covid-19
Hélio Schwartsman: Vale gravar o presidente?
Penso que Kajuru podia, sim, ter gravado Bolsonaro
"A que ponto chegamos no Brasil aqui. [Fui] Gravado". Foi assim que o presidente da República, Jair Bolsonaro, expressou contrariedade por ter um diálogo seu com o senador Jorge Kajuru divulgado para o público. A indignação se justifica?
Do ponto de vista legal, a questão é complexa. De modo geral, admite-se que uma pessoa grave conversação de que seja parte, especialmente se o objetivo for defender-se de alguma coisa. Mas vale lembrar que a lei só vai até certo ponto. Ela pode regular enquadramentos penais e a licitude de provas, mas não os efeitos políticos de uma gravação com conteúdos picantes.
Basta lembrar que tanto o diálogo entre Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva em que a então presidente dizia estar enviando o Bessias como as conversas entre o então juiz Sergio Moro e procuradores da Lava Jato constituem provas ilícitas, mas isso não as impediu de desencadear terremotos políticos que também tiveram consequências jurídicas.
O melhor modo de analisar a questão, portanto, não é o legal, mas o ético. É correto gravar conversa própria sem avisar os outros participantes de que tudo está sendo registrado? Fazê-lo é por certo deselegante. Pode ser também uma violação ética, mas isso depende do contexto.
Se você grava sem avisar uma conversa íntima com seu melhor amigo e a divulga, fracassou nos deveres da amizade. Mas, se faz o registro de uma autoridade pública tentando extorqui-lo e a denuncia, cumpriu uma obrigação cívica. A ética tem menos a ver com o ato de gravar do que com as circunstâncias e personagens envolvidas.
Kajuru podia gravar Bolsonaro? Penso que sim, e não apenas porque a palavra do presidente não pode ser levada muito a sério —o que torna toda gravação um ato de defesa. Altos cargos públicos vêm com alguns ônus. Um deles é o de não dizer nada que cause uma crise política. Quem viola esse princípio o faz por conta e risco.
Bruno Boghossian: Com manobra no Senado, crescem chances de CPI não dar em nada
Mudança abre caminho distrações que podem acabar poupando Bolsonaro na pandemia
A missão número um de Jair Bolsonaro era "mudar o objetivo" da CPI da Covid. Com a ajuda do Congresso, o presidente conseguiu. O Senado ampliou o foco da investigação e incluiu o dinheiro federal repassado aos estados. De quebra, parlamentares começaram a criar empecilhos para a realização das sessões. Na prática, cresceram as chances de a comissão não dar em nada.
Bolsonaristas já trabalham para que a CPI só exista no papel. O líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB), quer que o colegiado só se reúna depois que a vacinação avançar. Ele espera ter o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM), que era contra o funcionamento da comissão agora.
Se não for possível segurar o andamento dos trabalhos, a base governista tem outras saídas. A decisão de transformar a CPI numa investigação abrangente, como pediu Bolsonaro, abre caminho para manobras diversionistas que podem acabar poupando o presidente.
Com a ampliação de escopo, a comissão passa a incluir as ações de estados e municípios “no trato com a coisa pública” durante a pandemia. Isso significa que a CPI pode investigar praticamente qualquer despesa com verba federal em qualquer lugar do Brasil. É o suficiente para distrair senadores que não estiverem interessados em investigar Bolsonaro.
Os integrantes da CPI também ganham poder para mirar adversários políticos e desafetos. Aliados de Bolsonaro estão de olho em rivais do presidente nos estados, enquanto outros senadores, interessados em concorrer a governos estaduais em 2022, querem aproveitar para desgastar concorrentes locais. O Planalto deve se beneficiar da confusão.
A blindagem de Bolsonaro vai depender do comportamento dos 11 titulares da CPI. O governo não conseguiu escalar uma tropa de choque fiel, mas a comissão terá uma minoria de oposicionistas convictos e uma maioria de senadores do centrão ou de partidos sem alinhamento político claro. O Planalto tem muito a oferecer para esse grupo.
Ricardo Noblat: CPI da Covid pode virar a CPI do fim do mundo de Bolsonaro
Se não terminar em pizza, é claro
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sabe-se como começa, mas não como termina. A da Covid, sequer se sabe como começará. Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, leu o pedido de abertura da CPI como mandou na semana passada o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal.
CPI é direito assegurado pela Constituição à minoria parlamentar. Mas no que depender da tropa aliada ao governo Bolsonaro dentro do Senado, ela não sairá do papel. Se sair, não será instalada até que passe a pandemia. Se for instalada antes, simplesmente não funcionará. Se funcionar, será sabotada até o fim.
Em sessão nesta tarde, o Supremo deve avalizar a decisão de Barroso que tanto irritou Bolsonaro, deixando-o em pânico. O principal objetivo da CPI é investigar erros cometidos pelo governo no combate à Covid. Secundariamente, poderá investigar erros de governadores e prefeitos no uso de verbas federais.
Faltam vacinas no país. Faltam remédios para a intubação de vítimas da doença em estado grave. Na maioria dos municípios, faltam UTIs, e os doentes são transferidos para municípios que as tenham. Acontece que nesses lugares a rede de UTIs está perto do colapso. E o número de mortes só faz crescer.
Salvo os ideológicos, nenhum parlamentar, deputado ou senador pouco importa, se presta a defender o governo de graça numa CPI, qualquer governo. Bolsonaro já é refém do Centrão, do qual depende para aprovar projetos do governo no Congresso e barrar pedidos de impeachment que possam abreviar seu mandato.
Caberá ao MDB a relatoria da CPI da Covid. É o cargo mais importante. O senador Renan Calheiros (MDB-AL), aliado de Lula e do PT, deve ser o relator. A oposição ao governo e os partidos que se dizem independentes indicarão 7 dos 11 titulares da CPI. É um mau sinal para Bolsonaro. Certeza de encrenca feia.
O MDB tem um pé dentro do governo, mas quer pôr os dois. Se conseguir, não significa que apoiará a reeleição de Bolsonaro no ano que vem, longe disso. A tendência do partido é apoiar um candidato do centro (não confunda com Centrão), mas se ele não tiver chances de vencer, poderá se alinhar a Lula.
Nada pode haver de pior para um governo do que a abertura de uma CPI justamente no momento em que ele está mais fraco, e por ora, sem perspectivas de se recuperar. Se a CPI decolar e investigar a fundo o que deve, haverá chuvas e trovoadas em Brasília com um final imprevisível. Certas coisas serão inevitáveis.
Por exemplo: convocar para depor o atual ministro da Saúde e os três que o antecederam – entre eles, o general da ativa Eduardo Pazuello que saiu de lá insinuando que políticos do Centrão tentaram encher os bolsos nas negociações para a compra de vacinas. Um general sendo interrogado por senadores, já pensou?
Não deverá ser o único. Quanto foi gasto pelo Exército para produzir cloroquina receitada por Bolsonaro para tratamento precoce do vírus? Tratamento precoce para a doença jamais existiu. Quem deu ordem ao Exército para tal? O general Fernando Azevedo e Silva, ex-ministro da Defesa, talvez saiba.
Por que o sucessor de Luiz Henrique Mandetta, o médico Nelson Tech, foi ministro da Saúde por menos de 30 dias? O que o levou a pedir demissão? Não pôde nem montar sua equipe. Por que não pôde? E a história da vacina da Pfizer oferecida ao governo em junho do ano passado e recusada até o final de dezembro?
Se não terminar em pizza, a CPI da Covid tem tudo para no futuro tornar-se conhecida como a CPI do fim do mundo de Bolsonaro e de muita gente.
Elio Gaspari: Bolsonaro quer pizza de limão
Em geral, as CPIs resultam em fábricas de vento e a da pandemia promete vendavais
Bolsonaro pediu ao senador Jorge Kajuru que o ajude a fazer “do limão uma limonada” na Comissão Parlamentar de Inquérito da pandemia. O que ele quer mesmo é uma pizza. Noves fora a ameaça de “porrada”, a fala do capitão é uma enciclopédia bolsonarista:
Mania de perseguição: “Se não mudar o objetivo da CPI, ela vai vir só pra cima de mim”.
Havendo um problema cria-se outro: “É CPI ampla, investigar ministro do Supremo”.
Num momento, Bolsonaro soltou uma frase intrigante: “Se não mudar a amplitude, a CPI vai simplesmente ouvir o Pazuello”.
Qual é o problema de se tomar o depoimento do general que ele colocou no Ministério da Saúde? De uma hora para outra “ouvir o Pazuello” virou uma fonte de ansiedade.
Quem viu o empreiteiro Marcelo Odebrecht sendo tratado como um príncipe ao depor na CPI da Petrobras em 2015 sabe quanto há de teatro nas comissões parlamentares de inquérito que buscam fatos y otras cositas más. Odebrecht estava preso, seus malfeitos eram conhecidos e, ainda assim, informou que “não respeito delator”. Meses depois estava colaborando com a Justiça.
Em geral, as CPIs resultam em fábricas de vento e a da pandemia promete vendavais. O comportamento de Bolsonaro é público e algumas de suas atitudes já foram narradas pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta em livro. Nesse aspecto, além do depoimento desse ex-ministro, será informativo o de seu sucessor, Nelson Teich —ele poderá revelar por que se foi embora em menos de um mês.
O grande quadro está escancarado: e é um retrato de corpo inteiro de Bolsonaro. Ele chamou a Covid de “gripezinha” e combate o isolamento por uma mistura de ignorância com oportunismo que estava no seu código político já ao tempo em que era vereador do Rio, rachando apoios e patrimônios.
Asmodeu virá nos detalhes, todos relacionados com a gestão do Ministério da Saúde. Mandetta já contou que semanas depois de sua posse o Planalto pediu a cabeça de quatro colaboradores. Seria o jogo jogado, mas “quem articulou as exonerações e impôs os novos nomes mirava o controle de mais de oitenta por cento do orçamento do Ministério da Saúde.” Quem?
O general Eduardo Pazuello assumiu o ministério com seu pelotão de militares e deu no que deu. Na sua despedida, insinuou que tem algo a revelar. Contou que “a liderança política que nós temos hoje que nos mandou uma relação para a gente atender e nós não atendemos”. Ele acrescentou: “A operação de grana com fins políticos acontece aqui”. Novamente, quem?
Essa fala de Pazuello teria caído mal no Planalto. Por quê?
O general chegou a falar de um “grupo dos oito”, formado por colaboradores que levou para o ministério e passou a orquestrar sua fritura. Quem?
A certa altura, tentaram “ empurrar uma pseudonota técnica ” defendendo um medicamento. Cadê a nota? Que medicamento era esse?
Pazuello disse a congressistas que não deveriam falar mais em isolamento, foi ao Amazonas oferecer cloroquina quando faltava oxigênio e sua equipe mandou as vacinas de Manaus para Macapá. Isso mostrou que seus conhecimentos de logística, aplicados no Dia D, em vez de levar os Aliados a Paris, levariam os alemães a Londres.
Ele é um asterisco no manifesto bolsonarista mas, como Mandetta e Teich, tem o que contar.
Rosângela Bittar: O processo da pandemia
O culpado por esta crise política e institucional tem nome e sobrenome: Rodrigo Pacheco
O essencial é que a pandemia seja investigada. Que os erros de gestão sejam expostos, por mais que diluídos nas tentativas de tumultuar o ambiente. Impossível escapar de acusações. As feitas ao presidente Jair Bolsonaro, no fundo, se resumem a apenas uma: a negação. O presidente contestou a existência da covid-19 e as mais elementares formas de combatê-la, como o isolamento e as vacinas. Quando não foi omisso, foi equivocado.
Já o presidente do Senado, que teve à mão uma forma eficaz de intervir e mudar os rumos da catástrofe, imaginou que poderia aplicar um sofisma parlamentar. Como dependia da sua assinatura a instalação da CPI, tentou postergá-la. Exercitou o golpe de Pilatos e lavou as mãos. Um passo em falso nas cenas iniciais da sua liderança de um dos poderes da República.
Obrigado a cumprir o dever por decisão judicial, acabou por perder o controle da situação.
A experiência das CPIs mostra que, mais do que as investigações, as denúncias ganham dimensões de provas.
Por isso, haja o que houver, e mesmo que Bolsonaro tenha conseguido truncar a CPI, o culpado por esta crise política e institucional tem nome, sobrenome e endereço: o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado. Ele vislumbrou dominar o processo com silêncios e retardamentos.
Definido por seu público como um político tático e tendo surgido no Senado como uma novidade bem-vinda ao jogo parlamentar, parecia uma espécie de ressurreição dos políticos mineiros que fizeram história. É curto o caminho percorrido, mas Rodrigo Pacheco, até agora, está frustrando estas expectativas.
Os argumentos que mobilizou para não instalar a CPI são superficiais e às vezes parecem sobrenaturais, porque tomam distância da realidade.
Estreante, o senador Pacheco desprezou mais de 30 assinaturas de senadores de diferentes partidos e ideologias. Apegou-se ao argumento, depois capturado pelo governo, que a CPI não podia funcionar por meio virtual. Hoje, no planeta, da assembleia de condomínio ao programa de auditório, sem falar no plenário dos tribunais, as sessões realizam-se remotamente.
Outro dos problemas mencionados seria a impossibilidade de dar segurança às testemunhas. Por quê? O presidente e o relator podem acompanhar a testemunha numa reunião, enquanto os inquiridores trabalham de outras latitudes. Surgiu ainda a alegação estapafúrdia, logo incorporada por representantes do investigado, de que a CPI da Pandemia, se realizada durante a pandemia, seria um ato político e atrapalharia o enfrentamento da doença. E para completar recorreu ao lugar-comum: a CPI seria um “ponto fora da curva”. Qual é a curva?
Enquanto fugia de suas atribuições constitucionais, o senador Pacheco não se recusava a tentar desempenhar competências do Executivo, buscando formas de comprar vacinas e toda sorte de providências que não tinha condições legais de assinar. Perda de tempo. Até aceitou liderar um comitê decorativo, criado por Bolsonaro para envolver suas responsabilidades numa cortina de fumaça.
O fato de o destemido Jair Bolsonaro estar com medo de ser investigado é até um bom sinal. Poderia significar que tem consciência dos atos perversos que praticou na gestão da pandemia. Já o presidente do Senado poderia ter evitado a crise e baixado a temperatura de mil formas. Quem sabe, se tivesse instalado a CPI quando foi proposta, por exemplo, não saberíamos hoje as verdadeiras razões das quatro mudanças de ministros da Saúde neste governo, em menos de um ano.
Ao submeter-se ao capricho do presidente, o senador Pacheco talvez não tenha percebido que a grife da presidência do Senado só é desfrutável quando se está no exercício do cargo. Quem se lembra hoje do senador Davi Alcolumbre?
Vera Magalhães: Ilhados com Bolsonaro
E aí, amigo, onde serão suas próximas férias? A depender do andar da carruagem global do pós-pandemia, por aqui mesmo. Estamos condenados a ficar ilhados com Jair Bolsonaro e seu séquito de negacionistas, ressentidos e cafonas, já que, cada vez mais, seremos proscritos de um mundo que quer superar uma pandemia na qual resolvemos chafurdar indefinidamente.
Você aí que botou fé na cloroquina, fez uma festinha “só” para 50 pessoas no réveillon, foi no grupo de WhatsApp da sala do filho divulgar abaixo-assinado pelo impeachment do governador que decretou esse ab-sur-do de manter escolas fechadas enquanto a média móvel chegava a 3 mil mortos por dia, onde vai fazer suas “compritchas” quando todo este pesadelo passar?
Melhor já ir pensando num destino por aqui mesmo, uma vez que que Paris e suas lojas de alta costura não são uma opção viável no momento para a “cepa” de brasileiros, esses que acham por bem contrariar o bom senso, a razoabilidade, os conceitos mínimos de solidariedade e empatia durante uma crise sanitária — e ainda dão algo como 24% de menções de “ótimo ou bom” ao pior presidente da face da Terra plana.
A decisão do governo da França de proibir voos do Brasil é um indicativo concreto, que atinge justamente a elite mais egoísta, aquela que está louca para que as lojas Havan vacinem logo seus funcionários e para que a vida “volte ao normal”, porque mostra a ela um espelho duro de encarar: somos vistos fora daqui como a imagem e semelhança do “Mito” que alguns ainda insistem em cultuar, alheios às evidências abundantes de desgoverno absoluto em todas as áreas da vida nacional.
Mas nossa classe mais abastada segue anestesiada e fazendo seus planos cada vez mais excludentes e alheios à realidade que atinge o país. Começam a abundar relatos de quem vai tirar férias para fazer uma conexão Cancún-Miami (sim, porque os Estados Unidos também não estão dando mole para deixar brasileiro entrar lá sem uma escala prévia que funcione como quarentena).
Aqueles que chamam os prefeitos de ditadores por não ter academia aberta acham que tudo bem ficar de 10 a 14 dias trancados em quartos de hotéis em países que, vejam só!, adotam distanciamento social, só para ter acesso a imunizantes que o governante para o qual passam pano se negou a comprar para o conjunto da população. O que é restrição à liberdade individual em casa vira chique e civilizado nos cada vez mais escassos lugares do mundo que ainda aceitam passaporte brasuca.
Involuímos. Em tudo. E o resultado é que chegaremos muito depois do resto do planeta ao mundo pós-covid. Na economia, na educação, nos indicadores sociais (que, ademais, demoraremos a conhecer, porque Bolsonaro conseguiu a façanha de demolir o Censo Demográfico!), na recuperação dos sequelados pelo vírus, no estabelecimento dos protocolos que terão de ser seguidos daqui para a frente diante da evidência de que outras pandemias virão cedo ou tarde, no compartilhamento de informações científicas oriundas de um esforço histórico por vacinas e medicamentos, de que fomos apenas espectadores letárgicos.
Estamos fadados a trocar essas discussões do nosso tempo, as que definirão os rumos do trabalho, das relações afetivas, das artes, do turismo, do comércio global num mundo paralisado pelo vírus por outras só nossas, como as jabuticabas: se posso comprar 2 ou 6 armas, se o Senado pode fazer uma CPI para investigar estados ou municípios, se devemos usar máscaras (que ano é hoje?), se viraremos jacarés depois de tomar vacina, se teremos voto impresso em 2022. Estamos na Idade da Pedra do mundo pós-covid, trancados em casa e condenados a um convívio forçado com o vírus e com Bolsonaro, sem que saibamos qual deles é mais letal para o futuro do Brasil, nem sequer que futuro será esse.
Ana Carla Abrão: Brasil tem tanta vida que faz valer a pena buscar uma saída
Com a pandemia e a assimetria dos seus impactos por renda, gênero e raça, não haverá o que se comemorar nos próximos anos
O Brasil é Severino. Severino de Maria, do finado Zacarias. A obra-prima de João Cabral de Melo Neto nunca foi tão nossa, tão real, tão ampla como em 2021. Como o retirante de Morte e Vida Severina, que vai da Serra da Costela ao Recife no extraordinário poema regionalista publicado em 1955, hoje vivemos a vida que não se vive, mas que se defende.
A realidade se estampa nos números da nossa tragédia social, a começar pela triste marca de mais de 350 mil mortos por covid-19. Na mesma esteira, seguem-se outros tristes números. O PIB per capita (que funciona como um indicador de riqueza da população) encolheu em média 0,6% ao ano na última década, segundo o Ibre/FGV. Quando comparado ao PIB per capita dos Estados Unidos, voltamos ao início dos anos 2000, com nosso PIB per capita equivalendo de volta ao mesmo ¼ do norte- americano de então. Ou seja, em termos absolutos e relativos, ficamos mais pobres.
Também corremos o risco de sermos menos pessoas ativas economicamente no futuro. Não só porque se morre muito hoje, mas também porque o desalento leva a menos nascimentos. Isso significa um risco de termos menor capacidade de produzir riqueza e de financiar aqueles que não são produtivos – crianças e aposentados – lá na frente. Não só o País já perdeu a oportunidade de se beneficiar do bônus demográfico, que reduziu a razão de dependência entre os segmentos economicamente dependentes e o segmento classificado como produtivo a 44% (44 brasileiros com menos de 15 e mais de 64 anos dependentes de 100 pessoas em idade de trabalhar), como podemos vir a ter uma aceleração adicional dessa razão. Pela primeira vez na nossa história, conforme noticiado pelo Estadão no último domingo, algumas regiões do Brasil registraram mais mortes do que nascimentos. Os dados se referem aos primeiros dias de abril e, embora preliminares e explicados pelo elevado número de mortes, expõem a inversão de uma relação que mostrava nascimentos superando em mais que o dobro os óbitos. A depender dessa tendência, da sua intensidade e duração, o desafio da produtividade – já tão grande – será ainda maior no futuro.
Nessa esteira de números de tristeza e de piora nas perspectivas futuras, a educação surge como mais uma grande tragédia. O impacto da pandemia sobre a aprendizagem e sobre o aumento na evasão escolar pode significar o comprometimento de uma geração de crianças e jovens. Esse, sim, é o mais grave dos tristes legados, pois significa enraizar ainda mais a pobreza e a desigualdade que já tanto castigam. Os dados do IBGE mostravam um retrato ruim em 2019. Ali, mais da metade dos adultos brasileiros não havia concluído o ensino médio, segundo a Pnad Contínua, divulgada em meados do ano passado. Dentre os nossos 50 milhões de jovens entre 14 e 29 anos, 10 milhões abandonaram ou nunca frequentaram a escola. Desses, 71,7% são pretos ou pardos. Com a pandemia e a assimetria dos seus impactos por renda, gênero e raça, não haverá o que se comemorar nesse campo nos próximos anos. Ao contrário, contrata-se assim a manutenção da pobreza, além de subemprego, criminalidade e aumento da desigualdade social.
Outros números se juntam para compor esse triste mosaico. Desemprego elevado – em particular, mais grave entre mulheres, pretos e pardos; aumento na concentração de renda (acentuada pela discrepância na trajetória de salários nos setores público e privado) e nos níveis de pobreza; agravamento da situação fiscal dos Estados e municípios e o consequente enfraquecimento da sua capacidade de provisão de serviços públicos de qualidade. Dentre outros que se misturam com a agenda populista e fisiológica que há muito nos tomou de assalto.
Mas não quero aqui deprimir ainda mais meu leitor. Afinal, a esperança, última a morrer e única ainda viva quando até o otimismo já se foi, vem em outra esteira. Paralela à esteira da morte, ela surge em reação à atual distopia e celebra a vida. É o Mestre Carpina de João Cabral, que responde a esse Brasil retirante ser o espetáculo da vida a melhor resposta para a morte.
Ao mesmo tempo que o Brasil sucumbe, abre-se na urgência o espaço para uma agenda que, ainda franzina, deverá fazer convergir ao centro uma alternativa que trará de volta o País dos brasileiros. Essa agenda deverá colocar a justiça social e a redução das desigualdades no topo das suas prioridades, e buscá-las por meio de políticas públicas que carregarão não a marca da ideologia, mas, sim, a da ciência e a do rigor. Isso, sim, é convergência. Isso, sim, será recolocar o Brasil nos trilhos. Afinal, somos todos, como em Morte e Vida Severina, irmãos das almas num País que hoje chora suas mortes. Mas que tem tanta vida que faz valer a pena buscar uma saída.
*ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA
O Estado de S. Paulo: Pacheco admite unir CPIs e avisa que não vai pautar impeachment de ministros do STF
Nesta terça-feira, 13, o presidente do Senado deve ler o requerimento para instalação da CPI da Covid na Casa; comissão foi motivo de reclamação de Bolsonaro em ligação telefônica com o senador Jorge Kajuru
Apesar do pedido do presidente Jair Bolsonaro ao senador Jorge Kajuru (Cidadania-SP), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não tem planos de pautar o impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal(STF). Nesta terça-feira, 13, Pacheco deve ler o requerimento para instalação da CPI da Covid no Senado. A comissão foi motivo de reclamação de Bolsonaro na conversa com Kajuru. Segundo Pacheco, pedidos de impeachment “não podem ser banalizados em atos de revanchismo ou retaliação”, disse em entrevista ao jornal Valor Econômico. Como antecipou o Estadão, ontem, Pacheco já vinha sendo aconselhado a arquivar os pedidos.
Outro pedido de Bolsonaro na ligação, o de que a CPI não tenha apenas seu governo como foco, mas também as ações de governadores e prefeitos, será parcialmente acatado por Pacheco. Mas não em um formato que deva agradar o Planalto. Isso porque o presidente do Senado planeja anexar ao requerimento do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que será lido hoje, o requerimento protocolado pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE), que inclui chefes dos Executivos estaduais e municipais na investigação.
Apenas a destinação de verbas federais a Estados e municípios será objeto da investigação, já que a apuração da atuação de governadores é tema das assembleias legislativas, e dos prefeitos, das câmaras municipais.
"Uma CPI não pode apurar fatos relativos a Estados. Isso incumbe às Assembleias Legislativas. O que cabe a uma CPI do Senado ou da Câmara dos Deputados é a apuração dos fatos no governo federal e os desdobramentos desses fatos que envolvem recursos federais encaminhados a Estados e municípios. Os fatos relacionados às verbas federais podem ser alvo de inquérito, mas não se pode investigar necessariamente Estados e municípios numa CPI federal", disse Pacheco.
Segundo Pacheco, o pedido de CPI protocolado por Girão é conexo ao original, feito em fevereiro por Randolfe, por isso, serão reunidos numa só tramitação. "Não é que estejamos acolhendo esse requerimento. Na verdade, o requerimento de uma nova CPI promovido pelo senador Girão já conta com as assinaturas suficientes e o fato determinado é conexo a um requerimento feito pelo senador Randolfe, portanto devem ser apensados. Me parece que o novo pedido visa a apurar a destinação das verbas para Estados e municípios. Isso é plenamente possível de se fazer numa CPI do Senado", afirmou.
Impeachment
Em relação aos pedidos de impeachment contra ministros do STF, segundo o senador mineiro, que foi eleito para o comando da Casa com apoio de Bolsonaro, tais ações não podem ser transformadas em atos de “revanchismo ou retaliação”. A encomenda de Bolsonaro veio a público após Kajuru divulgar uma ligação entre ele e o presidentee; a conversa, segundo Kajuru disse ao Estadão foi realizada e divulgada no último domingo, após o senador alertar o presidente de que revelaria o diálogo.
"Os pedidos de impeachment tanto de ministros do Supremo quanto do presidente da República devem ser tratados com muita responsabilidade, não se pode banalizar o instituto. Não podem ser usados por revanchismo ou retaliação", avaliou Pacheco.
Na chamada, Bolsonaro pressiona o senador do Cidadania a ingressar com pedidos de impeachment contra membros da Corte. O desejo é de dar uma resposta à decisão tomada na última quinta-feira, 8, pelo ministro Luís Roberto Barroso, que ordenou a instalação da CPI da Covid, que vai investigar as ações e omissões do governo federal na pandemia. Na própria conversa, Kajuru disse a Bolsonaro que já havia apresentado um mandado de segurança para que o STF obrigue o presidente do Senado a abrir um processo de impeachment contra o ministro Alexandre de Moraes, do STF.
Segundo o presidente do Senado, não é o momento de discutir impeachment, seja no Executivo ou no Judiciário do País. No entanto, ele afirma que é preciso avaliar "aspectos, sobretudo, de juridicidade, de insatisfação com um ministro ou com o presidente da República", disse. "É preciso identificar se há uma narrativa adequada, justa causa, elementos probatórios mínimos, se há tipicidade do fato em relação à lei de 1950, portanto é algo que deve ser analisado com bastante juridicidade. Não é o momento de se discutir impeachment no Brasil" afirmou.
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Rubens Barbosa: Questão religiosa
Estamos diante de um problema político sério que a direita evangélica traz para a democracia
Estamos vivendo tempos estranhos. A sociedade está dividida e polarizada, anestesiada e paralisada, até pelas dificuldades decorrentes da pandemia. A perplexidade aumenta na medida em que, entre muitos outros exemplos, se verifica a maneira como a grave crise do combate à covid-19, fora de controle, está sendo conduzida; pela ameaça de um enfrentamento fratricida pela facilitação da venda e do porte de armas e munições; pela inexplicada crise militar com a demissão da cúpula da Defesa; pelo desmonte do combate à corrupção; pela crescente influência das milícias e do tráfico de drogas; pela chocante visibilidade da desigualdade social; pela falta de perspectivas e de uma visão de futuro para o País.
A tudo isso se junta agora a surrealista discussão sobre atividades religiosas coletivas em templos e igrejas durante a pandemia. As apresentações terrivelmente evangélicas feitas no STF pelo advogado-geral da União e pelos advogados que defendiam a abertura dos templos e igrejas trouxeram à tona, mais uma vez, a questão da laicidade do Estado brasileiro. Até o presidente reforçou a defesa de cultos e missas presenciais como um direito inerente a maioria, ignorando as ameaças à vida e a Constituição.
Estado é laico é o que promove oficialmente a separação entre Estado e religião. A partir dessa separação, o Estado não deveria permitir a interferência de correntes religiosas em assuntos estatais, nem privilegiar uma ou algumas religiões sobre as demais. Essa situação existe no Brasil desde a Proclamação da República, em decorrência do disposto na Constituição de 1891, em que se explicita a rejeição da união entre o poder civil e o poder religioso, pondo fim ao regime do padroado, que concedia privilégios à Igreja Católica e no qual se confundiam o Estado e a Igreja. No laicismo, cabe ao Estado garantir a liberdade e a igualdade de todos, independentemente dos valores morais e religiosos.
Mesmo com maioria até aqui católica, o Brasil é oficialmente um Estado laico, neutro no campo religioso, não apoiando nem discriminando nenhuma religião. Apesar de citar Deus no preâmbulo, a Constituição federal é clara ao vedar à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Dessa forma, a liberdade religiosa na vida privada é assegurada, desde que separada do Estado. É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.
Na minha visão, a separação Igreja-Estado foi um avanço e está na base da formação dos Estados modernos. Com a República, o Estado brasileiro tornou-se um Estado moderno, no qual não se busca a satisfação espiritual, mas a expansão dos direitos humanos e das liberdades individuais.
Ao contrário do que se ouviu nos últimos dias, o Estado brasileiro não se pode manifestar religiosamente. Como já foi dito por ministro do STF, “os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais” e “as concepções morais religiosas – unânimes, majoritárias ou minoritárias – não podem guiar as decisões de Estado, devendo, portanto, se limitar às esferas privadas”.
Nos últimos anos, o que se viu foi o contrário. A ameaça à Constituição não é uma preocupação. Embora não se constituindo em movimento único, pois há divergências entre elas, a influência das igrejas evangélicas, em especial a Universal, aumentou significativamente e ganhou força política real.
Sua eficiente arrecadação entre fiéis seduzidos e sua capacidade televisiva e radiofônica, além da mídia impressa e de partidos políticos, estão a serviço de um projeto político. Não é segredo para ninguém que os evangélicos buscam alcançar, sem intermediários, o poder máximo da República, depois de eleger prefeitos, governadores, senadores, deputados e ministros das Cortes de Justiça. A Igreja Universal ataca a Igreja Católica e exerce uma ação voltada para assumir a hegemonia do Estado.
Não se pode negar a competência e a eficiência da atuação da militância evangélica, instalada agora em diferentes órgãos públicos federais, na defesa de sua agenda de costumes, social, financeira e mesmo política, como estamos vendo nas ações do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e na política externa, nos últimos dois anos.
Pela primeira vez na História do Brasil, as igrejas evangélicas atuam de maneira coordenada para chegar ao comando do poder político. Em política não existe vazio. Se alguns setores ganham espaço, outros perdem. É surpreendente que representantes da alta hierarquia da Igreja Católica, em especial, não se tenham manifestado até aqui em defesa do Estado laico e da separação clara do Estado e da religião.
Estamos diante de um problema político sério que a direita evangélica traz para a democracia e afeta liberais, conservadores e progressistas. Trata-se, na realidade, de um problema de dominação por uma minoria e de reação contra o pluralismo
Alon Feuerwerker: Eficácia
O correspondente do Globo na China traz uma atualização sobre a polêmica da eficácia das vacinas criadas naquele país (leia). Os resultados obtidos onde a CoronaVac vem sendo aplicada têm sido semelhantes. Em torno de 50% para eliminação dos sintomas. E entre 80% e 100% para casos que requerem assistência médica. E a vacina atua melhor se a segunda dose demorar um pouco mais (leia).
E parece que funciona contra as novas cepas. O que é uma notícia e tanto. Aliás, já era esperado que vacinas criadas a partir do vírus inteiro funcionassem bem contra as variantes, pois o vírus não se transforma completamente quando entra em mutação.
Vacinas têm dois papéis: servem para proteger as pessoas individualmente e a coletividade. No caso dos indivíduos, se a vacina reduz de modo radical a possibilidade de adquirir a forma grave da doença, ela está valendo a pena. Já na esfera das sociedades, o desafio é diminuir a um mínimo, se possível interromper, a circulação viral. O que acontece quando se atinge uma certa taxa (alta) de imunizados.
Pelo vírus ou pela vacina.
A aplicação das vacinas mundo afora ainda está no começo. Números definitivos só estarão garantidos mais na frente. Por enquanto, o melhor é se vacinar o mais rapidamente possível, com a primeira vacina que estiver disponível. Pode ser a diferença entre estar vivo ou não quando esse debate, sobre que vacina protege mais, finalmente puder ser feito com dados mais consolidados.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Jamil Chade: E se Gagarin tivesse pousado no Brasil?
Que a data deste 12 de abril seja despida de sua batalha ideológica que marcou a Guerra Fria e que seja lembrada como a vitória da ciência e da conquista da humanidade
Há exatos 60 anos, Yuri Gagarin se transformava no primeiro homem a ir ao espaço. Muito se falou da preparação de sua viagem, de sua conquista e o que ela significou para a manipulação do poder soviético, em plena Guerra Fria.
Mas o que ocorreu quando ele caiu de volta e desembarcou no planeta?
A história conta que seu local de pouso foi amplamente equivocado. Gagarin caiu perto da cidade de Smelovka, centenas de quilômetros do ponto onde os cientistas tinham planejado.
Na terra, literalmente, estavam duas pessoas. Uma avó e uma menina de cinco anos, ambas plantando batatas.
A garota conta que havia visto um objeto vermelho despencando do céu. Mas sua avó estava ocupada demais com as batatas e tentando evitar que as vacas as comessem.
Instantes depois, a menina viu um objeto laranja caminhando em sua direção, com um capacete. Assustada, a avó deu a mão para sua neta e começou a rezar. Tentaram correr, quando ouviram de dentro do capacete uma voz em russo gritando: “esperem, sou russo!”
Sem entender nada, a avó perguntou de onde ele teria vindo, apenas para ouvir uma resposta ainda mais estranha. “Do céu”. A região não tinha luz elétrica e ninguém sabia que Moscou tinha mandado um homem para o espaço.
A história ampliou o mito de Gagarin, amplamente usada pelo Kremlin e sua propaganda comunista.
Mas e se o cosmonauta tivesse pousado no Brasil de 2021?
Em primeiro lugar, haveria o risco real de cair em uma zona na qual sua explicação de que “veio do céu” seria denunciada por um insulto e blasfêmia. Uma vigília seria organizada, enquanto a pasta de Damares Alves seria acionada.
Não faltariam questionamentos sobre seu capacete. “Onde já se viu um exagero desse contra um vírus que nem existe”, diria algum vereador local. “Marica”, declararia um presidente.
Ao responder que era russo, a história daquele cosmonauta poderia ter sido de uma vez por todas golpeada: “Comunista!”, gritaria outro. “Nossa bandeira jamais será vermelha!”, completaria um colega, perguntando em voz baixa ao vizinho qual a diferença entre russo, esquerdista e soviético.
Para além da propaganda que ele representou, Gagarin é mais uma testemunha, ator e porta-voz do avanço da ciência e de que, para a genialidade humana, não existem fronteiras.
Há 60 anos, a história dava mais um passo nessa fascinante direção. Provavelmente, sem ele, os americanos não teriam acelerado seu programa espacial. Foi essa concorrência e a conquista do espaço que nos trouxe avanços reais para nossas vidas cotidianas, inclusive ajudando a manter uma vida mais saudável no planeta.
Painéis solares, monitores de batimentos cardíacos, tratamentos contra o câncer, sistemas de purificação de água e, claro, os computadores que hoje lidamos com uma realidade são frutos dessa aventura.
Mas a ciência também tem seu papel filosófico. Ao termos a possibilidade real de explorar o espaço, as perguntas se multiplicam: podemos sobreviver de outra maneira?
A mudança e a ciência ―ao lado do amor― certamente são alguns dos aspectos mais misteriosos da humanidade. Quando um primeiro homem inventou um primeiro instrumento, buscava facilitar seus dias, construir um futuro melhor. Ela era a aposta de que o amanhã seria melhor do que hoje, de que a vida vencerá.
Há uns meses, perguntei para Greta Thunberg se ela teria alguma mensagem a enviar a Jair Bolsonaro. Ela me olhou, sorriu e lançou: “escute a ciência”. Hoje, o nosso desafio é o de implementar uma mudança para salvar o planeta. E, mais uma vez, a resposta também estará na ciência.
A pandemia está nos dando, talvez, um último e sério alerta. Ela também mostra que quem apostou na ciência viu os resultados para suas populações. Quem a minimizou, esnobou ou preferiu adotar o caminho da charlatanice acumula corpos.
Que a data deste 12 de abril seja despida de sua batalha ideológica que marcou a Guerra Fria e que seja lembrada como a vitória da ciência e da conquista da humanidade, num momento em que o obscurantismo é uma ameaça tão real quanto o próprio vírus.
Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
Luiz Carlos Azedo: A CPI não sabe como começar
CPIs bem focadas promovem ampla exposição de fatos até então encobertos por silêncio, dissimulações e fraudes. Algumas CPIs fracassaram por má condução
Um velho jargão parlamentar, atribuído a Ulysses Guimarães, sustenta que todos sabem como começa uma comissão parlamentar de inquérito, mas ninguém sabe como termina. A CPI da Covid-19 do Senado, porém, nem sabe ainda como vai começar, embora já esteja no centro das tensões entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, em razão da divulgação de uma gravação da conversa entre o senador Kajuru (Cidadania-GO) e o presidente da República.
Na conversa, o presidente Jair Bolsonaro orienta o parlamentar a protegê-lo e direcionar a investigação contra governadores e prefeitos. De quebra, pede para Kajuru pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a decidir sobre seu pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes. Quem mais se beneficia dessa confusão é o presidente Bolsonaro. A Executiva do Cidadania, partido envolvido na polêmica, apoia a instalação da CPI e saiu em defesa do senador Alessandro Vieira(SE), mas não endossa que se investigue governadores e prefeitos. Além disso, repudiou a conversa de Kajuru com Bolsonaro e solicitou que o parlamentar deixasse a legenda.
CPIs bem focadas promovem ampla exposição de fatos até então encobertos por silêncio, dissimulações e fraudes. Algumas CPIs fracassaram por má condução, como a do Futebol (2007) e a dos Cartões (2008). Outras foram bem-sucedidas, como as CPIs da Corrupção (1988), do PC Farias (1992), dos Anões do Orçamento (1993), do Judiciário (1989), do Banestado (2003), dos Correios (2005), dos Bingos (2006), dos Sanguessugas (2006), do Apagão Aéreo (2007) e do Cachoeira (2012). Às vezes, são algozes de seus protagonistas.
A CPI do Orçamento acabou cassando os mandatos do presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro (MDB-RS), injustamente, e do líder do MDB, Genebaldo Correia (BA), entre outros. A CPI dos Correios, em 2005, fruto de uma denúncia do presidente do PTB, Roberto Jefferson (RJ), resultou na sua própria cassação, e de outros parlamentares, como o então deputado José Dirceu (PT- SP). Desfecho surpreendente teve a do Judiciário, em 1989. Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), no segundo mandato como presidente do Senado, protagonizou a abertura da CPI, contra a corrupção, o tráfico de influências, a má gestão
e o nepotismo no Judiciário.
Renúncias
Alguns senadores à época, como Marina Silva (PT), Geraldo Melo(PSDB) e Roberto Freire (PPS), temiam o risco de confronto entre os Poderes. Para o ministro Carlos Velloso, então vice-presidente do STF, “uma CPI desse tipo, generalizando acusações contra juízes, simplesmente expõe o Judiciário à execração pública, levando o descrédito às suas decisões”. A própria OAB, que defendia desde a Constituinte a criação de mecanismos de controle externo do Judiciário, repeliu a iniciativa. Para então presidente, Reginaldo de Castro, estaria “se criando no Brasil um tribunal de exceção”.
A CPI não desmoralizou o Judiciário nem provocou abalos institucionais. Apurou denúncias de crimes e corrupção que impactaram a opinião pública, com destaque para a ligação do senador Luiz Estevão (MDB-DF, cujo mandato foi cassado em 2000) com o desvio de R$ 169 milhões das obras de construção do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, onde pontificava a figura do “Juiz Lalau”: Nicolau dos Santos Neto, presidente da Corte, que foi condenado a 26 anos de prisão pelos crimes de peculato, estelionato e corrupção passiva.
ACM emergiu da CPI do Judiciário como paladino do combate à corrupção, porém não conseguiu manter a presidência do Senado em 2001, sendo substituído por Jader Barbalho (MDB). Os dois senadores viviam se digladiando e acabariam envolvidos no escândalo do Painel do Senado. ACM havia revelado a lista de todos que votaram contra e a favor de Luiz Estevão na sessão secreta que resultou na cassação do mandato do ex-senador, em junho de 2000. A crise culminou com as renúncias de Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda, na época líder do governo no Senado.