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Eliane Cantanhêde: Bolsonaro, agora 'Capitão Gotinha', muda a retórica, assume as vacinas e vai abrir as torneiras

O Brasil vai assistir a uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com Lula ressentido e disposto a tudo e Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos

À deriva, à mercê do coronavírus e exportando novas cepas para o mundo, o Brasil vai assistir – e sofrer – uma guerra do populismo de esquerda contra o populismo de direita, com o camarada Lula ressentido e disposto a tudo e o capitão Jair Bolsonaro cada vez mais sem escrúpulos, massacrando os fatos. Acaba de surgir o "Capitão Gotinha", o maior defensor da vacina no planeta. Acredita quem quer. E o pior é que tantos acreditam em qualquer coisa.

Os dois lados estão armados até os dentes e só nos resta torcer para que a imagem de retórica não vire realidade na era de um presidente com delírios autoritários e fetiche por armas. Depois de papai Jair combater incansavelmente as vacinas, a família presidencial assume um slogan oposto: "Nossa arma agora é vacina". Mas deixaram rastro, fantasiando o doce Zé Gotinha de miliciano, com um fuzil em forma de seringa. Argh!

E a deputada Carla Zambelli (PSL-SP)? Ao assumir a emblemática Comissão de Meio Ambiente da Câmara, a bolsonarista posou para o Estadão com cara de brava e... uma pistola 380. Não, não é contra desmatadores, traficantes, invasores de terras indígenas e criminosos em geral. Seus alvos são as ONGs!

Tudo isso num ambiente contaminado pelos recados velados e ameaças explícitas de Bolsonaro após a entrada de Lula no campo de batalha. Nervoso, o presidente deu um salto triplo carpado a favor das vacinas e atacou, além de Lula, governadores inimigos, como João Doria (SP), e amigos, com Ibaneis Rocha (DF). E acenou com insurreição, saques em supermercados... Eu, hein?! É convocação? Guerra civil?

Lula calibrou milimetricamente o confronto com Bolsonaro e a bandeira branca para o resto, enquanto Bolsonaro perdeu as estribeiras. Mas, afora táticas e estratégias, a polarização vai mostrar o quanto os extremos se aproximam, se parecem e se alimentam mutuamente, inclusive com métodos semelhantes de destruição de adversários, tratados como inimigos, e causas surpreendentemente comuns, camufladas pela ideologia.

PT e Bolsonaro, unha e carne no cerco a Sérgio Moro e à Lava Jato, trabalharam pelo mesmo candidato à presidência do Senado e estavam muito mais próximos na disputa na Câmara do que parecia à luz do dia. Agora, esquartejam a Lei das Improbidades – não para proteger os probos. Na campanha, sítio, triplex, rachadinhas e mansões milionárias farão a festa em palanques e na internet. Pior para Lula, que carrega os fardos do mensalão e do petrolão.

Na economia, PT e bolsonarismo caminham de mãos dadas no "nacionalismo" anacrônico, estatizante e corporativista. As corporações petistas estão na educação, cultura, ambientalismo, sindicatos. As bolsonaristas são mais "hard": militares, policiais, reinos universais, quartéis e cultos. (Lula, lembre-se, jamais teve arroubos contra a democracia, ao contrário de seu oponente, com esse exército.)

Os dois lados douram a pílula para atrair o capital, mas gostam mesmo da boa e velha mão pesada em Petrobrás, BNDES, BB, Caixa, Eletrobrás e Correios. Nada como manipular preços politicamente, alardear a "função social" das estatais e ter o Centrão a bordo. Mas, quando entra o "social", a balança pesa a favor de Lula. Além de correr desesperado atrás de vacinas, Bolsonaro será obrigado a mudar a retórica, acampar no Nordeste e abrir as torneiras.

Se o centro é uma incógnita, o Centrão (ou direitão) é fácil. Quem está com Bolsonaro e já esteve com Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer irá para onde os ventos soprarem. Como define um expert em Centrão, eles são garçons diligentes e cuidam bem da louça suja, não estão nem aí se o menu é comida chinesa ou pizza napolitana. Querem boa remuneração e nacos de poder, que Lula, Bolsonaro e centro dão de bandeja. Quem dá mais?


Pedro S. Malan: 2022, o ano que vem chegando mais cedo

Aung San Suu Kyi: ‘O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem’

 “Creio que nenhum homem tem plena consciência das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do conhecimento de sua própria pessoa” (Joseph Conrad). Seria possível imaginar o mesmo de um país? Dizer, como o personagem de Shakespeare (em Macbeth): “Ai de ti, pobre país, quase com medo de conhecer a si próprio”. O Brasil sob o bolsonarismo parece cada vez mais enredado no autoengano e na autocomplacência, empenhado em perder-se em engenhosas artimanhas para escapar ao conhecimento de si próprio.

Mas a terrível sombra está a ficar mais visível com o agravamento da pandemia, e com suas consequências. Paradoxalmente, é o que poderá talvez permitir que escapemos, nos próximos 18 meses, do autoengano coletivo, que seria trágico. Terrível como possa ser, o Brasil, a duras penas, pode estar se conhecendo melhor. Afinal, Bolsonaro e sua grei são parte integrante de nossa realidade. Cumprirá a cada um de nós procurar construir coalizões – de pessoas, de partidos – aptas a apresentar-se à sociedade em geral (não apenas a nichos identitários, corporações estabelecidas e interesses consolidados) como alternativas de poder viáveis e construtivas.

Não será fácil. No presidencialismo à brasileira o poder incumbente dispõe de enormes vantagens, particularmente quando a busca da reeleição constitui sua inequívoca prioridade. O poder que detém o presidente de nomear, demitir, vetar e cooptar não deve ser subestimado. Nem sua presença nas redes sociais ou o expressivo contingente do eleitorado que lhe confere o status de mito.

Em algum momento será preciso convergir para nomes, a política assim o exige. Mas tão importante quanto o quem é com quem mais (pessoas, partidos, grupos sociais), com que tipo de proposta sobre os principais desafios do País, com que tipo de interpretação sobre onde estamos, como até aqui chegamos e para onde se está propondo que caminhemos.

Carlos Pereira, em artigo recente (Folha 8/2), comenta a diferença entre montar uma coalizão para uma disputa eleitoral e gerenciar uma coalizão para efetivamente governar, à luz das dificuldades de coordenação, custos de governabilidade e perspectivas de sucesso legislativo. Após um ano e meio de recusa, Bolsonaro foi obrigado a aceitar uma coalizão e a empenhar-se pessoalmente na eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado. Mas, como notou o autor, “estando o presidente disposto a jogar o jogo do presidencialismo multipartidário, precisa aprender a gerir a sua coalizão de forma profissional e não amadora”. Sua forma de gerir a coalizão alcançada tem se mostrado volátil e estouvada, mas claramente concentrada em sua reeleição. Que depende da consolidação e ampliação de seu eleitorado fiel, do cultivo das corporações que tem como suas e da transferência de responsabilidades para governadores, prefeitos e para a mídia profissional.

A extraordinária disfuncionalidade do Executivo federal no combate à covid é o exemplo mais flagrante e doloroso dessa inépcia, mas não o único. Afinal, é de nosso presidente a afirmação: “O País está quebrado, e eu não consigo fazer nada”. Eis a continuação da mensagem, implicitamente sugerida: porque não me deixam fazer o que eu gostaria, ou o que precisaria ser feito, a culpa não é minha. Em outra fala, saiu-se com variante muito mais grave: “Alguns acham que posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo”. Nada surpreendente para quem em janeiro afirmara que “quem decide se um povo vive sob uma democracia ou uma ditadura são as Forças Armadas”. As duas frases não deveriam surpreender a quem conheça sua trajetória, no Exército e no Congresso, ou a quem se dê ao trabalho de assistir, na íntegra, ao vídeo da famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2020, verdadeira ressonância magnética de um organismo disfuncional.

A História ensina que uma sociedade enjaulada em acerbas polarizações é particularmente vulnerável a populismos fraudulentos. Existem sempre instigadores que despertam e incendeiam a ambição de populistas e tiranos em potencial. Como existem sempre os facilitadores que, ainda que percebam o perigo representado por aquela ambição, imaginam-se capazes de controlar os arroubos autoritários do populista (ou do tirano) enquanto se beneficiam de seu estilo de assalto a instituições estabelecidas. Como aponta com pertinência Aung San Suu Kyi, “não é o poder que corrompe, mas o medo. O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem. E o medo do açoite do poder corrompe aqueles que estão sujeitos a ele”. Persio Arida retomou o tema em excelente live recente, a propósito do Brasil de hoje.

Nos próximos 18 meses o Brasil deverá decidir se afinal deseja assumir-se como uma democracia vibrante, reconhecida como tal pelo resto do mundo; ou se persistirá na trajetória de incerteza crescente sobre nosso futuro econômico, social e político. E a correr sério risco, à luz de eventos dos últimos dias, de reeditar o tipo de polarização que marcou tanto nossa experiência em 2018 como os últimos trágicos 12 meses de pandemia.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC


Rolf Kuntz: A chanchada sinistra do autoritarismo

A pandemia avança, enquanto o governo encena a paródia da ditadura militar

Pornochanchada já era. O Brasil vive agora uma chanchada trágica, encenada pelo mais incompetente e mais desastroso governo de sua História. Não há como estranhar as obscenidades de Jair Bolsonaro e de seu filho Eduardo, especialmente quando dirigidas à imprensa. Suas barbaridades apenas expressam, de modo chulo, o padrão moral, intelectual e político do grupo instalado no centro do poder federal. Quando manda enfiar em lugar impróprio as máscaras destinadas à prevenção sanitária, o filho do presidente celebra, como seu pai, a mortandade dos brasileiros. Essa grosseria, tipicamente bolsonariana, foi postada em 10 de março, quarta-feira. No mesmo dia, um novo recorde de mortes pela covid, 2.349 em 24 horas, foi registrado. A família presidencial poderia celebrar um novo marco em sua história.

Também na quarta-feira o ministro Eduardo Pazuello, famoso por sua omissão quando pacientes morriam sufocados em Manaus, negou o risco de colapso nos serviços de saúde. “O nosso sistema de saúde está muito impactado, mas não colapsou nem vai colapsar”, assegurou. Em todo o País, governadores, prefeitos, secretários e médicos apontavam hospitais lotados e filas de doentes à espera de vaga em UTIs. Todos esses fatos eram componentes de um desastre muito maior: o desmoronamento, iniciado em 2019, da administração federal.

O papel mais patético nessa quarta-feira coube ao chefão da trupe, o presidente Jair Bolsonaro. Ele apareceu de máscara, num evento no Palácio do Planalto, defendeu a vacinação e até lamentou as mortes causadas pela covid. Em São Bernardo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de novo em condição de concorrer à Presidência, havia criticado a ação federal diante da pandemia. O senador Flávio Bolsonaro pediu aos seguidores a distribuição, em redes sociais, de uma foto de seu pai com a frase: “Nossa arma é a vacina”.

Vinte e quatro horas depois o Bolsonaro de sempre reapareceu, já sem máscara e com a truculência habitual. Apoiadores o haviam aconselhado, segundo fontes de Brasília, a desfazer a impressão de ter sido acuado por Lula. Mas havia sido. Isso foi evidenciado até pelo globo exibido em sua live de quinta-feira, uma resposta a quem o havia chamado de terraplanista.

Palavras grotescas, falsas e ameaçadoras compuseram a live. Contrariando fatos conhecidos e documentados, o presidente negou ter chamado de gripezinha a covid-19. Confundiu com estado de sítio as medidas preventivas, como o toque de recolher, determinadas por alguns governadores. Ele obviamente ignora o sentido de “estado de sítio”, tema tratado na Constituição.

Bolsonaro lembrou sua condição de chefe supremo das Forças Armadas. Raramente um presidente democrata menciona esse fato. Mas, além de falar sobre isso, lembrou o regime militar e pediu apoio ao povo para enfrentar os governadores. “Como é que eu posso resolver a situação? Eu tenho que ter apoio. Se eu levantar minha caneta BIC e falar ‘shazam’, vou ser ditador. Vou ficar sozinho nessa briga?”.

O palavrório é meio estranho, mas, apesar da obscuridade e dos subentendidos, a convocação lembra as ameaças de promover algo parecido com a mobilização comandada pelo presidente Donald Trump. Nos Estados Unidos, o presidente derrotado na última eleição incitou seus apoiadores a invadir o Congresso. Há alguns meses, Bolsonaro mencionou o risco de algo semelhante no Brasil se a eleição de 2022 for realizada sem voto impresso.

Bolsonaro chamou de herói nacional o torturador Brilhante Ustra, criou mal-estar com o governo chileno ao elogiar a ditadura do general Pinochet e cita com frequência o regime militar no Brasil. Referências à ditadura estão longe de ser meros componentes de uma retórica infeliz, grotesca e muitas vezes chula. O presidente, seus filhos e vários componentes da administração federal têm conseguido encenar uma paródia sinistra dos tempos ditatoriais.

O Ministério da Educação enviou a reitores de universidades federais um documento ameaçador, prometendo sanções, por “imoralidade administrativa”, a “manifestações de desapreço ao governo”. A censura é aplicável a professores e alunos. Um processo disciplinar foi aberto contra o ex-reitor e o pró-reitor de Extensão e Cultura da Universidade Federal de Pelotas. Ambos tiveram de assinar um termo de ajustamento de conduta para encerrar o processo.

Técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) também foram pressionados. Receberam recomendação de limitar seus contatos com a imprensa e de evitar a divulgação de estudos antes de “aprovação definitiva” pela direção. O presidente do Ipea, Carlos von Doellinger, parece haver esquecido sua experiência dos anos 1970, quando ele mesmo e outros pesquisadores tinham amplo contato com jornalistas. Estudos eram produzidos sem censura. Artigos publicados na revista Pesquisa e Planejamento Econômico discutiam livremente a política econômica. Esse padrão, sustentado por João Paulo do Reis Velloso, um dos criadores do instituto, foi mantido por muito tempo. Talvez faltasse um governo bolsonariano.

*Jornalista


Cristovam Buarque: Lula Taí

A história do Brasil já está marcada por ele

Quando Arraes voltou do exílio, não havia TV a cabo, internet, WhatsApp, mas logo se espalhou o cochicho de “Arraes Taí”. Lembrei disto ao assistir a fala do Lula na manhã da quarta-feira, depois que o Supremo Tribunal Federal anulou seu julgamento pela Lava-Jato de Curitiba. Foi como anistia de condenação que está passando a ideia de ter sido motivada politicamente. Muitos dos que se indignam e condenam a comprovada avassaladora corrupção na Petrobras, durante seu governo, desconfiavam das provas contra o Lula nos casos que o envolviam pessoalmente. Sobretudo depois de o juiz dos casos abandonar a toga para assumir um ministério. Mais ainda, ao tomarem conhecimento dos diálogos entre juiz e procuradores, durante o processo.

Por isto esperei a fala de Lula com temor de que voltasse ao discurso desagregador de quando foi solto em 2019, e com esperança de um discurso agregador, como fez em 2002 e durante seus dois governos. Colocando-se à disposição das forças políticas para encontrar o candidato com mais chance de impedir a reeleição do atual presidente. Seu discurso não teve a mensagem desagregadora, nem foi suficientemente esperançoso. Não passou a arrogância do isolamento, nem deixou clara mensagem de que “Lula Taí” para ser um dos líderes, não o monopolizador, de uma aliança pela democracia, olhando o futuro com responsabilidade econômica e empatia social. Mas deixou aberta a possibilidade dele e o PT participarem da construção de uma aliança de todos que desejam superar a atual tragédia que o Brasil enfrenta na epidemia, na incompetência gerencial, nas ameaças à democracia, no obscurantismo e no isolamento internacional.

Quem gosta e quem não gosta do Lula tem de reconhecer que a história do Brasil já está marcada por ele: ao demonstrar que um operário retirante nordestino é capaz de ser um presidente que representou bem ao país no Exterior, que manteve compromisso com a estabilidade monetária durante seus dois mandatos e atendia demandas sociais.

Mas talvez a maior contribuição de Lula ao Brasil, sua “melhor hora”, será a partir de agora: ajudar o Brasil a eleger um novo presidente, seja ele próprio ou não. Para isto, seu discurso precisa afirmar sua abertura a participar da aliança em um bloco maior do que apenas a esquerda tradicional. Abrir-se à realidade do mundo da globalização, dos limites ecológicos ao crescimento, da inexorável modernização tecnológica, deve reconhecer as dificuldades fiscais, éticas e gerenciais da máquina do Estado. Ele tem argumentos para afirmar que sua condenação foi anulada e que sua consciência está em paz, mas precisa assumir que houve corrupção avassaladora em instâncias de seu governo, devido ao aparelhamento pelos partidos que o apoiavam no Congresso. Deve se colocar à disposição de todos os candidatos já lançados e se propor a participar na escolha do candidato que terá mais chance de barrar a monstruosidade do atual governo, seja ou não de seu partido.

“Lula Taí” e tem diante dele a tarefa maior e mais difícil do que se eleger pessoalmente em 2002, a tarefa de ser um dos líderes, não o único, a retomar a democracia plena, com empatia pelos problemas do povo, com rumo para o Brasil.

Se o STF não voltar a surpreender, “Lula Taí”: esperemos que os outros líderes reconheçam sua força política e que ele entenda que o Brasil é maior do que qualquer um de nós e de nossos partidos.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Dorrit Harazim: Brasil, ano 2

Lançado em 1976, ano do bicentenário da independência dos Estados Unidos, o filme-sátira “Rede de intrigas”, de Sidney Lumet, contava a história de um âncora de TV demitido porque sua audiência despencara. Interpretado por Peter Finch (Oscar póstumo de melhor ator), o personagem decide comunicar ao vivo sua saída e avisa que se suicidará na semana seguinte com o programa no ar. A audiência dá um salto, e a emissora decide voltar atrás.

A partir daí, o âncora passa a encarnar um oráculo insano que só diz verdades. Numa cena antológica, ele convoca os espectadores a se insurgirem contra a lógica do mercado e da dominação do capitalismo: “Quero que todo mundo levante de sua poltrona agora, vá até a janela, abra-a, ponha a cabeça pra fora e grite a plenos pulmões: ‘Chega! Não aguento mais! Estou explodindo de raiva!’.”

O Brasil de 2021 tem um quê de “Rede de intrigas”. Temos o cidadão que não aguenta mais, que gostaria de explodir sua raiva contra o abandono a que foi condenado. Ele só não explode nas janelas e pelas ruas do país por medo de morrer de Covid-19. A diferença é que, no lugar de um maluco de ficção que no filme apontava para a realidade, temos um presidente da República insano, porém real, descontrolado e amoral, a nos enredar em falsidades.

Ao longo do interminável ano de 2020, o país se acomodou, encolhido no que pesquisas sobre saúde mental definem como “pensamento mágico” — apostou-se na vã esperança de um reencontro com a vida em 2021. No fundo era um mero atalho mental para sair da era da incerteza pandêmica, escapulir do estado de ansiedade e do silêncio coletivo. Apostamos, muitas vezes às escondidas de nós mesmos, que, no decorrer do ano novo, poderíamos sair da toca e procurar nos reconhecer nas pessoas que algum dia fomos. Aniversários cancelados seriam comemorados duas vezes, o Natal adiado reuniria famílias e amigos na Páscoa de abril, e o resto do calendário de 2021 ficaria lotado de abraços apertados.

No dia a dia, um pouco de pensar mágico não faz mal a ninguém. Sua utilidade se assemelha à das superstições inofensivas. Quando o problema é imenso, e sua solução parece fora de alcance, o recurso apenas aumenta a sensação de desamparo. É onde o Brasil se encontra neste primeiro aniversário da primeira morte por Covid-19, registrada em 12 de março de 2020. O choque, o horror inicial, cedeu primeiro à inércia, depois à fadiga, mas finalmente adquire contornos de consciência. Agora é torcer para que se transforme em cobrança. É como se só agora estivéssemos despertando de verdade para 2021: com a cara num muro pandêmico de 275 mil mortos, falta de vacinas e o colapso do sistema hospitalar.

Também governadores, prefeitos e o Congresso, ora em separado, ora em ações emergenciais conjuntas, acordaram para o galope da devastação humana nacional. Ainda assim, de modo atabalhoado, indesculpavelmente a reboque da mortandade anunciada, ainda sem linha mestra clara. Basta listar algumas decisões tomadas num mesmo dia — a quinta-feira passada — em nível estadual e municipal para desnortear qualquer bípede. No Paraná, estado com a maior fila por leitos hospitalares (500) do país, o governador Ratinho Jr. reabriu o comércio e anunciou o fim do lockdown de 12 dias, apesar de constatar que o Brasil vive “a maior guerra de saúde pública dos últimos 100 anos”. Em Curitiba, é o prefeito Rafael Greca que alerta para a eventual necessidade futura de um lockdown. “Cumpro meu dever de prefeito para anunciar que estamos chegando ao nosso limite”, disse ele. Seu dever de prefeito não seria agir ANTES que o colapso ocorra? O governador de São Paulo, João Doria, fez discurso semelhante ao suspender normas anunciadas dias antes e decretar “fase emergencial”: “Pessoal, infelizmente chegamos ao momento mais crítico da pandemia”. Ou seja, deixou chegar a emergência crítica, para só então fechar cultos em igrejas e estádios para jogos.

No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes desfolhava de forma errática a margarida das vacinas : uma hora tem o imunizante, na hora seguinte não tem. Resta ao grupo da faixa etária que se apruma para estender o braço voltar para casa sem saber do amanhã. Paes também afrouxou medidas tomadas na semana anterior — liberou o comércio na praia, academias de ginástica, cultos, ambulantes, barraqueiros, entre outros —, não dando tempo para que se estude a eficácia de medida alguma. É sabido que, para um lockdown ter algum impacto na curva de contágio e de óbitos por Covid-19, e poder ser analisado em detalhes, ele deve ter duração de ao menos 15 dias. A medida exige uma serenidade difícil de encontrar nas diversas esferas do poder nacional.

O mais esquizofrênico e deletério, sem dúvida, continua a ser o capitão do Palácio da Alvorada, que confunde a medida sanitária do toque de recolher, adotada pelo governador do Distrito Federal para reduzir a disseminação do vírus, com estado de sítio, instrumento excepcional pelo qual o presidente da Republica suspende por determinado período a atuação dos poderes Legislativo e Judiciário.

“Por vezes, morremos muito antes de sermos enterrados”, escreveu o francês Romain Gary em seu romance “Além deste limite, seu bilhete não vale mais”. O Brasil, neste ano 2 da pandemia planetária, parece decidido a não morrer tão antes do inevitável. A sociedade civil se organiza, a iniciativa privada se mexe, um reordenamento nas esferas estadual e municipal brota como opção B ao inexistente comando federal. Mas, para sobrevivermos, urge deixar Jair Bolsonaro e sua sombria parentela falando sozinhos. 


Míriam Leitão: A falha dos poderes é ameaça perigosa

A democracia brasileira, nos últimos dias, deu mais alguns passos na perigosa trilha em que entrou. O Supremo Tribunal Federal (STF) aumentou a insegurança jurídica, ao dar vários sinais de que os ministros tomam decisões que mudam a vida do país seguindo a lógica das brigas internas da corte. A Câmara entregou a Comissão de Constituição e Justiça a uma deputada que esteve em atos que propuseram rasgar a Carta e a Comissão do Meio Ambiente a quem faz parte da tropa antiambiental. O presidente mais uma vez ameaçou o país com a ditadura, contando para isso com o silêncio dos generais.

A decisão do ministro Edson Fachin obedece à lógica de que se o caso não é relativo à Petrobras não tem que ficar na 13ª Vara Federal em Curitiba. A dúvida que permanece é por que levar tantos anos para descobrir a procedência da tese sempre apresentada pelos advogados do ex-presidente. Fachin explicou em entrevista a Aguirre Talento e Bela Megale do GLOBO que o assunto havia sido mencionado, mas que ele não recebeu pedido direto da defesa de Lula até novembro de 2020. O ministro disse que a Justiça tem que ser imparcial e apartidária. É verdade. Mas também precisa ser tempestiva. A intempestividade pareceu mais um lance da briga entre duas das onze ilhas da corte

O ministro Gilmar Mendes afirma que é insuspeito. E explicou por quê: “ao contrário da ministra Cármen, dos ministros Lewandowski e Fachin, não cheguei aqui pelas mãos do Partido dos Trabalhadores.” Isso quer dizer que os outros três ministros são suspeitos em ações do PT? Ou que ele é suspeito para julgar os casos do PSDB? Ele acusa o ex-juiz Sergio Moro de ter se tornado inimigo do réu, quando ele próprio dá demonstrações constantes desse sentimento em relação ao ex-juiz e aos procuradores.

Depois do duelo jurídico entre Fachin e Gilmar para saber quem tem a última palavra no destino de um ex-presidente da República, outro conflito emergiu no plenário virtual do STF. Na quinta-feira, o ministro Marco Aurélio chamou o ministro Luiz Fux de autoritário e o ministro Alexandre de Moraes de xerife. Foi mais um sinal ruim. Não é a primeira vez que as divisões na mais alta corte são expostas, mas esta semana houve um concentrado de votos idiossincráticos e falas pontiagudas. Quem acredita na democracia defende o STF dos ataques bolsonaristas, mas, na devastação institucional em que vivemos, certos ministros deveriam entender que seus ombros envergam as togas não a título pessoal, mas em nosso nome.

A Câmara enfraqueceu o sistema de check and balances ao fazer duas escolhas para as comissões. Não é uma questão partidária que torna a deputada Bia Kicis (PSL-DF) a pessoa errada para presidir a Comissão de Constituição e Justiça. São as suas manifestações em rede, ou nas ruas. Ela é uma radical e por isso não terá o equilíbrio necessário. Kicis esteve em atos que pediram um novo AI-5, o Ato Institucional que fechou o Congresso e cassou deputados na ditadura. A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) fará o oposto do que se espera de uma presidente da Comissão de Meio Ambiente. O governo está fazendo uma demolição do aparato legal que protege o meio ambiente. O legislativo precisava ser o freio e o contrapeso dessa ação de passar a boiada pela cerca das leis.

O executivo trabalha contra a democracia. Isso já virou rotina. Basta ouvir o que o presidente diz. Sua visão distorcida do artigo 142 da Constituição, sobre o papel das Forças Armadas, é sempre jogada na cara do país como ameaça. Ele está tentando mudar o que quis dizer com “o meu Exército”, afirmando que se referia aos seus seguidores, mas a Arma nada fez para lembrar que ela pertence ao país.

Bolsonaro mostrou no Sebrae, no seu habitual tom colérico, que continua prisioneiro da visão conspiratória. Mentiu que o país está há um ano em lockdown e afirmou que isso está sendo feito para atingi-lo. “Até quando aguentaremos a irresponsabilidade do lockdown?” E tudo “só consegue atingir o presidente da República”. Bolsonaro chamou de “estado de sítio” as medidas protetivas tomadas em todos os países do mundo. Houve quem se iludisse, achando que a elegibilidade de Lula iria convencê-lo a mudar. Exceto por aceitar, enfim, a forma esférica da Terra, no resto Bolsonaro continua sendo negacionista. Ele ameaça a saúde dos brasileiros e a democracia. Quando os outros poderes falham, o país fica ainda mais vulnerável ao candidato a tirano que nos governa.


Luiz Carlos Azedo: O principe audacioso

A reeleição de Bolsonaro subiu no telhado. Além da pandemia e da recessão, agora tem um adversário calejado e com sangue nos olhos: o ex-presidente Lula

Nicolau Maquiavel, o fundador da ciência política moderna, viveu o esplendor da República Florentina (fundada em 1115), durante o governo de Lorenzo de Médice (1449 1492), antes de ser transformada num ducado hereditário pelo papa Clemente II, em 1532. Não há texto mais lido pelos políticos do que O Príncipe, sua obra-prima. A razão é simples: Maquiavel trata da conquista e da preservação do poder. Uma de suas edições mais interessantes, por exemplo, é a comentada por Napoleão Bonaparte (Ediouro), que esbanja bom humor e ironias. Nem por isso deixou de perder a guerra contra Rússia e, depois, contra os ingleses, em Waterloo, na Bélgica.

Uma das lições de Maquiavel é sobre os príncipes que chegam ao poder mais pela sorte (Fortuna) do que por suas virtudes (Virtù). Esses são os que têm mais dificuldade para se manter no poder quando as circunstâncias mudam. Parece o caso do presidente Jair Bolsonaro. Não se pode dizer que sua ascensão ao poder não teve grande preparação. Teve, sim; por anos a fio, Bolsonaro cultivou a representação política de certas corporações e grupos de interesse — militares, policiais, agentes de segurança, milicianos, grileiros e madeireiros — , além de ruralistas.

Mesmo assim, isso não seria suficiente para chegar à Presidência, embora lhe garantisse uma base de apoio muito ativa. Foi fundamental também o apoio das igrejas evangélicas, capturando o sentimento de preservação da família unicelular patriarcal ameaçada pela renovação dos costumes, e de setores reacionários e conservadores da classe média tradicional, insatisfeita com a insegurança e perda de poder aquisitivo causadas, respectivamente, pela revolução tecnológica e recessão econômica. Um episódio imprevisto praticamente decidiu o rumo da campanha eleitoral de 2018: a facada que levou em Juiz de Fora. O atentado tresloucado praticamente zerou a rejeição que sofria em certos segmentos, que o demonizavam, e reforçou o sebastianismo salvacionista de quem já o considera um mito.

Havia também um cenário internacional muito favorável à eleição de Bolsonaro, com Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos e outros líderes de direita em países importantes da América Latina e da Europa. Todos surfavam a crise das democracias representativas e o aprofundamento das desigualdades provocadas pela globalização. A situação agora é completamente diferente. A pandemia de covid-19 virou tudo de pernas para o ar. Trump perdeu a reeleição para o democrata Joe Biden, outras lideranças conservadoras se reposicionaram em relação à crise sanitária e às políticas econômicas ultraliberais.

Reeleição

A pandemia nos revela que Bolsonaro tem mais dificuldades para se manter no poder num cenário adverso do que teria se tivesse chegado ao governo pela Virtù. Seu governo é um fracasso sanitário e econômico. Sustenta-se pelas regras do jogo democrático e pela opção inteligente dos generais do Palácio do Planalto, que operaram a aliança com o Centrão, em favor de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), na disputa das Mesas da Câmara e do Senado, respectivamente. Também puxaram o freio de mão no confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF).

A reeleição de Bolsonaro subiu no telhado. Além da pandemia e da recessão, agora tem um adversário calejado e com sangue nos olhos: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A anulação de suas condenações pelo ministro Edson Fachin, fez de Lula uma alternativa de poder, repercutindo em todo o cenário político. O que pode mudar esse jogo é o surgimento de um príncipe audacioso, que rompa a polarização entre Bolsonaro e Lula, o que não é nada fácil. As alternativas são o governador de São Paulo, João Doria (PSDB); o ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT); o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro; o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM); e o apresentador da TV Globo Luciano Huck. O problema é que isso não depende só da vontade de cada um; na democracia, quem escolhe o príncipe audacioso é o povo.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-principe-audacioso/

Alon Feuerwerker: Concorrência benigna

Em tempos de pessimismo, dada a realidade crua do números de casos, hospitalizações e óbitos, nada como um pouco de otimismo para equilibrar a balança. Hoje o diretor do Butantan, Dimas Covas, disse que os entraves ao fornecimento de insumos para a produção da CoronaVac foram removidos. E que a entrega do imunizante vai se dar em bom ritmo (leia).

E a Fundação Oswaldo Cruz, com a ajuda do governo federal, conseguiu liberar matéria-prima para produzir 45 milhões de doses de vacinas Oxford/AstraZeneca (leia). Olha só a concorrência benigna. E se cada um dos pretendentes ao Planalto em 2022 se esforçasse para arrumar mais vacinas que os demais? Por falar nisso, o governador da Bahia trabalha para trazer a russa Sputnik V.

Aliás, parece que felizmente superamos a fase das disputas ideológicas sobre a proveniência das vacinas, ou pelo menos estamos perto de superar. Pena que tivemos de chegar aos tristes números de agora para desvencilhar-nos das amarras do preconceito. A única posição razoável sobre vacinas é querer todas. E que, numa situação como a de agora, a urgência seja a prioridade.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Hélio Schwartsman: Sem medo de patógenos

Temos muita dificuldade para converter achados da ciência em ações

No fundo, o ser humano não acredita em microrganismos patógenos. Essa é a melhor explicação para o fato de governadores e prefeitos estarem aliviando restrições a contatos sociais enquanto a curva de infecções pela Covid-19 se acelera e redes hospitalares colapsam.

A relação causal entre maior distanciamento social e diminuição do contágio está bem estabelecida, na teoria e na prática. Não obstante, a ideia de que doenças podem ser transmitidas por seres invisíveis é uma que relutamos em aceitar. Com um pouco de estudo, nós a acatamos no plano intelectual, mas não tão facilmente no circuito das emoções, que são motivadoras muito mais eficientes do que a razão.

A natureza não nos deixou inteiramente à mercê do contágio. Ela nos dotou com a sensação de repulsa que experimentamos ao visualizar, cheirar e até imaginar material potencialmente perigoso, como fezes, vômito, carne podre. De modo geral, mantemos prudente distância desses itens.

O problema é que não são só coisas nojentas que transmitem moléstias. Picadas de insetos, toques humanos (incluindo sexo), fômites, perdigotos e aerossóis também o fazem. E um bicho hipersocial como o homem jamais poderia desenvolver um instinto de afastamento social --o que nos deixa particularmente vulneráveis a vírus respiratórios como o Sars-CoV-2.

Seria tentador atribuir nossa desdita ao fato de estarmos nas mãos de políticos ignorantes que se dobram a interesses econômicos. Isso até pode ser verdade, mas o problema é mais profundo. A prova disso é que médicos, que mais do que ninguém sabem da importância de lavar as mãos, também fracassam nessa tarefa. O índice de higienização de mãos entre profissionais de saúde não passa muito dos 50%, mesmo em hospitais-escola do Primeiro Mundo.

Temos muita dificuldade para converter achados da ciência em ações, e o preço dessa incapacidade aumenta exponencialmente na epidemia.


Evandro Milet: O futuro é o conhecimento, a educação, a tecnologia, e não mais o petróleo

O episódio recente da mudança do presidente da Petrobras trouxe o problema do petróleo para as redes sociais com comentários desinformados, além de raivosos naturalmente, como é praxe nesse ambiente.

Um comentário dizia que o Brasil é autossuficiente em petróleo e não precisaria seguir preços internacionais. Se conseguisse refinar e usar todo o petróleo que produz, isso seria verdade, mas não é. Quando o Brasil construiu refinarias, principalmente entre 1950 e 1980, não produzia petróleo, mas necessitava de combustível para enfrentar o crescimento do número de veículos. As refinarias foram então construídas para processar petróleo leve importado do Oriente Médio. Quando o país descobriu petróleo, este era mais pesado, e as refinarias não processavam.

Os novos campos do pré-sal já têm óleo mais leve, mas mesmo assim o Brasil precisa exportar e importar petróleo e derivados pela capacidade e tecnologia de processamento das misturas de leve e pesado de cada refinaria. E, claro, que paga a importação no dólar vigente e no preço do barril do mercado. Se a Petrobras comprar pelo preço internacional e vender com preço subsidiado no mercado interno vai ter prejuízo. Isso aconteceu no governo do PT para segurar a inflação e gerou um prejuízo de R$ 100 bilhões à empresa. Junto com os investimentos políticos errados em novas refinarias e a corrupção, a empresa quase quebrou, com uma dívida de 140 bilhões de dólares, que vem sendo reduzida.

A recuperação passa por vender ativos menos rentáveis como algumas das refinarias e redes de postos e se concentrar na altamente lucrativa produção do pré-sal. O problema agora é saber o apetite de possíveis compradores de refinarias, desconfiados que o representante-mor do acionista controlador da Petrobras, o Presidente da República, pode interferir nos preços de derivados.

Quem vai comprar uma refinaria se o concorrente pode baixar o preço do produto artificialmente? Os produtores de etanol, por sua vez, ficam perdidos com o preço atrelado à gasolina. Empresários que montaram operações de importação de derivados, liberada desde 2002, como ficam com essa concorrência com preços artificiais?

Há outras consequências: milhares de investidores prejudicados com a queda das ações da Petrobras, inclusive fundos de pensão de trabalhadores e fundos em geral, do mundo todo, que passam a desconfiar de investimentos no país. Compradores de papéis da Petrobras, no Brasil e no exterior pedirão mais juros nas próximas vezes, aumentando a dívida. Fora a desconfiança geral sobre a segurança jurídica e política de investir no Brasil.

A intervenção de Bolsonaro na Petrobras afugentou os investidores estrangeiros — que sacaram 9,2 bilhões de reais da bolsa de valores, sendo 6,8 bilhões de reais somente num único dia. Consequência, sobre o dólar, da lei da oferta e da procura: o dólar aumenta, o diesel aumenta, a inflação aumenta e a cobra morde o rabo. “Era mais barato dar 100 bilhões de reais aos caminhoneiros”, disse o ministro da Economia, Paulo Guedes, a um integrante da pasta (Veja).

Mas quem ganha com a venda de refinarias e a importação de petróleo e derivados? Ganha o consumidor que vai se beneficiar da concorrência aberta e certamente do aumento de produtividade e novos investimentos pelos novos proprietários. Surgirão até mini-refinarias privadas para atendimento localizado.

Mas, diriam alguns estacionados na década de 1950, o petróleo não é estratégico? Não mais. Se o Brasil não extrair esse petróleo rapidamente, em não muitos anos vai ficar com o mico. O mercado vai reduzir o preço do petróleo gradativamente antes de acabar a era do petróleo. Aliás, como se sabe, a idade da pedra não acabou por falta de pedra.

Se algum país quiser prejudicar o futuro dos Estados Unidos é melhor jogar uma bomba no Vale do Silício do que em algum poço de petróleo. O futuro é o conhecimento, a educação, a tecnologia e não mais petróleo, substituído aos poucos pelas energias alternativas, com preço caindo rapidamente com novas tecnologias de equipamentos e baterias.

Tratemos de aproveitar os anos que restam ao petróleo para desenvolver uma cadeia de fornecedores de equipamentos e serviços que podem migrar depois para outros setores e aproveitar os royalties e participações especiais para investir em educação, tecnologia, infraestrutura e energias alternativas, que se viabilizam com o preço alto de combustíveis fósseis, como o meio ambiente pede.

Oscilações bruscas do preço de combustíveis, que sempre acontecem nesse mercado, podem ser atenuadas em articulações não histéricas, respeitando a governança corporativa da Petrobras, pela redução de carga fiscal, mecanismos inteligentes de compensação e estratégia antecipada de mudança de perfil das empresas de transporte, da tecnologia usada nos veículos e da composição de meios logísticos.

Interferir em preços de mercado nós já vimos quando caçavam boi no pasto no Plano Cruzado. Não dá certo.


Valor Econômico: Volta de Lula deve apressar Huck, diz Roberto Freire

Apresentador mostrou interesse no atual cenário eleitoral e na viabilidade de uma candidatura de Mandetta

Por Cristian Klein, Valor Econômico

RIO - A volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao jogo eleitoral fortalece a polarização entre o PT e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mas atores políticos ligados ao apresentador de TV Luciano Huck (sem partido) ainda consideram que haja espaço para uma candidatura competitiva mais centrista, na disputa pela Presidência do ano que vem.

Logo depois da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, que devolveu os direitos políticos a Lula, na segunda-feira, Huck conversou com o presidente nacional do Cidadania, o ex-deputado Roberto Freire, sobre a nova conjuntura. O Cidadania é um dos partidos cotados para abrigar o apresentador, caso ele decida concorrer.

Segundo Freire, os dois não trataram de filiação, mas Huck se mostrou interessado em saber da avaliação do dirigente sobre o cenário eleitoral e a quantas anda a possibilidade de fusão entre o Cidadania e o Partido Verde, legendas ameaçadas pela cláusula de barreira. Também abordaram a viabilidade de uma candidatura do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS).

Para Freire, a entrada de Lula não muda, em essência, a polarização que estava desenhada entre Bolsonaro e o PT. O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, derrotado em 2018, já havia começado a circular em pré-campanha pelo país, mas cancelou a visita que faria hoje e amanhã ao Rio, depois do pronunciamento feito ontem em que Lula falou como candidato.

Freire disse que Lula elegível só torna “a polarização mais explícita”, o que “viabiliza melhor a alternativa do campo democrático”. “Ajuda a busca por unidade nas articulações feitas hoje”, afirmou ao Valor o dirigente, para quem Huck “é o melhor candidato para discutir o Brasil do século 21”.

O presidente do Cidadania diz que seu partido é o único em que Huck tem a garantia de concorrer, enquanto em outras siglas, como o DEM, isso não é certo. “Nem para o Mandetta há garantia”, diz, afirmando que a sigla está dividida entre os que querem apoiar Bolsonaro ou outras candidaturas, como a do governador de São Paulo João Doria (PSDB) ou do também tucano Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul. Por causa da reviravolta no cenário, o PSDB antecipou as prévias que seriam realizadas no ano que vem para outubro.

Freire diz que o apresentador ainda tem tempo para definir se concorre ao Planalto ou permanece na TV Globo, mas a volta de Lula vai acelerar a tomada de decisão. No entorno de Huck, segundo apurou o Valor, a expectativa é que uma decisão possa ser tomada "mais para o fim do segundo semestre". "Até o prazo limite de filiação, em 4 de abril, é uma eternidade", conta esta fonte.

Na visão do Freire, Lula e Bolsonaro são fortes candidatos para chegarem ao segundo turno, mas o antipetismo continua em alta, acrescido do forte antibolsonarismo. As rejeições favoreceriam a candidatura centrista. Para o outro interlocutor do apresentador, Lula "está sem conexão com a classe média e o centro da política brasileira" pois teve que se "abraçar com a esquerda tradicional, o corporativismo", durante o período em que se defendia dos processos da Lava-Jato e dos 580 dias em que passou na prisão em Curitiba, apoiado pela militância. Isso o impediria de fazer um movimento em direção ao centro, como esboçado pelo ex-presidente no discurso de ontem. "A candidatura do Lula não esmaga o centro", afirma.

Por outro lado, acrescenta, Bolsonaro também tem perdido eleitores mais centristas. E Ciro Gomes (PDT) vai ser um candidato com discurso muito similar ao de Lula, "contra as reformas". "Vai ter uma dissidência do outro lado também", diz a fonte, minimizando a necessidade ou a possibilidade de que haja uma unidade grande do centro, em torno de um só candidato, numa composição improvável entre os tucanos, Huck e Mandetta.

Freire conta que as conversas sobre fusão envolvem o presidente do Partido Verde, José Luiz Penna, e Eduardo Jorge, que concorreu à Presidência pelo PV em 2014 e foi vice na chapa de Marina Silva (Rede) em 2018. Desse projeto também está próximo o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ), que rompeu com o partido e procura nova legenda.

Segundo apurou o Valor, Huck já recebeu convites oficiais de pelo menos cinco partidos: PSB, PSD, Cidadania, Podemos e DEM, além de uma sondagem do MDB.


Ruth de Aquino: Lula não é santo mas fez milagre

Nenhum cientista, nenhuma manchete, nenhum general, nenhum empresário, nenhum pastor, nenhuma recessão e nem mesmo os recordes sucessivos de mortos por Covid, nada disso produziu o milagre testemunhado pelo país nesta quarta-feira. Foi Lula quem “obrigou” Bolsonaro a usar máscara, defender vacinas e pedir imunizantes à China.

Nem mesmo a vacinação da mãe, Olinda, com a comunista Coronavac provocou essa transmutação radical de Bolsonaro. Lembram outubro de 2020? “A da China nós não compraremos, é decisão minha, mesmo se for aprovada pela Anvisa”. “Eu não tomo vacina (contra Covid), não interessa se tem uma ordem, seja de quem for, eu não vou tomar a vacina”. Sempre desencorajou uso de máscaras, à revelia do mundo. Citava “efeitos colaterais”. Seu filho Eduardo foi mais grosso em vídeo nas redes: “Enfia (a máscara) no rabo, gente, porra!” Que vergonha, deputado. Que vergonha. 

O discurso eleitoral de Lula no sindicato dos metalúrgicos, convocando a população a usar máscaras e se vacinar, mudou tudo. Bolsonaro se apresentou imediatamente depois em um bloco de mascarados. Disse que sempre foi a favor de se imunizar. O milagre estendeu-se aos filhos Flávio e Carlos, tocados com a anulação das condenações de Lula. “Nossa arma é a vacina” passou a ser o slogan da família. Cara de pau. A arma de Bolsonaro sempre foi o trabuco mesmo. Sua arma é a que cospe tiros, palavrões, bacilos e cloroquina. “Vacinaremos dezenas de milhões de brasileiros”. O verbo está no tempo errado. O futuro deveria ser pretérito. É imperfeito e condicional na voz de Pazuello, o general passivo da ativa. Pazuello não via o porquê de “tanta ansiedade e angústia” da nação em dezembro. E hoje? “O sistema de saúde não colapsou nem vai colapsar”. Que vergonha, ministro. Que vergonha.

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o vice-presidente Mourão afirma que “faltou uma campanha intensiva de conscientização da população”. Não, Mourão, faltou conscientizar Bolsonaro e seu ministro da Saúde. Olhe agora Joe Biden nos Estados Unidos. Cem milhões de doses serão aplicadas nos 50 primeiros dias de governo e quase toda a população adulta estará vacinada até julho. Uma questão de liderança.

O Brasil ficou sem hospitais de campanha, sem leitos, sem oxigênio, sem vacina, limitado a jogar corpos em frigoríficos. Deveríamos vacinar, dia e noite, ao menos 1 milhão de brasileiros. É inadmissível interromper a imunização por falta de doses. 

Temos uma em cada quatro mortes por Covid no planeta. Somos o epicentro de uma calamidade sem controle. O STF precisa continuar a cobrar de Bolsonaro o repasse de recursos aos estados. O ministro Lewandowski deu prazo até o fim da semana. O STF precisa também cobrar explicações sem desculpas esfarrapadas. Qual é a culpa do Poder Executivo na tragédia, Supremo Tribunal Federal? Bolsonaro não quis ter vacinas já em dezembro. Semana passada, mandou comprar vacina na casa da tua mãe. 

Nunca foi tão fácil fazer oposição. É só ter bom senso. Contra o destempero, recomenda-se cautela. Lula se comparou no discurso a um escravo que leva 100 chibatadas. Disse que foi vítima do maior erro jurídico em 500 anos de história. Menos, Lula. Inspire-se nos líderes autênticos que saíram da prisão com maior estatura e modéstia, como Mujica e Mandela, e não nos populistas que se gabam demais e derrapam em mentiras. Você criticou o fanatismo dos bolsonaristas. Não estimule o fanatismo dos petistas. Não precisamos de santos. Precisamos de presidente.