covid-19

Afonso Benites: Renan Calheiros, o insólito novo líder da oposição a Bolsonaro

Político camaleão e hábil interlocutor na câmara alta, senador envia recado: “Nossa cruzada será contra a agenda da morte. Contra o caos social, a fome, o descalabro institucional, o morticínio, a ruína econômica, o negacionismo”

Inaugurada nesta terça-feira, a CPI da Covid já demonstrou quem será o segundo principal adversário político de Jair Bolsonaro pelos próximos meses, o senador Renan Calheiros (MDB-AL). Não é o principal, pois, como usualmente se diz em Brasília, o papel de maior opositor do Governo Bolsonaro cabe ao próprio presidente e a seus ministros, com as crises autoinfligidas e declarações que provocam conflito com outros poderes e países ―nesta terça-feira foi a vez de Paulo Guedes (Economia) irritar Pequim dizendo que o “chinês inventou o vírus”, sem saber que estava sendo gravado. Antes desta gafe, foi o discurso de Calheiros como relator da comissão parlamentar de inquérito que trouxe os primeiros indícios do caminho que o experiente senador de Alagoas pretende trilhar e do barulho que a CPI pode causar.

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Em sua primeira participação, Calheiros provocou incômodo no primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). O herdeiro do presidente reclamou que as sessões presenciais da CPI poderiam resultar na contaminação de mais servidores da Casa e até na morte de parlamentares ―três senadores já morreram de covid-19 desde o ano passado. “Acho que o presidente [do Senado] Rodrigo Pacheco está errando, está sendo irresponsável, porque está assumindo a possibilidade de, durante os trabalhos dessa CPI, acontecerem mortes de senadores, morte de assessores, morte de funcionários desta Casa em função da covid-19”, disse Flávio. Indagado por repórteres sobre esta fala, Calheiros ironizou. “É a primeira vez que ele se preocupa com aglomeração. Significa que ele, talvez, esteja saindo do negacionismo e esteja aderindo à ciência e à necessidade dos brasileiros”, afirmou.PUBLICIDADE  

Em seu primeiro discurso na CPI, o senador não citou diretamente Bolsonaro em nenhuma ocasião. Mas enviou recados incômodos. “Nossa cruzada será contra a agenda da morte. Contra o caos social, a fome, o descalabro institucional, o morticínio, a ruína econômica, o negacionismo”, disse. Ele prometeu ser imparcial em seu relatório, do qual disse querer ser um sintetizador, um redator. E alegou ainda que prezará sempre pela ciência. É um contraponto à rejeição dos preceitos científicos de Bolsonaro e de seus asseclas. “A comissão será um santuário da ciência, do conhecimento e uma antítese diária e estridente ao obscurantismo, ao negacionismo sepulcral responsável por uma desoladora necrópole que se expande diante da incúria e do escárnio desumano.”

Crítico da operação Lava Jato, Calheiros reforçou essa postura também no discurso inicial da CPI. “[A comissão] tampouco será um cadafalso com sentenças pré-fixadas ou alvos selecionados. Não somos discípulos nem de Deltan Dallagnol nem de Sérgio Moro”, disse em referência ao procurador e ao ex-juiz que atuaram na operação em Curitiba. “Não arquitetaremos teses sem provas ou Power Points contra quem quer que seja. Não desenharemos o alvo para depois disparar a flecha”.

Ataques nas redes processos judiciais

Assim que passou a circular a informação de que o emedebista seria o relator da comissão, interlocutores do Governo o procuraram para tentar aliviar o relatório para Bolsonaro. Na conta, estaria um eventual apoio ao seu grupo político na eleição estadual do ano que vem. O cenário em Alagoas ainda não está claro. O Estado é governado por Renan Calheiros Filho (MDB), que, em seu segundo mandato, tem dois ou três pré-candidatos a sua sucessão. O apoio de Bolsonaro, no momento, não é bem recebido pelos emedebistas. Por enquanto, eles preferem estar ao lado do lulismo do que do bolsonarismo.

Seja como for, Renan Calheiros é um camaleão político que ocupa cargos públicos e eleitorais há 42 anos. Desde a redemocratização, já foi da base governista de todos os presidentes. De Fernando Collor (PROS) a Michel Temer (MDB). Em alguns momentos foi mais defensor do presidente da ocasião. Em outros, como no de Dilma Rousseff (PT), foi um conciliador que deixou de apoiá-la na reta final de processo de impeachment, mas conseguiu manter os direitos políticos da petista em um grande acordo parlamentar. Por essa razão, é bem-quisto pelos petistas, principalmente pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.PUBLICIDADE

Após ser derrotado por Davi Alcolumbre (DEM-AP) para a presidência do Senado em 2019, Calheiros atuou nos bastidores contra a gestão Bolsonaro. Fugiu dos holofotes por um período para se defender dos 12 processos aos quais responde no Supremo Tribunal Federal e, agora, volta com todas as cargas contra o presidente e já enfrenta a ira das redes bolsonaristas. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) tentou impedi-lo, por meio de uma ação judicial, retirá-lo da relatoria. Conseguiu, em primeira instância, mas viu na segunda, viu a decisão cair. “Intimidações, e todos os dias nós as vemos sob qualquer modalidade e arreganhos, não nos deterão”, disse. Uma das principais queixas dos bolsonaristas trata exatamente dos elos familiares de Calheiros. “Se for pela questão de interesse, o presidente não deveria nem deixar o Flávio Bolsonaro entrar aqui no colegiado”, disse o líder do PT no Senado, Paulo Rocha.

A característica mutante de Calheiros faz com que ele esteja, hoje, ao lado de quem antes era seu opositor. Agora, caminha de braços dados com Randolfe Rodrigues (REDE-AP), o senador que liderou o seu partido na Justiça, em 2016, em um movimento para afastar o emedebista da Presidência do Senado. Naquela ocasião, foi a primeira vez que o Senado afrontou uma decisão judicial, dada em caráter liminar pelo ministro Marco Aurélio Mello.

Próximos passos

Nesta quarta-feira, a CPI deverá receber sugestões de planos de trabalho, que são uma espécie de roteiro do colegiado que inclui as próximas convocações e os documentos que deverão ser entregues para se iniciar a investigação. Três já foram entregues, e o relator espera receber ao menos mais cinco. Antes, contudo, Calheiros já enviou uma série de requerimentos que devem dar o tom dos trabalhos na primeira semana. Na quinta, esses planos de trabalho deverão ser votados pela comissão.

O primeiro a comparecer na comissão, como testemunha, será o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), na próxima terça-feira. “Temos a preocupação de começar a cronologia do início, para saber o que foi feito desde o primeiro momento”, disse o presidente do colegiado, Omar Aziz (PSD-AM).

Mandetta deixou o Governo por discordar da conduta negacionista do presidente Jair Bolsonaro. Ele defendia medidas de restrição de circulação enquanto o mandatário era contrário. Também havia um confronto sobre o uso de cloroquina e outros medicamentos ineficazes no tratamento do coronavírus, sempre propagados pelo presidente.


Alon Feuerwerker: A largada da CPI

E a Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado instalou-se com uma missão definida pela maioria de seus participantes: apontar a culpa do governo federal pelo alto volume de mortes na pandemia. Na inauguração, ouviram-se declarações de princípio sobre a isenção nos trabalhos. Mas é apenas retórica. Conclusões de CPIs são modeladas não tanto pelos fatos, mas pela correlação de forças.

O Brasil vive uma situação política curiosa, porém habitual. Uma certa bipolaridade espiritual. No Senado, o foco é apontar os canhões da CPI para o Palácio do Planalto. Na Câmara, o presidente da casa legislativa engata a marcha das reformas administrativa e tributária. O que vai prevalecer? A agenda negativa ou a positiva? Naturalmente, cada um mira 2022.

Bem, a correlação de forças na largada da CPI é desfavorável ao Planalto. Mas o desenho que vale mesmo é o a ser observado nas hora das conclusões. Ou seja, um governo que aparentemente perdeu a maioria política no Senado, apesar de manter certa maioria programática, especialmente quando se trata de assuntos relacionados à economia, vai ter de encontrar uma saída do labirinto. 

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Folha de S. Paulo: Em 100 dias, Biden toma medidas ousadas em busca de marcas permanentes

Presidente dos EUA precisa enfrentar crise migratória, seu principal foco de críticas

Marina Dias, Folha de S. Paulo

Joe Biden já tem um elogio favorito nos corredores da Casa Branca. Assessores próximos dizem que o presidente dos Estados Unidos comemora, mesmo que discretamente, quando ouve que sua largada tem sido mais ambiciosa que a de Barack Obama, de quem foi vice de 2009 a 2017.

Nos primeiros cem dias de seu governo, que serão completados nesta quinta-feira (29), Biden sinalizou o desejo de ser um dos presidentes mais transformadores da história americana. Mas, para isso, precisa fazer com que suas propostas ousadas se tornem marcas permanentes, reformulando o país em termos de desigualdade, direito ao voto e papel do Estado no crescimento econômico.

A marca dos cem dias é recheada de simbolismo, geralmente sem grandes efeitos práticos. Neste ano, porém, com o adiamento causado pelas restrições da pandemia, a data vai praticamente coincidir com o primeiro discurso de Biden na sessão conjunta do Congresso, sua oportunidade de celebrar vitórias e elencar prioridades que podem desenhar o legado de sua Presidência.

Nesta quarta-feira (28), o democrata deve enumerar avanços de seu plano contra a Covid-19, que contou com a distribuição de mais de 200 milhões de vacinas em cem dias e freou o recorde de casos e mortes causadas pela doença no país. Com a urgência ecoada do Salão Oval, Biden alçou os EUA de desastre sanitário ao posto de um dos maiores sucessos de vacinação em massa do mundo e conseguiu apontar para uma recuperação econômica mais rápida com a aprovação de um pacote de alívio econômico no valor de US$ 1,9 trilhão, com auxílio específico aos mais vulneráveis.

Diante dos parlamentares, o presidente quer chamar atenção para os próximos desafios e deve anunciar o aumento de impostos sobre os mais ricos, em parte para financiar sua proposta trilionária de reforma na infraestrutura. Ele sabe que os próximos cem dias serão mais difíceis —e arriscados—, pois precisa avançar com essa agenda, que mistura criação de empregos e economia verde, sem deixar de lado a crise imigratória, a maior de seu governo e seu principal arcabouço de críticas até agora.

O pacote de socorro econômico foi a grande vitória de Biden no Congresso até aqui, e 1 das 11 leis que o presidente assinou desde que tomou posse, em 20 de janeiro. O número é pequeno se comparado a seus antecessores mais recentes —Donald Trump chancelou 28 leis nos cem primeiros dias e Obama, 14—, mas o dado define a arriscada forma de governar do democrata.

Em termos de ordens executivas, mecanismo que não precisa do aval do Congresso para entrar em vigor, mas pode ser revertido mais facilmente, o presidente é o recordista desde Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), que governou o país em meio à Grande Depressão e à Segunda Guerra Mundial.

Biden assinou 42 delas, muitas para cancelar políticas de Trump, como a saída dos EUA do Acordo Climático de Paris e da Organização Mundial da Saúde, o veto à entrada de pessoas de alguns países de maioria muçulmana em território americano e a liberação de recursos para a construção de um muro na fronteira com o México.

Político tradicional e senador por quase quatro décadas, Biden entende que ordens executivas são efêmeras e, para que suas políticas não sejam revertidas por um eventual próximo presidente, é preciso que o Congresso as torne leis.

O presidente tem pressa porque a frágil maioria de seu partido no Senado —são 50 votos para os democratas e 50 para os republicanos, com desempate nas mãos da vice-presidente, Kamala Harris— pode terminar nas eleições legislativas de 2022.

Projetos que não envolvem orçamento precisam de mais do que apenas maioria simples para serem aprovados, como medidas que estão no pacote de infraestrutura ou sobre controle de armas e para frear as restrições de direito ao voto, temas que Biden tem abordado publicamente.

Enaltecido durante a posse, o discurso pelo bipartidarismo, entretanto, tem ficado para trás. A fórmula de Biden é convencer o Congresso a aprovar suas medidas impulsionado pelo apoio popular —e é por isso que ele tem apresentado as propostas de reforma na infraestrutura e investimento em economia verde atreladas à criação de milhões de empregos e aumento da competitividade no país.

Segundo o site FiveThirtyEight, a média de aprovação do presidente é de 54,4% —mais popular do que Trump durante todo o seu mandato, mas menos do que Obama, que tinha 60% no mesmo período.

Um dos poucos temas que tem unido Biden aos republicanos é a tensa relação com a China e a Rússia.Até agora, o democrata manteve ou até reforçou as políticas assertivas de Trump contra Pequim e aplicou sanções ao regime de Vladimir Putin por interferência nas eleições americanas e ataques virtuais.

Segundo um integrante do Departamento de Estado, os governos passados tiveram o luxo de escolher as ameaças de segurança nacional contra as quais iriam atacar primeiro, mas Biden não teve essa opção. Nas palavras do diplomata, China, Rússia, Covid-19 e mudanças climáticas se impuseram à Casa Branca.

Na semana passada, Biden liderou a Cúpula de Líderes sobre o Clima, para tentar reposicionar os EUA na liderança da geopolítica mundial, ditada pelo meio ambiente, considerado mais um trunfo do democrata.

falta de comprometimento claro de países como China e Índia com a redução nas emissões de poluentes na próxima década, porém, podem atrapalhar os planos do americano.

Mas sua maior dor de cabeça hoje é a crise nas fronteiras, com o maior fluxo de imigrantes nos EUA em 20 anos. Durante a campanha, Biden prometeu dar tratamento mais humanitário aos estrangeiros que tentam entrar nos EUA sem documento e facilitar o acesso à cidadania americana a 11 milhões de imigrantes, mas o descontrole nas fronteiras eclipsou medidas já colocadas em prática, como a que pretende reunir as famílias de separadas na divisa no governo Trump.

Biden tem sido duramente atacado, inclusive por aliados, por ter restringido o acesso à imprensa para acompanhar o trabalho das patrulhas na divisa com o México e pelo alto volume de crianças desacompanhadas que ficam em centros de detenção mais do que as 72 horas permitidas por lei.

Ele ainda não conseguiu dar uma resposta efetiva sobre a crise, mas, nesta terça-feira (27), nomeou para o comando da ICE (Agência de Imigração e Alfândega, na sigla em inglês) uma autoridade do Texas conhecida por ser crítica das políticas imigratórias de Trump.

Sob enxurradas de críticas na mesma área, a imigração, Obama carrega a pecha de que podia ter sido mais audacioso durante seu governo, mas, ainda assim, o primeiro presidente negro da história americana deixou duas marcas na história: Obamacare e a reforma financeira para sair da crise de 2008.

O senso de urgência mostra que Biden sabe que o tempo é curto para fazer mudanças estruturais em um país tão polarizado, mas os entraves podem ser grandes, e a possibilidade de concorrer à reeleição —que antes não era cogitada— já apareceu em um pronunciamento do democrata.


Roberto DaMatta: Somos todos pacientes

Para José Paulo Cavalcanti, Merval Pereira, Carlos Alberto Sardenberg e Joaquim Falcão

O dicionário “Aurélio” revela o amplo significado da palavra “paciente”. Uma palavra fundamental por sua capacidade de desmontar bate-bocas, inibir impaciências em filas, adiar vinganças e apaziguar minha angústia diante deste claro endoidecimento do Brasil.

Somos todos pacientes porque haja paciência para suportar o hospício desta psicose jurídico-política. De um lado, um enorme ressentimento porque o “povo”, que já foi puro e sagrado, teve motivos para eleger um presidente querelante, sabotador e autoritário; do outro, um surto suicida incapaz de apaziguar um sistema obsessivamente legalista em que a forma pode valer mais que o “objeto” ou substância (falando francamente: que o crime).

A palavra paciente é parte do linguajar jurídico, mas creio que seria absurdo ou despropositado chamar assassinos, genocidas e ladrões — gente como Capone, Eichmann, Goebbels, Stálin, os torturadores do regime militar, os assassinos do menino Henry, os larápios confessos da Operação Lava-Jato e Derek Chauvin, o policial que matou com óbvio viés racista George Floyd — de “pacientes”.

Uma palavra que invoca neutralidade não deveria ser usada como sinônimo de quadrilheiros. Sobretudo de gente que traiu o seu voto. Mas cabe perguntar: quando um réu vira paciente? A resposta é clara: quando ele é importante!

Aliás, se ele é o dono da grande fazenda, nem poderia ser julgado. Chamá-lo, pois, de paciente fatalmente revela a parcialidade e a lealdade do tribunal às convenções estruturais do “sistema brasileiro”, ancoradas na cautela dos compadrios, dos favores e do “você sabe com quem está falando?”, ou julgando... Essa “medida cautelar da paciência” explicita como o que conta não é o crime, mas quem o cometeu.

Trata-se de mais uma jabuticaba expressiva do jeitinho brasileiro.

Uma amiga americana compara com brilho Trump e Bolsonaro. Mas é provável que Donald seja mais facilmente explicável que Jair.

A palavra-chave nessa comparação é o compromisso e a lealdade a uma tradição democrática e republicana. É a fidelidade com a liberdade e com a igualdade como valores. Biden e Harris fazem parte dessa lista, que tem desacordos, mas não tem dúvida relativamente às complexas e duras exigências deste regime inacabado por definição chamado democracia.

Aqui no Brasil, ainda não concordamos se não seria melhor continuar mais ou menos numa realeza ibérica (franquista ou salazarista), mais ou menos populista-socialista e mais ou menos liberal-aristocrática, mas sempre autoritária, ou se vamos continuar como frustrados republicanos, arcando com o difícil compromisso de fazer valer a lei para todos — sobretudo, para nós mesmos!

E, por último, mas não por fim: se vamos cobrar coerência da instituição guardiã da Constituição, o STF.

As diferenças culturais entre Brasil e Estados Unidos são grandes, mas nada no campo do humano é impossível. Os americanos têm uma Constituição pioneira, pequena e inteligível; aqui, um oceano de leis complementares e de privilégios impede a clareza. Eles começaram republicanos, e nós fomos um pouco de tudo. Lá, trata-se de manter continuidade; aqui, de liquidar antigos privilégios; lá, quanto mais privilegiado, mais se é responsável perante a lei; aqui, o justo oposto. Lá, um federalismo localista obriga a julgamentos com início, meio e fim; aqui, há o recurso que engaveta os processos, tirando a confiança na maior das igualdades: a equidade perante a lei.

A melhor prova é o caso Floyd. Lá, está resolvido! Aqui, o STF anula sentenças e suspeita de um movimento anticrime fundamental para corrigir as trapaças do populismo, as sobrevivências do fidalguismo e o retorno do filhotismo. Lá, o trabalho é um chamado; aqui, foi e ainda é estigma e cicatriz da escravaria.

Aqui, o ministro Gilmar Mendes afirma, com maestria sociológica, que o governo do PT engendrou um “plano perfeito” de poder. Num texto magistral, esse paladino da coerência continua: “Na verdade, o que se instalou no país nesses últimos anos, e está sendo revelado na Lava-Jato, é um modelo de governança corrupta. Algo que merece o nome, claro, de Cleptocracia”. Onde foi parar esse juiz? Será que ele foi canibalizado por sua imparcialidade?

Para concluir, lembro uma outra pérola do mesmo magistrado em sua resposta a um colega: “O moralismo é a pátria da imoralidade”.

Como um velho acadêmico metido a cronista em pleno processo de cancelamento, digo apenas que a incoerência como um valor é, sejamos modestos, a terra da injustiça.


Hélio Schwartsman: A CPI da Covid será um sucesso?

Se fixarmos o objetivo no impeachment, receio que a resposta seja não

Com o passar dos anos, tornei-me cético em relação a CPIs. Há tempos que eu não vejo uma delas produzindo bons resultados.

Uma das razões para isso é que investigar é uma tarefa técnica, que requer uma expertise só raramente encontrada entre parlamentares. O ambiente escancaradamente público e politicamente carregado do Parlamento tampouco ajuda em apurações, que costumam avançar mais quando conduzidas com discrição e objetividade.

CPI da Covid, porém, é diferente. E é diferente porque a investigação já está pronta. Aliás, dizer "está pronta" é um eufemismo. Tanto o TCU como o MPF já analisaram a atuação do governo na pandemia e produziram documentos pouco abonadores à conduta das autoridades do Executivo. A imprensa também fornece boas peças.

Nos últimos dias, o próprio governo, em mais uma demonstração de inabilidade, deu de mão beijada para a CPI um roteiro com 23 vulnerabilidades a explorar. No que talvez seja inédito, existem até estudos acadêmicos a subsidiar o trabalho dos parlamentares, apontando falhas graves na gestão da epidemia e correlacionando falas negacionistas do presidente a aumentos nos óbitos. O relator da CPI precisará só juntar tudo isso e selecionar as melhores partes.

Isso significa que a CPI da Covid será um sucesso? Depende do que se define como sucesso. Se considerarmos que a meta é apenas gerar um relatório poderoso, a resposta é provavelmente sim. Mas, se formos um pouco mais ambiciosos e fixarmos o objetivo no impeachment, aí eu receio que a resposta seja não.

O que manda é a política. E o mais provável é que as correntes majoritárias no Parlamento prefiram usar a CPI para manter uma espada de Dâmocles sobre a cabeça de Bolsonaro e arrancar vantagens do governo.

É pena, porque qualquer coisa menos que o impeachment significará que a sociedade acha normal e aceitável ter um presidente que fez tudo o que Bolsonaro fez.


Elio Gaspari: O caos de Bolsonaro

No Brasil, ao padecimento sanitário juntou-se um governo negacionista e caótico

Outro dia, o capitão perguntou:

— O que eu me preparo?

E respondeu:

— Não vou entrar em detalhes, um caos no Brasil.

Em março do ano passado, Bolsonaro reclamava da “histeria” diante do vírus, levantava o estandarte do Apocalipse, com uma frase que explica seu comportamento diante da pandemia:

— Vai ter um caos muito maior se a economia afundar. Se a economia afundar, afunda o Brasil. (...) Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo.

Entre as duas referências de Bolsonaro ao caos, morreram perto de 400 mil pessoas, e a população aguentou o tranco com sofrimento e paciência.

Todos os povos e governos sofrem com a pandemia. No Brasil, ao padecimento sanitário juntou-se um governo negacionista e caótico. Fritou três ministros da Saúde, combateu o distanciamento, menosprezou as máscaras e enalteceu as virtudes da cloroquina.

Uma coisa é um governo que se acautela diante do risco de um caos. (Nesse caso, os detalhes são bem-vindos.) Bem outra é apreciar o caos, até mesmo desejando-o.

Em apenas uma semana, o governo de Bolsonaro produziu alguns episódios sinalizadores de um governo que, até mesmo por inépcia, patrocina o caos.

O programa Pátria Solidária, aninhado no Palácio do Planalto com o objetivo de recolher doações para enfrentar a pandemia, gastou R$ 9,6 milhões para fazer propaganda de si e arrecadou R$ 5,89 milhões.

A Secretaria de Comunicação do Planalto não comentou a discrepância. Até há bem pouco tempo, ela era dirigida pelo doutor Fabio Wajngarten. Ele acabara de dar uma entrevista contando que, em setembro, tentou apresentar ao Ministério da Saúde uma proposta do laboratório Pfizer. Já haviam morrido 123 mil pessoas:

— Se o contrato da Pfizer tivesse sido assinado em setembro ou outubro, as vacinas teriam chegado no fim do ano passado. (...) Incompetência e ineficiência.

Dias depois, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello foi fotografado num shopping center de Manaus sem máscara, fazendo piada com a transgressão:

— Onde se compra isso?

O general estava nas redes, e seu sucessor, Marcelo Queiroga, de máscara, contava que faltavam vacinas para a segunda dose em alguns estados porque eles seguiram a recomendação do ministério de avançar sobre os estoques.

Bolsonaro sonhava com crises antes mesmo da pandemia. Com ela, transmutou-se num São Jorge cavalgando o cavalo branco para matar o dragão e salvar a princesa. Ela está lá, de máscara, e o dragão não apareceu. Os desconfortos que afligem o governo decorrem da armadura desconjuntada do Santo Guerreiro, de sua lança torta e de uma sela visivelmente desconfortável.

A marquetagem do Pátria Solidária, as revelações de Wajngarten, a conduta de Pazuello e a falta de vacinas refletem um caos que está no governo, não vem de fora dele.

A Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil de Bolsonaro encaminhou a 13 ministérios uma pauta de 23 perguntas que poderão aparecer na CPI da Covid, pedindo pronta resposta.

Lê-las é um passeio pelo caos da desarticulação e da falta de gestão do governo. Algum membro da CPI bem que poderia devolvê-las, perguntando por que a curiosidade só surgiu agora.

Nas próximas quatro quartas-feiras, o signatário usufruirá o isolamento e o ócio, sempre pesquisando as virtudes da cloroquina.


Ricardo Noblat: CPI da Covid-19 decola e ameaça abater o governo que voa baixo

Um bando de amadores

Sem querer ofender os pets, 27 de abril de 2021 ficará marcado como mais um dia de cão para o presidente Jair Bolsonaro e seus filhotes. Tudo aconteceu no período da manhã, a saber:

1) O Senado instala a CPI da Covid-19 com Renan Calheiros (MDB-AL) como relator e o governo em minoria;

2) O general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Casa Civil, confessa que se vacinou às escondidas para que não pegasse mal para ele;

3) O ministro Paulo Guedes, da Economia, diz que o vírus é chinês e que a vacina americana é melhor do que a vacina chinesa.

Enquanto isso, distraído, Bolsonaro confraternizava bem humorado com devotos nos jardins do Palácio da Alvorada e plantava mais uma notícia falsa, desta vez contra o PT.

Segundo ele, há um vídeo que mostra Lula, Dilma, Haddad, e atrás deles, dois homens se beijando. “Beijo de língua”, garantiu, “coisa que nem homem e mulher fazem em público”.

Pensando melhor, talvez não tenha sido mais um dia de cão para Bolsonaro e seus descendentes, mas um dia normal na vida de um governo radicalmente diferente dos que o antecederam.

O senador Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) chamou de “ingrato” Rodrigo Pacheco (DEM-MG) porque ele pouco fez de fato para barrar a criação da CPI.

Lembrou que Pacheco teve a ajuda do seu pai para se eleger presidente do Senado, e que por isso “deveria ter nos procurado” para avaliar a conveniência ou não da CPI.

Ingrato foi Flávio. Pacheco só concordou com a instalação da CPI por ordem do Supremo Tribunal Federal. O Tribunal Regional Federal derrubou a liminar de um juiz que tentou abortar a CPI.

Bolsonaro, pai, e seus filhos zero estão convencidos de que Pacheco cobiça a presidência da República nas eleições do ano que vem, e que por isso se distancia deles.

“Vão usar os caixões dos quase 400 mil mortos para fazer política contra o governo federal”, acusou Flávio. Como se seu pai não usasse a pandemia para fazer política também.

O senador da rachadinha teve que engolir uma invertida que levou de Calheiros: “É a primeira vez que [Flávio] se preocupa com aglomeração… Deve estar saindo do negacionismo”.

Nada superou, porém, as intervenções do general Ramos e de Guedes durante a reunião do Conselho de Saúde Suplementar, transmitida ao vivo no site do Ministério da Saúde.

Os dois não sabiam da transmissão. Quando souberam, já era tarde. O vídeo foi retirado do site, mas se espalhou nas redes sociais, o que dá a medida do amadorismo dessa gente.

Primeiro, Ramos afirmou:

“Tomei escondido, porque a orientação era para não criar caso, mas vazou. Eu não tenho vergonha, não. Tomei e vou ser sincero. Como qualquer ser humano, eu quero viver, pô. E se a ciência está dizendo que é a vacina, como eu posso me contrapor?”.

Não satisfeito, acrescentou:

“Eu estou envolvido pessoalmente tentando convencer o nosso presidente [a tomar a vacina], independente de todos os posicionamentos. Nós não podemos perder o presidente por um vírus desse. A vida dele, no momento, corre risco”.

Entre os 3.500 servidores da presidência da República, 460 já se infectaram com o vírus, o que representa uma taxa de contaminação de 13% – maior do que a média brasileira, de 6%.

A China é o maior parceiro comercial do Brasil no mundo. Mexeu com ela, mexeu com o agronegócio. A Coronavac representa 84% das vacinas aplicadas no Brasil até agora. Guedes tomou.

Mas isso não o impediu de acicatar os chineses:

“O chinês que inventou o vírus. E a vacina dele é menos efetiva do que a americana. O americano tem 100 anos de investimento em pesquisa. Então, os caras falam: ‘Qual é o vírus? É esse? Está bem, decodifica’. Está aqui a vacina da Pfizer. É melhor”.

A vacina da Pfizer não foi desenvolvida por americanos, mas por alemães de origem turca – o casal de cientistas que é dono da empresa BioNTech. Guedes não sabe o que diz.

Quanto à suposição de que o vírus foi inventado por chineses, a Organização Mundial da Saúde considera a hipótese improvável. Como Bolsonaro, Guedes admira tudo que seja “Made in USA”.

O Brasil registrou 3.120 mortes pela Covid-19 nas últimas 24 horas, totalizando 395.324 óbitos desde o início da pandemia. Faltam vacinas e o Ministério da Saúde está perdidinho da Silva.

Anunciou que em breve estaria vacinando 1 milhão de pessoas por mês. Depois recomendou que se aplicasse a 2ª dose em quem não tomou a 1ª. Recuou mais tarde, e agora voltou a recomendar.


Rosângela Bittar: Sinfonia em meio à barbárie

Livro de Aldo Rebelo transforma releitura da história política em instantâneo da atualidade.

No capítulo 12 do seu livro O Quinto Movimento – propostas para uma construção inacabada, a ser lançado nos próximos dias, o ex-ministro da Defesa Aldo Rebelo transforma o que seria uma releitura da história política brasileira em um instantâneo da atualidade. Sua visão sobre os desafios impostos à democracia revela que não tem sido fácil mantê-la sob Jair Bolsonaro.

Sem citá-lo nominalmente, traça um retrato da ameaça à República exercida pelo comandante supremo das Forças Armadas, o presidente. As instituições democráticas, na sua avaliação, perdem prestí- gio, identidade e substância.

Bem escorado na disciplina de sua formação marxista, a que agrega experiência e trânsito entre políticos de todas as tendências, Rebelo defende, entre suas principais teses, a construção de um governo forte. Tão forte quanto democrático, com equilíbrio entre os poderes.

O problema não está só no Executivo. A situação crítica em que se transformou a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), alvejado por todos os lados tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, está arrolada como um dos maiores desafios. “Após a constituinte de 88, quando os militares se afastaram, procedeu-se à judicialização da política e, por consequência, a politização do Judiciário.”

Este desequilíbrio permanece e se amplia a cada dia, em meio à turbulência de um país de política convulsionada, em que recrudesce e se aprofunda o confronto entre parlamentares, magistrados e presidente da República. Problemas claramente expostos nos episódios mais recentes, que culminaram, ontem, com a instalação da CPI da Covid, no Senado, e a abertura, na Câmara, do debate sobre o episódio da apreensão de madeira ilegal na Amazônia. Uma reação do Congresso ao massacre de ignorância que o governo Bolsonaro impõe à sociedade.

Enquanto se desenvolve esta luta de campo aberto, surge, da quarentena da pandemia que nos esmaga, o inesperado livro de testemunhos e reflexões de Aldo Rebelo, um roteiro completo para debater o Brasil.

Político que viveu, em extensão e profundidade, como protagonista, diferentes facetas da política brasileira, Rebelo reúne uma experiência singular. Líder estudantil da época da ditadura, exerceu a presidência da UNE, seis mandatos de deputado federal e a presidência da Câmara. Foi ministro da Defesa, do Esporte, da Ciência e Tecnologia, da Coordenação Política, funções em que entrou e de que saiu sem acusações ou processos.

Aldo Rebelo sistematiza os episódios, em seu livro, com a criatividade de quem escreve uma sinfonia. Mais do que um nacionalista, como definido por todos, desde sempre, é um patriota apaixonado. E amplia, a cada dia, a confiança no seu estilo de fazer política: rigor na atenção aos diagnósticos e tolerância nas soluções.

Os sentimentos que criou com relação ao Brasil e aos brasileiros se forjaram na cena de abertura do livro. “A primeira vez que me dei conta do mundo, estava sobre um cavalo. Meu pai trabalhava em uma fazenda. Lembro que ele chegou a cavalo e me pôs montado. Eu devia ter uns três anos e vi outra dimensão do mundo. O mundo visto de cima: o rio, o horizonte, os campos. Data dessa época minha admiração, respeito e paixão pelos cavalos.”

Escrito durante a quarentena da pandemia, que Aldo Rebelo passou no Sítio Amazonas, em Viçosa, Alagoas, em companhia de sua mãe e sua mulher, o livro, de 249 páginas, tem bela ilustração de Elifas Andreato e Agélio Novaes e edição da JÁ, de Porto Alegre. Os 21 capítulos de O Quinto Movimento permitem uma visão otimista da história do Brasil, com intervenções de fatos do presente que lhe dão dinamismo.

No repertório que apresenta, com argumentos de plataforma, figuram economia e futebol, mulheres e índios, militares e diplomacia, educação e desigualdade, agricultura e Amazônia, campos nos quais se especializou nos últimos mandatos.


Carlos Melo: Fragilidade política e ruas definirão jogo

CPI é território em disputa: a oposição quer enfraquecer e, se puder, derrubar o governo; governistas agem na contenção de desgastes do Executivo. As condições iniciais tampouco independem de circunstâncias mais gerais, localizadas no governo e no país. Ao final, serão as condições de contorno – a insatisfação popular e a fragilidade política – que definirão o jogo.

Sempre houve abuso na utilização de CPIS. Oposições sem projeto e oportunismo fisiológico as usaram descoladas do contexto mais amplo. Normalmente, “deu em nada”. Mas, o oposto também se deu: a “CPI do PC Farias” derrubou Collor; a “CPI dos Correios” resultou no mensalão e destroçou promissoras lideranças do PT. Nos dois casos, a insatisfação geral se dava para além do objeto da CPI.

Hoje, a população está recolhida ao isolamento social da pandemia. E, por enquanto, não há mobilização de rua, elemento que potencializa as CPIS. Mas, à parte disso, as condições de contorno são notoriamente insatisfatórias.

Em 60 dias, o País chegará a 500 mil mortes, infelizmente. A situação econômica é deplorável: desemprego e fome tomam o cotidiano das famílias. A base governista é arenosa, como se viu no conflito do Orçamento. O governo está internamente fracionado, ministros sob fogo cerrado. Velhos aliados estão ressentidos e a imagem internacional é péssima.

O presidente e seu séquito são máquinas de disparates. Campeões de tiros nos pés, se desviam a atenção, também agravam a situação. A inabilidade política e a incapacidade de articulação atingem patamares inéditos. Não faltam condições de contorno desfavoráveis para que a CPI prospere.

Faltam as ruas. Mas, quanto mais rápido avançar a vacinação, maior a possibilidade de grandes mobilizações. Arrastar a CPI e estender seus ritos será mais um erro. Com quatro senadores e tudo o que ocorre no País, será difícil dominar o território em disputa.

*Cientista Político, professor do Insper


Miguel Caballero: Os recados de Renan para Bolsonaro e os militares na abertura da CPI da Covid

Não faltaram recados e indiretas a Jair Bolsonaro, embora Renan Calheiros tenha evitado citar nominalmente o presidente da República. Em seu discurso na primeira sessão da CPI da Covid, o relator, porém, foi mais direto ao falar das Forças Armadas, botando o dedo diretamente na relação que é uma das principais bases de apoio do governo Bolsonaro.

Em dois anos e meio, os militares apoiaram o presidenciável Jair Bolsonaro, ocuparam muitos postos na administração federal e, em que pesem alguns estremecimentos e rompimento com os que foram demitidos do governo, os principais atritos entre o presidente e os militares se restringiram à preocupação manifestada fora dos microfones de que um mau desempenho do governo contamine a imagem das Forças Armadas. Esse ponto jamais esteve tão em risco como agora, e a CPI será um novo teste da solidez dessa aliança.

Não se trata de esperar que os militares, categoria longe de ser homogênea, abandone ou não o presidente. Mas o Exército, especialmente, dificilmente escapará do escrutínio da CPI, e precisará limitar até que ponto poderá dividir responsabilização sobre erros da crise com o governo.

A fala de Renan tocou em pontos sensíveis na caserna. Citou as “454 mortes em combate na Segunda Guerra Mundial”, episódio quase sagrados para as Forças, lembrando em seguida que diariamente morre um número maior de brasileiros. “O que teria acontecido se tivéssemos enviado um infectologista para comandar nossas tropas?”, perguntou Renan. “Porque guerras se enfrentam com especialistas, sejam elas bélicas ou sanitárias. A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na Saúde. Quando se inverte, a morte é certa. E foi isso que aconteceu”.

É muito possível, porém, que a CPI tenha de ir além da participação de militares na gestão de Eduardo Pazuello. Embora Renan tenha dito em seu primeiro discurso que “não é o Exército que estará sob análise”, as investigações que a comissão fará sobre propaganda e distribuição de remédios sem eficácia cientificamente comprovada pode alcançar a compra de insumos e produção da hidroxicloroquina pela Força. O Exército, inclusive, já foi instado pelo Tribunal de Contas da União a, juntamente com o Ministério da Saúde, prestar esclarecimento sobre os gastos com a produção e distribuição do remédio.

Uma eventual convocação de um militar da ativa, fardado, a dar depoimento na mesa da CPI, é uma cena com grande potencial de danos à imagem das Forças Armadas.

O último comandante do Exército, general Edson Pujol, perdeu o posto após divergência públicas com o presidente no discurso de combate à pandemia.

No seu retorno ao protagonismo do noticiário político, Renan Calheiros reservou também outros recados. Um dos principais articuladores da resistência da classe política à Lava-Jato, repetiu no discurso ataques ao ex-juiz Sergio Moro — “não vou condenar ninguém por convicção” — e aos procuradores da antiga força-tarefa de Curitiba — “aqui nessa CPI não vai ter PowerPoint”.

Opositor ao governo Bolsonaro, o senador não perdeu a oportunidade de lançar uma alfinetada ao procurador-geral da República, Augusto Aras. Numa referência indireta à inércia da PGR para investigar possíveis crimes do presidente na pandemia, Renan afirmou que “CPIs vicejam quando os canais tradicionais de investigação se mostram obstruídos e isso é um ensinamento histórico”.

Por fim, fez também uma provocação a Bolsonaro, mesmo sem citá-lo. Ao elogiar o Supremo Tribunal Federal (STF) por ter garantido à minoria do Senado o direito de instalação da CPI após atingir as assinaturas necessárias, afirmou que o tribunal foi “terrivelmente democrático”, fazendo questão de usar o advérbio preferido do presidente sempre que afirma, há dois anos, que indicará um evangélico para o Supremo.


Bernardo Mello Franco: O primeiro milagre da CPI

A CPI da Covid já produziu seu primeiro milagre: transformou Flávio Bolsonaro num defensor do isolamento social. Ontem o senador tentou convencer os colegas a deixar a investigação para depois. “Por que não esperar todo mundo se vacinar?”, sugeriu.

A preocupação tardia com a doença não foi a única surpresa do discurso. Com a pele bronzeada pelas férias no Ceará, o primeiro-filho atacou o presidente do Senado, o relator da CPI e até a bancada feminina. O falatório não virou votos para o governo, mas escancarou o desespero do clã presidencial.

Pelo que se viu ontem, a família tem motivos para temer a comissão. Na sessão inaugural, a tropa bolsonarista levou um baile. Flávio ainda foi obrigado a engolir uma descompostura da senadora Eliziane Gama. Ela avisou que ali não era lugar para chute na porta e ironia machista. Só faltou dizer que o Zero Um não estava em Rio das Pedras.

Quando a reunião começou, os governistas se agarraram à liminar que impedia Renan Calheiros de assumir a relatoria. Foi uma tática desastrada. Como se previa, a decisão foi derrubada rapidamente. O senador se sentou na cadeira e desceu a lenha no Planalto.

“Vamos dar um basta aos suplícios, à inépcia e aos infames”, discursou. Ele atacou o negacionismo e prometeu “apontar culpados”. Num recado a Jair Bolsonaro, citou os genocidas Augusto Pinochet e Slobodan Molosevic. “O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes, e eles devem ser punidos”, arrematou.

Renan também criticou a entrega do Ministério da Saúde ao general Eduardo Pazuello, que no domingo passeava sem máscara num shopping de Manaus. “A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na saúde. Quando se inverte, a morte é certa”, disse.

O emedebista não se limitou à retórica: de cara, apresentou 11 requerimentos. A lista inclui a convocação de quatro ministros da Saúde, a requisição de documentos e o compartilhamento do inquérito das fake news.

No dia em que a comissão entrou em campo, Bolsonaro usou cinco palavras para defender seu desempenho na pandemia. “Eu não errei em nada”, garantiu. O capitão vai precisar de outro milagre para convencer a CPI.


Vera Magalhães: Caem todas as máscaras

Os ministros Paulo Guedes e Luiz Eduardo Ramos merecem ser convocados para depor na finalmente instalada CPI da Covid só com base nas declarações estarrecedoras que, sem saber que eram gravados, emitiram na reunião desta terça-feira do Conselho Nacional de Saúde Suplementar.

Num dos ataques verborrágicos que sempre tem e, depois de flagrado, diz ter sido mal interpretado, o ministro da Economia do Brasil diz, numa só tacada, que os chineses inventaram o coronavírus (teoria conspiratória sem comprovação), mas produziram vacinas ruins, piores que as dos americanos, para combatê-lo.

A vacina chinesa CoronaVac é uma das poucas de que os brasileiros dispõem para se proteger do vírus. Só está disponível por ação do governo de São Paulo e do Instituto Butantan, porque o governo a que Guedes serve boicotou sua aprovação e disse por muito tempo que não a compraria.

Teve de comprar porque o presidente Jair Bolsonaro, chefe de Guedes, optou por não comprar as vacinas “melhores”, da Pfizer, quando lhe foram oferecidas com antecedência e em larga escala. Tudo isso será objeto de escrutínio da CPI.

O ministro da Economia do Brasil também lamentou o aumento na expectativa de vida, atribuindo a ele, e não ao show de incompetência do governo de que faz parte, a falta de insumos, leitos e vacinas. É um escárnio inconcebível diante de quase 400 mil mortos pela covid-19.

O colega de Guedes na Casa Civil, general do Exército brasileiro Luiz Ramos, também no quentinho de uma reunião que imaginava não estar sendo registrada em áudio, confessou uma molecagem: ter tomado vacina escondido (!) porque seria a orientação do governo.

Aqui escancara outra razão por que a CPI tem de existir, e por que ele tem de se sentar no banco dos depoentes: além de boicotar a compra de vacinas, o governo de que Ramos e Guedes fazem parte difundiu desinformação que alarmou a população, reduziu a confiança na imunização como forma de debelar a pandemia e não promoveu a campanha de informação e conscientização que era seu dever produzir. Esses itens constam da tabela que a Casa Civil que Ramos produziu, um dos poucos documentos que atestam afirmações reais sobre o governo já produzidos na era Bolsonaro.

Longe do confessionário dos homens públicos de Brasília, um ex-companheiro de primeiro escalão de Guedes e Ramos, o general Eduardo Pazuello, escolheu a dedo a cidade que vivenciou o maior caos do morticínio de Covid-19, Manaus, para ser um fanfarrão e desfilar sem máscara num shopping center.

O homem que assinou o protocolo indefensável do tratamento precoce com cloroquina, que, segundo o ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten, foi o grande responsável pela não aquisição de vacinas, que negligenciou os avisos sobre a falta iminente de oxigênio na mesma Manaus em que tira sarro na cara dos brasileiros enlutados, tem de se sentar logo no banco da CPI para prestar contas sobre sua atuação criminosa à frente de um ministério para o qual nunca poderia ter sido nomeado num país decente, por um presidente que levasse uma emergência sanitária a sério.

Não foi só Pazuello que tirou a máscara diante do país. Guedes e Ramos, com suas falas indignas, também foram desmascarados, ainda que a contragosto, diante da sociedade. O que mais se pode esperar deste governo, que, mesmo com uma investigação contra si instalada no Senado Federal, age com tamanha desídia?

Nada parece chamar esses homens à responsabilidade. Diante desse quadro de cinismo de Estado, é sinal da nossa desgraça que seja alguém com o currículo de Renan Calheiros a comandar as investigações. Não terá sido a primeira vez. Os que hoje condenam Renan há muito pouco tempo chamavam Eduardo Cunha de herói pela condução do impeachment de Dilma Rousseff. As máscaras estão todas no chão. Que se punam os culpados.