covid-19
Correio Braziliense: ‘Muito poderia ter sido feito para evitar tantas mortes’, diz Gilmar Mendes
Ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, a pandemia conta uma história e deixa lições. Impossível passar por ela e não ver uma imensa janela aberta, mostrando a realidade que descortina um Brasil em pleno luto: “A pandemia escancarou erros e omissões históricas do Estado brasileiro na área social”. Não só isso. Para ele, fica demonstrada de forma inequívoca a importância da ciência e a necessidade ampliar investimentos no setor.
Lamentando a marca de mais de 400 mil mortos por covid-19, o ministro percebe que a dimensão absurda que a pandemia tomou no Brasil não se deve apenas a uma questão de agilidade: “Olhando para tudo que foi feito até agora, é possível dizer que não foi apenas uma questão de decisões tomadas fora do tempo ideal. Há uma série de outras questões que nos conduziram a essa tragédia.” Seria fundamental, a seu ver, a consistência da atuação do governo, a coordenação entre órgãos, o respeito aos critérios técnicos e à ciência, a boa comunicação com a população.
Nesta entrevista à coluna, o ministro também fala sobre as adaptações da Justiça frente à pandemia, a tecnologia, a noção de prazer e o conceito de liberdade. Acredita que é preciso manter acesa a esperança. E, no fim de tudo, haverá algo de positivo: “Entendo que ficará o legado e o exemplo daqueles que renunciaram a vários prazeres da vida em prol de um objetivo maior, que foi o de salvar vidas”.
Como a Justiça e o Direito se adaptaram para as novas demandas da sociedade diante da pandemia?
É preciso falar, aqui, que o Direito e a Justiça tiveram que se adaptar sob dois aspectos. O primeiro deles, é claro, foi a necessidade de manter as atividades do Judiciário mesmo no contexto da pandemia. Vimos uma atuação bastante relevante de todos os tribunais para possibilitar julgamentos, despachos, audiências, em suma, toda sorte de atos necessários à jurisdição em meio virtual. Felizmente, o nosso Judiciário já contava em grande medida com estrutura para tanto, dada a difusão do processo eletrônico nos tribunais do país.
O segundo aspecto tem relação com o próprio modo de fazer da atividade jurisdicional. Vimos o impacto da pandemia nas próprias demandas que chegam ao Judiciário. E, nesse caso, um dos grandes desafios foi responder a uma série de questões jurídicas, de certo modo, inéditas.
No início da pandemia, não se sabia a dimensão real do problema. Foi necessária uma grande sensibilidade do sistema de Justiça para enfrentar essas situações que se multiplicaram em todo o país. Como lidar com contratos durante esse período? Como fica a questão de eventuais inadimplementos por pessoas e empresas severamente impactadas pelas medidas restritivas? Como devem ser tratados os presos, principalmente os pertencentes aos grupos de riscos, nesse período? Essas foram algumas das questões que os Tribunais tiveram que responder.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, tivemos uma série de ações sobre temas relevantíssimos da pandemia. Diante dos conflitos entre estados e União, principalmente, o tribunal conseguiu delinear importantes diretrizes para a atuação desses entes. Retirou-se também as amarras financeiras e fiscais para as ações de combate à covid-19 e de socorro à população mais severamente atingida. Atuamos, inclusive, no âmbito das vacinas.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
A pandemia mostrou a importância da ação coletiva e da união das pessoas. Acredito que, neste momento, foram reforçados os laços de solidariedade e respeito e abandonadas posturas egoístas. É claro que houve infelizes casos de desrespeito às medidas de contenção ao vírus. Mas, no geral, entendo que ficará o legado e o exemplo daqueles que renunciaram a vários prazeres da vida em prol de um objetivo maior, que foi o de salvar vidas.
É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil? Como faz para aliviar a tensão?
Acredito que seja difícil diante de tanto sofrimento, mas é importante manter, na medida do possível, a esperança. Para aliviar a tensão eu tento manter a rotina de trabalho no Supremo e no IDP, como professor. Além disso, busco me exercitar e me manter atualizado nos livros.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Não se pode negar o fenômeno das “lives”. Esse momento nos mostrou que podemos quebrar a barreira da distância — e, aqui, a tecnologia assume um importante papel — através de eventos on-line. Tenho participado de inúmeros e frutuosos debates na modalidade virtual. Até mesmo, passei por uma situação inusitada de, sem querer, soltar uma reclamação ao final de um desses encontros virtuais. O constrangimento, de alguma maneira, deu lugar à piada. Além disso, vemos, é claro, que houve uma completa mudança na dinâmica do Supremo. Os julgamentos virtuais ganharam maior relevo, e as sessões por videoconferência inauguraram uma nova era não só no STF, mas em todo o Poder Judiciário. Com certeza, sem os avanços tecnológicos, nada disso seria possível e, nesse particular, devemos celebrar essas inovações que permitiram que os tribunais continuassem em pleno funcionamento.
Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia?
Acredito que a pandemia não vá alterar o que podemos dizer como as “grandes questões da humanidade”. Mas é certo que ela impactará a forma como as enxergamos. A covid-19 escancarou diversos de nossos problemas e criou novos olhares para analisá-los. Um exemplo claro é o de como tratamos questões tão relevantes como a desigualdade social, a desigualdade entre países e o próprio nacionalismo e todas suas implicações. Diante de uma ameaça global, na qual o descontrole da pandemia em um país pode gerar mutações mais agressivas e resistentes, é evidente que o debate sobre esses temas será afetado. Talvez a pandemia traga a eles uma perspectiva mais solidária e menos cínica. Outro caso interessante é o da liberdade, tema que sempre esteve presente nos mais diversos momentos históricos. Vejo o tanto que a pandemia da covid-19 deu a essa questão novas perspectivas. Refiro-me aqui às variadas discussões que surgiram a partir do tema liberdade, como a de locomoção, a de se vacinar (ou não), a de se manifestar (em redes sociais ou não), a de celebrar cultos, como vimos recentemente.
Que ensinamento este momento nos deixa?
Acredito que, enquanto sociedade, a covid-19 nos deixa uma série de ensinamentos que certamente poderiam ter sido aprendidos de forma menos dura, sem a perda de tantas vidas. Mas gostaria de destacar, em primeiro lugar, o quanto a pandemia demonstrou a importância da ciência e a necessidade de se ampliar o investimento nesse setor. Em segundo lugar, creio que ela escancarou erros e omissões históricas do Estado brasileiro na área social. A pandemia demonstrou e cresceu frente a um sistema de saúde frágil, à falta de estrutura urbana e de morada, às deficiências de nossa educação e a um sistema de seguridade social que até mesmo desconhecia uma quantidade gigantesca de trabalhadores brasileiros, os chamados “invisíveis”. Aqui, talvez, haja uma pontada de esperança de que fique o ensinamento a toda a classe política de que esses temas são urgentes e devem ser tratados com rigor.
Como o senhor vive em Brasília depois de mais de três décadas de convivência? Como “sentiu” a cidade neste ano de pandemia?
Apesar de ter nascido no Mato Grosso e de ter um vínculo muito forte com o estado, toda minha vida se encontra e foi em grande parte desenvolvida aqui em Brasília. Gosto da cidade, das pessoas que aqui conheci e das oportunidades que ela me proporcionou. E, mesmo estando acostumado ao estilo diferente da cidade, com seus grandes espaços abertos, poucos pedestres etc., é impossível não notar a diminuição do número de pessoas na rua, a redução drástica de eventos culturais, especialmente nos períodos mais graves da pandemia.
Como vê a perda de tantos brasilienses na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
O sentimento predominante é, certamente, de tristeza e consternação por tantas vidas perdidas. E, claro, também sinto que muito poderia ter sido feito para evitar tantas mortes. Aqui, não acredito que a questão seja simplesmente de “celeridade” na atuação do governo. É evidente que, em se tratando de vacinas, a velocidade importa. Mas, pensando na pandemia como um todo, acredito que, além da velocidade na tomada de decisões, é fundamental a consistência da atuação do governo, a coordenação entre órgãos, o respeito aos critérios técnicos e à ciência, a boa comunicação com a população, entre outras coisas. Olhando para tudo que foi feito até agora, é possível dizer que não foi apenas uma questão de decisões tomadas fora do tempo ideal. Há uma série de outras questões que nos conduziram a essa tragédia.
A importância da união em torno de um projeto suprapartidário para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos é possível?
Certamente. Desde o início da pandemia venho defendendo a importância de uma atuação coordenada entre todos os entes federados e partidos para que haja um combate ao vírus mais eficaz. Para isso, são necessárias políticas públicas voltadas para a implementação de medidas sanitárias em todo o território nacional, bem como para ações focadas na vacinação em massa e na garantia da subsistência de toda a população. Da mesma forma, será necessário envidar todos os esforços para mitigar os severos impactos que a pandemia tem causado na economia e na vida de cada um dos brasileiros. Eu tenho para mim que, apesar das desavenças e de nossas “fraturas expostas”, esses temas devem ser assuntos prioritários nas pautas do nosso Poder Legislativo.
Fonte:
Correio Braziliense
Gilmar Mendes: “Muito poderia ter sido feito para evitar tantas mortes”
Terrence McCoy: Bolsonaro insultou grande parte do mundo. Agora, o Brasil precisa de ajuda
RIO DE JANEIRO – Dois países em desenvolvimento, enormes em população e em extensão geográfica, são vítimas da devastação do coronavírus. Os hospitais esgotaram seus suprimentos. Pacientes são mandados de volta. Em todo lugar, uma nova variante. Precisa-se desesperadamente de ajuda externa.
No caso da Índia, derrubada por taxas recordes de infecção, o mundo se apressou a responder. Esta semana, a Casa Branca divulgou a entrega de mais de US$ 100 milhões em equipamentos e material hospitalar. Cingapura e Tailândia enviaram oxigênio. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, anunciou que o Reino Unido fará “tudo o que puder”.
Mas no caso do Brasil, que enterrou 140 mil vítimas nos dois últimos meses, a resposta internacional tem sido mais moderada. Em março, o presidente Jair Bolsonaro solicitou a ajuda das organizações internacionais. Um grupo de governadores pediu à ONU “ajuda humanitária”. Há duas semanas, o embaixador brasileiro na União Europeia implorou por ajuda. “É uma corrida contra o tempo para salvar muitas vidas no Brasil”.
Mas a resposta tem sido em grande parte ou falta de interesse, ou críticas aos erros do Brasil – e muito pouca ação, até o momento.
“O que está acontecendo no Brasil é uma tragédia que poderia ter sido evitada,” afirmou um membro do Parlamento Europeu ao embaixador brasileiro em uma audiência, este mês. “Mas esta tragédia foi baseada em decisões políticas erradas”.
“Em lugar de declarar guerra ao coronavíurs”, afirmou outro, “Bolsonaro declarou guerra à ciência, à medicina, ao senso comum, à vida”.
Desde terça-feira, a presidente do Parlamento Europeu, Ursula von der Leyen, tuitou três vezes sobre a ajuda à Índia. No entanto, pouco ela falou sobre o Brasil.
O contraste entre o tratamento dispensado pela comunidade internacional ao enfrentamento da crise na Índia e no Brasil mostra que as crescentes batalhas diplomáticas de Brasília complicaram a resposta do país contra o coronavírus. A imagem internacional que o Brasil passou décadas cultivando – focalizada no respeito do meio ambiente, amistosa, multilateral – foi solapada por um presidente cuja administração insultou grande parte do mundo no momento em que mais necessitava de ajuda.
Bolsonaro, um nacionalista de extrema direita, que chegou ao poder zombando do globalismo, acusou países europeu inclinados ao respeito do meio ambiente de colonialismo e desmatamento ilegal. Amplificou uma mensagem nas redes sociais usando termos depreciativos contra a aparência da esposa do presidente francês Emmanuel Macron. Reiterou as afirmações infundadas do presidente Donald Trump sobre fraude eleitoral, e foi o último líder do G-20 a reconhecer a vitória do presidente Joe Biden. Durante meses, membros do seu governo e apoiadores dispararam ataques racistas contra a China e zombaram de sua vacina. Na terça-feira, seu ministro da Economia afirmou que a China “inventou o vírus”.
Desde o começo da pandemia, o governo federal do Brasil menosprezou a gravidade de um vírus que aleijou este país de 210 milhões de habitantes. Bolsonaro conclamou as pessoas a viverem sua vida normalmente. Muitos lhe deram ouvidos – por causa da pobreza, da política ou do cansaço – o suficiente para comprometer medidas de contenção pouco uniformes. Mais de 400 mil brasileiros já morreram de covid-19, o pior desastre humanitário da história da nação, e o segundo maior do mundo, depois dos Estados Unidos.
Agora, ainda mergulhado no período mais mortal de sua pandemia – outros 3.001 morreram na terça-feira, segundo informações – um país que há muito gabava de ser amigo de quase todo mundo, agora se encontra em grande parte sem amigos.
“O mundo inteiro está tentando ajudar a Índia”, disse Maurício Santoro, cientista político da UERJ. “Mas Bolsonaro tornou-se um problema internacional tão grande que ninguém está disposto a ajudá-lo.”
“Ninguém fala em dar grande ajuda ao Brasil.”
À pergunta da razão pela qual os Estados Unidos não se mexeram para ajudar o Brasil com a urgência demonstrada em relação à Índia, um porta-voz do Departamento de Estado apresentou uma lista de contribuições dos EUA ao Brasil antes da fase pior da pandemia, por um total de mais de US$ 20 milhões em assistência fornecida pelo governo. O porta-voz acrescentou ainda os US$ 75 milhões de “ajuda do setor privado”. A contribuição, grande parte da qual foi enviada durante a administração Trump, incluiu mil ventiladores e 2 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina.
“Continuamos ativamente dispostos a discutir com o governo brasileiro suas necessidades e a encontrar maneiras de continuarmos nossa parceria com o Brasil a fim de ajudar a satisfazer as suas necessidades”, afirmou o porta-voz do Departamento de Estado.
Outros países também contribuíram. A Alemanha enviou ventiladores depois que o sistema médico da cidade de Manaus fracassou. A Organização Mundial da Saúde começou a enviar vacinas por meio de um programa que visa sanar as de imunizantes. A União Europeia e seus países membros concederam cerca de US$ 28 milhões em doações desde o início da pandemia, segundo um porta-voz. Em resposta a uma solicitação do Brasil em março, o bloco contribuiu para o envio de “80 mil unidades de medicamentos criticamente necessários” ao Brasil.
Mas a falta de mais assistência internacional – ou mesmo de uma maior expressão de solidariedade – durante os meses de maior desespero no Brasil, confirmou os temores de que o país venha a pagar um preço internacional pela atitude de confronto de Bolsonaro em matéria de política externa e de zombaria em relação às medidas contra o coronavírus aceitas pelos líderes globais.
“O País perdeu influência em inúmeros níveis”, afirmou Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.
O Brasil nunca irritou o mundo. Vasto, tranquilo e em desenvolvimento, seguiu tradicionalmente o que Stuenkel descreveu como uma política externa “previsível”, baseada na construção de alianças. Ano após ano, procurou estender o seu corpo diplomático, um dos maiores do mundo em desenvolvimento.
Voltar-se contra a sua história foi uma jogada que o Brasil não podia se permitir.
“Os EUA conseguiram tirar um Trump porque não precisam tanto do mundo”, disse Stuenkel. “Eles podem produzir suas próprias vacinas. Mas no Brasil, tal comportamento foi particularmente imprudente porque dependia da comunidade internacional. Nós não temos poder forte. Nós precisamos de multilateralismo“.
Em vez disso, o governo Bolsonaro menosprezou a fé na China e em suas vacinas ao mesmo tempo em que o Brasil dependia do país para obter material para as vacinas. Em abril passado, o ex-ministro da Educação de Bolsonaro tuitou uma mensagem racista provocando uma violenta censura da China e da Suprema Corte brasileira. O filho do presidente, membro do Congresso brasileiro, culpou a China pela pandemia, depois a acusou de usar o sistema 5G para espionagem.
O governo chinês advertiu que haveria “consequências negativas” se tal retórica continuasse. Em janeiro, o embarque de material da China para a produção de vacinas sofreu um considerável atraso, provocando uma série de especulações. Para alguns veículos de informação, os insultos do governo tiveram consequências.
Esta semana, enquanto as autoridades de saúde do país recusavam a vacina Sputnik V da Rússia, alegando falta de transparência, o ministro da Economia, Paulo Guedes, criticou a vacina chinesa que o Brasil tem.
“Os chineses inventaram o vírus”, afirmou, “e sua vacina é menos eficiente do que a americana”.
O embaixador chinês revidou: “Até este momento, a China é a principal fornecedora de vacinas e de material básico ao Brasil”.
Os que estão pagando o custo destas disputas diplomáticas são os brasileiros comuns, afirmou Michael Shifter, presidente do Diálogo Interamericano sediado em Washington.
“O povo brasileiro está sofrendo e morrendo a taxas absurdas,” ele disse. “E esta é a parte mais trágica”. /
Tradução de Anna Capovilla
Fonte:
O Estado de S. Paulo/ The Washington Post
Celso Rocha de Barros: Não há mais governo, e ninguém se dispõe a derrubar quem já desistiu de governar
No sábado (1º), velhos vacinados pelo Doria foram às ruas em apoio a Bolsonaro. Parabéns para os chineses: os manifestantes pareciam bem fisicamente, e seus evidentes problemas mentais eram claramente preexistentes.
Mesmo a maior manifestação, no Rio de Janeiro, não reuniu mais do que quatro ou cinco dias de brasileiros mortos durante a pandemia por culpa do governo Bolsonaro. Se a ideia era dizer “se tentarem derrubar Bolsonaro, terão de se ver conosco”, ninguém ficou assustado.
A demonstração de força dos bolsonaristas fracassou, mas o que interessa é que precisaram tentá-la. Eles sabem que Bolsonaro está perdendo.
O governo dos extremistas se desfaz a olhos vistos. Pela primeira vez na história, os chefes das Forças Armadas renunciaram conjuntamente em protesto contra o presidente da República. Logo depois, o Supremo Tribunal Federal tomou coragem e cumpriu seu dever constitucional obrigando o Senado a abrir a CPI do assassinato em massa. Bolsonaro manobrou para barrar a CPI, fracassou; manobrou para tirar Renan Calheiros da relatoria da CPI, fracassou.
A equipe econômica está se desintegrando em plena luz do dia, com demissão após demissão, uma fila puxada pelos melhores que só não termina em Guedes porque existe o inacreditável Adolfo Sachsida. O extremista Ernesto Araújo perdeu o Itamaraty e agora xinga o governo no Twitter. O vice-presidente Mourão deu uma entrevista ao jornal Valor Econômico em que declarou que não deve continuar na chapa na campanha da reeleição; defendeu, inclusive, a união em torno de uma terceira via para 2022.
Não há precedente para nada disso. Todo governo brasileiro que chegou perto desse ponto caiu antes de atingir esse grau de degeneração. E, no entanto, o governo Bolsonaro não cai.
No fundo, quem sustenta o governo Bolsonaro no momento é a Covid-19. O vírus impede manifestações de rua dos 70% do eleitorado que rejeitam Bolsonaro. E a mortandade causada pelo governo está tão fora de controle que as forças que poderiam organizar o impeachment não querem assumir responsabilidade pelo número imenso de mortes que Bolsonaro já contratou.
Mas se a Covid-19 segura Bolsonaro no Planalto, também impede que seu governo seja funcional, o que, sejamos honestos, já não seria fácil de qualquer maneira. O Brasil tem um grande problema de cuja solução depende a solução dos outros, a pandemia. Foi justamente esse o problema que Jair Bolsonaro desistiu de solucionar, porque já não comprou a vacina, já sabotou o isolamento social, e, a esta altura, não saberia corrigir-se se o quisesse.
Daí em diante, não há mais governo, só a mímica da rotina administrativa, a máquina rodando no vazio. A grande realização de Bolsonaro em 2021 foi aprovar o orçamento antes de maio.
Não há mais governo, e ninguém se dispõe a derrubar quem já desistiu de governar.
Resta-nos confiar no que ainda temos de burocracia profissional, no SUS, na Anvisa, nos governos estaduais, no Butantã, na Fiocruz. Que o medo da CPI pelo menos impeça Bolsonaro de continuar atrapalhando essa gente.
Minha aposta é que, depois do governo Bolsonaro, alguma palavra do português brasileiro entrará para as outras línguas como sinônimo de desastre.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Eduardo Sombini: Bolsonaro vive paradoxo entre radicalizar sua base e governar, dizem professores
Retrocesso —esta é a palavra a que mais de 40 autores de uma coletânea recém-lançada recorrem para sintetizar o que aconteceu no Brasil nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
No episódio desta semana do Ilustríssima Conversa, o repórter Eduardo Sombini recebe os cientistas políticos Fábio Kerche, professor da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), e Marjorie Marona, professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Kerche e Marona são organizadores, com o professor da UFMG Leonardo Avritzer, do livro “Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política”, publicado pela editora Autêntica.
Na conversa, eles discutiram a contradição entre o bolsonarismo como movimento político, que demanda a radicalização do discurso para engajar suas bases, e a construção da governabilidade do presidente, que requer a negociação com outros Poderes e partidos.
Na avaliação dos convidados, Bolsonaro tentou governar contornando o presidencialismo de coalizão —o conceito faz referência à necessidade de os presidentes brasileiros formarem alianças para garantir maioria no Congresso.
Mesmo depois da aproximação com o centrão, Bolsonaro não joga de acordo com essas regras, e a CPI da Covid no Senado sem maioria governista, para eles, é reflexo da transformação do Palácio do Planalto em campo de batalha e da destruição de pontes com outras instituições.
Kerche e Marona também falaram sobre as ameaças do presidente ao Supremo Tribunal Federal e a indicação do ministro Kassio Nunes Marques, a corrosão da autonomia do Ministério Público Federal com a nomeação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, as relações com os militares e as perspectivas para a segunda metade do mandato de Bolsonaro.
As ameaças [do presidente] foram cada vez mais se aproximando de bravatas. Tenho a impressão que Bolsonaro vai conduzir esses últimos dois anos de governo para tentar chegar às eleições de 2022 com alguma condição de se colocar como candidato com uma base social de 20%. Tenho a impressão que isso foi tudo que restou a ele.
Bolsonaro já esteve mais forte no passado, junto aos militares, por exemplo. Acho que as instituições, que estão sob tensão, vão se organizar caso Bolsonaro seja derrotado e a gente vai ter uma transição, com a expectativa de retomar a qualidade da nossa democracia. Acho que quem ganhar a eleição presidencial [de 2022] assume Fábio Kerche.
O Ilustríssima Conversa está disponível nos principais aplicativos, como Apple Podcasts, Spotify e Stitcher. Ouvintes podem assinar gratuitamente o podcast nos aplicativos para receber notificações de novos episódios.
O podcast entrevista, a cada duas semanas, autores de livros de não ficção e intelectuais para discutir suas obras e seus temas de pesquisa.
Já participaram do Ilustríssima Conversa Regina Facchini e Isadora Lins França, organizadoras de coletânea sobre direitos LGBTI+ no Brasil, Alessandra Devulsky, autora de livro sobre racismo e colorismo, Idelber Avelar, que discutiu a ascensão do bolsonarismo, Christian Dunker, psicanalista que reconstituiu a história da depressão, Lira Neto, que narrou a saga dos judeus sefarditas até o Recife, Roberto Simon, autor de livro sobre o apoio da ditadura brasileira ao golpe contra Allende, no Chile, Heloisa Buarque de Hollanda, que situou as principais tendências do pensamento feminista contemporâneo, Ilona Szabó, que discutiu as ameaças à democracia no Brasil, Luiz Simas, que apontou os conflitos do Brasil institucional e da brasilidade, Malu Gaspar, repórter que investigou os escândalos de corrupção e a derrocada da Odebrecht, Flavia Rios, coorganizadora de coletânea da intelectual Lélia Gonzalez, Karla Monteiro, biógrafa do jornalista Samuel Wainer, Vinicius Torres Freire, que tratou de medidas econômicas durante a crise do coronavírus, Muryatan Barbosa, pesquisador da história do pensamento africano, e Júlio Delmanto, autor de livro sobre a história social do LSD no Brasil, entre outros convidados.
A lista completa de episódios está disponível no índice do podcast. O feed RSS é https://folha.libsyn.com/rss.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Rodrigo Augusto Prando: O bolsonarismo na mira da CPI
Teve início, no Senado, a CPI que investigará as responsabilidades do Governo Federal, bem como de estados e municípios, no que tange à crise pandêmica que ora vivenciamos. Embora outros entes federativos possam ser trazidos à tona, não nos enganemos, pois, a comissão parlamentar de inquérito mira, sim, o bolsonarismo no bojo do Governo.
Há, neste sentido, um bolsonarismo militante – nas redes e nas ruas – e o bolsonarismo governamental, daqueles que, ideologicamente e nos valores, ocupam funções na estrutura estatal e imprimem, em suas falas e ações, facetas do presidencialismo de confrontação. Nos primeiros meses do mandato do presidente Jair Bolsonaro, após sucessivas declarações, principalmente, do próprio presidente, asseverei, alhures, que as vontades e suas realizações trazem consequências. A situação em tela: quase 400 mil mortos e uma CPI em funcionamento são, portanto, os resultados de uma escolha deliberada de Bolsonaro e seus ministros de alicerçar discursos e condutas sobre os pilares do negacionismo, do desprezo à ciência, das teorias da conspiração e das fake news.
A CPI, como se sabe, é instrumento político das minorias parlamentares e que objetivam desnudar determinadas responsabilidades, podendo estas serem, também, políticas, jurídicas, e até criminais. No conjunto dos senadores que compõem a comissão, o governo se encontra em minoria e, por isso, a situação já é, na largada, difícil. Manobras jurídicas tentaram impedir que Renan Calheiros fosse indicado como o relator, cuja posição é de suma importância dado ao fato de produzir o relatório final. No palco da CPI, os atores serão: o presidente eleito Omar Azis (PSD-AM), o vice-presidente Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e, na sequência, Azis indicou Renan Calheiros (MDB-AL) como relator. Há, ainda, os senadores Humberto Costa (PT-PE), Otto Alencar (PSD-BA), Tasso Jereissati (PSDB-CE), Marcos Rogério (DEM-RO), Eduardo Braga (MDB-AM), Eduardo Girão (Podemos-CE), Ciro Nogueira (PP-PI) e Jorginho Mello (PL-SC).
Renan Calheiros é, na política, daqueles adversários que ninguém deseja. Um amigo e interlocutor frequente nos assuntos atinentes à política disse-me que “Renan é dos poucos que sabem fazer o mal com tanto carinho”. Na instalação da CPI, a fala de Calheiros foi dura. “Não foi o acaso ou o flagelo divino que nos trouxe a este quadro. Há responsáveis, há culpados, por ação, omissão, desídia ou incompetência e eles serão responsabilizados”, disse. E, ainda: “Os crimes contra a humanidade não prescrevem jamais […]. O país tem o direito de saber quem contribuiu para as milhares de mortes. E eles devem ser punidos imediatamente e emblematicamente”. Se muitos políticos, metaforicamente, podem atirar para todos os lados, Renan é um atirador de elite, um sniper.
Senadores aliados do governo buscaram, no Supremo Tribunal Federal, barrar a função de Renan na relatoria da CPI. E isto indica que o senador alagoano é deveras temido pelo Planalto. Muito se comentou acerca de um relatório produzido pelo governo que, para antecipar sua defesa, destacou ações e omissões que nem mesmo se tinha aventado na CPI e, pior, foi este relatório ter vazado. Mas, para quem acompanha a cena política, lê os jornais e revistas e, ainda que panoramicamente, frequente as redes sociais, Bolsonaro, seus ministros, seus filhos, aliados políticos já produziram material fartamente registrado sobre praticamente todas as falas, entrevistas, lives e ações, desde março de 2020 até agora.
O ponto alto em toda a CPI é, sem dúvida, tirante o relatório final, as sessões com depoimentos aos parlamentares. E, neste caso, os parlamentares, dotados de retórica política, submetem os depoentes a um ambiente de tensão, enorme exposição e saraivada de perguntas e argumentações que podem produzir peças explosivas. Deem um microfone ao ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta, médico e político e, depois, ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Submetam os dois à pressão. Já conseguem imaginar o resultado? Coloquem cientistas e pesquisadores como, por exemplo, Natalia Pasternak, Atila Iamarino, Margareth Dalcolmo e Miguel Nicolelis de um lado e, do outro, Ernesto Araújo, Paulo Guedes, Carla Zambelli e Flavio Bolsonaro. É, por isso, que muito se afirma que todos sabem como começa uma CPI e nunca como ela termina.
O presidente Bolsonaro e o seu governo serão desgastados ao longo deste processo de investigação. O resultado, por enquanto, será difícil de prever, todavia, numa perspectiva de construção de cenários futuros, nenhum deles é favorável para o bolsonarismo. Acuado, Bolsonaro continua a atacar, ameaçar e menosprezar a CPI, chamando-a de “carnaval fora de época”. Felizmente, para o governo, não é carnaval e, por conta disso, não há o povo nas ruas. Dialeticamente, a pandemia que fragiliza o governo também o protege de protestos massivos.
*Rodrigo Augusto Prando é professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia, pela Unesp
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-bolsonarismo-na-mira-da-cpi/
Ricardo Antunes: 1º de Maio – O que comemorar?
Chegamos neste 1º de Maio de 2021 com o pior retrato de toda a história republicana. Nem durante a Primeira República vivenciamos uma situação tão trágica.
O desemprego hoje, segundo o IBGE, é de mais de 14 milhões. E, se a ele somarmos quase 6 milhões em desalento, ultrapassamos 20 milhões. Em fins de 2019, somávamos 17 milhões de desempregados e desalentados. Assim, é ilusório imaginar que tudo isso foi causado pela pandemia. A praga sanitária desnudou e exasperou uma realidade que vem se acumulando há tempos, mas se acentuou com Michel Temer e Jair Bolsonaro, com suas visíveis afinidades destrutivas.
O principal causador dessa devastação social se encontra na vigência de uma pragmática neoliberal perversa, que vem derrogando, um a um, a totalidade dos direitos sociais do trabalho. Flexibilização, terceirização, informalidade, negociado sobre o legislado, trabalho intermitente e uberizado, enfraquecimento dos sindicatos e da Justiça do Trabalho: foi este o cenário que a Covid-19 encontrou.
Outro exemplo emblemático: segundo o IBGE, no primeiro trimestre de 2020, constatou-se uma redução na taxa de informalidade quando comparada ao trimestre anterior, o que parecia positivo. Mas, ao contrário, essa constatação estampou outro vilipêndio, uma vez que houve aumento do desemprego dentro da informalidade. Nem isso o “Posto Ipiranga“ e seu chefe conseguiram impedir, aflorando mais um descalabro do desgoverno: o informal-desempregado. Para “comemorar” restou a explosão do desemprego, o “descobrimento” dos milhões de “invisíveis”, o aumento da fome e da miserabilidade, além do empobrecimento de amplos setores da classe média, que estão cada vez mais endividados e engrossando as fileiras dos sem-teto.
Mas é bom recordar que há quem esteja ganhando muito. As grandes plataformas digitais que se utilizam do trabalho intermitente e uberizado não param de crescer no tabuleiro do capital. Quanto mais “incluem” trabalhadores (que redenominaram “empreendedores” para excluí-los da legislação protetora do trabalho), maior é a intensidade do trabalho, mais longevas suas jornadas e menor a remuneração percebida. Os bancos, todos sabemos, seja na bonança ou na crise, garantem sempre o seu quinhão.
Como escrevi neste mesmo espaço (“De novo a Belíndia”; 24/10/16), naquele momento já estávamos caminhando para nos tornar uma nova Índia na América Latina, contando desemprego, informalidade, precarização e miséria aos muitos milhões, seguindo os passos do imenso país asiático
Será difícil, então, imaginar como irão sobreviver aqui os trabalhadores e as trabalhadoras, os negros e as negras, os indígenas, a juventude das periferias, os imigrantes etc.
Algum desavisado poderá afirmar: mas o governo algo fará!
Sua primeira ação já está definida: proibir o novo Censo Demográfico do IBGE. Com o apagão dos dados, pensa que será mais fácil esconder o tamanho do desastre social neste país tão desventurado. Será?
Tudo isso demonstra que, no Brasil de Bolsonaro, o 1º de Maio é um dia de luto. Mas é bom recordar que, historicamente, é também um dia de luta.
*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH/Unicamp); autor, entre outros, de ‘Os Sentidos do Trabalho’ (ed. Boitempo)
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/05/1o-de-maio-o-que-comemorar.shtml
Míriam Leitão: Centro não é o ponto entre dois extremos
Na disputa entre Lula e Bolsonaro não há dois extremistas. Há um: Bolsonaro. O centro deve procurar seu espaço, seu programa, seu candidato, ou seus candidatos, porque o país precisa de alternativa e renovação. Mas não se deve equiparar o que jamais teve medida de comparação. O ex-presidente Lula governou o Brasil por oito anos e influenciou o governo por outros cinco. Não faz sentido apresentá-lo como se fosse a imagem, na outra ponta, de uma pessoa como o presidente Jair Bolsonaro.
O PT jogou o jogo democrático, Bolsonaro faz a apologia da ditadura. A frase que abre esse parágrafo eu disse em 2018, em comentários e colunas, no segundo turno das últimas eleições. Era a conclusão da análise dos fatos e das palavras dos grupos políticos que disputavam a eleição. Fui hostilizada por dirigentes petistas do Rio dentro de um avião, processei por difamação um servidor do Planalto no governo Dilma. Sou vítima de constantes fake news e agressões do gabinete do ódio do governo Bolsonaro. Já fui criticada em público pelo ex-presidente Lula mais de uma vez e fui vítima de mentiras sórdidas ditas pelo presidente Jair Bolsonaro. Poderia com base nisso afirmar que os dois são iguais? Objetivamente, não. Seria falso. Posso concluir que ambos não gostam de mim, mas isso é o de menos. Não é uma questão pessoal.
Em dois anos e quatro meses, Bolsonaro superou as piores expectativas. Na pandemia, ele mostrou seu lado mais perverso. A lista é longa. Deboche diante do sofrimento alheio, disseminação do vírus, criação de conflitos, autoritarismo. O país chegou ao número inaceitável de 400 mil mortos com um presidente negacionista ameaçando usar as Forças Armadas contra a democracia. Em Manaus, no último fim de semana, ele repetiu que poderia lançar os militares contra as ordens dos governadores. “Se eu decretar, eles vão cumprir”. Esse clima de beligerante intimidação prova, diz um general, uma “necessidade doentia de demonstrar ter poder”. Segundo essa fonte, “cada vez que se declara detentor dessa suposta força, demonstra na verdade não tê-la”. Seja qual for a análise da mente distorcida do presidente, o fato é que ele ameaça o país com a ruptura institucional no meio de um doloroso sofrimento coletivo.
O ex-presidente Lula teve uma política ambiental de excelentes resultados na gestão da ministra Marina Silva e do ministro Carlos Minc. O país viu avanços na inclusão de pobres e negros. Na economia, houve erros e acertos. No campo institucional, escolheu ministros do Supremo qualificados e nomeou procuradores-gerais da lista tríplice. Bolsonaro quer devastar a floresta, capturar as instituições e seu governo exibe preconceito como se fosse natural.
Bolsonaro faz ataques sistemáticos aos veículos de imprensa e aos jornalistas. Lula ameaçou impor o que ele chamou de “regulação da mídia”, mas recuou diante da resistência dos órgãos de comunicação. Ameaças nunca devem ser subestimadas, mas as instituições sabem lidar com um governante que tenha um mau projeto. Mais difícil é se defender de um inimigo da democracia como Bolsonaro.
As decisões recentes do Supremo Tribunal Federal tiraram as penas que recaíram sobre Lula e ele tem dito que foi inocentado. Tecnicamente sim, porque não é mais um condenado pela Justiça. O PT defende a tese de que foi tudo uma conspiração contra o partido. Falta explicar muita coisa, mas principalmente a materialidade do dinheiro que foi devolvido por corruptos e corruptores ao poder público.
Bolsonaro usou o sentimento anticorrupção sem o menor mérito, como se vê na sucessão de rachadinhas, funcionários fantasmas, pagamentos em dinheiro vivo e transações imobiliárias que rondam a família. Isso sem falar nas relações estreitas com personagens obscuros, como o miliciano Adriano da Nóbrega.
Partidos de outras tendências políticas devem trabalhar para oferecer alternativas ao eleitor brasileiro, porque a democracia é feita da diversidade de ideias e de propostas. O erro que não se pode cometer é dizer que essa é a forma de fugir de dois extremos. Isso fere os fatos. Não existe uma extrema-esquerda no país, mas existe Bolsonaro, que é de extrema-direita. No governo, ele multiplicou as mortes da pandemia e sempre deixa claro que se puder cancela a democracia.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/centro-nao-e-o-ponto-entre-dois-extremos.html
Eliane Cantanhêde: Fechando as porteiras
A lógica se inverteu. Não é mais o governo que aproveita a “distração” do Brasil e da mídia com a pandemia e os já mais de 400 mil mortos para passar suas “boiadas”. Agora, são o Supremo, o Congresso e a sociedade que se unem para resistir às “boiadas” governistas, enquanto o presidente Jair Bolsonaro, seus ministros e assessores estão muito ocupados com a CPI da Covid.
Um bom exemplo é o próprio meio ambiente. Foi o ministro Ricardo Salles quem avisou, naquela reunião ministerial histórica, que o governo estava aproveitando a pandemia para passar a “boiada” e pisotear o Ibama, o ICMBio, a legislação ambiental e, portanto, toda a estrutura de fiscalização e acompanhamento de florestas, rios, santuários. Mas a resistência cresce, e é sólida.
O delegado Alexandre Saraiva foi afastado da PF no Amazonas ao denunciar Salles por se aliar a madeireiros ilegais e, em vez de proteger a Amazônia, operar para destruí-la. Com essa denúncia, mais as ações de Ministério Público, ex-ministros, ONGs e entidades contra Salles e a política ambiental, a oposição colhe assinaturas para uma nova CPI, a do Meio Ambiente, na Câmara. Pode não ser inteligente, porque divide os holofotes da CPI da Covid, no Senado. Mas mobiliza.
Como há “fatos determinantes” abundantes para a da covid, também não faltam para uma eventual CPI do Meio Ambiente. Há montes de cinzas, madeira ilegal, dados e evidências de destruição. Aliás, Bolsonaro anunciou na cúpula do clima que estava dobrando os recursos para a fiscalização ambiental. No dia seguinte, veio o anúncio do Orçamento da União com cortes de R$ 240 milhões exatamente aí.
Funcionários do setor denunciaram “o colapso da gestão ambiental”, mas o desmanche não se resume a Ibama e ICMBio, resvalando para o Inpe. Nem a reação a ele. Sete ex-ministros da Educação, por exemplo, lançaram manifesto a favor do Inep, que cuida de Enem (ensino médio) e Ideb (ensino básico). Segundo eles, “o Inep está gravemente enfraquecido e isso coloca em risco políticas públicas cruciais”.
O que dizer da Cultura, que já teve secretário de alma nazista, mantém um negro racista na Fundação Palmares, persegue os ícones do teatro (como Fernanda Montenegro) e da música (como Chico Buarque), além de investir contra a Ancine e o Conselho Superior do Cinema?
E, por falar em “risco a políticas públicas cruciais”, ainda não está claro quem e por que, efetivamente, impediu o Censo de 2021. O IBGE pediu R$ 2 bilhões, Congresso destinou R$ 71 milhões e, com o corte do Planalto, sobraram R$ 58 milhões. Sem dinheiro, sem Censo. Sem Censo, como avaliar e planejar o País? Será que Bolsonaro temia a foto do “seu” Brasil na campanha à reeleição?
Na política externa, o chanceler Ernesto Araújo caiu, mas os escombros se espalham por toda parte, na forma de má vontade com insumos das vacinas, críticas de governos, parlamentos, entidades, sociedades. Até integrantes do Parlamento Europeu condenaram o “negacionismo” e a “necropolítica”, ou “política da morte”, no Brasil.
E na economia? O ministro Paulo Guedes não caiu, mas não sobra pedra sobre pedra de sua equipe, seus planos, suas reformas e seus propósitos liberais. E não por culpa da esquerda, da oposição ou da mídia, e não adianta dizer que foi por causa do Congresso. Quem não assume, e inclusive sabota, a política de Guedes é… Jair Bolsonaro.
Agora, o presidente só pensa em soterrar a CPI da Covid, mas continua em campanha por aí e proibindo máscaras, álcool em gel e – pelo que se deduz da revelação do general Luiz Eduardo Ramos – até vacinas. Enquanto isso, as boiadas enfrentam cada vez mais resistência. A turma dos atos golpistas insiste em defender o indefensável, mas a reação é firme e só aumenta.
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fechando-as-porteiras,70003701080
Vinicius Torres Freire: Paulo Guedes não sabe o que diz sobre saúde, pobres e não sabe o que faz
“Pobre? Está doente? Dá um voucher para ele. Quer ir no Einstein? Vai no Einstein. Quer ir no SUS, pode usar seu voucher onde quiser”, disse Paulo Guedes em seu mais recente surto de ignorância e horror a pobre.
Estritamente falando, um voucher é um vale, como um vale-refeição. No desvario de Guedes, “um pobre” receberia um vale-saúde para se tratar onde quisesse, no SUS ou no Einstein, um dos grandes e excelentes hospitais privados de São Paulo. Nem Guedes deve acreditar estritamente nessa idiotice. Mas argumente-se por absurdo e a favor do ministro.
O setor público gasta por ano 3,9% do PIB em saúde (na média trienal até 2017, do IBGE, ou até 2018, da OMS). Equivale a uns R$ 1.380 por pessoa, R$ 115 por mês. Dá para pagar um plano de saúde dos mais baratos, sem contar coparticipação, com serviço inferior ao do SUS. Daria um pouco mais por pessoa caso o dinheiro todo fosse reservado para quem ora não tem plano de saúde (71,5% da população, segundo o IBGE).
O vale-plano-de-saúde não daria para escolher o Einstein, ocioso ressaltar, nem o SUS. Não haveria mais SUS. O dinheiro da saúde pública teria sido confiscado pelo vale-guedes. Não haveria mais serviço público de vacina, de emergência (ambulância, PS), remédio, exame, nada. Se o seu plano baratinho não cobrisse certos tratamentos ou se você se arrebentasse em um local descoberto (quase todos), que você pagasse ou morresse.
Obviamente esse argumento é louco, simplificação da mais grosseira. Serve apenas para sugerir que a coisa não funciona assim, aqui ou alhures.
O gasto em saúde no Brasil já é majoritariamente privado (famílias, empresas, filantropia): 58% do total. Não é assim na Argentina (38%) ou no México (48,7%), menos ainda é o caso de França (27%), Reino Unido (21%) ou Alemanha (22%) e nem mesmo o do Chile (49,7%) e o dos EUA (49,6%). Na mão de um Guedes da vida (ou da morte) iremos na direção dos EUA, que tem um dos gastos em saúde mais ineficientes da OCDE (clube de três dúzias de países ricos).
Mas, afora para ricos, e olhe lá, o SUS é o recurso de primeira ou última instância, que banca tratamentos que muito plano não cobre, por falta de dinheiro ou competência. O SUS é uma rara preciosidade nacional, com problemas de administração, sim, mas não é conversa para o bico de Guedes.A discussão não cabe em poucas colunas de jornal. A comparação entre sistemas nacionais de saúde, muito diversos, é complexa. Existem vários esquemas de financiamento público, com serviços quase todos prestados pelo setor privado, mas inteiramente pagos e vigiados pelo governo (Canadá), ou como o SUS original, estatal, do Reino Unido. Em geral, voucher, no sentido estrito, é alternativa parcial onde o sistema de saúde é tão precário que se dá um vale aos muito pobres de país muito pobre, naÁfrica ou na América Central.
O problema aqui é Guedes e seu mundo de caricaturas reacionárias. Não trata de assuntos de modo técnico: adora dar aulas magnas genéricas baseadas em suas fantasias liberalóides apodrecidas. Não propõe políticas públicas específicas e fundamentadas, com planos e apoio político para implementá-las.
Vive de tiradas, truques com os quais pensa engambelar o Congresso e mentiras lunáticas (trilhão de privatização, 44 milhões de testes de Covid, déficit público zero em um ano etc.). Adora velhos mitos extremistas da direita americana e tem saudade do Chile de Pinochet.
Essa barbaridade guedista, variação pedante do bolsonarismo dá mais pano para a manga. Vamos voltar a tratar disso.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Janio de Freitas: Piora nos índices sociais vai se acelerar em número e desumanidade
Jair Bolsonaro quer mais cortes em gastos sociais previstos no Orçamento para este ano. As mutilações já feitas foram brutais, mas Bolsonaro quer mais alguns bilhões para o que se mostra no governo como o segundo gasto na ordem de nobreza: a compra de parlamentares com a liberação de bilhões para suas propostas de obras, que são catapultas eleitorais. O único gasto mais nobre no Planalto é o dos militares, cujo montante inicial perdeu apenas 3%.
As reduções são o oposto do requerido pelo forte agravamento das condições de sobrevida da maioria dos brasileiros. A retenção por mais de três meses do também mutilado auxílio emergencial anulou o alívio trazido pelas parcelas do ano passado, concedidas pelo Congresso.
A fome aumenta, e se espraia mais. Qualquer oferta de alimento atrai filas enormes, e as coletas de doações recebem ainda quantidade ínfima para a necessidade crescente. A maioria não tem disponibilidades para ser solidária.
Aos que a têm, o que falta, historicamente, é o próprio sentido de solidariedade, até de humanidade mesmo. Fosse diferente, já veríamos, há tempos, forte movimento de socorro aos que têm fome.
Na chegada de Bolsonaro ao poder, considerava-se, com provável otimismo, haver em torno de 24 milhões de brasileiros vivendo com menos de R$ 246 por mês: R$ 8 por dia. Passados dois anos, a FGV e dados do IBGE indicam o aumento desse contingente para 35 milhões de pessoas.
Não só os já habitantes da pobreza descem à miséria mais miserável. O título de reportagem de Fernando Canzian para a Folha sintetiza o que se passa nos intermediários: “Fenômeno dos anos Lula, classe C afunda e cai na miséria”. Eloquência justificada por mais de 30 milhões que “estão despencando diretamente da classe C para a miséria”.A pandemia não é causa única da derrocada social. Desde seu primeiro momento, o governo investiu contra os programas sociais, sem exceção, e os manteve na precariedade quando o vírus se anunciou,se propagou e se impôs.
Nem a mínima atenção foi dada à necessidade de se buscarem modos de atenuar os efeitos socioeconômicos da pandemia. E, em paralelo, fosse preparada a defesa da população com a compra de vacinas, campanhas instrutivas, orientação para as alternativas empresariais e gerais.
Nada disso, era só uma “gripezinha”, a cloroquina a eliminaria. A vaguidão de Paulo Guedes, com os pés no ministério e a cabeça na Bolsa, e o desvario de Bolsonaro associaram-se ao vírus.
Passamos de 400 mil mortes. Esse morticínio atordoa, as crianças e famílias que caem no desamparo, se desorganizam, também perdem a vida por outra que começa e só podem temer.
O vírus não é o causador único dessa imensa desgraça coletiva. Tanto que maio e junho são esperados por cientistas como ainda mais calamitosos no Brasil. E explicam: por decorrência da baixa vacinação até aqui, da falta de vacinas porque o governo chegou tarde, desacreditado e arrogantemente suspeito ao balcão mundial dos imunizantes.Logo, os passos degradantes na escala socioeconômica, mais do que continuar, vão se acelerar em número e em desumanidade. Nenhuma resposta lúcida pode ser esperada do governo que pretendeaté cortar mais gastos sociais.
Se a sociedade, por sua vez, é inerte por preguiça moral maciça ou indolência cultural incapacitante, a alienação é a mesma e mesma a consequência. Então, lamento, o que há a dizer é isto: a perspectiva de futuro próximo é péssima —talvez seja o que nossa paralisia mereça.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Dorrit Harazim: Joe, Jair e Modi
Esta semana Joseph Robinette Biden Jr. trocou de roupa e de imagem oficial. Sai de cena “Uncle Joe”, a grife caseira do democrata conciliador, afável e algo distraído por ele cultivada ao longo de 4 décadas de vida pública. Esta semana Joe Biden se apresentou perante o Congresso com nova roupagem — a do arrojado visionário 46º presidente dos Estados Unidos — e detalhou como pretende reformatar já no presente a vida da nação sob seu comando. Também descreveu os planos, metas e projetos com que planeja moldar o futuro das gerações seguintes, sem esquivar-se de alocar cifras concretas a cada item do pacotão. Se aprovada na totalidade pelo Senado, o que é pouco provável, sua agenda de resgate da economia, força de trabalho e seguridade familiar custará astronômicos US$ 4,1 trilhões. Mas, mesmo que venha a ser fatiada, a visão de Biden sobre o papel do Estado ficou clara: o Estado deve funcionar como zelador da infraestrutura humana e do bem-estar social. Soou quase revolucionário e revela quanto o mundo está carente de bom senso.
A surpresa com esse Biden arrojado se justifica, uma vez que, durante a campanha eleitoral, ele se apresentara como mero homem de transição capaz de aquietar o país tarja preta que sobrevivera a Donald Trump. Uma vez sentado no Salão Oval, porém, o mandatário de 78 anos e alguns lapsos já fez saber que não exclui tentar a reeleição dentro de quatro anos. Sai de cena o gestor conciliador, como Biden foi retratado enquanto candidato, para dar lugar a quem pretende ser lembrado como líder mundial transformador. Para tanto, mantém algumas características pétreas — é disciplinado, metódico e prefere ficar abaixo do radar para não escorregar.
Na verdade, por mais que Biden queira envergar simultaneamente o manto do New Deal de Franklin D. Roosevelt, da Grande Sociedade de Lyndon Johnson, importar algumas ideias de Barack Obama e outras mais arretadas de Bernie Sanders, bastará que consiga liderar a urgente arrancada ambiental para fazer um governo de dimensão histórica. Sem isso, o restante de sua visão para uma sociedade menos desigual, de maior justiça racial, econômica e jurídica ficará embaçada. Sem isso, até mesmo a espetacular invertida que imprimiu ao combate e controle da Covid-19 nos EUA, por meio de uma vacinação maciça e ordenada, acabará parecendo natural à medida que a vida por lá retomar alguma normalidade. O vírus pode até ressuscitar em novas ondas, mas nada roubará de Biden a gratidão nacional pela tranquilidade vacinal que injetou no país.
Enquanto isso, Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, terão, para sempre, seus nomes e sobrenomes vinculados ao epíteto Covid-19. Ambos se condenaram à morte política e à desgraça histórica por abandonar suas gentes a morrer sem oxigênio. Abatidos feito moscas, aos montes, milhares, centenas de milhares, mal enterrados ou incinerados em piras humanas, pranteados no medo e em silêncio. Na capital indiana, as autoridades florestais tiveram de emitir uma autorização especial para o abate de árvores, pois a lenha dos crematórios acabara. A ativista política e escritora Arundhati Roy publicou no “Guardian” um testemunho pungente da desolação que tomou conta do país. “No lugar mais baixo da mercadagem pela vida”, escreveu Roy, “você suborna o atendente para poder jogar um derradeiro olhar sobre o embrulho que foi sua pessoa amada, agora estocado na morgue hospitalar”. Há quem venda terras ou propriedades, ou junte as últimas rúpias em busca de atendimento em hospital privado — sem garantia de internação, apenas como depósito.
No último Fórum Econômico Mundial, em janeiro, quando Europa e Estados Unidos mergulhavam na segunda mortandade da pandemia, o líder indiano não expressou nenhum sentimento, empatia ou compreensão com a aflição de seus pares. Ao contrário, arrostou soberba. “Amigos”, discursou na ocasião, “convém não comparar a Índia a qualquer outra nação… Abrigamos 18% da população mundial e salvamos a Humanidade de um imenso desastre, pois conseguimos conter o vírus”. Como se sabe, o país, hoje, mais se assemelha a um inferno de 1,4 bilhão de almas errantes, largadas à própria sorte.
No cômputo dos crimes cometidos por mandatários contra seus povos, será difícil elencar a quem ficará reservado o opróbio maior da era Covid-19 — se a Jair Bolsonaro ou Narendra Modi. Por serem filhos de culturas tão diversas, também suas respectivas formas de desprezo pelo bem comum, a índole autoritária, a ignorância, as medidas repressivas, o escárnio pelo outro, se manifestam de formas díspares. Porém ambos comungam da mesma incapacidade de compreender o que aprendemos a chamar de civilização, felicidade, progresso, humanidade.
Não defendem a vida, qualquer espécie de vida, de quem não lhes seja de imediata utilidade. A Covid-19 apenas serviu de oportunidade para isso ficar claro.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/joe-jair-e-modi.html
Paulo Fábio Dantas Neto: Ciência e política, cem anos depois de Weber
O tema de hoje pode não interessar a muita gente. É provável que pessoas desistam de ler ou ouvir quando virem o “arriar das malas”. Além disso, eu já tratei dele aqui, de um outro modo, há dois meses, na coluna intitulada “Ciência e política, amantes do possível”. Desejava, então, enfatizar a inclinação prudencial ao realismo, comum às duas profissões. Hoje quero tratar é de possibilidades contemporâneas de cooperação entre as duas. Sei que é coisa árida. Desculpem, mas o Bahia perdeu um jogo importante. Hoje, qualquer tema, aos meus cuidados, ficaria árido.
Há pouco mais de um século, o intelectual alemão Max Weber proferiu duas conferências – “A ciência como vocação” (1917) e “A política como vocação” (1919), ensaios escritos separadamente, que, tomados em conjunto, sugeriram, a estudiosos das ciências sociais e das humanidades, um ponto nobre de reflexão. Embora enfrentado por Weber sob impacto dos desafios concretos da Europa daquela época, o tema dos vínculos entre ciência e política transcendeu aquele contexto. Nunca deixou de se destacar entre temas clássicos que conservam crucial atualidade, tanto para iniciados naqueles campos de estudos acadêmicos, como para governantes e cidadãos de todo o mundo. No contexto de uma pandemia, que põe todo o mundo entre parênteses, ele se renova e adquire uma relevância desconcertante.
Tudo bem, o par ciência/política é atual e relevante como tema. Mas qual o sentido de revisitar, especificamente, aquela memorável reflexão de Weber? O mundo não terá mudado bastante – e com ele as ciências e políticas plurais que nele se pratica – de modo tal que o ponto de Weber hoje pertence mais à história das ideias, deixando de ser relevante para a política em ato? Enfim, qualquer comentário sobre aquelas conferências pode parecer uma visita à História e à Filosofia Política talvez um pouco diletante para quem faz um esforço para compreender e opinar sobre a política de hoje e suas conexões atuais com a ciência.
Mantenho, intuitivamente, a crença na potência e atualidade da luz imanente às duas reflexões de Weber. Através delas pode-se ver ciência e política como campos distintos, mas não opostos, porque suas distinções não impedem – e sim sugerem – convergência e conciliação entre elas. Embora em alguns lugares, como em nosso país, uma política insana use um senso comum desesperado e infeliz para tentar desafiar o óbvio, a complementaridade e interdependência forte entre ciência e política hoje reforçam e conectam o ponto de Weber ao mundo real.
Como comentei no texto de março, em ambos os trabalhos, Weber chama de vocação a dedicação a uma profissão. E trata da tensão própria presente na adoção dessa atitude dedicada. De um lado, aceitação realista de um condicionamento social; de outro, aposta do sujeito individual numa possibilidade de ação com sentido de valor.
Prossigo me repetindo: a condição social é sempre o desencantado mundo moderno, fruto de um processo de racionalização de meios para o atingimento de fins. Já a possibilidade que se apresenta à pessoa vocacionada de cultivar valores através de uma profissão é a de escolher um modo de agir que conecte meio e fim a uma “causa”. A ciência e a política, tal como vistas por Weber, são (ou ainda podiam ser, há cem anos) espaços de ação por mobilização de valores, desde que no exercício dessas vocações a pessoa não se rebele contra o que há de inexorável na racionalização que também afeta as duas atividades.
Agora, repito coisas que disse em março, mas desdobro-as e vou além. Fato social e ato individual são facas com dois gumes. A racionalização é esquina entre emancipação e instrumentalização (é racional buscar direitos ou privilégios). Se a esquina for dobrada exacerbando instrumentalização, há redução e amesquinhamento da razão, que virtualmente chega à fronteira com a perversidade. Já a decisão do ator é, por vezes, tomada em esquinas entre autonomia (faço livremente o que posso querer) e despotismo (faço o que quero). Em contextos críticos, como o que vivemos com a pandemia, essas esquinas viraram mobília em nossos cercados. Quando eticamente animada, a razão gera decisões pelas quais readquire amplitude e grandeza. Mas corre risco de se tornar intolerante e dogmática, inspirando atitudes voluntaristas que paradoxalmente levam ao irracional ou, ao menos, à irrazoabilidade. Por exemplo, ficar em casa é racional, expor-se ao vírus por escolha não é. Mas acusar de irresponsável quem é obrigado a sair de casa, sem considerar o contexto dessa pessoa, é usar uma razão – licença aqui para lembrar Leandro Konder – quase enlouquecida.
Na ciência e na política persiste um dilema. O sujeito que pratica uma ou outra vive entre a resignação a uma estabilidade que pode parecer medíocre e depressiva (apego ideológico a uma verdade em matéria de ciência e a uma opinião fixa em matéria de política) e uma insegurança ansiosa diante do imprevisível. Esse dilema, em outras áreas de atividade humana, já foi resolvido em favor da chamada razão instrumental. Vale o objetivo. Se na ciência e na política o dilema entre o que pode e o que deve ser ainda existe, então o ponto de Weber, sobre as vocações, exposto nos textos das duas conferências, segue relevante. A pessoa que adota ciência ou política como vocação não escapa da condição de mover-se num fio de navalha.
Essas são balizas para ver diferenças e até contrastes entre as vocações da ciência e da política, sem criar abismo entre elas. Essa atitude permite especular que não é estranho um diálogo entre essas duas distintas vocações. Um diálogo que se tornou um imperativo civilizatório.
Weber salienta, na ciência, a influência “fora do comum” do acaso, que desafia qualquer valor. Um problema de ação coletiva, por exemplo, no corporativismo das seleções acadêmicas, que pode premiar arrivistas e medíocres. Seguindo seu raciocínio crítico podemos até nos espantar com o fato de haver tanto acertos como erros nessas seleções e não predomínio claro de erros.
O papel influente do acaso na ciência resultaria também de uma dupla exigência da carreira: ser cientista e professor. O critério da “sala cheia” condena a profissão aos ditames do acaso, do ponto de vista científico. Se de um lado a educação científica é uma “aristocracia espiritual”, de outro, a tarefa pedagógica mais difícil – e sem a qual o êxito na missão formativa não é pleno – é saber expor problemas científicos de um modo suficientemente claro para serem apreendidos por espíritos não preparados, embora bem dotados. Isto é um dom pessoal que não se confunde com os conhecimentos detidos pela pessoa. Só por coincidência reúnem-se, numa só pessoa, as duas aptidões. Por interpretação não autorizada do argumento do autor pode-se argumentar que, se queremos combinar ensino e pesquisa, resta apostar em instituições, mais que em compromissos ou talentos de indivíduos. Se reencarnado em nossa época, o espírito de Ortega Y Gasset certamente acharia que era feliz e não sabia, na sua encarnação anterior quando lamentava, antes de Weber, a ascensão dos “homens sem mister”.
Vamos para a política. É célebre a definição weberiana do Estado moderno. Prestemos atenção nela: “Instituto político de atividade contínua, cujo quadro administrativo mantém, com êxito, a pretensão de monopólio legítimo da coação para a ordem”. Prestemos atenção porque o caráter monopólico do poder estatal (que é geralmente lembrado) é tão relevante como o de ser um instituto racional e um empreendimento contínuo, coisa nem sempre valorizada. É a organização burocrática do estado moderno que controla os governantes que, por sua vez, para dirigirem o estado, expropriaram, lá atrás, na História, o poder de poderosos pré-políticos, senhores oligarcas e mandões de todo tipo. Assim, burocratas da política organizam a política como poder continuo, graças ao caráter compulsório da organização do Estado.
Importa tanto a história dessa profissionalização, quanto a de modos economicamente distintos, mas simultâneos, de praticar a política como vocação. Riqueza, por exemplo, segue valendo como atributos de políticos profissionais. Mas não é empecilho à profissionalização específica dos políticos, nem à difusão de novos modos de acesso de pessoas sem propriedade à liderança política, nem ao aperfeiçoamento do mercado de recompensas. Os cargos seguem sendo a forma mais moderna de prebenda e, por isso, a expressão mais ativa da luta dos partidos. Passado o intervalo totalitário vivido no coração da Europa há 80 anos essas difusões voltam a revelar os laços mundanos da democracia. Assim como na ciência, cientistas e professores complementam-se em instituições, para combinar grande e pequena política é preciso apostar em instituições mais que na qualidade individual, ou das elites dirigentes.
Voltemos, com Weber, à ciência. Nas condições “modernas”, a valorização na profissão científica “propriamente dita” está condicionada à especialização. Somente trabalhos de especialistas podem almejar valorização própria no mundo da ciência. Logo, quem não for capaz de usar antolhos e adotar uma exata e determinada ideia como sua razão de vida e salvação da alma deve ficar longe da profissão. Também por interpretação não autorizada, é possível dizer que o que hoje chamamos de multidisciplinaridade só pode se realizar com êxito por articulação de diferentes especialistas, no âmbito de uma instituição. Para propiciar êxito ao cientista individual, a multidisciplinaridade precisaria, ela própria, converter-se em disciplina especializada, reiterando a regra e renunciando à sua pretensão inovadora original.
Agora, de volta à política, mais uma vez. Nada mais atual do que a rejeição social da “política dos cargos”, mesmo da parte de quem não vê relação entre burocracia e integridade. A história da luta entre políticos destacados e funcionários administrativos é antiga e é luta por poder. São antigas também e em ziguezague as coalizões entre funcionários especializados e algum dos poderes diretamente políticos, na maioria das vezes com o Executivo, em menos vezes com o Legislativo. Assim se forma a experiência governamental de um país.
Mas esse campo da experiência está longe de se resumir a tradições e outras balizas historicamente assentadas. O treinamento na luta, de que nos fala Weber, é processo contínuo. Em cada contexto valem como balizas para a ação política tanto fatores (instituições, partidos, lideranças, teorias e práticas) já considerados pelo conhecimento da história, longínqua e recente, de cada lugar, como também fatores casuais, ou mesmo inéditos. Alguns irão se tornar longevas e com isso serão também incorporados a tradições. Outros vão se esgotar ali, naquele momento. Mas nada impede que esses efêmeros sejam mais decisivos num contexto crítico.
Vivemos num país que está passando de uma forma muito severa por essa lição sobre a efetividade do que Wanderley Guilherme dos Santos chamou de “mão invisível do caos”. Ela, essa mão invisível, é que pode, como não-razão que é, levar uma boa razão a se deixar enlouquecer pela pretensão de amputá-la. Numa busca dessa, antecipadamente fracassada, os super-racionais podem julgar inúteis as reflexões realistas de Weber, que nos lembra de que a distinção entre funcionários administrativos e funcionários políticos não é essencial. Nela não há o bem, nem o mal. Ela é uma implicação do treinamento na luta pelo poder.
A possibilidade, que hoje temos, de recorrer com êxito a funcionários da ciência como formuladores de políticas públicas é um recurso prudente quando a lógica da política in natura torna-se refém da face mais negativa do carisma. O ponto que Weber nos traz induz a celebrar como providencial a dependência recíproca entre política e ciência. É essa uma das âncoras práticas a partir da qual uma atitude política prudencial de novo tipo pode se amparar para conter a força recente que a atitude voluntarista adquiriu em nossas democracias.
A moderna organização dirigida por políticos profissionais pode retornar – e tem retornado – a viver nos parlamentos. Poderosas máquinas burocráticas seguem derivando da democracia e do voto de massas, mas deixam de subordinar parlamentares porque eles e os políticos profissionais deixaram de ser coisas diferentes. O papel relevante, político e eleitoral, da liderança democrática volta a mostrar que a prudência é uma face possível do carisma.
Chegamos à última estação da viagem a Weber. Trata-se das éticas da ciência e da política e aqui retorno, uma vez mais, à coluna de março. Nada poderia dizer sobre isso, nem em março nem agora, que substituísse as palavras do próprio. (…) toda obra científica “acabada” não tem outro sentido senão o de fazer surgir novas indagações. Portanto, ela pede que seja ‘ultrapassada’ e envelheça. Todo aquele que pretenda servir à ciência deve resignar-se a esse destino”
Por que ser cientista, se a produção é condenada ao envelhecimento? Weber evoca Tolstói, para dizer que perguntas sobre os sentidos da morte e da vida passaram a defrontar-se com a ideia moderna de progresso (ninguém mais morre “pleno de vida”). A mórbida realidade da nossa hora renova o sentido dessa vocação.
Agora sobre a ética da política, volto a citar: “A impossibilidade de uma ética única, extensiva à política, é tão real quanto a falsidade da afirmação de que a ética da política não possui nexos com qualquer outra ética”. As indicações para quem pretende vocacionar-se à política dirigem-se a uma determinada ética da responsabilidade, contraposta à ética das convicções, própria da fé dogmática. É muito vivo o contraste entre as duas orientações. Enquanto a da convicção sobre os últimos fins faz quem a segue julgar-se distinto da estupidez e da mesquinhez do mundo, a da responsabilidade manda dizer: “Eis-me aqui. Não posso fazer de outro modo”. Daí ser impossível agora, como em março, ignorar o parágrafo final de “A política como vocação”:
“A política é como a perfuração lenta de tábuas duras (…) somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido e mesquinho para o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “apesar de tudo!” tem a vocação para a política”
Quem acha – e também comentei isso na coluna de março – que essa oposição radical entre duas éticas que separam o político por vocação do apóstolo de uma fé serve também para distinguir a política da ciência surpreende-se ao não encontrar esse contraponto em “A ciência como vocação”. Se a ética da responsabilidade compete claramente ao político por vocação, não se constata, no texto sobre a ciência uma correspondência entre o profissional da ciência e a ética da convicção. A ambiguidade ética intrínseca à vida política infiltra-se no agir científico, impondo também ao cientista uma “negociação com demônios”. Sua ética também precisa ir além das suas convicções. Talvez não tanto quanto a da política – ou de modo diferente dela – a ética da ciência contrasta a fé dogmática.
Os valores perseguidos por uma e outra vocação são distintos. A verdade na ciência e a legitimidade na política não podem ser alcançadas através de idêntica conduta. Um político não produz ciência, nem se resolve no professor. Mas a distinção não impede a cooperação.
O carisma é a fonte da legitimidade propriamente política e como a política, é ambíguo. Pode conciliar os valores que defende com as regras que limitam sua ação e se for assim atua como energia revigoradora. Mas pode também mobilizar afetos para ameaçar essas próprias regras e nesse caso ser energia destruidora.
Na política, exortação à intervenção revitalizadora do carisma; na ciência, a pregação de uma paixão pela rotina. A paixão que leva à dedicação profissional a uma causa é um elo comum entre as distintas dinâmicas da ciência e da política no mundo moderno. Elo que permite a vocação ser cumprida com sentido crítico e inovador. Liame ético que, em vez de estagnar o sujeito em suas convicções, orienta-o a agir com responsabilidade, fazendo seus valores pessoais dialogarem com os limites institucionais e culturais da sua respectiva vocação.
Espero ter argumentado que quando comparamos, hoje, ciência e política, estamos, mais ainda do que há cem anos, diante de uma cooperação possível, que é exigência social da vida prática.
*Cientista político e professor da UFBA
Fonte:
Democracia Política e novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/05/paulo-fabio-dantas-neto-ciencia-e.html