tentou. Optou pela morte.
Janio de Freitas: Há mais do que crimes de responsabilidade à mercê de uma CPI, há crimes contra pessoas
Tal coleção de crimes talvez encontre comparação nos abutres que agiram em porões da ditadura
Os 61 mortos por asfixia à falta de oxigênio por si sós justificam a CPI que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, precisou ser obrigado pelo Supremo a instalar. Esse horror sofrido em hospitais do Amazonas está envolto por quantidade tão torrencial de horrores que uma CPI é insuficiente para dar-lhes as devidas respostas.
Apesar de tantos fatos e dados à sua disposição, com fartura de comprovações já prontas e públicas, a mera possibilidade da CPI nos força a encarar outra tragédia: no Brasil de 4.000 mortos de Covid por dia, não se conta com seriedade nem para evitar-nos a dúvida de que a CPI busque, de fato, as responsabilidades pelo morticínio, as quais já conhecemos na prática.
A reação imediata dos contrariados é a esperável, mas também traz sua incógnita. O choque iniciado com o STF soma-se ao jogo duro do governo, sobre os parlamentares, para dominar tudo que se refira à CPI. Disso decorre um potencial alto de agravamento e de incidentes sob a nova, e ainda mal conhecida, disposição de forças derivada das alterações em ministérios e em cargos e correntes militares.
As juras de respeito à Constituição são unânimes nos que entram e nos que saem. Inúteis já porque nenhum diria o contrário. Ainda porque o passado atesta essa inutilidade. E, no caso da Defesa, não se pode esquecer que o general Braga Netto estava no centro do governo, onde aceitou ou contribuiu para os desmandos do desvario dito presidencial. Logo que nomeado, adotou uma prevenção significativa: excluiu da nota de celebração do golpe a caracterização das Forças Armadas como instituição do Estado. Não do governo.
O comandante da Força Aérea, brigadeiro Baptista Jr., já está identificado como ativo bolsonarista nas redes sociais. Ministro da Justiça, o delegado Anderson Torres e seu escolhido para diretor da PF têm relevância à parte. O primeiro vê em Bolsonaro nada menos do que um enviado de Deus: “Quis Deus, presidente Bolsonaro, que esta condução em momento tão crítico estivesse em vossas mãos”. Imagine-se a obediência devida a um enviado.
O outro, delegado Paulo Maiurino, tem anos de atividade em política capazes, se desejar, de enriquecer a carreira de intervenções políticas da PF. Iniciada no governo Fernando Henrique pelo delegado Argílio Monteiro, depois recompensado com a candidatura (derrotada) a deputado federal pelo PSDB, foi o tempo do dinheiro “plantado” no Maranhão, dos caixotes de dólares “mandados de Cuba para Lula”, e outras fraudes, sempre a serviço das candidaturas de José Serra. Na Lava Jato a PF enriqueceu muito a sua tradição.
Com essas e mais peças, como a AGU entregue ao pastor extremado André Mendonça, está claro tratar-se de parte de um dispositivo político e armado. A pandemia e a mortandade não são preocupações. Nem dentro da própria Presidência, onde se aproximam de 500 os servidores colhidos pela Covid, com taxa de contaminação 13% maior que a nacional. E lá, para ilustrar a possível CPI, a “ordem do presidente” continua a ser “contra lockdown” (aspas para o ministro Marcelo Queiroga), contra máscaras e vacina, e pela cloroquina.
Antes mesmo de determinada pelo ministro Barroso, a possibilidade da CPI iniciou a discussão de táticas para dela poupar Bolsonaro. Será resguardar o agente principal da calamidade. O vírus leva à morte porque esse é papel que a natureza lhe deu. Bolsonaro fez e faz o mesmo por deslealdade ao papel que lhe foi dado e aos que o deram. E, de quebra, ao restante do país.
Há mais do que crimes de responsabilidade, numerosos, à mercê de uma CPI.
Há crimes contra pessoas. Há crimes contra a humanidade. Tal coleção de crimes talvez encontre comparação nos abutres que agiram em porões da ditadura. Ou talvez só se compare aos primórdios da ocupação territorial, com a escravização e as mortandades em massa. O choque não descansa: são 4.000 mortos por dia.
É razoável suspeitar que não haja, nem sequer em número próprio de uma CPI, gente com caráter para enfrentar uma criminalidade assim e ao que a ampare, como o ódio e a facilitação de armas letais.
Bruno Boghossian: Principal alvo da CPI da Covid deve ser o negacionista-chefe
Comissão pode investigar atos com impressão digital de Bolsonaro na pandemia
No pedido de criação da CPI da Covid, senadores anunciaram a apuração de "ações e omissões do governo federal". O objeto formal da investigação não menciona nomes específicos, mas nem precisava. Parlamentares dizem que um dos propósitos centrais da comissão é expor os atos praticados diretamente por Jair Bolsonaro na pandemia.
O presidente é o negacionista-chefe da equipe que administra o morticínio, mas sua imagem permanece intacta para uma parcela da população. Ainda que a reprovação a seu trabalho tenha crescido, o esforço esdrúxulo de Bolsonaro para se desviar de responsabilidades foi suficiente para ajudá-lo a preservar o apoio de cerca de 30% de brasileiros.
A intenção de alguns dos senadores que devem participar da CPI é furar essa blindagem. Eles pretendem usar a comissão para identificar ações que estejam marcadas pela impressão digital do presidente e mostrar o impacto que elas tiveram sobre o mau desempenho do país na contenção do vírus e na vacinação.
Essa missão surgiu porque Bolsonaro é um profissional na arte de negar o que diz e se esquivar de suas obrigações. O presidente mobilizou as engrenagens de propaganda do governo para convencer a população de que nunca foi contra a vacina, embora tenha sabotado os esforços nessa direção. Além disso, inventou a tese falsa de que foi impedido pelo Supremo de fazer seu trabalho.
Na CPI, senadores querem exibir provas de que o próprio Bolsonaro trabalhou contra a compra de milhões de doses de imunizantes, desestimulou o uso de máscaras, fez uma campanha agressiva contra medidas de distanciamento e usou a máquina pública para produzir e recomendar a aplicação de medicamentos ineficazes contra a Covid-19.
O presidente reagiu mal à decisão de instalar a CPI. O senador Renan Calheiros (MDB) afirma que o presidente só deve se preocupar se tiver cometido erros: "Se Bolsonaro fez tudo certo, como diz, ele não precisa se sobressaltar. A CPI vai concluir ou não pela responsabilidade dele".
Vinicius Torres Freire: As ideais da entidade ‘os empresários’
Este jornalista ouviu seis empresários de negócios que estão entre os cem maiores do país
“Os empresários” e “os militares” reapareceram na conversa política como entidades ou caricaturas de um modo que não se ouvia fazia décadas (mas não “os trabalhadores”). A gente sabe pouco dessas abstrações genéricas. Para aumentar um pouco a confusão, este jornalista ouviu seis empresários de negócios que estão entre os cem maiores do país.
A amostra é enviesada. São todos do centro-sul, nenhum do relevante agronegócio. É gente que lê, parece a velha elite tucana e participa do debate público, mas pede reserva em conversas que envolvam Jair Bolsonaro. A seguir, depoimentos sobre a “articulação” de empresários para 2022.
“Tem um grande desgosto com essa forma totalitária de agir. O Bolsonaro não tem adversários, tem inimigos.”
“Os empresários têm receio do poder de qualquer governo [por isso evitariam a exposição política]. O principal instrumento de retaliação é a Receita, não importa se está tudo correto. E esse governo tem também as redes sociais para te difamar e ameaçar.”
“No meu círculo, a coisa chegou ao seguinte ponto: para alguns, ruim por ruim [Bolsonaro ou Lula], melhor o Lula.”
“Quem escolhe candidato é o sistema político. Mesmo quando empresa dava muito dinheiro para campanha, isso não tinha tanta relevância. Se tivesse, os tucanos não tinham perdido tanta eleição. Agora, sem dinheiro e com rede social, a influência é ainda menor.”
“Empresário não articula nada, isso não existe faz tempo. O Brasil é heterogêneo e não tem organização empresarial, como nos EUA. Nem lá eles têm poder de ungir candidato.”
“Tem uns que se engancham num candidato, todo o mundo sabe quem são. Não é movimento organizado. Acho que existe mais influência em ideias do que militância política. Mas nem apoio a ideias liberais tinha até o desastre da Dilma.”
“Empresa tenta influenciar quem se lançou, quem ganhou? Tenta. Mas isso é desorganizado. Faz lobby no Congresso.
Faz programa de governo? Existem só dois ou três diferentes, fora detalhes. Mas isso [programas] já está dado, no debate.”
“Vocês vêm perguntar [das preferências], mas é óbvio. Aí aparece na mídia, empresários isso, empresários aquilo. Mas o que isso muda [na eleição]? É óbvio que podem ter influência, de outro jeito. Dependendo de quem vai ganhar, alguém segura o investimento porque teme o futuro, dólar sobe, o dinheiro sai [do país]. Mas isso não é política. É cálculo racional.”
“O empresário responsável vai preferir alguém que preserve a estabilidade econômica, que dê um jeito no ambiente de negócios. Tem gente que olha o que pode ganhar pessoalmente com o governo, mas não são tantos. Nesse jantar do Bolsonaro tinha bolsonarista ou quem sempre está com qualquer governo, talvez até com o PSOL.”
“O empresariado votou em Bolsonaro? No final, votou mesmo contra o PT. A maioria queria o Alckmin. Mas não tem voto qualificado, o eleitorado como um todo faz a escolha. Entre as opções que sobraram, isso que você chama de elite fez a opção que parecia pragmática. Foi um erro, mas foi o que foi.”
“Há uma insatisfação geral com a incompetência generalizada, fora um ou outro, Agricultura, Infraestrutura. Decepção absoluta com o Guedes. Não o conhecia até a eleição. Quando vi aquele discurso megalomaníaco e irrealista dele, lá na posse, senti que não ia dar certo.”
“Lula é muito inteligente. Mas fala muita bobagem sobre economia e tenta agradar a qualquer plateia, empresário ou esquerda. Então, a gente não sabe o que ele vai fazer. Incerteza é ruim para o país. E o Lula envelheceu, teve a prisão, a doença. O tempo passa, e a gente não percebe que perdeu certas capacidades.”
“O que tem mais é conversa informal, para tirar a temperatura, participação em vários grupos de WhatsApp. A gente convida político para ouvir [não cita nenhum de esquerda], agora até general da reserva.”
“A maioria nos grupos de [conversa] de que faço parte pensa uma agenda institucional, também de preocupação com reforma tributária pelo lado social, com educação, com renda mínima, com o conflito político radicalizado. Mas ter uma economia de mercado funcional não vai impedir o Brasil de ser mais justo. Ao contrário.”
“Tem conversa, mas não tem pressão política nos partidos para escolher esse ou aquele. Em quase 40 anos de empresa, nunca vi. Os políticos vivem em outro mundo. É ilusão de certos empresários e de intelectual de esquerda ver influência por aí.”
“Acho que um grupo organizado e público de apoio a candidatura dificilmente vai ter. Se tiver, vira alvo. E vai parecer que o ‘capital está querendo mandar’ no Brasil.”