covid-19
Sergio Lamucci: O cenário negativo para a renda dos mais pobres
O principal fator para a ampliação do número de domicílios mais pobres deve ser a desocupação mais elevada entre os menos escolarizados, mais afetados pela pandemia
O cenário para a renda dos brasileiros mais pobres em 2021 é bastante negativo. Com a piora da pandemia da covid-19 e o avanço lento da vacinação, a atividade econômica foi prejudicada no primeiro semestre, resultando na continuidade da fraqueza do mercado de trabalho, num ano em que o auxílio emergencial será bem menor do que em 2020. A desigualdade de renda, nesse quadro, voltará a crescer.
Um estudo da Tendências Consultoria Integrada estima que haverá neste ano um aumento de 1,2 milhão de domicílios nas classes D e E, definidas como as que têm rendimento mensal domiciliar de até R$ 2,6 mil. Com isso, essas faixas de renda deverão passar a responder por 54,7% do total de residências no país.
“O principal fator para a ampliação do número de domicílios mais pobres deve ser a desocupação mais elevada entre os menos escolarizados”, aponta o trabalho, ressaltando que “o caráter regressivo da pandemia permanece desproporcional” para as pessoas de menor nível de escolaridade.
“A piora do balanço de riscos para a atividade econômica deve restringir o ímpeto de contratações, sobretudo no segmento de serviços, cuja tendência de crescimento deve ser interrompida, à vista do recrudescimento do isolamento social em diversas localidades do Brasil.” A consultoria revisou recentemente a estimativa para a expansão do PIB em 2021 de 2,9% para 2,7%. Ainda que a nova versão do programa que permite a suspensão do contrato de trabalho ou a redução de jornada e de salários (o BEm, a ser reeditado em breve) deva contribuir para sustentar o emprego formal, a renovação do auxílio emergencial não deverá conter a alta dos desempregados, avalia a Tendências.
O auxílio emergencial atingiu um valor total de R$ 293 bilhões em 2020, o equivalente a 4% do PIB. De abril a agosto, o valor médio foi de R$ 600; de setembro a dezembro, de R$ 300. Em alguns meses, alcançou 67,9 milhões de pessoas, equivalente a um terço da população. Neste ano, o Congresso aprovou R$ 44 bilhões para o benefício fora do teto de gastos, a ser pago em quatro parcelas, com um valor médio de R$ 250. Se o benefício em 2020 foi amplo demais, neste ano pode haver o problema oposto - o valor é mais baixo, atenderá a menos pessoas e valerá por um prazo mais curto.
“Diante do menor auxílio emergencial e da perspectiva de recuperação moderada do mercado de trabalho, a massa total de renda deve recuar 3,8% em 2021”, impedindo a manutenção no mesmo nível de 2020, diz a Tendências. Essa é a variação prevista em termos reais, já descontada a inflação. No conceito da consultoria, a massa total considera o rendimento de todos os trabalhos, o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC, voltado para idosos de baixa renda e pessoas com deficiência), os benefícios previdenciários e outras fontes de renda. No ano passado, o indicador cresceu 5,2%, fortemente impulsionado pelo auxílio emergencial. Neste ano, haverá uma ressaca mais intensa da massa de renda no Norte e Nordeste, após o enxugamento dos repasses emergenciais, aponta a Tendências.
A expectativa dos analistas é que a retomada da economia ocorrerá no segundo semestre. Com o avanço da vacinação, as medidas de restrição à mobilidade tendem a ser relaxadas. Na visão da Tendências, a economia brasileira deve manter trajetória de gradual recuperação em 2021, sem uma melhora plena do mercado de trabalho, devido a fatores como “o agravamento da pandemia, os recentes sinais de fraqueza de grandes setores, a redução do arsenal de políticas anticíclicas e as incertezas da agenda de política econômica”.
Num primeiro momento, a retomada da atividade deve favorecer as classes sociais mais altas, segundo a Tendências. “A elite do funcionalismo público sente menos os efeitos da crise, já que a dinâmica econômica pouco interfere em seus salários e planos de carreira”, aponta o estudo, observando também que a maior concentração de empregadores no topo da pirâmide social propicia um rápido reequilíbrio financeiro das famílias. “Com rendimento atrelado aos ganhos de suas empresas, os donos de negócio buscam recuperar o padrão histórico de lucro, antes de reajustar salários de empregados e recontratar”, diz a Tendências.
Para as classes D e E, as perspectivas são desanimadoras. “A mobilidade social das classes D e E deve ser reduzida nos próximos anos, acompanhando um fenômeno típico de países com alta desigualdade de renda”, avalia a consultoria. “O maior entrave ao crescimento da renda dos estratos sociais mais pobres é a educação não revertida em produtividade. O ingresso no mercado de trabalho é o principal meio de redução da pobreza, mas não é condição suficiente para superá-la.”
A Tendências observa que o mercado de trabalho brasileiro é fortemente caracterizado por baixas remunerações, elevadas desigualdades entre grupos de população ocupada, altas taxas de informalidade e marcante heterogeneidade entre os setores produtivos. “O alto nível de desemprego, a falta de ganho real no salário mínimo, o elevado grau de informalidade e a subutilização dos trabalhadores devem impedir ganhos elevados de renda nas classes D e E.” Nas projeções da Tendências, depois de crescer 23,4% em 2020 em termos reais, na esteira do auxílio emergencial, a massa de renda das classes D e E deve cair 14,4% em 2021, crescendo a uma média de apenas 0,85% de 2022 a 2025, em estimativas que já descontam a inflação. Já a massa de rendimentos da classe A, que subiu 1% em 2020, vai ter aumento real de 2,8% neste ano e de 5,6% no ano que vem, com um avanço próximo a 4,5% nos três anos seguintes, estima a consultoria.
Para escapar desse cenário negativo para a renda, é fundamental primeiro acelerar a vacinação. Isso permitirá afrouxar as medidas de restrição à mobilidade social, beneficiando em especial a recuperação do setor de serviços, o maior empregador da economia. Também é essencial a renovação imediata dos programas de empréstimos a micro e pequenas empresas e de proteção ao emprego, para dar fôlego às companhias de pequeno porte. Se a recuperação da atividade continuar a patinar, uma nova extensão do auxílio emergencial deverá ser necessária, o que será um desafio num quadro de penúria das contas públicas.
Bruno Carazza: Bancarrota blues
Muda discurso sobre Meio-Ambiente, mas não a prática
Tomada ao pé da letra, há uma enorme evolução entre o discurso proferido por Jair Bolsonaro na abertura do Fórum Econômico Mundial, em Davos, bem no início do seu mandato (22/01/2019), e a carta enviada ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na última quarta-feira (14/04), confirmando presença na Cúpula de Líderes sobre o Clima.
Em sua primeira viagem internacional, o novo presidente brasileiro apresentou-se à elite mundial com uma fala de meros 6 minutos e 37 segundos. Na ponta do lápis, foram 741 palavras - pouco mais do que uma página de Word. Já a carta enviada para Biden na semana passada, ao contrário, não economizou no texto; foram sete laudas, e diferentemente da apresentação na Suíça, quando desperdiçou a chance de apresentar os principais planos para o seu governo, Bolsonaro na missiva para o americano tratou de apenas um assunto: o meio ambiente.
Para além do tamanho do texto, houve uma mudança de tom. Em Davos, o presidente brasileiro apresentava o patrimônio natural brasileiro como um ativo a ser negociado. “Temos a maior biodiversidade do mundo e nossas riquezas minerais são abundantes. Queremos parceiros com tecnologia para que esse casamento se traduza em progresso e desenvolvimento para todos. Nossas ações, tenham certeza, os atrairão para grandes negócios”, afirmou, anunciando que o Brasil estava de braços abertos para o mundo.
A carta para Joe Biden é muito mais cautelosa. Começa reiterando “o compromisso do Brasil com os esforços internacionais de proteção ao meio ambiente, combate à mudança do clima e promoção do desenvolvimento sustentável”. Em seguida, faz um retrospecto dos avanços do país na área, frutos dos governos anteriores - embora não deixe isso explícito, não deixa de ser um fato importante para quem sempre criticou seus antecessores na área ambiental.
Por fim, Jair Bolsonaro apresenta planos muito mais elaborados do que simplesmente obter parceiros para explorar as riquezas da floresta: intensificar o combate ao desmatamento ilegal e as queimadas, acelerar a implementação de um mercado de créditos de carbono e estimular o pagamento por serviços ambientais para que proprietários de terra se sintam incentivados a manter a floresta em pé, entre outras medidas.
Comparando os dois textos, seríamos levados a concluir que o presidente brasileiro mudou, finalmente se conscientizando da seriedade da questão ambiental e dos imensos ganhos que o país pode obter ao assumir um maior protagonismo nessa área. Só que não (#sqn, como se diz nas redes sociais).
Quem mudou, na verdade, foi o mundo. E a reunião que começa na próxima quinta-feira (22/04), tendo o presidente dos Estados Unidos como anfitrião num encontro de 40 líderes mundiais, revela isso.
Há cinco anos o Global Risks Report, pesquisa realizada junto a centenas de especialistas do setor privado, governos e sociedade civil, aponta os danos causados pelo aquecimento global como o evento com maior probabilidade de ocorrência no curto prazo. Para 2021, embora a pandemia se apresente, por motivos óbvios, como tendo o maior impacto, a falha na ação climática, a perda de biodiversidade e a escassez de recursos naturais aparecem, junto com as armas de destruição em massa, como os “top-five” riscos medidos pelos seus efeitos potenciais sobre o planeta.
O atual movimento político na direção da antecipação das metas celebradas no Acordo de Paris, contudo, não se deve apenas a uma preocupação crescente com a questão climática. Há uma revolução econômica e tecnológica em curso, e ele traz em seu âmago a questão ambiental - para o bem ou para o mal.
O barateamento da produção de fontes limpas de energia, como eólica e solar, combinado com o desenvolvimento de baterias mais potentes, recarregáveis e leves, prenunciam um futuro próximo menos dependente da queima de derivados do petróleo e do gás natural.
Além disso, o aprimoramento dos mercados de crédito de carbono - que nos últimos meses têm batido recordes sobre recordes - tem sinalizado para as companhias de energia e a indústria pesada que o custo de poluir será cada vez mais salgado. Para completar, fundos de investimentos bilionários estão adotando a sustentabilidade em suas políticas de governança e premiam empresas responsáveis na área ambiental.
Há também o lado sombrio dessa história, que é o protecionismo. Os dados mais recentes da Organização Mundial do Comércio revelam que em 2018 foram apresentadas 663 notificações de práticas desleais de comércio que tinham como pano de fundo questões ambientais. E no âmbito da União Europeia já se discute abertamente uma proposta para proteger empresas locais contra a concorrência de produtos provenientes de países que não descarbonizarem as suas economias.
Voltando à carta de Bolsonaro para Biden, John Kerry, responsável pela ação climática no governo americano, tuitou na sexta que a mudança de tom do presidente brasileiro foi importante, mas é preciso demonstrar “resultados tangíveis”. E quando se vê o que o Palácio do Planalto propõe de concreto, prevalece a velha agenda do que há de mais retrógrado no agronegócio, no garimpo e nas madeireiras.
Basta conferir a pauta prioritária encaminhada pelo governo aos novos presidentes da Câmara e do Senado em fevereiro deste ano: nela constam propostas de mineração em terras indígenas (PL nº 191/2020), regularização fundiária na Amazônia (PL nº 2.633/2020) e flexibilização das regras de licenciamento ambiental (PL nº 3.729/2004).
O discurso pode ter melhorado, mas na prática a visão do governo brasileiro continua sendo aquela demonstrada de forma nua e crua pelo diretor Marcus Vetter no documentário “O Fórum”. Nos bastidores do encontro de Davos em 2019, Bolsonaro responde da seguinte maneira à preocupação do ex vice-presidente americano Al Gore com o desmatamento no Brasil: “A Amazônia não pode ser esquecida. Temos muitas riquezas. E gostaria muito de explorá-la junto com os Estados Unidos”.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Ricardo Noblat: CPI da Covid deverá ter seu prazo de validade prorrogado
Serão 90 dias e talvez mais 90
É pule de dez na CPI da Covid que sequer foi instalada ainda no Senado que seu prazo de validade de 90 dias deverá ser prorrogado – quem sabe? – por mais 90. Se for assim, ela só concluiria os trabalhos no final de outubro, para desespero do governo do presidente Jair Bolsonaro, seu alvo único ou preferencial.
É muito tempo de exposição para um governo que nesse período só espera colher más notícias. A vacinação terá avançado, mas não a ponto de ultrapassar 60% da população. A recuperação econômica continuará rastejando com a inflação em alta e o desemprego também. O auxílio emergencial terá chegado ao fim.
Uma minuta do plano de trabalho da CPI indica que pelo menos 15 ministros de Estado, ex-ministros e ocupantes de pontos de comando no combate ao vírus serão convocados a depor, segundo o jornal O Globo. Bolsonaro será poupado, mas não Paulo Guedes, ministro da Economia. A grande estrela será Eduardo Pazuello.
A CPI tem muito que perguntar ao ex-ministro da Saúde, e aos que o antecederam no cargo. Há, ali, uma vontade enorme de que ele repita a frase que o celebrizou. Foi quando ele afirmou, depois de ter sido desautorizado por Bolsonaro na compra da vacina Coronavac, que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
O general será instruído a não relembrar a frase para não dizerem que apontou o dedo na direção de Bolsonaro. A essa altura, estará de emprego novo e bem remunerado no governo pelos relevantes serviços prestados ao presidente que lhe deu uma missão e que ele a cumpriu com a obediência de um bom soldado.
Os 11 titulares da CPI atravessam um momento de raro alinhamento entre eles. As divergências que afloram estão sendo limadas. Por ora, deram em nada os esforços do governo para influir nos seus rumos. O que prevalece é o desejo mais ou menos uniforme de investigar tudo até o fim, doa em quem doer.
Do senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP e aliado de Bolsonaro, diz-se que seu amor é pelo poder, não necessariamente por quem o encarna. De Renan Calheiros (MDB-AL), que ocupará o posto de relator da CPI, um dos seus colegas diz que está puxando fumo misturado com veneno de rato.
Renan não perdoa Bolsonaro por tê-lo derrotado quando há dois anos tentou se reeleger presidente do Senado, e perdeu para Davi Alcolumbre (DEM-AP). A hora do troco chegou. E não haverá hora melhor para ele do que essa agora – com Bolsonaro em baixa e Lula, aliado de Renan, em alta.
A propósito: enquanto as atenções políticas estão voltadas para a CPI da Covid, Lula já começou a conversar com quem veste farda.
Carlos Pereira: A justiça (agora) foi feita
A confiança na Justiça é mediada pela congruência entre identidade ideológica e decisão judicial
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de considerar a 13.ª vara de Curitiba incompetente para julgar o ex-presidente Lula pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro gerou reações polarizadas. Por um lado, foi fortemente criticada por adversários do petista, que expressaram insatisfação com o sistema de Justiça criminal brasileiro supostamente "disfuncional, casuístico e irracional". Por outro lado, tal decisão foi extremamente celebrada por seus apoiadores como uma "vitória da democracia", reparação de uma "injustiça histórica" e que "restabelece a segurança jurídica e a credibilidade do sistema de Justiça".
Há quase quatro anos, quando foi anunciada a primeira condenação do ex-presidente Lula, as reações foram diametralmente opostas. Seus opositores viram naquela decisão uma sinalização de que "juízes e procuradores brasileiros estariam comprometidos com a lei e com a ideia de que ninguém estaria acima dela". No outro extremo, seus seguidores a interpretaram como “injusta” e como uma "perseguição política contra o ex-presidente".
Em democracias, espera-se que o sistema de Justiça atue de forma imparcial ao investigar e julgar líderes políticos que apresentem comportamentos desviantes. No entanto, com a polarização política - não apenas na sua dimensão ideológica, mas fundamentalmente identitária e afetiva - nas alturas, cidadãos tendem a perceber o sistema de Justiça como parcial dependendo de qual lado penda a decisão do juiz.
Quando a decisão judicial se apresenta de forma congruente com as identidades afetivas e ideológicas das pessoas, espera-se que elas interpretem que a justiça foi feita. Mas quando a Justiça contraria as suas expectativas afetivas, espera-se que elas percebam o sistema de Justiça como injusto.
Mas até que ponto a percepção das pessoas sobre um julgamento de um líder político depende de sua identidade ideológica e afetiva?
Para responder a essa pergunta, eu e meus coautores, André Klevenhusen (doutorando da FGV EBAPE) e Lúcia Barros (professora da FGV EAESP), implementamos, via internet, uma pesquisa de opinião experimental com 829 cidadãos brasileiros entre os dias 26 dezembro de 2020 a 13 de janeiro de 2021.
Os participantes tiveram a oportunidade de escolher, em uma eleição hipotética, seu candidato preferido entre quatro alternativas ideológicas distintas: liberal, libertário, populista e conservador. Distribuímos aleatoriamente uma vinheta na qual um desses quatro candidatos, que estava liderando as pesquisas de opinião, tinha sido condenado pelo Tribunal de Justiça por corrupção. Em seguida, os participantes responderam a perguntas que mediam a sua confiança nas decisões judiciais.
Um resultado até certo ponto positivo para a Justiça brasileira foi o de que a maioria dos respondentes nela confia e o grau de confiança independe do seu perfil ideológico. Este padrão persiste em cenários de congruência (o candidato rejeitado é condenado) e indiferença (nem o candidato preferido nem o rejeitado são condenados) em relação aos veredictos dos juízes.
Porém, quando ocorre incongruência (o candidato preferido é condenado), o grau de confiança na Justiça diminui. Ou seja, a confiança nos tribunais varia apenas quando o candidato preferido recebe um veredicto condenatório. Curiosamente, o grau de confiança na Justiça não aumenta quando o candidato rejeitado é condenado.
Embora não tenhamos ainda pesquisado o impacto da absolvição de políticos ideologicamente congruentes na confiança na Justiça, é plausível supor que os eleitores do ex-presidente Lula, que até então cultivavam uma percepção derrogatória da Justiça brasileira, passem, a partir da nova decisão do STF, a avaliar positivamente a Justiça, ainda que ele não tenha sido absolvido.
* É professor titular, FGV EBAPE, Rio de Janeiro
Fernando Gabeira: Bem-vindos à Neverlândia
A França cortou os voos com o Brasil, e o primeiro-ministro Jean Castex provocou risos no Parlamento ao falar do uso da hidroxicloroquina por aqui.
Isso que chamam de Brasil soa cada vez mais distante para mim. Guardo um país no escaninho da memória, mas o lugar onde vivo hoje costumo chamar de Neverlândia.
É um lugar realmente estapafúrdio, onde um Bolsonaro presidente troca ideias ao telefone com um senador Kajuru e ameaça dar porradas num quadro da oposição.
No final de tudo, o senador Kajuru está sendo processado por uma apresentadora de TV que ele ofendeu em entrevista, após a conversa com o presidente. Tudo na verdade parece um enredo televisivo, filmado com a luz de padaria e um cenário com cores berrantes.
Em Neverlândia, o presidente incorpora um personagem do programa “Casseta & Planeta”, chamado Maçaranduba, obcecado por dar porradas.
Em Neverlândia , o ministro do Meio Ambiente é acusado pela polícia de se associar a desmatadores para protegê-los da investigação e processo criminal. Isso jamais aconteceu no país chamado Brasil, agora envolto em névoa, pairando sobre meus cansados neurônios.
Em Neverlândia, políticos ainda hesitam em apurar o que acontece, apesar de mais de 370 mil mortos, de a maioria da população ter fome e de alguns doentes amarrados na cama, por falta de sedativos e relaxantes musculares.
Em Neverlândia, um vereador mata um menino a pancadas, e a mãe marca hora com a manicure.
Aquele país chamado Brasil nunca foi perfeito. Seus orçamentos eram irreais. Mas, depois que se transformou, surgem ideias como mandar o líder da Neverlândia para o exterior, para que não o punam pelos crimes fiscais.
A ideia não vingou, não porque era absurda, mas pelo fato de não ter para onde ir: as portas do mundo estão fechadas. Não há saída para quem vive na Neverlândia. A única possibilidade real é buscar de novo aquele país chamado Brasil, que escapou entre os dedos até se tornar isso que está aí.
Será um reencontro difícil. Há muitos Maçarandubas por aí, querendo dar pancadas. Apenas pelos músculos, não são assim tão perigosos. O problema é o crescimento do número de armas, um dos pontos básicos na transição para a Neverlândia.
Para reencontrar o Brasil, é preciso admitir que a Neverlândia sempre esteve por aqui, como uma espécie de mais um estado, não um espaço físico da Federação, mas um estado de espírito.
Nunca conseguiremos mandá-lo integralmente para as terras do nunca mais. O que não é possível é deixar que substitua o Brasil.
Éramos um país feliz, lembram? Havia energia, criatividade no ar. Era o que sentiam os que nos visitavam nos tempos de Brasil. A felicidade era, indiretamente, uma atração turística.
A pandemia revelou o que sabíamos, mas jamais encaramos de frente, que são nossas desigualdades. Ao explodir num momento de trevas num governo de obtusos negacionistas, ela provocou uma tempestade perfeita.
A sobrevivência de países em momentos históricos excepcionais depende da capacidade de unir forças, conjugar talentos e vontades.
Quando se trata de um inimigo externo e visível com o estrago de suas bombas, o trabalho de unir é mais fácil.
Estamos diante de um inimigo invisível, o vírus, e de um adversário interno: a extrema-direita, que sempre existirá, mas jamais nos representará, pois a soma dos seus erros e iniquidades nos transfigurou em Neverlândia.
Diante de tudo isso, a tarefa essencial é recuperar o país chamado Brasil, com o menor número de mortos. Os lideres de Neverlândia eleitoralmente se desmancham com sua própria incompetência.
Mas e os mortos? Na Neverlândia morre mais gente do que nasce. Como estancar a mortandade e chegar vivo a 2022? É uma pergunta que deveria ofuscar todas as pequenas questões políticas, ciúmes e rancores que acabam sendo também uma forma de interiorizar a morte.
O Estado de S. Paulo: CPI da Covid põe militares no foco das investigações
Já na mira do TCU, os generais Eduardo Pazuello e Walter Braga Netto devem estar entre os primeiros a serem ouvidos pela comissão parlamentar no Senado
Mateus Vargas e Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Nem o presidente Jair Bolsonaro nem os governadores. A Comissão Parlamentar de Inquérito aberta no Senado para investigar a atuação do governo na pandemia deve mirar primeiro nos militares. Os generais Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e Walter Braga Netto, atual ministro da Defesa, que comandou um comitê de crise quando estava na chefia da Casa Civil, entre outros oficiais, devem ir a um incômodo “banco dos réus”. Ambos os generais entraram na mira do Tribunal de Contas da União (TCU) e de membros da CPI.
A convocação de Pazuello já era certa, mas ontem senadores da CPI combinaram de incluir entre os primeiros a serem ouvidos também o atual ministro da Defesa. A decisão ocorre após o Estadão revelar que técnicos do TCU consideraram que Braga Netto não atuou de forma a “preservar vidas” quando comandou o comitê da crise. O general teria entrado em contato ontem com ministros da Corte para se defender e tentar sair da mira do tribunal, cujos relatórios costumam pautar as CPIs. Ao Estadão, o Ministério da Defesa negou que o comitê tenha sido omisso com a crise.
Membro da CPI, o senador Otto Alencar (PSD-BA) disse que as apurações não podem ficar restritas à conduta do ex-ministro Pazuello. “O Ministério da Saúde não é só Pazuello. Existe uma estrutura organizacional de cargos, com responsabilidades. Quando o Pazuello foi ao Senado, por exemplo, o secretário executivo dele (o coronel da reserva Elcio Franco) estava do lado”, disse. Sobre a conduta de Braga Netto, afirmou: “Vamos averiguar, pedir informações ao TCU. A investigação vai ditar os requerimentos de informações e as convocações”.
“Não tenha dúvida que vamos discutir a convocação de Braga Netto. Acompanhamos tudo dos relatórios do TCU, do MPF e denúncias. Vamos atrás de cada uma. O relatório do TCU é muito rico, vai ser uma base importante para os trabalhos”, reforçou o senador Humberto Costa (PT-PE), que também integra a comissão.
“Na medida em que a CPI busca fazer uma radiografia completa da atuação do governo federal no combate à pandemia, avaliar a atuação do comitê presidido pelo ministro Braga Netto será provavelmente indispensável”, complementou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos autores da CPI.
Diante dos novos fatos envolvendo militares, interlocutores do Planalto já avaliam que o governo estará no lucro se os debates da comissão se limitarem a Eduardo Pazuello. Sua equipe mais próxima na Saúde era formada por cerca de 20 nomes da ativa e reserva.
A disposição dos senadores, contudo, é convocar todos a depor em sessões transmitidas ao vivo. Eles não costumam ter parcimônia com seus investigados e a história registra episódios em que depoentes saíram presos de comissões. Razão pela qual é cada vez mais frequente que depoentes acionem o Supremo Tribunal Federal (STF) para não serem obrigados a dar as caras e prestar depoimentos. Uma CPI também tem poderes para quebrar sigilos fiscal, telefônico e bancário.
“Estão fazendo prejulgamento antes de instalar a CPI. Não é um tribunal de inquisição, temos que ter calma. Já estão condenando, isso não funciona. Primeiro, temos que ver o que está acontecendo”, disse o senador Jorginho Mello (PL-SC), um dos dois governistas na CPI, que tem 11 membros.
Alertas
Sob comando de Pazuello na Saúde, o Brasil saltou de cerca de 15 mil óbitos para 300 mil vítimas da pandemia e tornou-se uma ameaça global. Na quarta-feira passada, o TCU acusou o general de alterar o plano de contingência da Saúde na pandemia para livrar o governo de responsabilidades no monitoramento de estoques de medicamentos, insumos e testes.
A obediência de Pazuello ao presidente ficou nítida em outubro de 2020, quando cancelou uma compra de 46 milhões de doses da Coronavac. “É simples assim. Um manda e outro obedece”, disse na ocasião. A promessa de aquisição da vacina havia enfurecido Bolsonaro, pois os dividendos políticos iriam para o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).
Ainda em fevereiro, um ministro do STF demonstrava, em conversa reservada com o Estadão, a preocupação diante da possibilidade de os militares serem alvo de uma CPI. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade, que mirou agentes da reserva e questões da história, havia criado uma crise na cúpula militar e um estranhamento entre o governo Dilma Rousseff e a caserna.
Nesta semana, o ministro Gilmar Mendes disse ao Estadão não temer problemas institucionais. Ele observou que os militares foram “reprovados” na gestão pública e defendeu o direito da CPI de investigá-los. Em julho de 2020, o ministro já havia afirmado que o Exército estava se associando a um “genocídio”.
Enquanto Bolsonaro atacava a vacina, as Forças Armadas foram vitais para turbinar a produção da cloroquina, sem eficácia comprovada contra a covid-19. O Laboratório do Exército fez 3,2 milhões de comprimidos na pandemia. O lote anterior, de 2017, foi de 256 mil. A passagem de Pazuello na Saúde ainda ficou marcada por críticas sobre a omissão do governo no colapso no Amazonas.
O Ministério da Saúde afirmou que “desde o início da pandemia tem trabalhado incansavelmente para salvar vidas”. Braga Netto não quis comentar.
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Merval Pereira: As razões do STF
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem razões que até a razão desconhece, como disse o filósofo Blaise Pascal no século XVII sobre o coração. Só assim podemos compreender a série de decisões tomadas nos últimos dias, reflexos distorcidos de outras, que percorreram todas as instâncias jurídicas nos últimos cinco anos em que a Operação Lava-Jato esteve em pleno vigor no combate à corrupção.
O STF é o exemplo mais evidente de que, no Brasil, até o passado é incerto, frase que o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan colocou em evidência. Cinco anos depois de vários processos, vários julgamentos até na terceira instância do Superior Tribunal de Justiça (STJ), vem o Supremo decidir, por maioria, que o foro para a Operação Lava-Jato não era Curitiba. Pior: ninguém sabe que comarca é o foro correto.
Dos onze ministros, oito votos a favor de transferir o foro se dividiram entre dois que achavam que era mesmo Curitiba, mas seguiram a maioria: o próprio relator Edson Fachin, e Luis Roberto Barroso. Outro, o ministro Alexandre de Moraes, votou por São Paulo, que deve prevalecer, e os demais pediram tempo para pensar. Três outros ministros votaram por manter o foro em Curitiba.
Como se vê, não é uma questão simples, e nem tampouco política. Denota um ponto de vista jurídico que é apoiado por cinco ministro do STF, e foi apoiado pelo STJ. Transformou-se a definição do foro em um ato político contra o ex-juiz Sérgio Moro, como se ele tivesse usurpado o juízo natural quando a questão foi discutida em diversos fóruns e, até o momento, a centralização em Curitiba dos processos da Lava-Jato por conexão era perfeitamente compatível com as normas jurídicas.
Aconteceu a mesma coisa no julgamento do mensalão. O então advogado Marcio Thomas Bastos, que já fora ministro da Justiça do governo Lula, tentou de diversas maneiras fatiar os processos, para mandar para tribunais regionais eleitorais ou varas comuns todos os que não envolvessem pessoas com prerrogativa de foro.
Por que queria fazer isso ? Porque era mais fácil para os advogados de defesa, desmembrando os casos, retirar deles a carga de uma operação organizada, conectada entre os diversos crimes. Assim como começou a ser feito pela Segunda Turma em relação à Lava-Jato, enviando processos para os tribunais eleitorais regionais e para instâncias inferiores da Justiça.
A segunda parte dessa história será julgada na próxima quinta-feira, a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá. Mais uma vez, as razões que a própria razão desconhece surgirão para serem debatidas. No início da sessão, vai ser levantada uma questão de ordem para saber se o plenário pode ou não analisar se a Segunda Turma poderia ter julgado o caso mesmo depois que o ministro Edson Fachin transferiu o foro para o Distrito Federal, decretando a perda de objeto do habeas-corpus.
Portanto, o plenário, embora não seja instância revisora das decisões das Turmas, como ressaltou a ministra Carmem Lucia, pode decidir que o julgamento da suspeição de Moro não deveria ter ocorrido. O que prevalece, a incompetência ou a suspeição? O artigo 96 do Código de Processo Penal diz que a suspeição é a primeira questão que tem que ser analisada nos processos, dentre as exceções: de competência, de impedimento, de suspeição.
Porém, segundo Douglas Fischer, renomado processualista penal, esse artigo só se aplica às exceções que são apresentadas na primeira instância. Quando essas exceções são arguidas em um habeas-corpus, ou em vários, impetrados em qualquer tribunal, inclusive no Supremo, não há ordem de precedência, pelo contrário.
Entre as duas, o que prevalece é a incompetência, porque você pode ter na mesma Vara, na mesma comarca, ou na mesma sessão judiciária, dois juízes, sendo que um é suspeito e o outro, não, ambos competentes. Mas não pode ter um juiz que é competente, e outro não, na mesma sessão judiciária. A competência prejudica a suspeição.
Vai ser outra das muitas discussões jurídicas a que assistiremos perplexos, no dizer do ministro Marco Aurelio Mello
Paulo Fábio Dantas Neto: Pautas das oposições - A busca de um “novo normal” também na politica
Como me propus a fazer, ao final da coluna da semana passada, tratarei, hoje, do que chamei de um nó político que precisa ser desatado para que as diferentes oposições constituídas convertam o amplo consenso cívico atual de rejeição ao governo Bolsonaro numa convergência de natureza política, conversível em aliança eleitoral, em 2022.
Parto do entendimento de que, por enquanto, não há roteiro positivo seguro (no sentido de um elenco de proposições concretas sobre um imediato amanhã), em nenhum dos dois campos que se apresentam, hoje, como adversários do bolsonarismo, a saber, a esquerda e a nebulosa política que se faz chamar de centro e que inclui grande parte da centro direita e parte da centro-esquerda. Aviso que essa terminologia de geografia ideológica não deve ser tomada ao pé da letra. Usada aqui sem rigor e sem poder explicativo de nada, é mais um recurso para não alongar o texto. O que importa é constatar a relativa ausência (ou incipiência) de alternativa positiva clara à barbaridade que aí está. O não cada vez mais urgente e uníssono ainda não está acompanhado de algum sim que a sociedade entenda. É na permanência dessa situação politicamente tosca que populismos diversos apostam.
Pauta da oposição liberal-democrática
O déficit de discurso e ação do chamado centro (agora “polo”) liberal-democrático está no terreno da oposição plebiscitária a Bolsonaro. Ação e discurso nesse terreno até aqui são precários, porque uma parte desse centro, por mais que proclame o contrário, está presa a 2018, por um antipetismo que a impede de se jogar por inteiro na oposição, sem temor de se ver comprometida, em eventual segundo turno, a cooperar com o PT. O enraizamento extremo do tema da corrupção em parte do eleitorado que centristas querem conquistar é uma constante trava que os inibe tanto para o diálogo com a esquerda eleitoralmente mais relevante (diálogo necessário, dada a regra de pleito em dois turnos) quanto para uma relação mais fluente com o campo do pragmatismo de varejo, que atende pela alcunha de Centrão. Essa segunda relação é também crucial por outro motivo: procurar dividir o campo governista e, eventualmente, barrar o seu acesso ao segundo turno.
O que torna crível um centro político, convertendo-o em alternativa de poder, não é a propensão a se distinguir retoricamente da direita e da esquerda, mas a capacidade de se entender, simultaneamente, com ambas, criando marcos governativos na democracia. Trata-se de exigência de política prática. Se ignorada, desaparece a razão de ser do centro.
Por outro lado, se nem o Centrão nem Lula representa políticos autodeclarados de centro liberal-democrático, centristas precisam, como é óbvio, fazer, de sua unidade prática, atitude estratégica. Essa é a primeira de três condições (outras são um programa e uma candidatura que o encarne e aglutine) para terem voz e fala próprias, como oposição, na arena da disputa presidencial. Oposição que não precisa se dizer de esquerda, centro ou direita. Precisa ser democrática no programa, nos valores e na atitude política positiva.
A disposição declarada em manifesto recentemente assinado por seis possíveis candidatos que se situam nesse campo é um inegável avanço nessa direção. Está longe, contudo, de expressar uma agregação satisfatória daquelas três condições. Sem elas, resta a pregação apostolar contra presumíveis “extremos”. Esse é um mantra incompatível com o discurso de ampla frente democrática contra um extremismo concreto, como é o que Bolsonaro e seu governo expressam. Em suma, ainda é precária a identidade oposicionista do centro. Inútil querer que o Congresso preencha a lacuna, através de políticos republicanos e lúcidos, mas institucionalmente condicionados, como o Presidente do Senado. Seu papel é outro (conter, não enfrentar o presidente), tão relevante para a preservação da República, quanto o de todas as oposições democráticas de disputarem o eleitorado com Bolsonaro.
Pauta da oposição de esquerda
No campo da esquerda a pauta não é menos desafiante. A reabilitação de Lula para uma eventual candidatura mexeu com todo o cenário político, mas de modo especial com o campo em que ele é identificado e ao qual ele vinha se restringindo cada vez mais, desde que seus problemas com a Justiça o confinaram à prisão e depois a um relativo ostracismo. Acuado, adotara atitude defensiva e reativa, que era compreensível, do ponto de vista pessoal, mas também imobilizadora do seu partido, num contexto em que o mesmo necessitava tomar iniciativas positivas de diálogo com a sociedade e as demais forças políticas, para sair do isolamento crescente em que vivia desde o impeachment de 2016.
Embora o comando político de Lula sobre o PT jamais tenha sido desafiado de modo relevante, era visível a situação de desconforto de quadros partidários mais afeitos a uma política de frente, seja por atitude política pessoal, seja por posição institucional que ocupam, como nos casos dos governadores do Piauí, Ceará e Bahia. Desconforto que aumentava quando os aliados na esquerda com os quais o PT contou na maioria de suas empreitadas eleitorais começaram, não apenas a abrir alternativas de centro-esquerda ao viés hegemônico do petismo – processo que transcorria desde 2010, com a candidatura de Marina Silva, com as de Eduardo Campos/Marina em 2014 e Ciro Gomes em 2018 –, como a se entender, agora, para oferecerem contraponto eleitoral ao PT no campo da esquerda, atraindo para isso até o PCdoB, o mais próximo dos aliados e assíduo apoiador de Lula.
Outro relevante fator de alteração no status quo da esquerda brasileira foi a inserção de novo tipo na cena política, obtida por Guilherme Boulos, em sua recente candidatura à prefeitura de São Paulo. Chamou a atenção o contraste entre a postura relativamente moderada que adotou dessa vez e a atitude disruptiva que, para além de seu ativismo de movimento social (mas de modo sintonizado com ele), marcara suas primeiras aparições na cena política, inclusive no contexto da resistência ao processo de impeachment e à prisão de Lula. Essa atitude inicial, típica de “esquerda negativa” orientada ao confronto, rendeu-lhe, naquelas circunstâncias, palavras de estímulo e recomendação pública, da parte do líder petista. Talvez a hábil e experimentada raposa política enxergasse no jovem leão que rugia forte um aliado útil para elevar a temperatura do ambiente político e o moral da militância, num momento adverso. Mas se Lula contava manobrar com Boulos e, depois de o ter atiçado, retirar-lhe a escada com algum movimento moderado posterior (como toda a vida fez com militantes mais radicais do PT), certamente teve uma surpresa. O suposto manobrado revelou-se, na campanha paulistana, um perito manobrista, capaz de numa só campanha emular três Lulas pretéritos – o semeador de sonhos de 89, o adversário implacável do PSDB de 94 e 98 e o conciliador de 2002 – com o cuidado de se afastar do Lula ex-governante petista, que virou alvo de acusações de corrupção. Mas ainda assim avançou com apetite sobre a parte sobrevivente do espólio eleitoral também daquele que parecia ser o último Lula e que – sabemos agora – era o penúltimo.
O fator Boulos tem pouco ou quase nada a ver com um hipotético deslocamento do PT da posição de partido mais relevante da esquerda. O PSOL não tem a menor condição de ser o ator beneficiário desse suposto deslocamento que as urnas de 2020 se encarregaram de desmentir. Delas o PT saiu figurando entre os relativamente vencidos, mas exibindo a resiliência própria de uma instituição partidária genuinamente enraizada na experiência democrática que a sociedade brasileira vive nas últimas quatro décadas. Experiência rica em paradoxos, dos quais o mais notável é ter se aprofundado um processo de inclusão de novos grupos sociais na vida política (e aí o PT foi ator proeminente de democratização) ao mesmo tempo em que se dá, a partir da segunda metade da penúltima dessas décadas, uma séria avaria de um longevo hardware republicano. Democratizado sob os auspícios da Carta de 1988, o hardware serviu de incubadora daquela democratização contínua. Na inflexão institucionalmente regressiva, o PT foi ator proeminente também, inserindo, num hardware virtuoso, um software espaçoso, que se fez pesado, pelo baixo teor de república.
Boulos demonstra estar atento a isso e aí está a potencialidade de sua liderança pessoal para uma eventual reanimação da esquerda, projetada para além do curto prazo. De um lado, a visita ao centro, por uma aliança entre o PDT, o PSB e o PCdoB; de outro, um difícil processo de aproximação e entendimento entre um Boulos que emerge e áreas do PT dispostas a não deixar o partido se afogar no abraço de uma personalidade política que a cada instante parecia submergir mais fundo nas águas turvas de um populismo ressentido. Quando Lula reassumiu, como uma fênix - feliz, apaziguado e investido de uma relativa moderação e malícia que lembram seus melhores momentos - o lugar de protagonista, era essa a pauta interna de uma esquerda que, desde 2019, se mantinha como coadjuvante quase ausente de embates públicos decisivos de Bolsonaro com instituições republicanas, Se antes já se mostrava improvável e não muito racional (se falarmos de uma razão que dialoga com a realidade) convencer o maior partido da esquerda a abrir mão de apresentar um candidato, depois da fênix e de reflexos do retorno de Lula à cena, em sondagens da recepção que ele teve no eleitorado, isso se torna virtualmente impossível.
O retorno de Lula coloca a oposição de esquerda em clara vantagem sobre a oposição de centro no que se refere ao quesito candidatura que encarne o campo na arena plebiscitária de enfrentamento a Bolsonaro. E também sinaliza um processo mais simples que o do centro em relação ao quesito construção de uma disposição à unidade. Isso porque, enquanto o centro precisa cumprir um diálogo horizontal entre suas partes, na esquerda os movimentos tendem agora a ser animados pela força gravitacional da sensação difusa de que Lula pode não só salvá-la, eleitoralmente, como salvar o país de Bolsonaro.
A pauta da esquerda anterior à fênix não desapareceu. Ela foi suspensa pela contingência. Adiadas as decisões de médio e longo prazos, os problemas que as requeriam tendem a se avolumar, ainda que a força de gravidade mantenha o campo razoavelmente unido em 2022. É curioso, chega mesmo a parecer armadilha astuciosa da nossa história política, o partido que sempre virou as costas às urgências das frentes políticas em prol da sua construção particular adiar decisões cruciais para seu destino, pela necessidade de Lula cumprir um papel nacional. Só nesse papel Lula pode ser pensado hoje como protagonista. Num cenário sem Bolsonaro, ele passa a ser mais uma entre diversas opções e lhe será cobrada reflexão pública sobre o desfecho da experiência governamental petista. Mesmo seu virtual retorno à presidência da República não eliminaria anticorpos produzidos, nos últimos anos, na sociedade e na política, contra o modo petista de governar.
E se Bolsonaro derreter?
Falei muito mais sobre a esquerda porque o problema do centro já tem sido mais discutido, não só por mim. Mas tudo o que até aqui argumentei, sobre o centro e sobre a esquerda, parte da premissa de que o arranjo bolsonarista que está no governo, embora perca força de maneira gradual e sustentada, representa um perigo real para a república, pelas chances que ainda persistem de que o presidente possa se reeleger. Chances que não podem ainda ser bem mensuradas, diante não apenas da volatilidade de variáveis propriamente políticas, como da insegurança da situação social e econômica.
A experiência internacional das últimas décadas mostra que quando autocratas têm mandatos renovados, a autocracia que buscam deixa de ser um perigo e se torna realidade fatal. Por isso não se pode relaxar ao constatar que as instituições brasileiras resistem a ataques com sucesso efetivo e que uma opinião pública sólida se formou contra a aventura autocrática, já começando a reposicionar parte do eleitorado que a chancelou em 2018.
Partindo da premissa do perigo, o eixo que orienta a conduta de democratas de todos os matizes é uma frente pela defesa da Constituição, bem como das instituições e práticas democráticas que vivem à sua sombra, pelo combate à pandemia e pelo socorro aos vulneráveis. Essa frente pode ter tradução eleitoral no segundo turno de 2022, precisando, para tanto, assegurar a realização das eleições e uma disputa em primeiro turno dentro de limites civilizados que permitam a unidade posterior. O adversário comum identificado é Bolsonaro, incluído, nessa identificação, como elemento inseparável, o seu governo.
Uma análise realista precisa, contudo, considerar outra possibilidade. A de que o presidente se torne incapaz de obter a reeleição. Sem fazer previsões ou especulações sobre desdobramentos políticos e institucionais de uma constatação dessa ocorrer antes mesmo da campanha eleitoral começar, é preciso admitir que um derretimento irreversível da popularidade do presidente que o retirasse antecipadamente do jogo teria impacto imenso sobre a situação política e provocaria reposicionamento de forças em relação a 2022 mais abrangente que o atualmente em curso com o retorno de Lula ao jogo.
As áreas de oposição que se ativerem exclusivamente a uma contestação da pessoa do presidente tendem a perder seu discurso se ele sair de cena, de algum modo, ou mesmo se ele se mantiver na cena, mas sem força eleitoral para chegar ao segundo turno. Podem se tornar política e eleitoralmente irrelevantes, como oposição ou, então, aderir a uma solução governista pós-Bolsonaro, a qual, no limite, pode ser bolsonarismo sem Bolsonaro.
Por esse motivo cabe examinar com atenção o estágio das oposições diante daquelas três exigências do momento, de que aqui se falou. A esquerda, por ora, tem um virtual candidato, que se revela o mais competitivo, enquanto o centro liberal-democrático, de tantos nomes, ainda não tem nenhum. A agregação na esquerda também se revela hoje menos complexa, pela já comentada força de gravidade do fator Lula. Mas há uma das condições que ambos os campos de oposição ainda estão longe de cumprir: resolver o que dirão à sociedade sobre o dia seguinte a Bolsonaro, caso amanheça com algum desses dois campos de oposição no comando do país. Que promessas suas mensagens podem fazer?
Qual será o “novo normal” da política num pós-bolsonaro?
Um amplo consenso institucional, em defesa da constituição e da democracia já é, hoje, algo que saiu do terreno da promessa para o da realidade. Firmou-se ampla resistência nacional aos ataques à Carta de 88 e aos poderes da república, resultado compartilhado por instituições do estado, governos subnacionais, partidos, lideranças e representações parlamentares de vários matizes do campo democrático e republicano, da direita à esquerda. E igualmente por amplos setores da sociedade civil, com especial destaque ao papel da imprensa. Do mesmo modo está em curso um pacto cívico de enfrentamento da pandemia para redução de danos sanitários e sociais. Nem um nem outro chega perto da unanimidade porque a divisão política e o esgarçamento do tecido social são fatos. Mas se alcançou um patamar de convergência que permite dizer que esses dois consensos transcendem a oposição. Alcançam até alguns inquilinos da esplanada dos ministérios.
Mas é das oposições que aqui se trata. A sociedade e a parte do eleitorado que já pensa em 2022, mesmo na pandemia (não conheço mensuração do percentual que está nesse caso), precisa ouvir, de seus partidos e lideranças responsáveis, uma mensagem mais explícita e menos genérica sobre o que pensam acerca das bases de construção da sua decantada unidade e sobre o grau de civilização da política que se pode esperar dessa pactuação.
Todos os que estão convencidos do desastre econômico, social, político e cultural causado ao país pelo governo Bolsonaro compreendem que se trata, mais do que uma obra de um indivíduo, do desastre de um governo. Sendo assim, a saída melhor e mais desejável é pelas urnas, pelo fato de delas sair um novo governo. A vitória eleitoral sobre o presidente subversivo pode ser previamente facilitada pelos efeitos benévolos dos consensos cívicos.
Mas além de derrotar o protagonista do mal, é preciso fazer cessar automatismos malévolos que contaminaram espaços da República. Para isso a unidade implica em fazer um chamado a que se coloque entre parênteses, neste momento, os juízos de retrovisor acerca das responsabilidades políticas pelo desfecho eleitoral que ensejou o desastre. Admitir que um inventário dessas responsabilidades pode envolver tanto quem se aliou, ou de algum modo apoiou, em 2018, a chapa vencedora, quanto quem, opondo-se a ela, imaginou vencê-la promovendo um acerto de contas, em revide ao desfecho da crise de 2015/2016. A comum avaliação sobre o desgoverno em curso no país e sobre a profundidade das sequelas que isso já produz no seu tecido social e político é suficiente para que o foco se concentre no presente e aponte ao menos a um amanhã imediato que supere polarizações extremadas e o clima de confrontação política.
A tradução eleitoral dessa disposição não precisa ser candidatura única de todas as oposições. Precisa ser articulação e consolidação de candidaturas agregadoras de seus respectivos campos, que sinalizem agregações parciais, no primeiro turno das eleições; disposição comum dessas candidaturas oposicionistas de explicitarem suas diferenças e divergências, para qualificarem o debate democrático sem prejuízo de entendimento entre elas no segundo turno; concretização desse entendimento numa agregação mais ampla para enfrentar a candidatura governista no segundo turno, ou na ausência de tal adversário, para travar uma disputa republicana entre candidaturas diversas do campo democrático. A reciprocidade é condição importante para haver chance das ações oposicionistas de ambos os campos darem vida a um “novo normal” também na política.
Essa é a premissa política para haver dia seguinte. A partir dela pode-se pensar em programas eleitorais que dirão o que ele pode ser, ou, ao menos, o que se quer que ele seja.
* Cientista político e professor da UFBa
Editorial da Política Democrática Online conclama oposições para cooperação
Publicação mensal da FAP diz que país mergulhou “em cenário de incerteza” com eleição de Bolsonaro
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
Oposições políticas devem seguir na tarefa fundamental de cooperação cada vez mais indispensável para manter a resiliência democrática permanente. “A hora é de concentrar o esforço de todos no combate às ameaças que rondam a democracia”, alerta o editorial da revista mensal Política Democrática Online de abril (30ª edição).
Produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania, a publicação diz que o país mergulhou “no cenário de incerteza” após as eleições de 2018, que levaram Jair Bolsonaro (sem partido) à presidência do país. A nova edição foi lançada no último sábado (17/4).
Clique aqui e veja a 30ª edição da revista Política Democrática Online (abril de 2021)
“Apenas uma percepção clara se consolida mês a mês, para um número crescente de observadores: a progressão acelerada da crise, em suas diferentes dimensões”, afirma outro trecho da revista FAP.
Marca da morbidez
No plano sanitário, de acordo com o editorial da Política Democrática Online de abril, a pandemia avança de forma galopante e, com ela, o número de óbitos evitáveis.
“Ultrapassamos a marca de trezentas e cinquenta mil mortes, a média de falecimentos ao dia segue em curva ascendente e não dispomos ainda de uma previsão confiável a respeito do ponto aproximado de reversão dessa situação”, assevera o texto.
De acordo com a revista, a situação de catástrofe é reflexo, exclusivamente, da omissão do governo federal na contratação das vacinas e sua oposição sistemática às práticas recomendadas pelo consenso da ciência na sua falta: uso de máscaras e distanciamento social.
“A expectativa do caos sanitário no curto prazo empurra, por sua vez, a perspectiva de retomada da economia para o médio e longo prazo”, observa. “A redução concomitante do valor e abrangência do auxílio do governo aos mais necessitados abre as portas para o aprofundamento da insatisfação popular, com consequências imprevisíveis no momento”.
Além disso, o editorial chama atenção para a “dimensão política da crise”. “Está claro hoje que a hipótese de enquadramento do Poder Executivo por parte de sua base parlamentar, fundamentalmente o grupo conhecido como “centrão”, não passou de esperança vã”, afirma a revista Política Democrática Online de abril.
“Forte fadiga”
Segundo a publicação, “a esperança vã” é alimentada por alguns dos atores do processo e seus apoiadores na esfera pública. “Crises continuam a ser provocadas; as instituições, tensionadas; as práticas formais e informais da democracia, erodidas”, critica.
“As instituições encontram-se sob forte fadiga: seu desenho não incorporou a hipótese de mandatários de má fé democrática, em postos de relevância política”, destaca o editorial.
A edição de abril da Revista Política Democrática Online também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, análises de política nacional, política externa, cultura, entre outras, além de reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos durante a pandemia.
O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.
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Luiz Sérgio Henriques: Crônica de uma nação descentrada
Rompe-se o tecido social e poucas vezes a imagem do País terá descido tão baixo
No quadro das ameaças de colapso da personalidade e também no das catástrofes sociais, recuperar o “centro”, seja só o de si próprio, seja o de toda uma comunidade, costuma ser o movimento que impede a descida aos infernos e a anomia generalizada. Não se trata de programa tímido ou moderado, embora a moderação, sem deixar de ir à raiz das coisas, esteja presente como um dos seus elementos constitutivos.
Em geral, a urgência de um movimento desse tipo sucede à percepção de um risco cuja natureza é, acima de tudo, existencial: vemo-nos, como indivíduos ou como coletividade, diante de forças que escapam ao nosso controle, com potencial de destruição que só podemos antever recorrendo às distopias mais contundentemente imaginadas. Em situações assim, podemos tocar Orwell com as mãos.
Como sociedade nacional, entramos num túnel alucinante com a mais grave crise sanitária em pelo menos um século. Uma crise verdadeiramente global, como é da natureza do nosso tempo de humanidade (contraditoriamente) unificada, mas que afeta cada uma das sociedades de maneira particular e quase única, a depender de fatores variadíssimos, como a demografia, a capacidade econômica ou a própria organização política.
“Escolhemos” enfrentar o grande drama abrindo mão, quase inteiramente, de vantagens preciosas, como a coesão social, a vontade democraticamente orientada para fins de saúde pública e defesa econômica, a mobilização consciente dos recursos científicos de que o País tradicionalmente dispunha e, certamente, ainda dispõe. Este, afinal, é o país de Oswaldo Cruz, de Carlos Chagas e da plêiade de médicos e gestores que ergueram, na redemocratização, o Sistema Único de Saúde.
Por decisão própria – e para espanto dos muitos amigos do Brasil em todo o mundo que nos percebiam, às vezes ingenuamente, como uma das possibilidades mais interessantes de criação de um soft power não só em escala regional, mas global – nos encerramos, desde 2018, numa aventura em que cotidianamente se conjugam, em doses colossais, atraso, fanatismo e irracionalismo.
Para alguma tentativa de explicação será preciso talvez recorrer a mais do que ao cansaço com a experiência do petismo no poder. Para remediar tal cansaço existiam, e existem, remédios políticos adequados, como a crítica severa, a tenaz construção de alternativas, a proposição de projetos concorrentes, mas certamente não a convocação de alguns dos piores traços recessivos da nossa formação como povo e como Estado nacional.
Uma parte das elites econômicas pretendeu que valia a pena difundir massivamente a mensagem do liberalismo extremado, associando-o ao fundamentalismo ideológico e religioso. Um liberalismo assim entendido dificilmente se poderia associar a qualquer ideia de “sociedade aberta”, como alguns chegaram a encenar, soletrando um Karl Popper aprendido de orelha. Como era previsível, antes daria origem a uma realidade atravessada por formações meramente reativas, entre elas a do “politicamente incorreto”, que sustenta ações e palavras particularmente cruéis em relação aos sujeitos socialmente “fracos”, negros, indígenas, mulheres. E, horror dos horrores, em relação aos mortos da pandemia, o que faz de nós um caso único de desprezo à vida e à dor humana no seu sentido mais elementar.
De fato, desequilibramo-nos, passamos a conviver com uma realidade anomalamente povoada de sociopatas. Individual e coletivamente, ao perder o “centro”, nos empobrecemos. Difunde-se em falas e documentos oficiais uma noção amputada de liberdade, só pela qual, segundo alguns, valeria sacrificar a vida. A liberdade que se proclama, com grau poucas vezes visto de irresponsabilidade, é aquela destituída de impedimentos de qualquer natureza, dando a cada indivíduo a possibilidade de se movimentar selvagemente entre outros indivíduos igualmente livres de freios e obrigações. Exercer tal liberdade seria rebelar-se, quem sabe com armas na mão, contra as limitações que nós mesmos livremente nos damos, a exemplo das que são indicadas consensualmente há séculos em situações de pestes e epidemias. Paradoxalmente, no entanto, a imposição de tal liberdade anárquica e prepotente não dispensa a mão pesada do Estado nem a difusão de bandos e milícias no corpo da sociedade civil.
O preço do “descentramento” e mesmo das excentricidades a que assistimos, bestificados, é de conhecimento geral: internamente, rompe-se o tecido social; externamente, poucas vezes a imagem do País terá descido a níveis tão baixos. Em meio a ruína ainda maior, intelectuais italianos de peso quiseram saber, antes da retomada da democracia no pós-guerra, se os 20 anos de fascismo teriam sido um “breve parêntese” ou, na verdade, a “autobiografia da nação”. Nós também logo acordaremos do pesadelo, mas por muito tempo não escaparemos de análogo exame da nossa História, tão marcada por “parênteses” autoritários, que, caso tornem a se repetir, terminarão por definir a fisionomia de uma nação recorrentemente enredada em terrores noturnos e medos infantis.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Alma Preta: CPI da Covid não possui nenhum senador negro ou mulher
O grupo de trabalho é composto por quatro apoiadores de Jair Bolsonaro, cinco membros independentes e apenas dois membros da oposição; entenda o que a investigação significa
Texto: Caroline Nunes | Edição: Nataly Simões | Imagem: Reprodução/Senado em Foco
Entre os 11 senadores que compõem o grupo de trabalho da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid não há nenhum negro e nenhuma mulher. O único senador negro em exercício da função é Paulo Paim (PT), que não foi convocado sequer como suplente, e a Casa conta com 12 senadoras em suas 81 cadeiras, equivalente a cerca de 15% do total.
Na última quinta-feira (15), o presidente do senado Rodrigo Pacheco definiu os nomes do colegiado nesta primeira fase da CPI. Os senadores escolhidos, que apoiam o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) são: Ciro Nogueira (PP-PI), Marcos Rogério (DEM-RO), Jorginho Mello (PL-SC) e Eduardo Girão (Podemos-CE).
Já os cinco membros independentes, que votam a favor do governo e em algumas ocasiões criticam o combate à pandemia são: Otto Alencar (PSD-BA), Eduardo Braga (MDB-AM), Omar Aziz (PSD-AM), Renan Calheiros (MDB-AL) e Tasso Jereissati (PSDB-CE).
Na oposição, apenas dois senadores fazem parte da CPI: Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Humberto Costa (PT-PE). Em uma coletiva de imprensa, acompanhada pela Alma Preta, Rodrigues afirmou que o objetivo desta CPI é apurar os fatos sobre o enfrentamento à Covid-19 e não apontar culpados.
“O presidente [Jair Bolsonaro] pode ficar tranquilo, mas iremos apurar todas as ações e omissões no combate à Covid. Quem será ouvido é a ciência”, declarou o parlamentar.
A formalização da CPI da Covid ocorreu após determinação do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso, que atendeu a solicitação dos senadores Jorge Kajuru (Cidadania-GO) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE).
Entenda o que a CPI da Covid pode fazer
A primeira reunião da CPI da Covid deve acontecer na próxima quinta-feira (22), convocada pelo membro mais velho do colegiado, Otto Alencar, e definirá quem será o presidente do grupo.
Sobre esse cargo, Randolfe Rodrigues diz estar “disposto para qualquer trabalho que ajude o Brasil a sair dessa situação”. Quando escolhido, o presidente da comissão é quem define quem será o relator da investigação, que é o membro responsável pelo relatório final a ser entregue ao Ministério Público para que as medidas legais adequadas sejam tomadas.
O objetivo da investigação - que irá durar 90 dias - é identificar possíveis irresponsabilidades do governo federal diante da morte de mais de 365 mil pessoas no Brasil em decorrência da infecção pelo novo coronavírus. A CPI também investiga a aplicação da verba enviada aos estados para o enfrentamento à pandemia.
Na prática, a comissão pode inquirir testemunhas sob juramento da verdade, ouvir suspeitos, prender alguém em caso de flagrante de delito, solicitar informações e documentos à administração pública e tomar depoimento de autoridades. O colegiado também pode convocar os ministros do Estado, quebrar o sigilo bancário, de dados e fiscal - desde que por ato fundamentado -, solicitar o auxílio de servidores de outros poderes e também se deslocar a qualquer local do Brasil para realizar as investigações de maneira mais minuciosa ou para audiências públicas.
Desde fevereiro já havia apoio à investigação de ao menos 27 senadores, mas o presidente do senado Rodrigo Pacheco recusava a solicitação sob o argumento de que o foco do Parlamento deveria estar no avanço da vacinação contra a doença.
O senador Randolfe Rodrigues ainda salienta que é essencial entender as razões que façam o país ter se tornado o epicentro da Covid no mundo, ouvindo os quatro ministros da saúde que ocuparam o cargo durante a pandemia: Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich - os dois primeiros -, Eduardo Pazuello e o mais recente, Marcelo Queirog.
Alon Feuerwerker: Chegou a CPI. E aqui é Brasil
Vem sendo observado, e escrito, desde as eleições de 2018: o então candidato do PSL e hoje presidente da República enfrenta dois agrupamentos, a esquerda e a autointitulada centro-direita. Como ensina a história, guerrear em duas frentes é complicado. Ainda mais se alguma hora os adversários resolvem juntar-se, entendem-se sobre o dia seguinte a uma eventual saída do governante.
A esquerda é liderada pelo PT, mesmo que os liderados dele busquem o tempo todo desvencilhar-se do líder. A oposição à direita é a que construiu o impeachment de Dilma Rousseff, foi o esqueleto e a musculatura do governo Michel Temer e imaginava consolidar-se no poder em 2018. Mas acabou ultrapassada, de passagem, por Bolsonaro ainda no primeiro turno.
E ficou sem opção a não ser sustentá-lo no segundo. E hoje apoia o programa econômico dele mas faz oposição a ele. O Brasil, como se sabe, não é mesmo para amadores.
A esquerda traz no momento o risco eleitoral concreto para o presidente. Não que a direita alternativa ao bolsonarismo deixe de representar perigo nesse terreno. O problema dela são as relativamente menores, por enquanto, chances de passar ao segundo turno. E com Luiz Inácio Lula da Silva elegível o desafio tornou-se ainda mais complicado. É improvável que esse autonomeado “centro” penetre na base lulista.
Sobra então tentar tirar Bolsonaro. Na eleição ou se possível antes. O problema da segunda hipótese: e se o hoje vice senta na cadeira e ganha musculatura para 2022?
Nenhum presidente brasileiro perdeu a reeleição desde que o instituto foi aprovado, na sucessão de 1998. Ou seja, nenhum ficou fora do segundo turno quando não venceu no primeiro. Daí o grau de dificuldade que o teatro de operações eleitoral coloca na caminhada do centrismo. A primeira escalada da parede é tentar convergir em torno de um candidato competitivo. A segunda é dar um jeito de fazer Bolsonaro baixar decisivamente de seus 25% a 30% de apoio e intenção de voto.
A Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as ações federais na pandemia é, antes de tudo, instrumento para avançar nessa missão. Inviabilizar Bolsonaro eleitoralmente. Em 2005, imaginava-se que a CPI dos Correios pudesse fazer isso com Lula. Não funcionou então. Funcionará agora? Na comparação, o quadro é muito mais complicado hoje para o governo. São centenas de milhares de mortos pela Covid-19 para lançar na contabilidade política.
E o petista tinha uma base congressual mais consolidada. Em comum com Bolsonaro agora, enfrentava uma barragem unânime de imprensa.
Como Lula ultrapassou a cancela naqueles anos? Em primeiro lugar, as assim chamadas “investigações” da CPI não chegaram nele. Os motivos ficam para análise dos historiadores. Mas não chegaram. E na passagem de 2005 para 2006 a economia acelerou, tanto que o crescimento do PIB no último ano do primeiro mandato lulista bateu em 4,0%. Na época, foi recebido como algo bom. Hoje, um número assim seria saudado com espoucar de rolhas.
O presidente atual enfrenta uma conjuntura bem mais complexa. Os números da economia para o resto do ano ainda são uma incógnita, mas é razoável supor que no início do próximo estarão melhor. Pelo menos é a aposta empresarial. Resta esperar para ver se a CPI conseguirá, na visão do grande público, cravar na figura presidencial a responsabilidade pelas mortes na pandemia. Hoje, as pesquisas apontam uma culpa ainda algo distribuída.
E será que mesmo isso conseguiria lipoaspirar a base bolsonarista raiz?
E tem um detalhe final. É sempre bom deixar a porta aberta, na análise, para alguma heterodoxia jurídico-política. Aqui é Brasil.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação