cotas

O advogado e sociólogo José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares - Mathilde Missioneiro - 18.out.22/Folhapress

O voto negro pode e deve salvar o Brasil

José Vicente* | Folha UOL

Forjados na resistência ancestral da luta e do combate à escravidão, ao racismo e à exclusão, os negros subverteram a lógica política de raça inferior imposta pelo racismo branco e a ideologia da branquitude e colocaram por terra o destino manifesto da ciência eugenista brasileira, que apontava o dia e a hora para sua eliminação e apagamento do imaginário da nação. Diferentemente do vaticínio, transformaram e converteram a falsa sina arquitetada em renascimento, superação e potência para a construção dos meios para a erradicação da desigualdade de direitos, oportunidades e participação social. E, para tanto, o caminho da política foi e é inevitável.

Todavia, se a luta e a resiliência negra serão sempre o combustível para a realização dessa infinita jornada de transformação, foi e é a democracia restabelecida —formalizada a partir da Constituição Cidadã de 1988 e de suas premissas de garantia e prevalência dos direitos humanos, combate ao racismo, garantia da igualdade racial, promoção das ações afirmativas e defesa da dignidade da pessoa humana— que constituiu e consolidou os pilares fundamentais para a ressignificação e valorização da sua trajetória histórica e social, do fortalecimento da autoestima, do pertencimento, da inclusão e da esperança.

As eleições de 2022 evidenciaram tudo isso, além do novo peso e protagonismo do negro na cena política brasileira. Representando 54% dos brasileiros, a maioria dos evangélicos, dos católicos e das mulheres, os negros se transformaram numa força votante poderosa e poderão reger e definir os destinos das forças políticas do país. Neste pleito, pela primeira vez na história a maioria dos candidatos (49,49%) se autodeclarou negra, ante 48,93% de brancos. Houve ainda dois candidatos negros à Presidência da República: Léo Péricles (UP) e Vera Lúcia (PSTU).

Os negros agora passam a responder por 25% dos senadores, 26,5% dos deputados federais e 40% dos 15 governadores eleitos no primeiro turno. Entre os parlamentares, 23% estão no espectro da esquerda, e 52% no da direita.

Alguns dos deputados federais negros eleitos em 2022

Deputada federal Silvia Cristina (PL-RO)

Deputada federal Silvia Cristina (PL-RO) Gabriela Biló - 18.mai.22/Folhapress

A democracia, a luta e a resistência, mas também a contribuição das forças progressistas e de esquerda, até aqui recepcionaram e ajudaram a efetivar as mais importantes reivindicações sociais, políticas e comunitárias desses brasileiros —elementos consolidadores de uma construção evolutiva. Foi com Leonel BrizolaFernando Henrique CardosoLuiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff que a história milenar dos negros chegou às escolas e aos livros escolares e seus personagens tornaram-se heróis nacionais, ganharam feriados estaduais e municipais. Tornaram-se nomes de prédios, viadutos, praças e ruas. Foi com Lula e Dilma que os negros chegaram aos cargos de ministros de Estado e da Suprema Corte. Com eles e com as cotas raciais nas universidades e serviços públicos, negros se formaram médicos, advogados, juízes, promotores de Justiça, diplomatas, empresários e oficiais das Forças Armadas.

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Tornaram-se protagonistas nos filmes e novelas e estamparam as primeiras páginas de revistas e jornais.
Pode ser pouco, mas já foi algo revolucionário. Perder essas conquistas significará retornar à estaca zero, sem qualquer possibilidade de começar de novo. Todos esses avanços, sua consolidação e ampliação somente são e serão possíveis e indestrutíveis num ambiente de profundo respeito aos fundamentos democráticos. Onde a democracia seja inegociável e defendida. Onde a prevalência do respeito às instituições e à dignidade da pessoa humana sejam valores prioritários, inexpugnáveis e inconcessíveis.

Cotistas reafirmam importância de cotas para acessar universidade

O advogado Nelson Moralle, 60, foi cotista da primeira turma de direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que aceitou cotas, em 2013
O advogado Nelson Moralle, 60, foi cotista da primeira turma de direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que aceitou cotas,  Eduardo Anizelli/Eduardo Anizelli/Folhapress

Numa disputa eleitoral em que um dos lados se apresenta como perigo e afronta à ordem pública e às instituições e se manifesta abertamente como possibilidade de ruptura e destruição da democracia e de seus valores, mais do que obrigação, é uma exigência que o eleitor negro consciente coloque-se de pé e faça do seu voto instrumento de garantia das suas conquistas e de segurança e defesa da democracia e do país. O voto negro pode e deve salvar o Brasil.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

*José Vicente é advogado, sociólogo e doutor em educação, é fundador e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, apresentador do programa "Negros em Foco" (TV Cultura), líder do movimento "Cotas sim" e membro do Conselho Editorial da Folha

Coluna publicada originalmente na Folha UOL


Coletiva de imprensa da Bancada Feminina do Congresso no Salão Verde da Câmara dos Deputados | Foto reprodução: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Revista online | Cotas de gênero na política: como avançar para garantir a participação das mulheres

Raquel Nascimento Dias*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)

Embora eu tenha uma linha político-ideológica que se aproxima da ativista feminista Bertha Luz, darei início a este artigo saudando Carlota Pereira de Queirós, a primeira mulher eleita deputada federal do Brasil pelo Estado de São Paulo. Seu discurso demonstrou a importância deste primeiro passo: “Além de representante feminina única nesta Assembleia, sou, como todos os que aqui se encontram, uma brasileira integrada nos destinos do seu país e identificada para sempre com os seus problemas”. (...). (TRE. 1934)

De lá para cá, são 88 anos de luta contínua para que nós mulheres possamos garantir a participação e equidade no exercício da cidadania. Inserida nisso está a Política de Ações Afirmativas - Cotas para Mulheres na Política - prevista na Emenda Constitucional nº 97/2017, também conhecida como Lei dos Partidos e que hoje conta com artigos que garantem vagas nas chapas montadas pelas agremiações, espaço proporcional nos tempo de tv, campanhas de incentivo à participação feminina na política e o fundo especial de campanha, formando uma rede de medidas que busca trazer diversidade e representatividade para o cenário do país.

Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online

A cota para mulheres na política é usada pela maioria dos países para reforçar a participação feminina nos espaços de poder. De 124 países, apenas 39 não têm essa ação afirmativa, o que demonstra que a busca por mais mulheres na política tem sido uma preocupação do mundo todo, reforçando a ideia de que o direito à participação política se constitui em um direito fundamental.  

No Brasil, somos 52,65% da parcela votante e, apesar de sermos maioria, ainda temos um caminho duro para percorrer e, por isso mesmo, temos no país algumas políticas afirmativas que promovem o avanço da participação feminina.

Para vencer a sub-representatividade, a Justiça Eleitoral tem sido cada vez mais dura com os que descumprem ou tentam burlar as regras. Exemplo disso foi o caso em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou por fraude na cota de gênero uma chapa inteira de vereadores do Partido Republicanos de Itambé (PE). Casos assim já ocorreram por todo o país e tem sido importante para que as legendas compreendam a importância pela busca por lideranças femininas para a disputa eleitoral 

O caminho para avançar na participação feminina efetiva é mudança de comportamento social, e isso leva tempo. Segundo a Agência Senado, dados do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) nas eleições de 2022 informam: “As candidaturas femininas bateram recorde este ano, com 33,3% dos registros nas esferas federal, estadual e distrital. As mulheres representam 53% do eleitorado do país, o que corresponde a 82 milhões de votantes. Apesar disso, elas ocupam apenas 17,28% das cadeiras no Senado. Especialistas defendem o aperfeiçoamento da legislação para garantir a participação feminina na política”.

Abaixo, confira galeria de fotos:

Marielle Franco em cartaz na Esplanada de Brasília | Foto: Fellip Agner/Shutterstock
Políticas públicas para igualdade de gênero | Imagem: nito/Shutterstock
O que são as cotas para mulheres na política e qual é sua importância | Foto: reprodução/Guerras pela vida
Women rights | Foto: Jacob Lund/Shutterstock
Cotas de gênero política para mulheres | Foto: Rawpixel.com/Shutterstock
Mulheres protestando na política | Foto: Rawpixel.com/Shutterstock
Vice presidente dos Estados Unidos | Foto: BiksuTong/Shutterstock
Mulheres na política a reforma que o Brasil precisa | Foto: reprodução
Apoie-as-mulheres | Foto: Shutterstock/Southworks
Dilma Rousseff em palanque da ONU | Foto: A.PAES/Shutterstock
Marielle Franco em cartaz na Esplanada de Brasília
Políticas públicas para igualdade de gênero
O que são as cotas para mulheres na política e qual é sua importância
Women rights
Cotas de gênero política para mulheres
Mulheres protestando na política
Vice presidente dos Estados Unidos
Mulheres na política a reforma que o Brasil precisa
Apoie-as-mulheres
Dilma Rousseff em palanque da ONU
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Marielle Franco em cartaz na Esplanada de Brasília
Políticas públicas para igualdade de gênero
O que são as cotas para mulheres na política e qual é sua importância
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Cotas de gênero política para mulheres
Mulheres protestando na política
Vice presidente dos Estados Unidos
Mulheres na política a reforma que o Brasil precisa
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Apesar do avanço, estudos apontam que a tendência é que o crescimento diminua, e um dos principais fatores seria a dificuldade de financiamento. Candidaturas masculinas têm maior facilidade de financiamento fora do fundo especial, demonstrando que não há uma priorização de candidaturas femininas dentro dos partidos. Porém, temos um mecanismo fundamental e pouco visualizado na luta pela participação das mulheres na política, que são as Secretarias de Mulheres mantidas pelas agremiações partidárias para promover, incentivar e, principalmente, preparar essa parcela da população para sua efetiva participação.

Contudo, essa mudança de paradigmas requer também uma mudança na cultura política que ainda vê as mulheres apenas como complemento e não como construtoras dos projetos políticos. Ainda se reserva a nós o papel de vices, ainda atuamos pouco na hora da construção das chapas eleitorais. Muitas de nós ainda figuram no papel de mãe ou esposa de políticos inelegíveis que usam nossa imagem para manter seus eleitores. Ainda levamos a alcunha de sermos laranjas, apesar de os homens laranja existirem no sistema político de forma naturalizada. 

Estamos avançando em todo o mundo, mas ainda temos muito a fazer como sociedade para que a equidade seja alcançada quando o assunto é nossa participação efetiva na política. 

Sobre a autora

Raquel Nascimento Dias | Foto: arquivo pessoal

*Raquel Nascimento Dias é ativista social e Gestora Pública. Atualmente Secretária de Desenvolvimento Econômico e Turismo do Município de Cascavel/Ceará e Diretora Pedagógica e de Articulação Social da Plataforma Àwúre Educa e Membra do Comitê Técnico do GT Povos Tradicionais do MPT.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Feminist protest | Foto: shutterstock/Halfpoint

Revista online | Por que ainda precisamos do feminismo?

Beatriz Rodrigues Sanchez*, especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio de 2022)

Nas últimas décadas, uma série de avanços foram realizados no que diz respeito à igualdade de gênero. O direito ao voto foi conquistado, a partir da luta das sufragistas, no ano de 1932. O direito ao divórcio, em 1977. Com a Constituição de 1988, uma série de direitos foram reconhecidos e garantidos constitucionalmente: a ampliação da licença maternidade, a licença paternidade, o direito de mulheres presidiárias poderem amamentar, a criação de mecanismos de combate à violência contra às mulheres, entre outros. 

Também, no âmbito legislativo, mais recentemente, tivemos a aprovação da Lei Maria da Penha, da lei de cotas para candidaturas femininas e da PEC das Domésticas. No âmbito da educação, as mulheres, que até pouco tempo representavam a maior parte dos analfabetos em nosso país, passaram a ser maioria entre as pessoas matriculadas em cursos de ensino superior. Estes são alguns fatos que demonstram o quanto temos avançado em direção à igualdade de gênero. No entanto, apesar desses avanços, a luta feminista ainda é necessária. 

A violência contra as mulheres, em suas diversas expressões, ainda é um grave problema que a sociedade brasileira precisa enfrentar. Seja a violência doméstica, aquela que acontece dentro de casa, entre marido e mulher, ou entre filhos e mães, ou avós e netos; seja a violência política de gênero, que acomete as mulheres que ocupam cargos dentro da política institucional (como o feminicídio político de Marielle Franco); seja a violência obstétrica, especialmente contra mulheres negras que, por conta do racismo estrutural, são vistas como mais resistentes à dor e muitas vezes não possuem acesso à anestesia. Todas essas formas de violência ainda marcam, nos dias de hoje, a sociedade brasileira, historicamente patriarcal e racista. Apesar de o argumento da “legítima defesa da honra” em casos de violência contra as mulheres ter ficado demodê, todas essas formas de violência continuam impedindo que as mulheres exerçam o direito à vida e à dignidade de forma plena. 

No âmbito da educação, apesar de termos entrado no ensino superior, alguns cursos ainda são majoritariamente masculinos, especialmente os cursos da área de exatas. As salas de aula dos cursos de engenharias, matemática, economia, estatística, por exemplo, ainda têm poucas mulheres. Essa diferenciação de gênero nas áreas de formação tem relação com construções sociais históricas que relacionaram as mulheres ao mundo privado da emoção e do cuidado e os homens ao mundo público da razão. Por isso, os cursos de enfermagem, pedagogia, assistência social e terapia ocupacional, apenas para citar alguns exemplos de cursos relacionados ao universo do cuidado, são majoritariamente femininos. 

Feminist Feast | Foto: Shutterstock/AdriaVidal
Feminist Fight | Foto: Shutterstock/Luis Osuna
Feminist | Foto: shutterstock/Jacob Lund
Fight like a girl | Foto: Shutterstock/JLco Julia Amaral
Women power | Foto: Shutterstock/Jacob Lund
Women Together | Foto: Shutterstock/Da Antipina
Women's right | Foto: Shutterstock/Dutchmen Photography
Equal rights | Foto: Shutterstock/GoodStudio
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No mercado de trabalho, as mulheres ainda hoje recebem salários menores do que os homens, mesmo quando ocupam o mesmo cargo. Além disso, a divisão sexual do trabalho faz com que, além do trabalho produtivo remunerado, as mulheres sejam responsáveis pelo trabalho de reprodução social da vida, que inclui o cuidado com crianças e idosos e as tarefas domésticas. Neste cenário, algumas mulheres, especialmente brancas e de classe média, podem pagar para que outras mulheres, especialmente negras e periféricas, realizem este trabalho, muitas vezes em condições precárias. Assim, a divisão sexual do trabalho, conjuntamente com a divisão racial do trabalho, cria obstáculos para o exercício pleno da cidadania. 

Quando analisamos a representação política das mulheres nas instituições, o cenário atual também é preocupante. No Poder Legislativo, no Executivo ou no Judiciário, as mulheres, especialmente as mulheres negras, periféricas, indígenas, trans e rurais, são minoria nos espaços de poder e na burocracia estatal. 

Atualmente, o Brasil ocupa a 146ª colocação no ranking de mulheres nos parlamentos, atualizado mensamente pela organização Inter-Parliamentary Union (IPU).  Essa sub-representação política das mulheres se reproduz em todos os níveis federativos – federal, estadual e municipal – prejudicando a consolidação de nosso regime democrático. Para se ter uma ideia, apenas 2 das 27 unidades da Federação (incluindo o Distrito Federal) são chefiados por mulheres: Rio Grande do Norte e Piauí. No governo federal, dentre as 23 pastas ministeriais, apenas duas são ocupadas por mulheres.  

Como podemos perceber, a desigualdade entre homens e mulheres continua sendo estruturalmente marcante na sociedade brasileira. No entanto, quando falamos em “mulheres”, devemos lembrar que não formamos um grupo homogêneo. Apesar de a “história oficial” do feminismo, escrita majoritariamente por mulheres brancas, intelectuais e de elite, afirmar que os questionamentos sobre raça, identidade de gênero, classe e outros eixos de opressão teriam surgido apenas na “terceira onda” feminista, as mulheres negras, indígenas e periféricas historicamente têm criticado a universalidade contida no sujeito “mulheres”, desde o período colonial, pelo menos. Por isso, é importante que as políticas públicas contemporâneas que tenham como objetivo mitigar os efeitos da desigualdade de gênero levem em consideração toda a pluralidade da população feminina, desde uma perspectiva interseccional.   

Diante de tudo o que foi dito até aqui, a luta feminista ainda se faz necessária. Nós, feministas, não silenciaremos diante de tudo o que ainda precisamos conquistar. Como afirma a escritora e feminista chilena Isabel Allende, no livro “Mulheres de minha alma”, “o feminismo, como o oceano, é fluido, poderoso, profundo e tem a complexidade infinita da vida; move-se em ondas, correntes, marés e às vezes em tempestades furiosas. Tal como o oceano, o feminismo não se cala”. Não nos calaremos. 

Sobre a autora

*Beatriz Rodrigues Sanchez é pós-doutoranda vinculada ao Programa Internacional de Pós-Doutorado (IPP) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Doutora e mestra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). É formada em Relações Internacionais pela mesma Universidade. É pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do CEBRAP. Desde a graduação vem estudando temas relacionados às teorias feministas e à representação política das mulheres.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio de 2022 (43ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da revista.

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Comissão de Juristas Negros quer observatório contra racismo

Grupo criado pela Câmara com 20 especialistas, incluindo ministro do STJ, deve sugerir mudanças na legislação

Tayguara Ribeiro / Folha de S. Paulo

A criação de um observatório permanente contra o racismo deve ser uma das propostas do relatório final de uma comissão de juristas negros criada pela Câmara dos Deputados.

O grupo foi formado para avaliar mudanças na legislação de combate ao racismo no Brasil. O texto final, que tem como relator Silvio Almeida, professor da Fundação Getulio Vargas e colunista da Folha, deverá ser entregue ainda neste mês.

A ideia do observatório é contar com a participação dos juristas, mas também da sociedade civil por meio de movimentos ou entidades organizadas, para que os integrantes do grupo acompanhem a tramitação e eventuais ajustes nas propostas da comissão.

Outro ponto que deve constar do relatório final é a sugestão de mudança das leis de cotas, com a fixação de metas objetivas, sistema de monitoramento e critério temporal passando a ser atrelado à comprovação de atingimento de metas.

"Dividimos nossa abordagem em eixos de enfrentamento ao racismo estrutural e institucional, com proposições que consideramos prioritárias e estratégicas", afirma Rita Cristina de Oliveira, defensora pública federal e uma das integrantes da comissão de juristas.

Rita Cristina de Oliveira, defensora pública, durante esta reunião da Comissão de Juristas Negros - Reprodução

Segundo ela, que também é coordenadora do grupo de trabalho de políticas etnorraciais da Defensoria Pública da União, esses eixos são de enfrentamento ao racismo nos setores econômico, público e privado, além do sistema de justiça criminal e do campo dos direitos sociais.

O sistema de Justiça brasileiro também será objeto de propostas no texto final do relatório elaborado pela Comissão de Juristas Negros da Câmara.

"De uma maneira muito especial no que concerne às dimensões criminais desse sistema, incluindo a abordagem. Isso não significa que haverá mudança no código, mas sim uma reflexão que faça com que o que é tido como ilícito penal no tema de racismo seja respeitado e de fato efetivado", explica Ana Claudia Farranha, professora de Direito Constitucional da UnB (Universidade de Brasília) e também integrante do grupo.

Com a ajuda de consultores da Câmara dos Deputados, os integrantes da comissão realizaram um levantamento dos principais projetos de lei que existem na Casa e analisaram como essas propostas poderiam ser melhoradas levando em conta os problemas relacionados ao racismo.

O relatório final também deverá apresentar sugestões a respeito da saúde das mulheres negras e propostas para o fortalecimento da lei que obriga o ensino da história africana nas escolas e que vem sofrendo dificuldades para ser implementada.

"A comissão é uma resposta ao assassinato do João Alberto Silveira Freitas, no Carrefour, no ano passado. É uma comissão para revisão da legislação, e por isso foi um trabalho muito extenso", conta Ana Claudia Farranha.

João Alberto Silveira Freitas, 40, morreu após ser agredido por seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre, em 2020 - Reprodução/TV Folha

Além dos integrantes que atuaram de forma continua na comissão, o grupo convidou diversos especialistas para debater alguns temas específicos, como é o caso de Paulo Soares, procurador federal da AGU (Advocacia-geral da União).

Ele apresentou ao colegiado análises sobre a questão dos quilombolas no país avaliando a legislação que trata do tema, segurança jurídica em relação aos territórios e ausência de recursos orçamentários para titulações.

"É importante pensar em instrumentos jurídicos que deem garatias. Não basta apresentar propostas, é preciso teorizar sobre como implementar as proposições juridicamente."

Durante o debate sobre o relatório premiliminar produzido pela comissão, no dia 25 de outubro, Silvio Almeida falou sobre a necessidade de iniciativas para a prevenção, a detecção e a responsabilização de práticas racistas no setor privado.


Foto: AFP
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Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
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Foto: Olivier Doullery / AFP
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
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Apesar dos temas debatidos no grupo, Almeida destacou durante a análise do relatório preliminar que o racismo faz parte da estrutura da sociedade brasileira e que, por isso, o trabalho desenvolvido pela comissão enfrentará uma limitação de alcance.

"Embora essa comissão tenha no nome que vai tratar do racismo estrutural, ela vai tratar apenas do racismo institucional, que é possível, porque o racismo estrutural envolve questões que estão muito além da possibilidade de qualquer jurista, de qualquer norma jurídica, qualquer movimento institucional nos limites da sociabilidade que nos apresenta hoje é capaz de resolver", disse.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/11/comissao-de-juristas-negros-quer-observatorio-contra-racismo-e-meta-para-cotas.shtml?origin=uol


Deputado baiano propõe criação de mês de combate ao racismo religioso

Só nos primeiros nove meses deste ano, 19 casos de intolerância religiosa foram denunciados na Bahia

Dindara Ribeiro / Agência Alma Preta

Com objetivo de implementar políticas públicas que garantam o respeito e direito à liberdade religiosa, o deputado baiano Hilton Coelho (PSOL) acaba de apresentar um projeto de lei (PL) estadual que propõe a criação do "Janeiro Verde", mês voltado para o combate ao racismo religioso na Bahia.

O texto sugere que, durante todo o mês, o Governo da Bahia e demais órgãos estaduais realizem ações de combate, prevenção e conscientização sobre o racismo religioso através de palestras, rodas de conversa, campanhas publicitárias, debates, além de produções artísticas e culturais. O PL também destaca os direitos constitucionais da liberdade religiosa no país e sugere que a Secretaria da Educação fique responsável por promover ações educativas nas escolas a fim de valer as estratégias do ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e índigena e o desenvolvimento de um regime de proteção à liberdade religiosa e à laicidade na educação pública.

Leia também‘Não ao racismo religioso’: povo de terreiro protesta contra ataques discriminatórios

"Queremos, com esse projeto, provocar que as instituições públicas dos três poderes se comprometam com diversas formas de contribuição com o debate público sobre o racismo religioso, que é um crime de ódio e fere a liberdade e a dignidade humana. Mas, mais do que isso, queremos também que nesse compromisso institucionalizado o foco seja o protagonismo dos povos de religião de matriz africana na luta por sua memória ancestral. Então uma lei como essa, que determina a difusão do conhecimento sobre esse tema, ajuda a fissurar, de alguma forma, o racismo institucional, quando obriga as próprias instituições a promoverem ações refletidas e políticas públicas de combate a esse crime", disse Hilton à Alma Preta Jornalismo.

Na Bahia, as vítimas de intolerância religiosa e racismo são acompanhadas pelo Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado (Sepromi). Só nos primeiros nove meses deste ano, 19 casos de intolerância religiosa foram registrados pelo Centro. Em 2020, foram 29 ocorrências em todo o ano. No total, já são 270 casos de intolerância religiosa acompanhados desde a implementação do Centro, em 2013.

O preconceito religioso é considerado crime, conforme previsto no artigo 20 da Lei 7.716/1989. A pena para o crime varia de um a três anos, além da aplicação de multa. Em junho deste ano, a justiça da Bahia teve a primeira condenação em segunda instância por crime de intolerância religiosa contra uma evangélica. De acordo com a denúncia do Ministério Público, Edneide Santos de Jesus hostilizava candomblecistas do Terreiro Oyá Denã, localizado na região Metropolitana de Salvador, com sucessivos abusos racistas e expressões preconceituosas como a atribuição dos orixás à satanás. A mãe de santo do terreiro, ialorixá Mildredes Dias, conhecida como Mãe Dede de Iansã, morreu em 2015 e familiares atribuem a piora na saúde da religiosa aos constantes ataques feitos pela evangélica.

Um dos casos mais fatídicos de intolerância religiosa na Bahia e que se assemelha ao caso da Mãe Dede de Iansã foi a morte da ialorixá Gildásia dos Santos e Santos, mais conhecida como Mãe Gilda de Ogum e fundadora do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador. Mãe Gilda também teve a saúde agravada por causa de ataques verbais, morais e físicos causados por membros da igreja Universal.

Em um dos ataques, evangélicos chegaram a invadir o terreiro dizendo que iriam "exorcizá-la". Mãe Gilda morreu no dia 21 de janeiro e a sua morte marca o Dia de Luta Contra a Intolerância Religiosa, data nacional em vigor desde 2007.

Diante do caso, o Supremo Tribunal de Justiça condenou a Igreja Universal a indenizar os familiares da ialorixá por danos morais e uso indevido de imagem, já que os evangélicos também usaram fotos e notícias falsas para difamar Mãe Gilda.

"Estamos num momento de acirramento do ódio e da efetivação de necropolíticas. E isso não está somente no plano nacional. Aqui na Bahia temos visto várias ações do governo Rui Costa que contribuem com o racismo estrutural. Então com tudo que o projeto poderá acionar, do ponto de vista do debate público e da conscientização sobre o racismo religioso, ações como a privatização dos parques públicos e áreas de proteção ambiental, como quer o governo do Estado, ou ainda a construção do elevatório de esgoto na Lagoa do Abaeté, por exemplo, com certeza serão temas colocados em pauta nessa agenda pública pelos movimentos populares contra o racismo religioso", completa o deputado.

Fote: Agência Alma Preta
https://almapreta.com/sessao/cotidiano/janeiro-verde-deputado-baiano-propoe-criacao-de-mes-de-combate-ao-racismo-religioso


'Cotas fizeram negros saírem das páginas policiais e virarem colunistas'

Tema agora interessa a grande parte da sociedade, incluindo empresários, afirma José Vicente, reitor da Zumbi dos Palmares

Matheus Moreira / Folha de S. Paulo

Em 2019, pela primeira vez os negros se tornaram a maioria dos estudantes nas universidades públicas brasileiras —um marco na luta contra a desigualdade racial.

Para José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, a explicação para isso é a lei de 2012 que instituiu as cotas obrigatórias nas instituições públicas de ensino superior.

A regra estabelece que as universidades precisam reservar vagas para estudantes autodeclarados negros e indígenas e para pessoas com deficiência de acordo com a proporção desses grupos na população do estado onde está localizada.

A legislação prevê que, após uma década, os resultados da política deveriam ser avaliados pelo Ministério da Educação e pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. De acordo com Vicente, até agora não houve manifestação do governo federal sobre a divulgação dos resultados para avaliação da sociedade civil.

Faltando apenas três meses para 2022, ano limite para a revisão, a Faculdade Zumbi dos Palmares lançará a campanha “Cotas Sim!” na próxima terça (5) em evento no qual serão apresentados os projetos de lei que tramitam no Senado e na Câmara com o objetivo de pautar com urgência a discussão sobre a renovação do mecanismo.

Para Vicente, as chances de renovação são boas,”As cotas deixaram de ser algo de interesse dos negros e passaram interessar parte expressiva da sociedade brasileira”, disse em entrevista à Folha por telefone.

Onde a Lei de Cotas acertou? Acertou por ser uma política de governo com uma agenda, até então, inexpugnável. Foram 130 anos batendo na mesma tecla. As cotas são um grande acontecimento político, econômico e histórico.

Em segundo lugar, o ambiente do ensino superior não estava preparado para lidar com essa lei. As cotas mudaram a estrutura do ensino superior público, e depois privado, do país. Foi necessário que se adequassem e reestruturassem.

Além disso, graças às cotas ampliamos, em tempo recorde, de 2% para quase 15% a quantidade de negros nas universidades. Pela primeira vez na história estamos vendo esse grupo de brasileiros não só entrar mas permanecer e sair da universidade aplicando esse conhecimento. Sob todos os aspectos, as cotas são e continuam sendo uma grande vitória.

Na avaliação do senhor, quais foram as falhas dessa política? Em certa medida, as limitações da política são as mesmas antes e depois da lei. Os negros brasileiros precisam de mecanismos para se manter no curso, porque esse público vem de um padrão econômico e social diferente. Sem auxílio à moradia, auxílio à locomoção, acesso a livros e até alimentação, uma parcela dos estudantes não tem condições econômicas de permanecer na universidade.

A lei atendeu algumas necessidades, mas não padronizou o acesso a essas instrumentações. Esse é um dos problemas mais sérios, um equívoco não tratado na lei.

Outra ação que deve ser aprimorada é a formatação sobre quem é e quem não é negro. Houve certa confusão a princípio porque algumas instituições criaram mecanismos próprios. A lei, agora, talvez possa definir melhor essas ferramentas.

E quanto aos fraudadores de cotas? Essa é uma questão significativa que surgiu na esteira da ausência de padronização. Muitos usaram variados subterfúgios para fraudar a lei, criando um problema de difícil solução, porque não havia ação preventiva definida. Muitos entraram, fraudaram e nada lhes aconteceu. Isso colocou dúvidas sobre a lisura do processo.

A formulação da lei foi ingênua por não cogitar a possibilidade de fraude? A lei desconsidera essa hipótese. Achava-se que todos estariam bem intencionados e que não seria necessário haver padronização sobre como proceder em situações dessa natureza.

De qualquer forma, os dez anos da lei nos permitiram criar parâmetros muito bem definidos para esse tipo de avaliação. Se renovada, a lei pode se inspirar nas boas práticas instituídas pelas universidades que expulsaram os alunos fraudadores e tiveram a expulsão confirmada pela Justiça.

A própria USP expulsou um aluno fraudador pela primeira vez em 2020… Exatamente! As instituições foram capazes de fazer valer a lei. O caso da USP é muito simbólico.

Sobre as bancas de heteroidentificação, quais os erros e os acertos? As bancas se saíram bem até aqui, considerando que o nosso racismo não é apenas de ancestralidade, mas de cor de pele. Foi necessário criar um mecanismo para evitar fraudes e os primeiros apresentaram equívocos e situações inadequadas, mas os dez anos da lei nos ajudaram a operar essa ferramenta com mais efetividade.

O problema continua sendo crucial e ainda é difícil de solucionar, tem havido poucas reclamações diante dos resultados das bancas. Esse instrumento se aprimorou e mostrou ser capaz de resolver as questões que se apresentam, mas sempre há necessidade de aprimoramento.

É possível dizer que o aumento de negros nas universidades reflete positivamente na economia? Não tenho dúvida disso. Os fundamentos econômicos sempre condicionaram a capacidade do desenvolvimento do país ao talento, inventividade e habilidade dos seus recursos humanos, e isso é o que temos de sobra em todos os espaços nos quais negros puderam atuar de forma autônoma e libertária.

Deixar os negros e todo seu talento de fora da universidade é uma medida desinteligente, além de cercear a produção, crescimento e desenvolvimento do país.

O Brasil preferiu fechar os olhos e tratar apenas de uma elitezinha muito limitada e que nem sempre entregou aquilo que poderia entregar. No fim das contas, poucos usaram suas habilidades ali adquiridas para ajudar a resolver os problemas do país.

O que vão sugerir na campanha pela renovação da Lei de Cotas? A primeira reivindicação é de que seja renovada. A aplicação da lei precisa ser avaliada para que saibamos quais são os seus problemas e limitações. O fato é que essa ação está a cargo do governo federal.

A lei diz que o governo deveria fazer a avaliação, mas isso não foi feito e dificilmente o Ministério da Educação terá tempo hábil para fazer. Só será possível fazer uma avaliação quando tivermos acesso ao inventário com os resultados dos dez anos da lei, mas o governo ainda não o disponibilizou.

Sabemos que há cursos em que as cotas não foram cumpridas integralmente, como medicina, mas não sabemos o motivo. Por outro lado, nas áreas de humanas as cotas foram muito bem precisamos compreender por que isso aconteceu, se é preferência, vocação ou por ser mais palatável.

Também precisamos saber quantos estudantes entraram nas universidades por cotas e permaneceram. E se não permaneceram, por quê? Foi racismo? Dificuldades econômicas?

E a diversidade precisa ser vertical, da gestão ao corpo técnico. Isso aconteceu? Não. Avançamos apenas no ingresso de estudantes negros. Nas quase 200 universidades publicas federais temos apenas quatro reitores negros. Professores e pesquisadores negros podem ser contados nos dedos.

Avalia que será mais difícil discutir a Lei de Cotas no governo de Jair Bolsonaro (sem partido) do que foi no primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT)? Por incrível que pareça, acho que será mais fácil. Em 2012, nós caminhávamos em direção ao desconhecido, e isso nos dava medo. Temia-se que houvesse um conflito e até que as pessoas pegassem em armas. Havia todo tipo de teoria. Vencer tudo isso exigiu um esforço sobre-humano.

No entanto, se houve motivos para desânimo, isso ficou lá atrás, porque hoje, dez anos depois, desmistificamos os medos e confirmamos o que se dizia: a universidade é, por natureza, o espaço de sanar conflitos.

Não houve queda na qualidade. Os cotistas, agora com oportunidades, superaram seus colegas brancos. Os negros entraram, mantiveram o nível e o elevaram. Tudo isso permitiu que pudéssemos ampliar e levar as cotas para juízes, promotores, na Petrobras e até em cartórios, por exemplo. O Brasil avançou ao abraçar as cotas como uma política vitoriosa.

E quanto às empresas, como a Magazine Luiza, que também adotaram cotas? Vimos um outro movimento que referencia as cotas nascer. Veja, vamos lançar a campanha pela renovação na terça (5), e 40 empresas estão entre os apoiadores da renovação. As empresas em sua maioria nem aceitam que exista racismo, mas as mudanças foram tão profundas que hoje há brancos conosco. Pense que estamos falando da segunda turma de trainees da Magazine Luiza. Há uma semana tínhamos a informação de que a Folha pela primeira vez terá negros em seu conselho editorial. Ao ler a Folha de dois anos atrás e a Folha de agora, você verá pelo menos dez colunistas negros em todos os cadernos e tratando as questões negras.

Os negros saíram das páginas policiais e viraram colunistas, sobretudo na Folha. Tudo isso é fruto desse amadurecimento da lei. Essa política pública ajuda a cumprir os fundamentos da própria República, da democracia e do Estado democrático de Direito, que é de igualizar por meio da oportunidade os direitos de negros e brancos num país rachado pelo racismo estrutural.

As cotas deixaram de ser algo de interesse dos negros e passaram a ser de interesse de parte expressiva da sociedade brasileira, incluindo o próprio ambiente empresarial.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/10/cotas-fizeram-negros-sairem-das-paginas-policiais-e-viraram-colunistas-diz-reitor-da-zumbi-dos-palmares.shtml


Míriam Leitão: O racismo persistente

Quando o assunto é racismo, o Brasil sempre volta à quadra um. É preciso recomeçar de conceitos que já deveriam estar absorvidos. No debate das cotas, parecia ter havido avanço no entendimento desse problema complexo e fundador do país. Se o Brasil não vencer a discriminação que pesa sobre pretos e pardos, se não houver política de inclusão, se as empresas não abrirem suas portas, é o país que fracassará. Jamais foi um problema de um grupo de brasileiros, é de toda a nação brasileira.

O debate do fim dos anos 90 e começo dos anos 2000 sobre a inclusão de estudantes pretos e pobres foi intenso e terminou com a confirmação pelo STF de que cotas raciais nas universidades federais eram constitucionais. Eu, neste espaço, defendi a adoção das cotas. Houve uma avalanche de argumentos contrários. Seria a derrota da meritocracia, seria melhor investir na educação básica, iria “criar” o racismo reverso, geraria conflitos entre os estudantes, iria nivelar por baixo a qualidade acadêmica. Nada disso.

É evidente que é preciso melhorar a educação brasileira, ninguém defende o contrário. As cotas permitiram ao país dar um passo numa longa caminhada para encontrar a si mesmo. Somos um país profundamente preto, do ponto de vista cultural e étnico. O racismo fere a natureza do país. Que julgamento de mérito pode ser feito entre um jovem de classe média que frequentou bons colégios, pré-vestibulares e cursos de inglês, e um jovem da periferia que fez seu caminho para a escola se desviando das balas? Serão julgados pela mesma régua? O jovem pobre e negro que sobreviveu para chegar na porta da universidade tem resiliência, hoje uma das habilidades mais valiosas na visão dos educadores. A convivência de diferentes entre si fez bem a todos. As universidades puderam dar aos alunos uma ampliação da visão das várias realidades do país e entregar ao mercado de trabalho jovens qualificados e com experiências diversas.

Na impactante entrevista que concedeu a Ronaldo Lemos, no evento Cidadão Global, do “Valor” e Santander, a atriz Viola Davis explicou o drama que leva tantos a morrer sem que possam realizar suas possibilidades. “Se não há oportunidade, você é invisível. Vou dizer de novo, se não há oportunidade, ou acesso a oportunidades, você é invisível. Não importa o quanto você trabalha, o quanto você é talentoso, você é invisível se não houver um veículo para literalmente demonstrar o seu talento, sua inteligência e o seu potencial.”

O que o Brasil tem que discutir sinceramente é como construiu uma sociedade com essa hegemonia de brancos em posições de poder, em todas as áreas, tendo mais da metade da população de não brancos. Com quantas desculpas esfarrapadas mantemos o muro que nos divide, nos apequena e mata tantos talentos antes que eles possam desabrochar?

Nessa vasta distopia que nos atrasa neste momento, em que os valores do respeito à diversidade são ofendidos até por quem ocupa o órgão do governo criado para promovê-los, há pelo menos uma boa notícia. Algumas empresas começam a avançar. Entenderam que um jovem discriminado não se sente nem autorizado a aparecer numa seleção de pessoas para posições de liderança de uma empresa. Há um código não escrito marcando as fronteiras que ele ou ela não deveriam atravessar. Este é um país fundado na mão de obra escravizada, indígena e africana. Superar esse passado é tarefa de todos.

Quando o Magazine Luiza tomou a decisão de abrir uma seleção exclusiva para negros provocou uma reação em que as velhas teses reapareceram. E o debate foi retomado como se não tivesse acontecido há quase duas décadas.

O Brasil muda muito devagar. A banqueira Cristina Junqueira, do Nubank, repetiu os argumentos de sempre. “Não consigo contratar executivos negros.” E ofendeu como sempre. “Não pode nivelar por baixo.” Depois ela pediu desculpas. Tomara que reflita sobre esse episódio. Em outra frase infeliz que revela preconceito classista, o banqueiro Guilherme Benchimol, da XP, disse em maio que o Brasil estava bem. “O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, a classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo.” Cristina e Guilherme são o que há de novo no mundo do capital. E ainda não entenderam o Brasil.


Monica de Bolle: Orgulho e preconceito

No universo das políticas públicas, há muito mais entre o céu e a terra do que a simples adoção de cotas

A intenção não era intitular esse artigo à la Jane Austen, mas sim “Ignorância, Orgulho e Preconceito” que, infelizmente, não cabe nos limites do jornal. A ignorância reflete a absoluta falta de conhecimento a respeito da relevância de problema por mim já discutido nesse espaço: o hiato salarial persistente entre homens e mulheres no mundo, e no Brasil em particular. A esse respeito, já fui interpelada com argumentos que vão desde “quanta decepção ao ver você exaltar a vitimização da mulher” até “o Brasil tem tantos outros problemas mais importantes do que esse”.

O orgulho está nas propostas de alguns presidenciáveis, que consideram esse tema pouco importante ou irrelevante. Para esses, educar-se com fatos e evidências sobre o assunto não interessa, o que importa são bordões e platitudes. Por fim, o preconceito. Sobre isso, prefiro nada dizer. Basta ler os comentários das redes sociais toda vez que o tema é levantado em alguma discussão.

Mas quero retornar à ignorância. É estupendo – no pior sentido – que tanta gente não tenha a menor ideia do custo para a economia e para o desenvolvimento de um país proveniente da disparidade salarial. De acordo com relatório de 2017 da ONU, controlados diferenciais de produtividade, qualificação acadêmica, atividade profissional, idade, licença-maternidade, entre outros fatores, mulheres recebem remuneração 23% menor do que homens – ou elas ganham 77% dos salários deles. O Brasil está exatamente na média global, segundo estudos: mulheres recebem 77% dos salários dos homens. Visto de outro modo, uma mulher com a mesma qualificação, educação e produtividade do que um homem teria de trabalhar 16 meses para receber a mesma remuneração que eles ganham em doze. Por que isso interessa? Há vários estudos – do FMI, do Banco Mundial, da OCDE – mostrando que quanto menor a diferença de salários das mulheres e maior a participação feminina no mercado de trabalho, maiores as taxas de crescimento do PIB. Há estudos também mostrando que a inclusão feminina no mercado de trabalho e a facilitação do acesso ao crédito têm consequências distributivas relevantes, além de efeitos sobre a redução da pobreza. Portanto, políticas públicas voltadas para a redução do hiato salarial poderiam ajudar a resolver diversos graves problemas brasileiros. E as políticas públicas funcionam, para a surpresa de alguns de nossos presidenciáveis.

Em países como o Reino Unido, Chile, Portugal, Áustria, Dinamarca, Suécia, Espanha, Bélgica, entre outros, uma das políticas implantadas foi bem simples: requerer das empresas a transparência sobre os salários pagos por gênero para cada ocupação. Há documentação empírica revelando que a divulgação pública de como as empresas remuneram seus funcionários por ocupação e gênero criou incentivo para a redução de disparidades, sem a necessidade de maiores intervenções. Infelizmente, ao batalhão de desinformados sobre esse tema, prevalece a ideia de que quem fala em disparidade de gêneros no fundo quer a imposição de cotas para mulheres. No universo das políticas públicas, há muito mais entre o céu e a terra do que a simples adoção de cotas. Há medidas para reduzir a falta de informação, há políticas que introduzam no orçamento público gastos relativos às necessidades específicas das mulheres, como a provisão de créditos para aposentadoria de quem precisa se ausentar do mercado de trabalho por um tempo para cuidar dos filhos. Aliás, no Brasil em que ainda não houve reforma da Previdência, mas onde essa deve ser a prioridade do próximo governo, urge tratar desse tema em qualquer proposta que venha a ser elaborada.

A ideia de que políticas públicas em determinadas áreas tenham necessariamente de ser vistas como interferências indevidas do Estado não poderia ser mais equivocada, distante da realidade, ou mesmo daquilo que tão bem sabem os economistas preocupados com os fatos e as evidências: o mercado é um excelente mecanismo alocativo, mas muitas vezes ele falha. Quando falha, cabe ao governo prover os incentivos para resolver a falha. Isso nada tem de intervencionismo penoso, ou qualquer outro vício ideológico que passou a dominar crescentemente o debate político brasileiro.

Espero que o tema faça parte da pauta de debates da eleições. É demasiado importante para que fique relegado à ignorância, ao orgulho e ao preconceito.

*Monica de Bolle é economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


José Goldemberg: Mérito na Olimpíada, cotas nas universidades?

O sucesso da Olimpíada de 2016, no Rio de Janeiro, serve para mostrar como é possível enfrentar dificuldades e superá-las. As previsões catastróficas sobre o fracasso do evento por causa de criminalidade solta no Rio de Janeiro, epidemia de zika, obras inacabadas e transporte caótico não se confirmaram e a Olimpíada decorreu dentro do padrão de Beijing e Londres.

O magnífico visual da cerimônia de abertura, preparada pelos talentosos Andrucha Waddington, Daniela Thomas, Fernando Meirelles e Débora Colker, teve até uma apresentação sóbria e cientificamente correta sobre os problemas do aquecimento global e suas consequências, preparada por cientistas brasileiros, como Paulo Artaxo. O Brasil, que era um vilão nessa área por causa do desmatamento da Amazônia, apareceu para uma plateia de 3 bilhões de pessoas como um país sério e responsável que está fazendo sua parte para tentar resolver o problema.

Mas a lição fundamental da Olimpíada,a nosso ver, é que ela abre espaço para confrontos em que só o talento e a competência têm valor. A meritocracia é o fator determinante em todos os eventos, não há favorecimentos de espécie alguma e os melhores vencem, levando suas medalhas de ouro, prata ou bronze.

Na Olimpíada não há distinções entre ricos e pobres, classes sociais, religiões e cor da pele, mas premiação dos melhores; não importa de onde venham, Etiópia, França ou Brasil: vencem os melhores. A riqueza de países como EUA ou Inglaterra permite preparar mais atletas, mas não é uma garantia de sucesso.

São comoventes as histórias contadas por atletas de famílias humildes ao receber as medalhas sobre como superaram seus problemas com o esforço próprio e dedicação. Competir numa escala mundial e vencer nas provas é a melhor forma de se autoafirmar como ser humano e cidadão. Curiosamente, esses mesmos critérios são abandonados sistematicamente no Brasil com a introdução de sistemas de cotas para assegurar vantagens a corporações, alguns grupos sociais e até étnicos.

Corporações foram muito poderosas no passado, mas o avanço da democracia como forma de governo nos séculos 19 e 20 abriu horizontes mais amplos em muitos países. As bandeiras da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade criaram a figura da cidadania, em que todos são iguais perante a lei e têm as mesmas oportunidades.

A introdução de cotas para proteger certos grupos pode se justificar em casos muitos especiais, como o das pessoas com deficiências físicas, mas pode levar a distorções e discriminações intoleráveis, como ocorreu no século 20 com os sistemas totalitários, particularmente na Alemanha nazista, que levou ao holocausto dos judeus. Assistimos hoje à tentativa do mesmo tipo de tentar criminalizar o islamismo, que deve ser energeticamente repelida.

No caso brasileiro, em que distinções raciais não fazem sentido, com a enorme miscigenação que caracteriza nosso país, a introdução de cotas adquiriu características particularmente negativas no acesso às universidades públicas, que são gratuitas e só conseguem atender cerca de 25% dos estudantes que nelas desejam ingressar. Os restantes 75% pagam por seus estudos em universidades privadas. Os estudantes que concluem o ensino médio competem por esses 25% de vagas em exames vestibulares que selecionam os mais capacitados.

Essa é uma situação parecida com uma competição olímpica, em que os mais talentosos são escolhidos. Poder-se-ia argumentar que o desejável seria que todos os que concluíssem o ensino médio pudessem cursar uma universidade pública, como é na França ou na Itália, mas simplesmente não existem recursos públicos para tanto. Em contrapartida, em muitos países do mundo as universidades públicas cobram anuidades, como as privadas.

No caso das universidades federais, seu custo representa mais de 70% dos recursos do Ministério da Educação, que tem um dos maiores orçamentos do governo federal. Se atendesse a todos os que desejam matricular-se em universidades públicas, seu orçamento teria de quadruplicar. Nessas condições, cabe aqui perguntar para que servem as universidades públicas. Pelo artigo 207 da Constituição federal, elas têm por finalidade o ensino, a pesquisa e a prestação de serviços à comunidade, e não apenas o ensino, como a grande maioria das universidades privadas.

A primeira universidade pública no País, a Universidade de São Paulo (USP), criada em 1934, introduziu a ideia de promover a investigação científica e cultural e, portanto, a criação de um grande mercado de profissionais capazes de identificar as tecnologias modernas e aplicá-las para o desenvolvimento do Brasil. Essas atividades têm alto custo, mas o retorno desses investimentos se vê hoje com a modernização do País.

Se essa é a finalidade das universidades públicas, é evidente que é preciso escolher os estudantes mais adequados para fazê-lo e o único critério para tal é o mérito.

Resolver problemas sociais e dar oportunidades aos mais pobres são objetivos importantíssimos, mas não é nas universidades, e sim no ensino fundamental e médio, que isso deve ser feito. Tentar resolver esses problemas facilitando o ingresso em universidades públicas pode ser mais fácil, mas não é o método adequado.

Universalizar o ensino público de boa qualidade no nível fundamental e médio foi uma das bandeiras da Revolução Francesa de 1789, mas esse objetivo só foi atingido cerca de 80 anos depois, com o magnífico sistema de liceus franceses, apesar da riqueza de um país como a França.

Introduzir cotas nas universidades públicas brasileiras como instrumento para compensar/corrigir discriminação racial ou social é muito mais fácil e menos oneroso do que corrigir o problema fundamental, que é melhorar a qualidade e a equidade do ensino fundamental e médio para que todos tenham as mesmas oportunidades no acesso ao ensino superior. (O Estado de S. Paulo – 19/09/2016)

JOSÉ GOLDEMBERG É PROFESSOR EMÉRITO DA USP, FOI MINISTRO DA EDUCAÇÃO


Fonte: pps.org.br