corrida espacial
José Monserrat Filho: Um Direito só para Marte?
“Se não falarmos em nome da Terra, quem o fará?”
Carl Sagan, Cosmos, Companhia das Letras, 2017, p. 402.
“Os humanos parecem estar na rota inevitável para colonizar Marte”, escreve Gbenga Oduntan, professor e pesquisador da Escola de Direito da Universidade de Kent, Reino Unido. Vale, então, perguntar – acrescenta ele – “que leis governarão os humanos em Marte?” (1) Ou seja, como será colonizado, ou melhor, povoado o “planeta vermelho”? Boa pergunta.
Estão de olho em Marte: EUA, China, Emirados Árabes Unidos, Europa e pelo menos uma grande empresa privada de atuação global. A NASA planeja chegar lá até a década de 2030. O milionário e engenheiro norte-americano Elon Musk (1971-) – inventor do Space X, poderoso foguete reutilizável – e a empresa aeroespacial Lockheed Martin, com sede nos EUA, anunciaram viagens e estações separadas a Marte, entre 2022 e 2028. A China deseja estar lá em 2020 e para isso desenvolveu um lançador extremamente poderoso. O novo foguete desafia a física e permitiria a humanos pousar em Marte, não em anos, nem em meses, mas em semanas. A Europa lançou a primeira missão a Marte – a nave Mars Express e a sonda Beogle-2, em junho de 2003, pelo foguete russo Soyuz-Fregat, a partir da base de Baikonur, no Casaquistão. A Agência Espacial Europeia segue interessada em Marte, embora hoje dê prioridade ao projeto Moon Village, para criar um primeiro núcleo humano permanente na Lua. A Lua – tudo indica – será um excelente trampolim para Marte. Essa é a ideia.
Pesquisas científicas sobre o “Eldorado marciano” fazem dele – como já foi dito – “um sonho viável a uma velocidade deslumbrante”. Há sonhos, sim, mas, sobretudo, há em jogo avassaladores interesses econômicos, políticos e estratégicos. Nos anos 60, houve uma corrida à Lua. Agora, há uma corrida a Marte. Chegando à Lua, em julho de 1969, antes da ex-URSS, os EUA se disseram vencedores, alegando terem superado a liderança soviética, estabelecida com o lançamento do Sputnik-1, em outubro de 1957, com a façanha de Iuri Gagarin, primeiro humano a orbitar a Terra, além de outras operações espaciais pioneiras. Mas em 1972, o então presidente Nixon acabou com o projeto Apolo, que promovia a corrida lunar. Os EUA gastavam, então, milhões de dólares entre essa corrida e a guerra no Vietnam, onde os americanos foram derrotados, em 1974. A corrida a Marte será diferente, espera-se. Mas ainda falta saber como ela será financiada e a que leis obedecerá.
O planeta Terra já tem um Direito Espacial Internacional, criado nos anos 60 e 70. Seus princípios estão consagrados no Tratado do Espaço (2) de 1967, que está comemorando os 50 anos de sua vigência, com 105 ratificações e 25 assinaturas – números altamente expressivos na história do Direito Internacional. Mas o Direito Espacial, como qualquer outro ramo do Direito, não é apenas uma questão formal. O principal é saber que interesses prioritários ele defende.
O Tratado do Espaço – base do Direito Espacial de hoje – já no preâmbulo, reconhece “o interesse que apresenta para toda a humanidade o programa da exploração e uso do espaço cósmico para fins pacíficos”. E seu Artigo I (§ 1º) estabelece a “cláusula do bem comum”, nos seguintes termos: “A exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, devem ter em mira o bem e o interesse de todos os países, seja qual for o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade.” O texto em inglês parece ainda mais claro e define as atividades espaciais como “province of all mankind”, que significa “lugar de toda a humanidade”. (3) Assim, o Direito Espacial de hoje está comprometido, acima de tudo, com os interesses prioritários da humanidade.
Ao falar na “Lua e demais corpos celestes”, o Tratado, obviamente, inclui Marte e os outros planetas do Sistema Solar, para não ir mais longe. Logo, Marte, assim como a Lua, também é “lugar de toda a humanidade”. A menos que Assembleia Geral das Nações Unidas conclua, por maioria de votos, que o Tratado do Espaço de 1967 deva ser revisado ou substituído por novo tratado, criando para Marte outro regime jurídico. Nele, a humanidade certamente perderia o peso que tem hoje. E talvez fosse até mesmo ignorada. Afinal, ela é sempre citada quando se deseja atender aos interesses de todos os povos e países, que não têm mais a importância que já tiveram. Em sua maioria, eles deixaram de ser sujeitos e atores da globalização – hoje comandada por um grupo de poderosas instituições financeiras e empresas de alta tecnologia.
Poderosas empresas, com sede nos EUA, Luxemburgo e Emirados Árabes Unidos, ambicionam explorar, extrair e comercializar recursos naturais de asteroides e outros corpos celestes, em especial minerais valiosos, como platina, níquel, ferro, cobalto, muito procurados nos mercados da Terra. Isso, sem falar em riquezas como água, nitrogênio, hidrogênio e amônia.
A platina é um dos minerais mais cobiçados pelas empresas donas dos recursos financeiros e tecnológicos para minerar o espaço, em busca de um ganho descomunal. Usada na produção de joias e de dispositivos eletrônicos ou médicos, a platina é raríssima na Terra: um único quilo custa cerca de US$ 30 mil. Estima-se que um asteroide de 500 metros rico em platina possa conter uma quantidade tão grande dela que chegue a superar o conjunto de toda a platina já extraída na história da humanidade.
EUA e Luxemburgo já sancionaram leis autorizando suas empresas a se tornarem donas das riquezas que extraírem dos corpos celestes. Duas empresas dos EUA, Deep Space Industries, na Califórnia, e Planetary Resources, em Washington, já trabalham ativamente com tal objetivo. Os Emirados Árabes Unidos correm no mesmo sentido: preparam, em especial, o lançamento de uma sonda não tripulada a Marte. Sua Agência Espacial, criada em 2014, chama a missão de “Al Amal”, que significa “esperança”. O projeto tem sido amplamente divulgado. A sonda poderá entrar em órbita de Marte em 2021. A equipe dos Emirados trabalha junto com cientistas da Universidade do Colorado, EUA, e tem acordo com o Centro Nacional de Estudos Espaciais (CNES), a agência francesa. O plano é manter a sonda em órbita de Marte durante dois anos, recolhendo dados sobre todos os aspectos da atmosfera do planeta: a dinâmica diária e anual do clima, as diferentes camadas, os elementos constituintes e os níveis de oxigénio e hidrogénio no espaço. Os cientistas creem que a temperatura de Marte tem aumentado em demasia, causando a evaporação da água e a saída de moléculas através da atmosfera até ao espaço.
Entender o que ocorreu em Marte ajuda a entender o que ocorre na Terra. A equipe dos Emirados tem hoje 75 membros, mas esse número em breve pode subir para 150. Segundo dados oficiais, já foram investidos mais de cinco bilhões de euros no projeto. Diretores do programa espacial dos Emirados estão seguros de que a primeira missão a Marte vai inspirar milhões de jovens da região.
A execução de todo o programa dos Emirados, no entanto, não exige que se revise ou mude o Tratado do Espaço de 1967, a começar por sua indefectível “cláusula do bem comum”, que considera as atividades espaciais como “province of mankind”.
Importante é também o princípio de não apropriação dos corpos celestes, lavrado no Artigo II do Tratado do Espaço. Ele reza: “O espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes, não poderá ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”. Esse princípio não deixa brechas para eventuais contestações. O Artigo III, por sua vez, adota o princípio de que as atividades espaciais devem fortalecer a paz, a segurança, a cooperação e a compreensão internacionais. Diz o Artigo III: “As atividades dos Estados (...) de exploração e uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, devem efetuar-se em conformidade com o Direito Internacional, inclusive a Carta das Nações Unidas, com a finalidade de manter a paz e a segurança internacional e de favorecer a cooperação e a compreensão internacionais.”
Pelo Artigo IV, os corpos celestes serão usados exclusivamente para fins pacíficos. Para tanto, “estarão proibidos nos corpos celestes o estabelecimento de bases, instalações ou fortificações militares, os ensaios de armas de qualquer tipo e a execução de manobras militares.” Mas “não se proíbe a utilização de pessoal militar para fins de pesquisas científicas ou para qualquer outro fim pacífico”. Também não se proíbe “o uso de qualquer equipamento ou instalação necessária à exploração pacífica da Lua e demais corpos celestes”. É a desmilitarização total dos corpos celestes.
E pelo Artigo VI, os Estados arcam com a responsabilidade internacional por suas atividades espaciais nacionais, realizadas no espaço e nos corpos celestes tanto por órgãos do governo, como por entidades não governamentais. Para isso, eles devem velar para que suas atividades nacionais cumpram as normas do Tratado do Espaço. As atividades das entidades não governamentais no espaço, na Lua e nos corpos celestes “devem ser objeto de autorização e vigilância contínua” pelo respectivo Estado. Cabe, pois, ao Estado controlar o que o interesse privado faz no espaço e nos corpos celestes.
Para o Direito Espacial de hoje, objetos e estações instalados em corpos celestes devem permanecer sob propriedade nacional, jurisdição e controle do respectivo Estado. É o que reza, em suma, o Artigo VIII do Tratado do Espaço: O Estado, em cujo registro figure o objeto lançado ao espaço, conservará sob sua jurisdição e controle o dito objeto e todo o pessoal do mesmo objeto, enquanto se encontrarem no espaço ou em um corpo celeste. Os direitos de propriedade sobre os objetos lançados no espaço, inclusive os objetos levados a ou construídos em um corpo celeste, bem como seus elementos constitutivos, permanecerão inalteráveis enquanto estes objetos e/ou seus elementos se encontrarem no espaço ou em um corpo celeste e durante o retorno à Terra.
Assim, as empresas privadas não têm base legal para minerar asteroides e outros corpos celestes. As leis em vigor dizem que o estabelecimento de uma estação espacial e da área requerida para seu funcionamento deve ser notificado ao Secretário Geral das Nações Unidas. A estação e a área estarão sob a jurisdição exclusiva do Estado onde a nave foi registrada ou do Estado que trouxe componentes para a estação.
Seja como for, é difícil imaginar uma estação permanente em Marte sem alguma forma de posse do solo, ainda que provisória. O mesmo ocorre com a instalação destinada a sua manutenção, como a produção de combustível a partir de recursos locais. De fato, as analogias práticas mais próximas a uma futura estação de Marte, em termos legais de hoje, seriam as estações na Antártica mantidas por seus respectivos Estados.
Há, porém, muitas leis a elaborar. Com o crescente interesse em múltiplas estações permanentes em Marte e numerosos objetos em sua órbita, o surgimento de detritos (lixo) poderá afetar seus novos habitantes e danificar instalações. O bom senso recomenda que a complexa questão do lixo seja regulada em Marte antes que detritos danifiquem estações e outras construções, provocando conflitos legais e até políticos.
Claro que serão necessárias leis específicas para ordenar a vida cotidiana própria de Marte, abrangendo os direitos civil, administrativo, penal e outros. Mas antes haverá que reconhecer o Direito Espacial de hoje como alicerce jurídico para definir Marte e sua posição geral nas atividades espaciais realizadas a partir da Terra, a nossa casa comum. Nossa história, nosso trabalho, nossos avanços e nossas riquezas é que possibilitam a chegada dos humanos a Marte. Esse desembarque histórico só terá sentido se tiver como meta principal beneficiar toda a humanidade.
* José Monserrat Filho, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), ex-Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional do Ministério da Ciência e Tecnologia (2007-2011) e da Agência Espacial Brasileira (AEB) (2011-2015), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, e Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica. Ex-diretor da revista Ciência Hoje e editor do Jornal da Ciência, da SBPC, autor de Política e Direito na Era Espacial – Podemos ser mais justos no Espaço do que na Terra?, Ed. Vieira&Lent, 2017.
Notas e referências
(1) Oduntan, Gbenga, O que as missões simuladas da NASA nos falam sobre a necessidade de uma lei marciana, The Conversation UK, Kent UK (SPX), 12/10/2017. Gbenga Oduntan é autor de Soberania e Jurisdição no Espaço Aéreo e no Espaço Exterior: Critérios Legais para Delimitação Espacial, Routledge Research, 2011.
(2) Nome completo do Tratado do Espaço: Tratado sobre os Princípios Que Regulam as Atividades dos Estados na Exploração e Utilização do Espaço Exterior, Incluindo a Lua e Demais Corpos Celestes.
3) Ver <http://www.unoosa.org/pdf/gares/ARES_21_2222E.pdf> O Tratado do Espaço em português está no site <www.sbda.org.br>
4) Consultar o website <http://pt.euronews.com/2017/07/27/marte-a-esperanca-da-agencia-espacial-dos-emirados>.