covid-19
Maria Hermínia Tavares: O que o país terá de pagar
O presidente foi derrotado em seu intento de reduzir a democracia a mera fachada do autoritarismo plebiscitário. O Congresso e o STF, os poderes subnacionais, a imprensa e a sociedade organizada travaram suas investidas. As Forças Armadas, que ele supunha suas, não lhe deram o apoio esperado.
Impedido de pôr abaixo o edifício democrático, o morador da “casa de vidro” vem paulatinamente destruindo capacidades estatais —a habilidade de mobilizar os conhecimentos acumulados nas burocracias públicas e as estruturas administrativas–, necessárias ao funcionamento cotidiano de qualquer governo.
No excelente livro “O Quinto Risco“, que descreve o início da gestão Trump, o jornalista e escritor americano Michael Lewis observa que a ignorância e a negligência caracterizaram o trato da máquina governamental pelo ídolo do nosso ex-capitão. Essa conduta, aponta Lewis, propicia a ascensão aos escalões superiores de três tipos de seres: os que querem defender interesses privados, próprios ou daqueles a quem servem; os que desejam apequenar o Estado; e os muitos que são pura e simplesmente incompetentes.
Basta uma rápida passada de olhos pelos mais altos postos da administração federal, cujo chefe abstraído não se interessa em conduzir, para identificar os mesmos tipos, com frequência acumulando mais de uma das características apontadas por Lewis.
Estão aí os Salles, Araújos, Weintraubs, Pazuellos, Vélezes, Ribeiros, Frias, Guedes… Logo abaixo, os que mandam para o Amapá o oxigênio destinado ao Amazonas; os que erram nas transferências do Fundeb ou na correção das provas do Enem; quem assume a direção das políticas de pós-graduação sem saber o que é um currículo acadêmico; aqueles incapazes de distinguir uma partida de madeira ilegal de uma adequadamente certificada; aqueles que se acumpliciam com a invasão de áreas indígenas por garimpeiros ou os que não conseguem fazer um cadastro adequado de beneficiários de programas emergenciais.
A entronização da incompetência, somada à má-fé nos cargos de chefia de agências públicas, é apenas uma das formas de destruição de capacidades estatais. Outra é deixar à mingua de recursos as agências que produzem informação da maior relevância —como o IBGE— ou as responsáveis pelo cumprimento da legislação vigente —como o Ibama, o ICMBio, a Funai. Os malfeitos se completam com a revogação, por decreto ou portaria, de extenso rol de regulamentos infralegais que dão conteúdo e orientação à ação cotidiana da máquina pública.
Uma devastação de cujos efeitos o país não terá como escapar.
*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Adriana Fernandes: Depois da pandemia, Brasil precisa rever leis para evitar dribles em regras fiscais
A pandemia da covid-19 e a crise do Orçamento disparada pela cobiça por mais emendas parlamentares estão mostrando a necessidade de reconstrução do arcabouço fiscal e orçamentário do País após o fim da crise sanitária.
O Brasil tem regras demais, políticas públicas eficientes de menos e tentativas intermináveis de dribles. O resultado tem sido a perda de credibilidade e a costura com remendos dos buracos com mais regras complexas e discussões sem fim de interpretação das que já existem.
O fato é que a pandemia mostrou que as regras não funcionaram bem. Nem para garantir o direcionamento rápido e necessário de recursos para mitigar o impacto da crise sanitária ou para assegurar que esse dinheiro não fosse utilizado para fins que não o enfrentamento da doença.
Pelo contrário, o que assistimos é a renovação tardia dos programas (com agravantes na vida das pessoas e empresas que mais precisam do socorro) e a busca desenfreada para a construção de manobras cada vez mais sofisticadas para se passar ao largo da legislação acionando os botões da gastança.
Gastando não com o que é prioridade na pandemia, mas pulverizando em demandas paroquiais e eleitoreiras o pouco que sobra após o pagamento das despesas obrigatórias. De um lado, o time da “responsabilidade fiscal” retardando o socorro com medo de uma explosão de gastos. De outro lado, o outro time maquinando as manobras.
Difícil saber o alcance desse retrocesso, mas fácil observar que do jeito que está não dá para continuar. A necessidade de rever essa governança está na ordem do dia. As mudanças podem não vir em 2022, ano eleitoral e quando se espera mais folga orçamentária, mas definitivamente serão acionadas em 2023, primeiro ano do governo do próximo presidente.
Mesmo que complexo, será com certeza assunto das eleições presidenciais porque a pandemia chamou a atenção da população para as prioridades de gastos não essenciais que o governo e o Congresso estão apostando. E também para as suas consequências. A resposta tem sido o crescimento da indignação. Se os políticos agora ignoram e dão de ombro para as críticas, terão problemas nas eleições. Até lá, fica evidente a necessidade de aprofundar a discussão. É preciso sair, porém, do debate polarizado de “com ou sem teto de gastos”, cheio de armadilhas ideológicas que vêm impedido a discussão de saídas objetivas do impasse.
Em webinar sobre a “responsabilidade fiscal em tempos de pandemia”, organizado essa semana pelo Tribunal de Contas da União e a Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, constatou-se que em algum momento será preciso rever o arcabouço de regras fiscais, o controle excessivos de alguns pontos e a inexistência de controle sobre outros.
São duas instituições importantes nesse campo. Uma que “late” chamando atenção para os problemas e outra que “morde” quando identifica os erros e as falhas. Estarão daqui em diante em parceria num convênio que será assinado, antecipou Felipe Salto, diretor executivo da IFI.
A realidade é que o risco fiscal de hoje tem refletido a descoordenação da política fiscal, até mais do que o tamanho do déficit. Não dá para manter regras “para inglês ver” ou como disseram os participantes do debate “para brasileiro ver”, já que a maior parte da dívida pública do País está nas mãos de investidores locais.
“Vamos cair na real. Enquanto nossas instituições não assumirem a posição firme de respeitar a restrição orçamentária e verem que não dá para satisfazer interesse do deputado A ou C para ele votar ou trancar na gaveta a pauta, não estaremos dando nenhum passo”, disse Affonso Celso Pastore.
É que o temos visto agora com a desconstrução da regra do teto de gastos, sem que necessariamente ele tenha sido alterado. Com a LRF foi a mesma coisa. Com duas décadas de existência, ela não impediu que renúncias tenham nascido e prosperado sem as compensações exigidas. E para corrigir os desvios foi se criando mais normas e regrinhas, muitas delas incluídas na Constituição como vimos agora na aprovação da PEC emergencial.
Uma “lipoaspiração” na Constituição é o que defendeu José Roberto Afonso, um dos pais da LRF. Ele insistiu na definição de um limite para a dívida pública.
Após a pandemia, mais do nunca, o Brasil vai precisar olhar para a qualidade dos gastos nas suas políticas e revisar os seus programas com esse olhar. Por enquanto, as demandas têm sido a de mais e mais gastos.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
Ricardo Noblat: Bolsonaro faz o jogo de Renan Calheiros, que agradece
O governo e aliados do senador Renan Calheiros (MDB-AL) querem que ele baixe o tom dos seus discursos como relator da CPI da Covid-19. Aos aliados, Renan até poderá dar ouvidos para não perder parte deles, mas ao governo, não, nem faria sentido.
O senador já foi dado muitas vezes como politicamente morto, para depois recuperar-se e seguir adiante. De 2018 para cá, amargou dois duros reveses: perdeu a eleição para presidente do Senado e viu Arthur Lira (PP-AL) agigantar-se em Alagoas.
Entre Renan e Lira, Bolsonaro escolheu Lira como seu mais forte aliado no Congresso. Não só o ajudou Lira eleger-se presidente da Câmara dos Deputados, como ajudou Davi Alcolumbre (DEM-AP) a derrotar Renan na eleição para presidente do Senado.
Como um cangaceiro esperto, Renan é bom de tocaia. Escondeu-se no mato nos últimos dois anos para ressurgir de repente como a principal estrela da mais delicada ação política que poderá influenciar os resultados das eleições do ano que vem.
Como querem que ele deixe passar tal oportunidade? Na vida real, Renan, hoje, é o líder da oposição a Bolsonaro. É quem fala por ela, e o país voltou a escutá-lo. Foi o governo, com suas manobras desastradas, que o promoveu a essa condição.
O governo tudo fez para impedir a criação da CPI – perdeu. Tudo para que ela não fosse instalada – perdeu. Tudo para que se fosse, contasse ali com a maioria dos votos, ou pelo menos com uma maioria amorfa – perdeu. Perdeu a relatoria para Renan.
Pasmem! E depois de colecionar tantas derrotas, orientou três dos seus senadores com assento na CPI para tentar no Supremo Tribunal Federal tirar Renan da relatoria. Vai perder novamente. E Renan nem precisará se mexer para que isso aconteça.
Lira não está gostando nem um pouco do que vê. Achava que tinha chances de acabar em 2022 com o mandarinato de Renan em Alagoas. Agora, receia que seu plano se frustre. Renan já tem candidato à sucessão de Bolsonaro – Lula. Lira, ainda não.
Política é como uma gangorra – ora você está por cima, ora por baixo. Exige habilidade, paciência e faro apurado para se antecipar ao que está por vir. Gostem ou não de Renan, ele reúne tais predicados.
Fonte:
Veja
https://veja.abril.com.br/blog/noblat/bolsonaro-faz-o-jogo-de-renan-calheiros-que-agradece/
William Waack: O milagre da permanência
Jair Bolsonaro está ganhando fácil a corrida para saber qual ocupante do Palácio do Planalto conseguiu perder mais rápido o capital político conquistado numa eleição direta e plebiscitária. É curioso observar como ele mesmo “trabalhou” para criar um vácuo político imediatamente ocupado.
De fato, nunca o Executivo brasileiro foi tão controlado, contido ou encurralado pelo Judiciário e Legislativo. Têm razão os generais de pijama que cochicham a Bolsonaro que STF e Congresso extrapolaram suas competências. Mas não se trata, como pretendem Bolsonaro e seus seguidores (em diminuição acentuada) de uma “conspiração”.
A principal responsável é a atuação do próprio Bolsonaro e sua extraordinária incompetência política. No momento em que enfrentar a crise da pandemia e suas consequências para a economia demandaria uma altíssima capacidade de liderança, coordenação e foco estratégico, o “centro” do poder está ocupado por uma curiosa aliança tácita, volátil e fluida de juízes e parlamentares.
Bolsonaro tinha uma grande pauta de mudanças e reformas logo que assumiu que hoje se resume em permanecer onde está. Cedeu instrumentos de poder real e efetivo (como o controle do Orçamento) e foi obrigado a respeitar limites de atuação política (estipulados pelo STF) pela mesma razão: não ter visão, capacidade de condução e muito menos entender o que é a política, embora tivesse passado 27 anos no fundo da Câmara dos Deputados.
Ele sabe muito bem, por outro lado, que o jogo dos donos do poder em Brasília obedece aos fatores de longa memória, a saber: compadrio, patrimonialismo, corporativismo, teias de laços pessoais e oligárquicos, acomodação de interesses à custa dos cofres públicos, clientelismo. Nessa rede que se revelou indevassável (que o diga a Lava Jato) Bolsonaro está manietado, pessoal e politicamente.
Sua mais recente “cartada” é jogar o jogo dos donos do poder no Judiciário, por meio das nomeações que terá de fazer para tribunais superiores e na Procuradoria-geral da República. É ocupar por dentro instâncias decisivas de poder político, como tem sido o Judiciário brasileiro (e o MPF). O caminho é o mesmo que movimentos como o chavismo percorreram, por exemplo, até desfigurar o que existia de democracia (a base disso é a lealdade ao chefe e não à lei ou instituições).
No caso do Brasil o perigo dessa “marcha por dentro das instituições” é muito menor. O chamado “sistema” continua intacto. E, ao contrário de outros “ismos” da nossa história política (varguismo, ou lulismo), o bolsonarismo é um conjunto de propostas e ideias sem definição clara, rumo definido, coordenação eficaz e com escasso domínio dos instrumentos clássicos de poder ou coerção. Bolsonarismo é mais um estado de espírito do que qualquer outra coisa.
Talvez a única “base social” nítida do bolsonarismo seja a ligação de seus expoentes políticos com as denominações políticas e religiosas evangélicas – mas, aqui, cabe lembrar aos seguidores do “mito” (um atributo que está resvalando para o ridículo) que o conjunto de forças evangélicas é fracionado, dividido entre si e alguns de seus principais nomes apoiaram todos os governos anteriores e provavelmente o farão no futuro. Não acham que devam “lealdade” ao presente chefe.
Por último, esse “estado de espírito” bolsonarista – o da polarização, defesa da ignorância, intolerância e boçalidade política geral – está construindo depressa no grande e movediço terreno das atitudes das pessoas um movimento contrário caracterizado por indignação, cansaço, tristeza e falta de esperanças nesse “mito” e, por enquanto, em qualquer outro candidato (o que inclui Lula).
Mas esse candidato surgirá: a demanda foi criada por Bolsonaro, assim como ele mesmo atendeu a uma clara demanda. Segue convencido de ter sido beneficiado por um milagre (sobreviveu à facada) e que só Deus pode tirá-lo de onde o colocou. Ignora-se se as forças diversas do chamado Centrão, às quais Bolsonaro entregou seu futuro político, o fazem por acreditar em desígnios divinos. O fato é que, no momento, acham mais conveniente deixá-lo por lá.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-milagre-da-permanencia,70003697470
Malu Gaspar: O circo da CPI começou, mas o impeachment ainda está longe
O senador Renan Calheiros abriu o espetáculo e foi ao ataque logo na primeira sessão da CPI da Covid:
— Não foi acaso ou flagelo divino que nos trouxe a este quadro. Há responsáveis, evidentemente. Há culpados por ação, omissão, desídia ou incompetência. E eles, em se comprovando, serão responsabilizados.
Citando os ditadores sanguinários Slobodan Milosevic e Augusto Pinochet, Renan disse que “os crimes contra a Humanidade não prescrevem jamais”. Não chegou a chamar Jair Bolsonaro de genocida, mas lançou mão de um “vidas negras importam” inédito em sua retórica. Com os holofotes do picadeiro voltados para ele, falou com a segurança de quem tem a maioria na comissão — apoio de 7 dos 11 titulares — e colheu os esperados louros, especialmente na opinião pública.
Mas quem espera que esteja aberto o caminho para o impeachment deve ter em mente que o desempenho de Renan obedece a uma agenda bem clara, ao mesmo tempo pessoal e política. Do lado pessoal, vai saborear a revanche contra Bolsonaro, Davi Alcolumbre e Rodrigo Pacheco, que há dois anos o tiraram do comando do Senado.
Na agenda política, é fazer sangrar o governo sem necessariamente chegar ao impeachment — seguindo o roteiro que interessa ao seu maior aliado, o ex-presidente Lula. Para o petista, o melhor dos mundos é polarizar a eleição de 2022 com um Bolsonaro enfraquecido, mas não com uma candidatura de centro-direita — que tende a ganhar espaço se Bolsonaro estiver fora do páreo.
Não parece, hoje, uma missão difícil. A CPI começa prometendo um palco iluminado a oposicionistas e independentes. Além de terem formado um bloco coeso, enfrentam um governo desarticulado politicamente e consumido por disputas internas. Um exemplo: o vazamento, nesta semana, da relação de 23 pontos fracos do governo na CPI elaborada na Casa Civil, vista como espécie de roteiro para o trabalho da oposição. No Palácio do Planalto, dá-se como certo que foi obra de fogo amigo, disparado por rivais do ministro da Casa Civil, o general Luiz Eduardo Ramos — o mesmo que foi pilhado dizendo ter tomado a vacina contra a Covid-19 escondido, por orientação da chefia.
O périplo que Lula fará em Brasília, na semana que vem, tem tudo para exacerbar o sentimento que anda rondando os profissionais da política: que Bolsonaro chegará nanico em 2022, sem apoio popular, sem um partido forte e sem conseguir usar a máquina no modo tradicional para se reeleger. Não porque não queira, mas por não ter competência para fazê-lo. “Bolsonaro hoje não consegue tapar nem um buraco de rua”, me disse outro dia um ativo integrante do Centrão.
Claro que esse tipo de previsão, a 18 meses das eleições, não quer dizer grande coisa. Mas serve para mostrar que a emergência de Lula como candidato com perspectiva real de poder mexe com os instintos mais primitivos do Centrão. O primeiro sinal é visível em Ciro Nogueira (PP-PI). Ex-lulista convertido ao bolsonarismo, nem mesmo ele se apresenta na CPI com o empenho e a verve necessários para defender o governo.
Mas Bolsonaro não está morto. Ao repisado axioma de que nunca se sabe como as CPIs terminam, agregue-se a constatação de que CPIs são maratonas, e não corridas de 100 metros rasos. Se durar todo o prazo permitido, a atual só termina em outubro deste ano. Até lá, muita coisa pode acontecer.
Bolsonaro pode ser politicamente inábil aos olhos dos decanos da CPI, mas não chegou aonde chegou na base da inocência. Ele tem consciência de que a faixa presidencial protege até mesmo quem não sabe usá-la bem. Não dispõe de muita folga orçamentária e pode não ter competência para “tapar buraco de rua”, mas cederá o que for necessário para evitar o impeachment. E, se não tem maioria na CPI, ainda comanda a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República, que neste momento têm, espalhadas pelo país, dezenas de investigações contra prefeitos e governadores sobre desvios de recursos do combate à Covid-19.
Na segunda-feira, véspera da instalação da CPI, a PGR denunciou o governador do Amazonas, Wilson Lima, seu vice e outros 16 componentes de sua gestão por formação de organização criminosa e desvio de dinheiro público durante a pandemia. Se as operações se multiplicarem nos próximos meses, produzindo prisões em série, denúncias e delações premiadas, Bolsonaro terá uma ferramenta de pressão sobre a CPI e uma narrativa nas eleições. Para alguém acostumado a botar fogo no circo, pode ser o suficiente para chegar vivo a 2022.
Fonte:
O Globo
Míriam Leitão: O pacto do foco na CPI da Covid
A maioria da CPI vai trabalhar para a produção de provas, usando os depoimentos, mas principalmente a busca de documentos. A ideia que eu ouvi de senadores é que o tempo está a favor da CPI porque, a cada dia, o próprio governo fornece mais indícios com suas falas e trapalhadas. O grupo governista já tem uma divisão, apenas três assinaram ontem o mandado de segurança impetrado contra a relatoria de Renan Calheiros. A estratégia oficial tem sido insistir nessa briga, acusar governadores, defender a ida de médicos que prescrevem remédios ineficazes. Isso alimenta a milícia digital, mas não tem resultado prático e jurídico.
Há um “pacto do foco”, me explicou um dos senadores com os quais conversei. E o foco está sobre as ações e omissões do governo federal nesta pandemia, como diz o fato determinado. Houve pelo menos 11 oportunidades de compra de vacina que o governo desperdiçou, há inúmeros indícios de prevaricação e negligência na gestão da pandemia que já se aproxima de 400 mil mortos. Há até a atitude do presidente, um governante que nunca visitou um hospital e tratou de forma desumana o sofrimento do país. “Vamos parar com mimimi, vão ficar chorando até quando?” Existe uma coleção interminável de falas absurdas, mas também dados concretos sobre erros e omissões.
O governo adiou a compra de vacinas e as desqualificou. Como acaba de ser repetido pelo ministro da Economia em relação à coronavac. Há informações de que no kit intubação houve um movimento do governo para compra através da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Só que ele poderia comprar até US$ 40 milhões, mas reduziu, deliberadamente, o total das aquisições para algo como US$ 2 milhões. Existem dados concretos das despesas do governo em remédio com ineficácia comprovada. Mesmo que os senadores governistas sustentem a tese de que esses remédios do “tratamento precoce” são uma liberdade do médico, não há justificativa para fazer com eles uma política pública, se nenhum outro país fez isso.
— Quais são as armas da CPI? Os fatos — diz um dos senadores.
A linha governista desenhada até agora é amadora, na definição de um dos senadores. O mandado de segurança que foi parar na mesa do ministro Ricardo Lewandowski continua na linha de arguir a suspeição do senador Renan Calheiros em abstrato. O impedimento só faz sentido diante de um fato concreto. Além disso, eles devem repetir na sessão de hoje a estratégia de tumultuar, protelar e empurrar a CPI sobre os governadores. Dificilmente vai funcionar. Alguns senadores defendendo a tese de que se convide, por exemplo, o governador Wellington Dias, coordenador do Fórum, ou que se requisite as informações dos órgãos de controle sobre os repasses, mas a maioria da CPI está determinada a não perder o foco.
Entre o grupo majoritário, dos independentes e oposicionistas, há diferença de abordagem. Alguns defendem que haja sub-relatorias, outros acham que isso só dispersa. Alguns preferem o caminho mais técnico e sóbrio para o início dos trabalhos, outros são mais políticos. Mas todos estão preparados para as estratégias que os governistas podem usar. Alguns dos senadores na comissão são políticos experientes e dificilmente se deixariam enrolar, como Renan Calheiros, Omar Aziz, Otto Alencar e Tasso Jereissati.
Entre os governistas, o senador Ciro Nogueira fez alguns movimentos de se separar dos outros três. Ciro Nogueira já foi da base de sustentação de governos petistas e começa a ser hostilizado nas milícias bolsonaristas, acusado de traidor. Ele votou em Omar Aziz e não assinou o mandado de segurança. Ele é do centrão, está fazendo as contas de para onde sopra o vento.
Os governistas também vão tentar desqualificar os depoentes que falarem algo contra o governo. Isso não confunde, por exemplo, uma pessoa como o ex-ministro Mandetta, que está sendo alvo dos bolsonaristas.
Em resumo, o clima na CPI é de definição de estratégia. Hoje, Renan Calheiros apresenta o plano de trabalho e haverá o requerimento para a convocação dos três ex-ministros da Saúde e do atual titular da pasta. Os governistas preparam seu espetáculo. Vão fazer barulho. Mas o fato é que, como definiu um experiente senador, “o governo está assombrado”. Outro me disse que “o tempo está a favor de quem quer investigar.”
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/o-pacto-do-foco-na-cpi-da-covid.html
Merval Pereira: Isolado no mundo
Além do erro primário de ter deixado para comprar vacinas de última hora, ficando exposto à vontade do vendedor e do mercado mundial, o Palácio do Planalto, justamente por desdenhar a vacinação em massa como solução para a pandemia de Covid-19, deixou de planejar ações, não apenas de logística, mas também geopolíticas, que nos levaram a ser um país pária num mundo globalizado, quer queiram os Bolsonaros da vida ou não.
Estamos diante de um quadro de isolamento nunca antes enfrentado, com agentes públicos desqualificados para superá-lo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, que a cada dia se encolhe mais, acabou contagiado pela mediocridade do governo que pretendia controlar no seu superministério.
O tratamento dado à China no governo Bolsonaro é ridículo, para dizer o menos. Assumimos uma guerra que não é nossa, é dos Estados Unidos, passamos a dar estocadas no nosso maior parceiro comercial e segunda economia do mundo, consumidora voraz de commodities, que já começou a retaliar. Aumentou em 300% a importação de soja dos Estados Unidos e reduziu a do Brasil.
Outras retaliações virão, e é impressionante que um técnico bem formado como Guedes se deixe levar pela idiossincrasia do presidente em relação ao comunismo chinês, desqualificando a vacina chinesa contra a Covid-19 para enaltecer o poder da livre-iniciativa americana, que teria produzido uma vacina mais eficaz que a chinesa.
Acontece que a vacina da Pfizer não é americana, mas alemã, e o Brasil quase só tem a CoronaVac para vacinação interna — apenas 20% das doses são da Oxford/Astrazeneca . Por si, seria razão suficiente para um governo normal ter cuidados especiais com esse parceiro tão importante. Guedes pediu desculpas devido à reação diplomática da China, que tem em suas fábricas o insumo necessário para a fabricação da vacina no Instituto Butantan, em São Paulo, e na Fiocruz, do Rio.
Até o momento, a maioria dos brasileiros não pode viajar porque ser brasileiro, hoje, virou motivo para bloquear a entrada na maioria dos países do mundo, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. Quando a situação se normalizar, só os felizardos que tiverem a sorte de se vacinar com a AstraZeneca poderão viajar para a Europa, mas não para os Estados Unidos, que só aceita as vacinas da Moderna e da Jansen, americanas, e da Pfizer, alemã.
Essas são questões de geopolítica que deveriam estar sendo analisadas desde o início da pandemia. O governo Trump, negacionista como o de Bolsonaro, não deixou de comprar vacinas em abundância, mais até do que a necessidade da população dos Estados Unidos, e agora está distribuindo doses da vacina para países necessitados, mas o Brasil não está nessa primeira leva.
A solidariedade internacional com a Índia, que vive uma crise humanitária de proporções inéditas, é muito maior do que com o Brasil, mesmo o primeiro-ministro Narendra Modi sendo um político direitista que idolatrava Trump. Mas, ao contrário de Bolsonaro, não foi ingênuo a ponto de não cumprimentar o presidente eleito Joe Biden.
A Índia também tem uma importância na geopolítica internacional que o Brasil não tem, o que não recomenda uma política externa maniqueísta e não pragmática. Não há como não admitir que, nessa geopolítica internacional, países como o Brasil precisam se impor por seu soft power, que no nosso caso é muito bem representado pela cultura — música, cinema, futebol — e passou a ser um instrumento fundamental de nossa política externa, explorado na atuação exitosa de nossas Forças Armadas nas missões de paz da ONU.
Um governo cheio de generais que comandaram as Forças brasileiras nas missões das Nações Unidas para estabilização do Haiti já deveria ter entendido que a posição do Brasil no mundo depende de fortalecermos nossas vantagens comparativas, como deveríamos fazer no meio ambiente, e não na confrontação.
Luiz Carlos Azedo: Lula, ser ou não ser
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva cogita não disputar a Presidência da República e participar da chapa do PT como vice, repetindo o estratagema peronista que elegeu o presidente Alberto Fernández na Argentina, tendo a ex-presidente Cristina Kirchner como vice. Nesse caso, o nome mais cotado para encabeçar a chapa seria o do jovem governador do Ceará, Camilo Santana, um engenheiro agrônomo que governa o estado desde 2014 e foi reeleito com facilidade. Supostamente, o acordo permitiria uma reaproximação com Ciro Gomes, cuja candidatura pelo PDT virou uma pedra no sapato de Lula, e também com o senador tucano Tasso Jereissati (PSDB-CE).
O assunto está sendo discutido pelo círculo mais próximo de aliados de Lula e já divide a cúpula petista. O ex-presidente tem revelado preocupação com o desgaste causado pela Operação Lava-Jato e pelo fato de que ainda está numa posição vulnerável, porque suas condenações foram anuladas, mas ainda não foi absolvido. Seu processo será retomado na Justiça Federal em Brasília, o que pode se tornar uma frente de erosão da sua candidatura. Além disso, está com 75 anos; caso fosse eleito, terminaria o mandato com 80 anos.
Para Lula, o mais importante é derrotar o presidente Jair Bolsonaro e garantir a volta do PT ao poder, não necessariamente, voltar a ser o presidente da República. Seus aliados mais próximos dizem que essa obsessão Lula não tem; se a tivesse, não teria apoiado a reeleição de Dilma Rousseff, embora, hoje, ele próprio admita que talvez tenha sido um grave erro. Outros petistas que poderiam encabeçar a chapa são o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad e o governador da Bahia, Rui Costa. Entretanto, segundo os defensores da candidatura de Lula a qualquer preço, ambos queimaram a largada quando o petista estava inelegível. Essa discussão, inclusive, teria desgastado a relação do senador Jaques Wagner (PT-BA), ex-governador da Bahia, com seu velho amigo Lula.
No entanto, Lula se movimenta para retirar o PT do isolamento e construir uma ampla base de alianças em nível nacional, procurando antigos aliados regionais. Na terça-feira, reuniu-se com os dirigentes do partido no Rio de Janeiro para discutir o apoio à candidatura do deputado federal Marcelo Freixo (PSol) ao governo fluminense, numa aliança que incluiria o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM), e o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, que sempre teve boas relações com o PT. Maia está de malas prontas para deixar o DEM. O que pode inviabilizar essa aliança é a renúncia do atual governador, Claudio Castro(PSC), que não pretende disputar a reeleição. Nesse caso, o presidente da Assembleia Legislativa fluminense, André Siciliano (PT), picado pela mosca azul, assumiria o governo e disputaria a reeleição. Para Lula, o Rio de Janeiro é considerado decisivo para a derrota de Bolsonaro, pois foi um dos estados que lhe garantiram a eleição em 2018.
O outro estado considerado estratégico por Lula é Minas Gerais, onde o PT busca uma aliança com o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, tendo o ex- governador Fernando Pimentel no comando das articulações, a partir de suas relações com o ex-deputado Adalclever Lopes (MDB), secretário de Governo da Prefeitura de Belo Horizonte e ex-presidente da Assembleia Legislativa mineira, durante seu governo. A chave da aliança com o PSD, porém, é o apoio do ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab. Para isso, o PT estaria disposto a apoiar a candidatura de Kalil ao governo de Minas ou mesmo lhe oferecer a vaga de vice-presidente, caso Lula seja mesmo o postulante do PT.
Cerco a Doria
Enquanto Lula alimenta sua dúvida hamletiana — ser ou não ser, eis a questão —, a candidatura do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), sofre um cerco dentro do partido. Ontem, o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio anunciou que pretende disputar as prévias da legenda, previstas para outubro. Na semana passada, foi o senador Tasso Jereissati, ex-governador do Ceará, que anunciou a mesma intenção. Enquanto isso, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, o primeiro a anunciar o desejo de disputar a vaga de candidato à Presidência do PSDB, ao se reunir com o presidente do Cidadania, Roberto Freire, e com o deputado Daniel Coelho (Cidadania-PE), começa a costear o alambrado, como dizem os gaúchos, para deixar a legenda e concorrer por outro partido.
Mariliz Pereira Jorge: 400 mil mortos
“É lindo viver”, escreveu nesta quarta (28) o jornalista João Batista Natali, intubado durante 21 dias por complicações da Covid-19. Paulo Guedes não deve concordar. Nem Jair Bolsonaro.
Natali contou que, ainda internado, chorou compulsivamente ao ouvir “Paixão segundo São Mateus”, de Bach, depois do longo período em que “deixou de existir”. Eu me emocionei ao imaginar Natali impactado ao experimentar novamente, depois de ter flertado de perto com a morte, momento tão banal: uma música bonita no rádio.
Esse apreço pela vida deve ser coisa de jornalista sentimentaloide, como somos eu e Natali. Horas antes de o texto do jornalista ser publicado na Folha, o titular da economia dizia que a longevidade é insustentável aos cofres públicos. “Todo mundo quer viver cem anos.”
Vinda de um integrante do governo Bolsonaro, a declaração não surpreende, apenas confirma o desprezo que presidente e colaboradores sentem pelo maior bem que qualquer ser humano pode ter: a vida. Vamos lembrar que, há um ano, a reação de Bolsonaro, ao ser questionado sobre as mais de 5.000 mortes causadas pela Covid-19, foi esta: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. Nesta quinta (29), o Brasil deve chegar à trágica marca de 400 mil mortos. Como a situação ainda deve piorar, talvez Guedes fique mais tranquilo.
Que ousadia a nossa querer viver tanto. Para ouvir Bach? Para ver sobrinhos e netos crescerem? Para tomar um chope gelado? Sentir o coração bater por uma nova paixão? Para nadar no mar? Para poder voltar a abraçar as pessoas?
Recorro às palavras da juíza Andrea Pachá, em recente tuíte: “Só entende o desejo de envelhecer e completar o ciclo da existência, experimentando a longevidade, aquele que ama a vida e a entende como direito humano fundamental. Sentimento inexplicável para o ministro que se indigna com os velhos que insistem em viver”.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilizpereirajorge/2021/04/400-mil-mortos.shtml
Gabriela Prioli: Vacina? Só se for escondidinho
A abertura da CPI nos mostrou uma coisa: Bolsonaro, quando quer, sabe se organizar, desde que seja para defender seus próprios interesses. Em poucos dias, a Casa Civil produziu uma lista de acusações mais completa e detalhada do que a própria comissão. Ele sabe o que ele fez.
Não se organizou antes porque o motivo não lhe parecia bom o suficiente. Trabalhar para salvar a própria pele, vá lá, mas se o risco que se apresenta for a morte de centenas de milhares de brasileiros, o esforço não vale a pena ou não interessa.
Afinal, não dá mesmo para todo mundo querer viver cem anos, como alertou Paulo Guedes na mesma reunião do Conselho de Saúde Complementar em que falou que a China, principal fornecedor de vacinas e insumos ao Brasil, inventou o vírus e criticou a Coronavac, que representa 84% das vacinas aplicadas no país, apesar do trabalho de Bolsonaro em descredibilizar o imunizante.
Sem saber que a reunião estava sendo transmitida, disse, sobre o aumento na expectativa de vida, que não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar a busca crescente por atendimento médico. Sem entrar na ordem de grandeza, sobraria algum dinheiro para a saúde se o governo, por exemplo, não insistisse na fabricação de medicamentos que não funcionam ou não precisasse ceder um pedaço do Orçamento para se proteger de remédios amargos, às vezes fatais.
Sobraria também se tivéssemos, com pressa, vacinado o nosso povo. Mais tempo de pandemia significa mais recursos públicos destinados a socorrer os mais vulneráveis. E não, a resposta não é o negacionismo que coloca o povo em risco para a economia não parar. Descoberta e disponibilizada a vacina, o isolamento que afeta a economia deixou de ser culpa do vírus para ser responsabilidade de quem atrasou deliberadamente o plano de vacinação. Vacina, aliás, que não faltou para o general Ramos, que precisou se imunizar escondido para não melindrar o seu chefe.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/gabriela-prioli/2021/04/vacina-so-se-for-escondidinho.shtml
Nomadland encanta pelas contradições e se consagra como vencedor do Oscar 2021
Análise é da crítica de cinema Lilia Lustosa, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de abril
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
Doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), a crítica de cinema Lilia Lustosa acredita que o ano de 2021 pode representar um grande avanço para a conquista feminina no cinema.
“Ao que tudo indica, o ano de 2021, apesar de seu roteiro mais para cyberpunk ou filme-catástrofe, parece que vem para marcar positivamente a história do cinema. Pelo menos no quesito conquista feminina”, afirma Lilia, em artigo que publicou na revista mensal Política Democrática Online de abril (30ª edição).
Veja versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021
A publicação é produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. O acesso a todos os conteúdos da revista é gratuito no site da entidade.
Dirigido, roteirizado, montado e produzido por Chloé Zhao, uma chinesa radicada nos Estados Unidos, Nomadland vem roubando todas as atenções e levando os prêmios mais importantes da temporada, na avaliação de Lilia Lustosa. O filme se tornou o segundo dirigido por uma mulher a receber a estatueta maior da grande premiação hollywoodiana (Melhor Filme) – e Chloé Zhao também repetiu o feito no prêmio de direção (Melhor Diretor).
Roadmovie
“Um roadmovie que mistura realidade e ficção, ao percorrer o oeste dos EUA retratando a vida dos novos nômades do país, tendo como protagonista a já oscarizada Frances McDormand”, conta a crítica de cinema, em seu artigo publicado na revista Política Democrática Online.
A origem asiática da diretora chama também a atenção, já que, conforme ressalta Lilia, a sociedade está assistindo, na vida real, a um aumento da violência contra pessoas nascidas naquela região, “a quem muitas vezes tem sido atribuída a culpa pelo surgimento do coronavírus”.
“Um cenário macabro de uma ficção científica rasa e injusta!”, critica Lilia. “Mas, enquanto o movimento Stop Asian Hate ganha forças nas ruas, Cloé Zhao brilha absoluta nos palcos dos festivais e nas telas de cinema, televisores, computadores, tablets ou smartphones de todo o mundo”, destaca o artigo da revista online da FAP.
Globo de Ouro
Em fevereiro último, como lembra Lilia, Cloé Zhao se tornou a primeira diretora a ter uma produção premiada com o Globo de Ouro de melhor filme, além de ser a segunda a levar a estatueta de melhor direção e a primeira asiática a conseguir esse feito.
“No Critics Choice Award, Zhao também saiu com o prêmio de direção, e Nomadland, com o de melhor filme. Fato que se repetiu no PGA Awards, premiação do Sindicato dos Produtores de Hollywood, em que seu filme foi laureado mais uma vez como o melhor do ano”, diz.
Para saber todos os detalhes da crítica de cinema produzida por Lilia, acesse diretamente a versão flip da revista Política Democrática Online de abril. A publicação também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, artigos de política nacional, política externa, cultura, entre outros, e reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos.
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Marcelo Burgos: A matriz ideológica da milícia e o fenômeno bolsonaro
A milícia é um fenômeno, sobretudo, econômico, de construção de novas bases materiais na vida urbana. E nesse caso, o fato de parte da Barra da Tijuca aderir ao mesmo projeto político da população mais fortemente submetida ao jugo das milícias, indica que o modo de exploração econômica caro à milícia pode estar dando lugar a uma nova superestrutura que é, por princípio, antiestatal e genuinamente neoliberal
O Rio de Janeiro tem muito a ensinar sobre o fenômeno Bolsonaro para o Brasil, e embora isso seja óbvio, ainda não foi suficientemente levado a sério. Examinar a forma pela qual a milícia se espraiou no estado e como ela se converteu em um discurso que avançou sobre áreas ricas da cidade pode ser um bom começo. Afinal, a relação entre o atual presidente e seus filhos com a milícia não é apenas pessoal, mas ideológica, e isso precisa ser melhor compreendido.
Um bom ponto de partida para esse argumento aparece nos mapas apresentados pelo cientista político Antônio Alkmim em seminário recente, realizado pela PUC-Rio, e que também contou com a participação do deputado federal Marcelo Freixo (PSol-RJ). Ao fazer a cartografia do voto na cidade do Rio de Janeiro, Alkmim chama a atenção para o fato de que no 1º turno das eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro teve sua maior concentração de votos no corredor que vai da região litorânea da Barra da Tijuca, onde vive parte da elite econômica da cidade, à região de Jacarepaguá, reduto principal e originário das milícias.
Esse achado é ainda mais reforçado quando se analisa o perfil dos votos nas últimas eleições municipais realizadas dois anos depois. Além do candidato Eduardo Paes (DEM-RJ), que afinal se elegeria, e dos demais candidatos de centro esquerda e esquerda, concorreram o então prefeito Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), sobrinho de Edir Macedo e representante da Igreja Universal, e o deputado federal Luiz Lima (PSL-RJ). Esses dois últimos disputavam o voto de direita e extrema direita. O mapa não podia ser mais sugestivo: enquanto Luiz Lima recebe quase toda a sua votação (cerca de 11% do total) nesse mesmo corredor composto pela Barra e a região de Jacarepaguá, Crivella impera em bairros da zona oeste da cidade onde a presença das igrejas neopentecostais é mais forte.
Duas constatações para uma análise
Desses mapas, cirurgicamente apresentados por Alkmim, tiramos pelo menos duas constatações que podem nos levar a uma análise de mais largo alcance da milícia como ideologia. Primeiro, o campo evangélico pode até ter algumas afinidades eletivas com o fenômeno bolsonaro, mas guarda autonomia em relação a ele; e segundo, a classe média e alta da Barra e os redutos empobrecidos e subjugados pela milícia apresentam uma surpreendente identidade política.
Explicar o quadro extraído desses mapas nos parece um exercício fundamental se queremos iluminar as raízes do fenômeno bolsonaro. Neste artigo, apresento algumas pistas que poderão ser úteis para a sua compreensão e o combate político e cívico desse monstro que nasceu no Rio e expandiu seus tentáculos pelo país.
Quanto à primeira constatação, não creio ser novidade, mas tampouco custa lembrar, que o campo evangélico é muito mais complexo do que se costuma acreditar. E se é verdade que algumas de suas grandes denominações têm se transformado em eficientes máquinas políticas, ainda assim, estamos falando de um terreno aberto a disputas, e que por isso mesmo pode hoje servir a Bolsonaro, como ontem serviu ao PT. O fato de Crivella ter galvanizado seu voto nos principais redutos evangélicos revela, sem dúvida, um poder de extração de voto importante, mas com baixa potencialidade para se converter em nova matriz ideológica. Para isso acontecer seria necessária uma base econômica própria, e nesse caso importa não esquecer que estamos falando basicamente de uma massa de trabalhadores empobrecidos e precarizados.
Apesar da emergência econômica das classes populares no período Lula-Dilma ter emprestado sentido ascendente e afirmativo à moralidade neopentecostal, a condição subalterna dessa população e a forma com que se relacionam com a esfera pública, comprometem seu poder transformador, tornando-a necessariamente dependente de alianças políticas e culturais para se autorreproduzirem.
Fenômeno econômico
O caso da milícia é diferente É, acima de tudo, um fenômeno econômico, de construção de novas bases materiais na vida urbana. E nesse caso, o fato de parte da Barra da Tijuca aderir ao mesmo projeto político da população mais fortemente submetida ao jugo das milícias, indica que o modo de exploração econômica caro à milícia pode estar dando lugar a uma nova superestrutura que é, por princípio, antiestatal e, por isso mesmo, genuinamente neoliberal. Quanto a isso, a cena da comemoração da vitória de Bolsonaro em torno da sua casa em condomínio da Barra teve efeito simbólico poderoso. O monstro gestado na extração da mais valia nas áreas populares havia se convertido em discurso capaz de arrastar as classes médias e altas da cidade.
Enquanto fenômeno fundamentalmente econômico, a milícia é global, fazendo-se presente, ainda que de diferentes maneiras, em diversas áreas populares do planeta, especialmente no hemisfério sul. E por suas próprias características, a lógica da milícia anima um discurso antiestatal e antipolítica. No mundo da milícia, o que vale é a lei do mais forte, que não reconhece direitos nem regulação; sua concepção de sociedade é a do hobbesianismo social: indivíduo, apetites, competição e eliminação física daqueles que representam um obstáculo aos seus negócios. A versão neoliberal do mundo periférico.
No Brasil, e muito especialmente no Rio de Janeiro, a principal singularidade desse fenômeno é o fato dele estar umbilicalmente associado à participação de policiais (majoritariamente militares, mas não apenas) da ativa e aposentados, que se valem de seu poder de fogo (literalmente) para impor a favelas e bairros empobrecidos seu domínio econômico, militar e político. A partir dessa condição, exercem um controle totalitário sobre os territórios onde pontificam, avançando sua empresa econômica especialmente nas franjas das cidades, lá onde o ilegal e o legal se misturam ao ponto de se tornarem indistinguíveis
Essa estreita conexão com forças policiais caracterizadas por uma cultura violenta, historicamente forjada na forma com que lidam com as favelas e periferias das cidades, empresta à forma miliciana brasileira o recurso a um discurso de ordem e o uso do medo como instrumento de dominação. No Rio de Janeiro, onde o fenômeno ganhou sua máxima expressão, a dominação ideológica miliciana cresceu e se alimentou da guerra ao tráfico, que transformou os territórios populares em campos de guerra. O terror das operações policiais nas favelas, e os enfrentamentos entre os próprios bandos de traficantes, retroalimentados pelas estratégias de segurança pública, serviram à perfeição para conferir à exploração econômica praticada pela milícia um discurso paraestatal de manutenção da ordem por meio da manipulação do medo.
Fenômeno bolsonaro
Essa característica da milícia no país é fundamental para que se possa compreender a natureza autoritária do fenômeno bolsonaro. De fato, na sua imaginação não está em jogo um autoritarismo de estado, à moda dos regimes militares sul-americanos dos anos de 1960 e 1970, mas sim um autoritarismo societal. O antiestatismo radical do modo de exploração da milícia é inconciliável com a presença de um Estado forte (autoritário ou não). Daí fazer parte do coquetel ideológico que está produzindo, a combinação entre a apologia do armamento da população e a defesa de uma noção de liberdade individual em face da autoridade do Estado que rejeita qualquer noção de coesão e solidariedade. Nada disso, vale frisar, pode ser facilmente digerido pelas lideranças das Forças Armadas, que, no entanto, se deixaram embalar pelo canto da sereia da raiz autoritária do fenômeno bolsonaro, não percebendo talvez o corpo inteiro do monstro. Mas essa hipótese ainda precisaria ser melhor investigada, afinal, o chefe da Casa Civil e agora ministro da Defesa, general Braga Netto, esteve à frente da intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro ao longo de 2018, e é impossível que não tenha mapeado a extensão da milícia na vida da cidade e de sua região metropolitana. O próprio assassinato de Marielle Franco, ainda no primeiro mês da intervenção, obrigaria a isso.
Do mesmo modo, faz parte de seu modelo autoritário a negação da política e de suas instituições, a começar pelos partidos. Sua estética dispensa os ritos e as mediações da política (o presidente no seu discurso de vitória na sala de sua casa). E sua ética recusa o princípio da representação, não no sentido clássico do “populismo”, mas de uma forma inteiramente nova. Em suas mãos, a política é completamente instrumentalizada, servindo apenas como meio de destruição do estado e da regulação pública. Não por acaso, câmaras de vereadores e prefeituras são especialmente importantes para os milicianos. Afinal, são elas que governam as cidades, e que deveriam regular o acesso ao solo, à construção civil, ao transporte público, e ao comércio e serviços em geral, em suma, aos principais ativos econômicos agenciados pela milícia. A infiltração na vida política se faz como um movimento que encurta as distâncias que eram próprias aos velhos esquemas clientelistas. Sem precisar gastar energia com as mediações políticas, a milícia avança diretamente ao legislativo e ao poder público, para, de posse deles, destruir qualquer obstáculo à livre realização de seus negócios. O mais preocupante, porém, é que essa evocação a uma ordem desprovida de poder público e dominada pelo medo imposto pela força paramilitar, e esse discurso antiestado, ainda que tosco, agrada e atrai setores do mercado e seus representantes. Afinal, como se sabe, o neoliberalismo vai bem com qualquer tipo de autoritarismo. Quanto a isso, o fato do governo Bolsonaro ter como ministro da economia um homem que quando jovem fez parte dos “Chicago boys” da ditadura de Pinochet, dispensa outras evidências.
A conversão do neoliberalismo miliciano em uma original matriz ideológica está em curso, e sua melhor expressão é a conformação de uma nova elite econômica, forjada pela produção e reprodução de capital alimentado pelo consumo popular. Com isso, também entram em cena estratégias de transformação de capital econômico e político em capital social e simbólico. Condomínios de luxo, escolas privadas, vida noturna, restaurantes, salões de beleza e academias perfazem circuitos de transformação do domínio econômico em novos símbolos de status. E tudo, claro, bem azeitado pelo uso intensivo das redes sociais. O fato é que os homens truculentos que controlam os becos das áreas populares, erguendo barricadas e cobrando pedágios espúrios de comerciantes e moradores, e impondo ágios em preços de aluguel e de botijões de gás, já transitam (com suas mulheres) pelos espaços valorizados da cidade, ostentando símbolos de riqueza que mal disfarçam sua base econômica.
Aderência do neopentecostalismo
O mais dramático é que essa nova burguesia, com seu antiestatismo e seu peculiar autoritarismo, tem conseguido aderência – ainda que circunstancial – à moralidade difusa do neopentecostalismo. É verdade que na voz de milicianos a evocação à Bíblia chega a ser um gesto obsceno (Bolsonaro citando versículos de João na sala de sua casa após a vitória), mas o peculiar apelo à ordem que vem da milícia pode casar bem com a fetichização da família e a perseguição a minorias sexuais, tão presentes em parte do discurso evangélico. De igual modo, a agenda do “Escola sem Partido”, que recusa a moralidade laica e republicana da escola pública, na exortação do que chamam de “ideologia de gênero”, reúne uma suposta defesa da moralidade cristã a um discurso contra o Estado, do qual a escola pública é talvez a sua mais importante expressão.
Igualmente relevante, e talvez ainda mais surpreendente, é que essa burguesia miliciana, que garante sua forma de reprodução não de práticas corruptas, mas da corrupção como prática, a começar pelo próprio uso dos recursos policiais, tenha conseguido aderência ao discurso anticorrupção, o qual, levado ao extremo, se encontra com a negação da política e a criminalização de suas instituições, não dispensando para isso nem mesmo a violação de princípios básicos do devido processo legal.
Mas é preciso que se reafirme que nem os aderentes ao discurso do combate à corrupção, nem os evangélicos neopentecostais precisam ser, necessariamente, aliados da ideologia miliciana. Eles não são, com certeza, “farinha do mesmo saco”.
Foi preciso uma pandemia devastadora para que o sinal de alerta soasse com mais força entre os liberais e conservadores que não se reconhecem com o antiestatismo e a antipolítica da ideologia miliciana. E talvez isso somente tenha ocorrido porque a pandemia revelou o mais perturbador elemento dessa ideologia, que de modo algum é surpreendente para quem conhece de perto a ética da milícia: o neoliberalismo miliciano nutre desprezo pela vida alheia – para quem viu o filme, é impossível não lembrar: da barbárie sangrenta de “Bacurau”. A antena sensível de Kleber Mendonça Filho captou a brutalidade de um novo tipo de sujeito, que já não reconhece o outro como humano. Esse novo tipo de sujeito bem pode ser lido como uma visão alegórica do mundo miliciano. E certamente não é por acaso que o mesmo cineasta, alguns anos antes, em “Som ao Redor”, interligue um grupo de milicianos das ruas de Recife com a herança do canavial escravocrata da zona da mata pernambucana.
O ataque mais frontal às milícias, no Rio e no país, dependeria de dois processos complexos: uma ampla reforma urbana e uma profunda reforma da polícia. Sem isso, elas deverão continuar a contar com condições muito favoráveis para se expandir. É preciso pegar um atalho. Por isso, o alvo nesse momento deve ser a cabeça do monstro, que é a sua expressão ideológica, a qual ainda se encontra em seu momento expansivo, buscando ampliar suas alianças. A comunhão entre os eleitores empobrecidos das áreas dominadas por milícias e os endinheirados e remediados da Barra denota, na ecologia peculiar do Rio de Janeiro, seu potencial de expansão. Para se combater esse coquetel ideológico será necessário, antes de mais nada, cortar seus nexos com o campo evangélico, retirando-lhe uma fonte importante de discurso moral. Quanto a isso, a demonstração cabal de seu desapreço pela vida, incompatível com qualquer leitura da Bíblia é, sem dúvida, o mais importante a ser feito. Do mesmo modo, é preciso revelar com maior intensidade que as práticas corruptas da milícia vão muito além das “rachadinhas”. Um caminho seria o do aprofundamento da investigação jornalística e jurídica dos escaninhos que permitem a estonteante expansão imobiliária das regiões dominadas por milicianos. Quanto a isso, as ruínas do edifício que desabou na favela da Muzema, e a história das centenas de outros que ainda estão de pé, certamente tem muito a revelar.
Quanto às reformas, viriam depois, mas terão que vir…
Marcelo Burgos, professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio