coronavirus
Luiz Carlos Azedo: Meia volta, volver
”A estratégia de “mitigaçao”, que servia de modelo, fracassou na Inglaterra. Bolsonaro começa a se dar conta de que aqui também não seria possível”
Não durou 24 horas a medida provisória do governo federal que autorizava os empresários a suspender o pagamento de salários de seus funcionários por quatro meses, sem quaisquer contrapartidas, o que provocou uma avalanche de críticas ao presidente Jair Bolsonaro. A saída foi reconsiderar a questão, cancelar a medida provisória e abrir negociações com os governadores, contra os quais Bolsonaro havia entrado em guerra por causa da adoção da política de distanciamento social. “Determinei a revogação do art.18 da MP 927, que permitia a suspensão do contrato de trabalho por até 4 meses sem salário”, escreveu Bolsonaro em uma rede social. Ficou evidente a falta de sintonia entre a equipe comandada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e a política de combate ao coronavírus adotada pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
Além da suspensão do contrato de trabalho e do salário, a MP estabelecia outras medidas: teletrabalho (trabalho a distância, como home office); regime especial de compensação de horas no futuro em caso de eventual interrupção da jornada de trabalho durante calamidade pública; suspensão de férias para trabalhadores da área de saúde e de serviços considerados essenciais; antecipação de férias individuais, com aviso ao trabalhador pelo menos 48 horas antes da concessão de férias coletivas; aproveitamento e antecipação de feriados; suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho; adiamento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Todas em razão das medidas adotadas para conter a progressão da epidemia e evitar o colapso do sistema de saúde.
A epidemia avança: o total de casos confirmados do coronavírus (Sars-Cov-2), ontem, subiu para 1.891, segundo balanço do Ministério da Saúde, com 34 mortes. O coordenador da campanha em São Paulo, o infectologista David Uip, uma das maiores autoridades médicas do país, no final da tarde confirmou o diagnóstico de que está com a doença. São Paulo concentra 60% dos casos de coronavírus em todo o país. Depois do recuo quanto à suspensão dos salários, Bolsonaro resolveu reduzir o estresse com os governadores, realizando uma teleconferência com todos os mandatários do Nordeste e, depois, do Norte do país. Essas reuniões ajudaram o presidente da República a se reposicionar, conforme ficou patente no final da tarde, ao anunciar as medidas numa entrevista coletiva do comitê de combate ao coronavírus, da qual se retirou antes das perguntas.
Antes deu uma notícia boa: um plano de R$ 85,8 bilhões para fortalecer os estados e os municípios. Serão editadas duas medidas provisórias para transferir recursos para fundos de saúde estaduais e municipais. Segundo o secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, o montante chega a R$ 88,2 bilhões, cujas principais medidas são: transferência de R$ 8 bilhões para gastos em saúde; recomposição de fundos de participação de estados e municípios, no valor de R$ 16 bilhões (seguro para queda de arrecadação); R$ 2 bilhões para gastos em assistencial social; suspensão das dívidas dos estados com a União (R$ 12,6 bilhões); renegociação de dívidas de estados e municípios com bancos (R$ 9,6 bilhões); operações com facilitação de créditos, no valor de R$ 40 bilhões. A suspensão do vencimento da dívida dos estados com a União reduziu o estresse de Bolsonaro com os governadores, pois os estados vão receber R$ 12,6 bilhões a mais em caixa para enfrentamento da crise.
Impacto social
Ontem, o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, mudou completamente a estratégia adotada pelo governo contra o coronavírus na Inglaterra. Anunciou que os britânicos só poderão se deslocar para ir ao trabalho, caso não possam realizá-lo remotamente, e para comprar itens essenciais ou para atender necessidades médicas próprias ou de pessoas vulneráveis. Serão fechadas todas as lojas que não vendam itens essenciais, assim como bibliotecas, playgrounds e locais de práticas religiosas, e todas as reuniões de mais de duas pessoas estão proibidas. A estratégia de “mitigaçao”, que servia de modelo para o governo brasileiro, fracassou na Inglaterra. Parece que Bolsonaro começa a se dar conta de que aqui também ela não seria possível.
É inevitável. A economia entrará em recessão com a política de isolamento social, em todo o mundo. Um dos efeitos imediatos será a perda de renda dos trabalhadores informais, microempreendedores e profissionais liberais; quem não tem poupança está no sal. Estamos falando de 70 milhões de pessoas. Outro, o impacto nas finanças dos estados e municípios (principalmente os que têm grande arrecadação de ISS e de impostos compartilhados com a União), que estão arcando com uma demanda exponencial no sistema de saúde, que ninguém sabe ainda qual será o tamanho.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-meia-volta-volver/
Rubens Barbosa: O impacto geopolítico do coronavírus
O mundo pós-pandemia deve emergir com novas prioridades, num novo cenário global
A epidemia do coronavírus – a pior dos últimos cem anos – terá profundas consequências sobre um mundo globalizado, sem lideranças alinhadas e pouco solidárias entre si. O impacto econômico e social vai ser profundo, com o custo recaindo nos mais pobres, fracos e idosos e em países menos preparados e desenvolvidos.
Os efeitos sobre os países e sobre a economia global estão sendo sentidos e deverão agravar-se antes de melhorar.
Como a geopolítica global poderá ficar afetada pela epidemia? O que poderá mudar no cenário global?
Duas observações iniciais. A crise atual mostrou que as fronteiras nacionais desapareceram com as facilidades do transporte aéreo e o imediatismo das comunicações. E que as políticas econômicas domésticas estão intimamente influenciadas pelo que acontece no resto do mundo. Nenhum país ou continente é uma ilha. Por outro lado, a extensão e a repercussão da crise, em larga medida, deriva do peso da China na economia global. No inicio da década, quando se disseminou a Sars, o país representava 4% da economia global, hoje representa 17%. A China é a segunda economia mundial, o maior importador e exportador do mundo e, para culminar, transformou-se num centro de suprimento de produtos industriais para as cadeias globais de valor.
Quais as consequências na relação entre os EUA e a China, as duas superpotências atuais? Nos últimos anos cresceu a competição entre os dois países pela hegemonia global no século 21. Os EUA, ao se isolarem e ampliarem ações confrontacionistas, protecionistas, nacionalistas e xenófobas, dificultam a interdependência dos países, como ocorre com a globalização. Enquanto os EUA apontam a China como adversária estratégica e criticam o governo pela condução da epidemia (vírus chinês), Beijing, ao invés de fechar as fronteiras, como fez Washington, favorece a abertura e a ampliação do comércio externo e manda médicos e equipamentos para a Itália, a Espanha e o Brasil a fim de ajudar a combater o coronavírus. A guerra fria econômica, a nova fase da confrontação, evidencia-se pela iniciativa chinesa da Rota da Seda, pela competição nas redes 5G e por conflitos sobre propriedade intelectual e inovações tecnológicas.
A pandemia poderá também ter efeito relevante no cenário interno dos dois países com consequências geopolíticas. Xi Jinping disse que caso a epidemia se prolongue haverá o risco de instabilidade econômica e social no país. A maneira como, de início, Donald Trump conduziu a crise epidêmica em seu país foi muito criticada e sua popularidade caiu. As prévias do Partido Democrata vêm definindo Joe Biden como o candidato contra Trump, com apoio do centro moderado. Caso essa tendência se firme, pela primeira vez seria possível pensar numa derrota do atual presidente. O resultado da eleição, em novembro, poderá ter efeitos importantes na geopolítica global caso haja uma mudança da atitude do governo de Washington em relação ao mundo.
Outra questão é como países e empresas reagirão para reduzir sua dependência do mercado e da produção de partes e componentes chineses nas cadeias produtivas. A tendência poderá ser uma gradual redução dessa dependência e alguns países mais preparados e organizados, como o Vietnã e alguns outros asiáticos, poderão sair ganhando com investimentos para substituir a China. Em médio prazo, a projeção externa das grandes economias vai depender de sua base produtiva nacional e de sua competitividade.
A estabilidade política e econômica global poderá ser significativamente afetada pela vigilância biométrica, que poderá vir a ser implantada para evitar epidemias futuras. A preocupação com a saúde poderá levar à invasão da privacidade, com possíveis reflexos em políticas totalitárias. Quanto à dramática queda do crescimento dos EUA e da China, as projeções apontam para uma redução norte-americana de 4% no primeiro trimestre e 14% no segundo. Para a China as estimativas de crescimento não são maiores que 3,5% para 2020. Caso os EUA entrem em recessão e as projeções sobre a China se confirmem, não se pode afastar a possibilidade de recessão e, no pior cenário, de uma depressão, talvez mais dramática que a de 1929, por não ficar limitada ao setor financeiro. Como os países emergentes, produtores agrícolas, sairão de um cenário tão dramático como esse?
A Europa está debilitada pela saída do Reino Unido e viu a situação humanitária, social e econômica agravada pela crise em alguns países, como Itália e Espanha. Em cenário dramático como o atual, é possível prever que o continente sairá com seu poder relativo diminuído.
O Brasil, uma das dez maiores economias do mundo, terá de se ajustar rapidamente à nova geopolítica global, sob pena de perder mais uma vez a oportunidade de se projetar como potência média em ascensão.
Em outros momentos da História, movimentos tectônicos transformaram o equilíbrio de poder entre as nações e os rumos da economia. O mundo pós-coronavirus deverá emergir com novas prioridades e com um novo cenário geopolítico, com a Ásia – em especial a China – em melhor posição para ocupar um crescente espaço político e econômico.
*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)
El País: Na luta contra o coronavírus, Bolsonaro se perde em guerra política e resiste a pacto nacional com governadores
Presidente mantém disputa com governadores João Doria e Wilson Witzel, enquanto continua a fazer declarações descoladas do sentimento popular. Panelaço se repete por quinto dia
O Brasil acordou para a gravidade da pandemia do coronavírus que já havia deixado um rastro trágico de mortes na Ásia quando o primeiro infectado brasileiro foi identificado em 26 de fevereiro, em São Paulo. Menos de um mês depois, a Covid-19 já infectou 1.546 brasileiros, e matou 25. Se os cálculos de especialistas estiverem corretos, há mais de 23.000 infectados no Brasil, levando em conta que para cada infectado confirmado há 15 assintomáticos ou sofrem da doença com sintomas leves, confundindo com outra natureza de gripe. Mesmo com esse quadro, até o momento o país de 209 milhões de pessoas ainda não declarou quarentena nacional, como outras nações fizeram, embora o Governo e praticamente todos os Estados insistam na recomendação de que a população circule menos. A diferença entre uma recomendação e a decretação da quarentena pode parecer mínima, porém, revela a postura hesitante do presidente Jair Bolsonaro diante da doença que se alastra por todos os Estados do país.
Ao contrário de outros chefes de Estado que foram à TV fazer apelos dramáticos, Bolsonaro investe em aparições frágeis em seu papel de líder, chegando a rebater diretrizes mundiais, ao se colocar contra, por exemplo, a proibição de cultos em igrejas, foco de aglomeração de pessoas e um terreno fértil para proliferação do vírus. Nos últimos dias, chamou a Covid-19 de “gripezinha”, a preocupação com a epidemia de “histeria”, e disse que o objetivo de quem alarma a população é paralisar a economia para acabar com o Governo dele. “Se a economia afundar, afunda o Brasil. Qual o interesse? Se afundar, acaba o meu governo. É uma luta de poder”, afirmou em entrevista na segunda (16).
As falas do presidente sempre foram corrosivas, mas agora causam muito mais impacto em meio a tempos de calamidade pública. Bolsonaro tem exposto inabilidade com a situação inédita que os brasileiros vivem de se verem obrigados a ficar em confinamento, temendo serem abatidos pelo coronavírus ou que a morte chegue a pessoas próximas. Em entrevista ao programa do Ratinho, na TV, na sexta à noite, Bolsonaro preferiu entoar o pragmatismo ao analisar o momento. “Vai morrer alguns de vírus? Sim, vão morrer. Alguns porque já tinham alguma deficiência [doença pré-existente], outros porque serão pegos no contrapé. Lamento. Minha mãe de 92 anos, se pegar algo, acho que nos deixa. Mas não podemos criar esse clima todo que está aí, prejudica a economia”, afirmou.
Bolsonaro virou notícia mundial ao cumprimentar um aglomerado de apoiadores na porta do Palácio do Planalto em plena epidemia no dia 15. Desde então, ficou claro que sua postura errática é um elemento extra para o Brasil na luta contra o coronavírus, quando o país já tem clara a sua sentença, segundo o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Em breve haverá um pico da doença e se o país não tomar as medidas radicais para evitar o trânsito de pessoas, a rede de saúde, pública e privada, entra em colapso em abril. Alguns Estados, como o Rio de Janeiro, no entanto, já falam em um sistema colapsado dentro de duas semanas. Mandetta tem comandado a situação, em aparições diárias mais serenas para explicar o quadro do Brasil, o que o fez ganhar relevância entre os brasileiros. Neste sábado, a equipe do Ministério da Saúde prometeu multiplicar os testes para detectar o coronavírus nos hospitais, uma medida recomendada pelos países que controlaram a epidemia.
Irritados com a postura do presidente, os brasileiros começaram uma sequência de panelaços diários desde a última terça-feira, 17, em vários pontos do país. Uma pesquisa recente da consultoria Atlas Político mostrou que 65% dos entrevistados estão insatisfeitos com a gestão de Bolsonaro sobre a crise do Covid-19. Três pedidos de impeachment já foram apresentados no Congresso contra Bolsonaro, e há um quarto a caminho.
Bolsonaro, por sua vez, tem colocado energia na disputa política com eventuais adversários políticos que cobram uma postura mais arrojada do Governo do que em dar ênfase à gravidade que o Covid-19 significa ao país. Em vez de convocar um pacto nacional convidando todos os governadores para trabalharem juntos as soluções para a epidemia, repete publicamente queixas sobre governadores, especialmente os de São Paulo e do Rio de Janeiro, João Doria (PSDB) e Wilson Witzel (PSC). Os dois Estados acumulam mais óbitos e casos de infectados. Ambos cobram medidas drásticas para evitar a circulação do vírus, ao contrário de Bolsonaro. Neste sábado, o governador João Doria, que já conta 15 mortes e quase 400 infectados, decretou a quarentena em São Paulo, o que Bolsonaro considerou um gesto calculado. “Ele está se aproveitando desse momento para se promover”, afirmou ele à CNN.
Doria tem feito queixas reiteradas sobre o presidente neste momento por tratar a epidemia que toma o país com mais cuidado. “Gostaria de ter um presidente que liderasse o país em uma crise como essa, e não minimizasse uma questão tão grave”, afirmou ele, em uma das coletivas diárias das quais participa. Bolsonaro devolveu a alfinetada do governador tucano: “Os que me criticam dizem que não tenho liderança. Digo a eles: a eleição de 2022 ainda está muito longe”.
“É inaceitável a falta de dialogo e bom senso. Nunca imaginei viver isso na democracia”, reclama o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. No Rio, já há 119 casos confirmados, e três mortes. Um dos infectados foi descoberto na comunidade da Cidade de Deus, um alerta preocupante para a população das favelas, onde a infraestrutura é precária, num ambiente favorável à proliferação da doença. Ao menos os governadores do Norte e Nordeste conseguiram arrancar do presidente o compromisso de uma videoconferência nesta segunda.
Como se não bastasse o clima belicoso nacional, o filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro, gerou um incidente diplomático com a China no dia 18 com uma série de tuítes em que busca demonizar a China por causa da doença, emulando a tática do presidente americano Donald Trump. “Mais uma vez, uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução”, escreveu o deputado, que gerou uma resposta inédita do embaixador da China no Brasil, Yang Wanming. Ele cobrou um pedido de desculpas ao seu povo e disse ao deputado que ele “precisa assumir todas as consequências”. O assunto continua pendente. O jornal Valor noticiou que o presidente Bolsonaro tentou falar com Xi Jinping, sem sucesso. O resumo da ópera foi dado pelo governador Flavio Dino, do Maranhão: “Não é hora de brigar com a China nem é hora de brigar com os governadores. É hora de brigar contra o vírus, a pandemia”.
Demétrio Magnoli: Voando às cegas
O vírus mais mortífero é o da ignorância
A Coreia do Sul, foco pioneiro de infecções fora da China, tinha 8.565 casos confirmados de Covid e 91 óbitos, em 19 de março. Na mesma data, a Itália, maior foco atual de infecções, tinha 35.713 casos e 2.978 óbitos. Desses dados, extraem-se taxas de letalidade de cerca de 1,1% para a Coreia do Sul e 8,3% para a Itália. A diferença brutal indica que o vírus da inconsistência contamina as estatísticas sobre a pandemia — e, portanto, que o mundo inteiro voa no escuro, sem instrumentos, em meio à crise dramática.
8,3% contra 1,1%? É certo que a população italiana tem idade média superior à sul-coreana e, ainda, que as interações sociais entre jovens e idosos são, em tempos normais, mais intensas na nação europeia que na asiática. Também é verdade que a negligência inicial do governo italiano provocou o colapso do sistema de saúde na Lombardia, área crítica de difusão do novo coronavírus. Mas a absurda distância estatística nem de longe se explica por tais fatores. O mistério deriva da incomparabilidade das estatísticas colhidas pelos governos nacionais.
As estatísticas falam línguas diferentes. Na Itália, aplicam-se testes a pessoas sintomáticas que procuram o sistema de saúde — ou seja, uma elevada proporção de casos graves que exigirão internação e, com frequência elevada, evoluirão para o óbito. Na Coreia do Sul, a testagem massiva em áreas geográficas selecionadas captura alta proporção de casos leves, inclusive assintomáticos, que ficarão apenas em quarentena domiciliar. No mito de Babel, Deus confundiu as línguas, interrompendo a comunicação e o trabalho. Diante da pandemia, o mundo fecha-se numa Babel —mas não por culpa divina.
A cidadezinha de Vò, na Lombardia, testou todos os seus 3,3 mil habitantes. Descobriu 66 positivos e, entre eles, alta proporção de assintomáticos. Como o mundo não é Vò, será impossível replicar seu método de testagem universal. David Uip, coordenador da força-tarefa paulista, estimou que, num cenário otimista, o estado de São Paulo acumulará 460 mil infectados. Provavelmente, jamais descobriremos se a projeção foi correta, pois ela abrange uma maioria de casos leves, que nunca serão testados. Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, estima que, para cada caso confirmado, circulam nas sombras 15 infectados não notificados. É chute de especialista, como o de Uip.
A Babel estatística não é um problema acadêmico. Num cenário extremo, os casos sintomáticos evidentes formam a ponta minúscula de um enorme iceberg. No cenário oposto, são a porção emersa de um transatlântico. Se a primeira alternativa for verdadeira, há notícias boas (a taxa real de letalidade é baixa) e más (o contágio é massivo e largamente indetectável). Se a verdade estiver na segunda, temos uma péssima notícia (a taxa real de letalidade é elevada) e uma boa (o contágio é restrito e bastante detectável). Mas, de fato, estamos no escuro — e, sem a informação crucial, carecemos de ferramentas para formular estratégias epidemiológicas e econômicas.
Quais são os impactos de congelar a vida por 15 dias? E por um mês? É viável, social e economicamente, estender as estratégias radicais além disso? O vírus mais mortífero é o da ignorância. Sem um mínimo de previsibilidade, os negócios inclinam-se para demissões em massa e os mercados financeiros, incapazes de precificar a crise, atiram-se em abismos insondáveis.
Circula, entre epidemiologistas, a ideia de perfurar as trevas por meio de um esforço, coordenado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de testagens aleatórias sucessivas em amostras da população de áreas críticas selecionadas em países como Coreia do Sul, Itália e EUA. Os gráficos resultantes dariam indícios firmes sobre a dinâmica demográfica, o ritmo de avanço e o ciclo temporal da pandemia.
A sugestão esbarra, contudo, no incêndio que consome a cooperação internacional, aceso pelas fagulhas da troca de acusações entre EUA e China e pelas iniciativas unilaterais de fechamento de fronteiras. O nacionalismo mata — e mata mais em tempos de pandemia.
Cacá Diegues: O lixo nas urnas
A questão não é mais apenas de saúde, mas também de política e administração pública
Quando o bloco desfilar de novo, com máscaras e tamborins, como naquela entrevista coletiva da semana passada, ministro Luiz Henrique Mandetta, reivindique um destaque à frente da bateria. O senhor tem direito até a uma comissão de frente. Pelo que já nos disse de sábio e sereno, o senhor não pode estar de acordo com as bobagens que foram ditas ali, o caráter personalista e insensível da equipe do presidente, a reiteração de um programa supostamente técnico e certamente desumano. Um samba muito diferente daquele que já ouvimos do senhor. Por exemplo, a obsessão de um ajuste fiscal, às custas da sobrevivência dos brasileiros mais pobres, é um crime. Da próxima vez, ministro, reaja ao presidente e à sua paupérrima coreografia. Vá sem máscara à reunião da diretoria.
Como o país não conhecia muito bem as peças, elegeu, com Bolsonaro, três meninos mal comportados, ignorantes e desastrados. E mais um predador mal intencionado de péssima educação, especializado em engrossar com as moças, fingindo que é filosofia. Os brasileiros queriam se livrar dos políticos que não suportavam mais. Tinham pressa e não pensaram em examinar melhor quem estava à disposição, com chance de acabar com o passado.
O mais moço criou um caso com a China, o país com quem temos as relações comerciais mais positivas, o único que já nos havia oferecido ajuda para a crise da Covid-19. Eduardo Bolsonaro não deve ter lido nada sobre Chernobyl e tratou o erro gravíssimo de um socialismo real fracassado, como se fosse estratégia. O coronavírus, ao contrário, é uma reação da Natureza aos nossos erros, reação que nos acostumamos a chamar de acaso.
Com outros nomes (Peste Negra, influenza, Gripe Espanhola, dengue etc.), a humanidade já viveu, em outros tempos, crises de saúde semelhantes a essa, com diferentes graus de gravidade. Mas, hoje, ela se torna objeto de um movimento de defesa internacional, como se o mundo estivesse finalmente acordando para o que ele é de fato: a soma indiferente de seres de várias nacionalidades, raças, cores, gêneros, religiões, opções sexuais, costumes, o que for. Li outro dia, num jornal estrangeiro, que, na Itália, o coronavírus está impedindo o uso de água benta de pias batismais. Como, na mesma Itália, pessoas estão dormindo com o cadáver de seus cônjuges, porque o Exército não está conseguindo retirar a tempo todos os corpos das vítimas da Covid-19.
Charles Darwin já havia nos preparado para essas frustrações, nos ensinando que a Evolução não privilegia os mais fortes ou os mais espertos, mas aqueles que se adaptam melhor às novas circunstâncias. A questão não é mais apenas de saúde, mas também de política e administração pública, no que Mandetta também havia se destacado. Como me disse um amigo, pelo lado oposto: “O problema das enchentes no Rio é que os cariocas jogaram muito lixo nas urnas”.
Temos o vício cientificista de considerar a humanidade como o único elemento no planeta que reflete sobre o que está acontecendo e, por consequência, sobre o que acontecerá como consequência do que está acontecendo. Mas o planeta tem uma longa história de quatro bilhões de anos, e não temos nenhum registro moral e intelectual de tudo o que lhe aconteceu, ao longo desse tempo. Se tivéssemos tal registro, saberíamos mais e melhor de tudo que está à nossa volta, poderíamos viver melhor e esperar melhores dias para nossa espécie. Poderíamos, acima de tudo, criar uma relação mais rica e mais pacífica com a própria Natureza, para que ela não se amofine conosco, como me parece acontecer de vez em quando, como agora.
Nossos cientistas conhecem as ruínas do que já existiu e têm acesso aos restos dos seres que já habitaram o planeta. Mas consultam essas pistas como quem sabe de antemão o que vão descobrir, um passado morto e enterrado, que não traz nenhuma esperança para a humanidade. Eles pesquisam e consultam apenas os eventos e os seres que servem para explicar nossa existência até aqui, o que somos e necessitamos ser, dentro de condição imutável suportada por religiões e ideologias. Não se importam com o que poderia ter sido, com qualquer utopia do passado. Se interessam apenas pelo que for curioso do ponto de vista da humanidade, sem nenhuma modéstia em relação a nós mesmos. Com profundo desinteresse pelos que conviveram conosco, o resto do planeta a que podemos chamar de Natureza.
Fernando Gabeira: Um vírus na era digital
Pensei num aplicativo que contivesse algumas variáveis, tais como febre, tosse, dificuldade respiratória
Depois de seis anos viajando, às vezes mais de mil quilômetros por semana, minha única aventura agora foi dar uma volta de bike pela Lagoa.
Ainda há poucas pessoas caminhando ou correndo. Um corredor usando máscara azul gritou para mim: “Cadê a máscara?” Tive vontade de voltar e mostrar para ele meu pequeno frasco de álcool gel. Mas evitei aproximações. Da Lagoa iria para o isolamento total.
No dia seguinte, vi a entrevista de vários membros do governo usando máscara. Lembrei-me do corredor da Lagoa. Ele a usava com naturalidade, parecia uma extensão natural do seu rosto.
Mas o governo, por seu lado, ao invés me dar a certeza de que estava brigando com o coronavírus, parecia estar brigando com a máscara. No centro da mesa, o grande timoneiro, irritado com o incômodo, acabou deixando a máscara pendurada na orelha, como um brinco. Quando falou que ainda não havia vacina, temi que acrescentasse um felizmente, porque terraplanistas acham vacina e rock and roll coisas do demônio.
Não vou me deter nos Bolsonaros. É perda de tempo. O Brasil não vai derrotar o vírus com panelaços. A família adora comprar briga para encobrir sua profunda incapacidade. Quando não a encontra aqui, não hesita em buscá-la na China.
Quando um ministro de máscara e tipoia anunciou que o governo iria ajudar o Nordeste, percebi que havia uma grande lacuna na mesa. Onde estava o homem encarregado da Ciência e Tecnologia? Na Lua?
Todas as esperanças de cura estão na Ciência. Mas a possibilidade de atenuar o impacto destrutivo do coronavírus está também na tecnologia. O Brasil tem 230 milhões de smartphones. Ao falar sobre isso na TV, fui contatado por uma empresa que trabalha no Porto Digital de Recife. Ela se chama Wololo e criou uma plataforma de rede verticalizada na qual algumas fontes passam informações úteis e necessárias e fazem de cada usuário um propagador. Isto deveria ser examinado pelo Ministério da Saúde, que vê aumentar em milhões as suas consultas.
Mas a ideia que mencionei na TV era outra. Pensei num aplicativo que contivesse algumas variáveis tais como a existência de febre, tosse, dificuldade respiratória, idade, doença crônica, através do qual fosse possível monitorar milhares de pessoas.
Na Coreia do Sul, quando se localiza um caso, através do GPS é possível monitorar também pessoas que estejam num raio de cem metros.
Soube que há discussões no Porto Digital sobre a produção de respiradores em 3D. Mas são propostas ainda muito ousadas. E sei também que os Estados Unidos estão deslocando todo o seu aparato de controle de terrorismo para buscar saídas tecnológicas de controle da pandemia.
Não tenho dúvida de que muitos problemas de privacidade vão surgir desse esforço. É preciso tratá-los com cuidado para não ameaçar as liberdades individuais.
As possibilidades de aumentar o controle da epidemia através dos smartphones são muito grandes. Imagine se for necessário determinar quarentena para pessoas que chegam do exterior. Como garantir que isso é realmente cumprido? O smartphone pode ser uma espécie de tornozeleira eletrônica do bem.
Sei que estou divagando meio solitariamente na minha reclusão voluntária. No entanto, os dois ministros que considero sensatos, Mandetta e o general Braga Netto, e tocam a crise poderiam estimular a sociedade a criar possibilidades de ajuda através de aplicativos e criar um núcleo no governo para receber propostas e fazer uma triagem.
Da mesma forma, Braga Netto poderia orientar o Itamaraty, perdido em batalhas ideológicas, a dar um informe sobre o que está sendo feito na Coreia do Sul, em Israel e nos Estados Unidos.
Ao lado do vetor científico, é preciso criar uma iniciativa tecnológica que não se esgota na telemedicina, que, por sinal, já deveria estar regulamentado há muito tempo.
Quando a Aids chegou ao Brasil, a ciência teve um papel decisivo e rumamos rapidamente para o coquetel antiviral e sua distribuição gratuita.
De novo, estamos diante de um grande desafio, mas, da Aids para cá, houve um grande salto tecnológico. Quando surgiu o primeiro paciente de Aids no Brasil, procurei o governo para dar o alarme. Fui tratado como um romântico sonhador. Não importa muito se o gato é maluco ou careta: o importante é que ele pegue o rato.
Armínio Fraga, Miguel Lago e Rudi Rocha: Prefeituras podem virar o jogo na crise coronavírus
Para evitar um caos hospitalar, a semana que se inicia é crucial. O governo federal, os estados e municípios precisam tomar medidas imediatas que possam achatar a curva de contágio
Na última sexta-feira (20/03), o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta declarou que o período de pico de infecções por covid-19 no Brasil será nos meses de abril, maio e junho. O ministro já admite que ao final de abril nosso sistema de saúde entrará em colapso. Esse cenário se apresenta como ainda mais severo que o vivido pelos italianos. Para evitar um caos hospitalar dessa magnitude, a semana que se inicia é crucial. O governo federal, os estados e municípios precisam tomar medidas imediatas que possam achatar a curva de contágio e organizar o fluxo de atendimento do sistema de saúde.
O impacto da covid-19 em nossos hospitais será tremendo. O Brasil já não tem capacidade hospitalar suficiente para atender o quadro sanitário existente. Persistem em nosso território os desertos sanitários: são ao todo cento e vinte três regiões sanitárias sem nenhum leito em UTI. O aumento de demanda por leitos ocasionado pelo coronavírus agrava essa situação e exigirá um aumento significativo da produção hospitalar. O Instituto de Estudos de Políticas de Saúde (IEPS) estima que cada um por cento de população infectada corresponderá a um bilhão de reais de gastos em hospitalizações adicionais em unidades de tratamento intensivo. Com a declaração do estado de calamidade, o Tesouro está livre para fazer este investimento, sem dúvida de alto retorno social e humanitário.
Existem outras e rápidas medidas que podem contribuir para limitar os danos da pandemia. No topo da lista está o distanciamento social. Evidências demonstram que tal medida é capaz de achatar a curva de contágio da epidemia, o que minimizaria o número de casos graves desatendidos.
No entanto, é ilusório acreditar que o terço mais pobre do Brasil, composto de pessoas que ganham menos de meio salário mínimo, deixará de circular nas cidades só com decretos impositivos, toques de recolher e outras medidas de vigilância. É necessário garantir um mínimo de assistência para compensar a extraordinária perda de renda causada pelo distanciamento social. E é necessário fazer isso já. O governo federal tem as condições de injetar recursos na economia ainda nesta semana, diretamente a mais de setenta milhões de brasileiros. O Brasil dispõe de uma base de dados organizada com informações que identificam esses indivíduos – o Cadastro Único, que lista beneficiários de todos os programas sociais focados nas famílias de baixa renda. Ao abarcar os indivíduos listados no Cadastro Único, sem necessidade de triagem adicional, o governo federal poderá evitar importantes custos e demoras de implementação.
Essas medidas de apoio socioeconômico contribuirão imediatamente ao controle do contágio. Mas elas não são suficientes: é fundamental que sejam complementadas com esforços na triagem e organização do atendimento hospitalar. Nesse sentido o SUS é fundamental, com sua rede de Atenção Básica resolutiva, cuja responsabilidade compete aos municípios. No momento, existe grande disparidade na capacidade de resposta por parte das prefeituras.
É fundamental que elas comecem a trabalhar de maneira coordenada, cumprindo um mínimo de repertório de ações. O IEPS preparou um check list de enfrentamento à covid-19 direcionado aos municípios, prevendo ações de rápida implementação em quatro dimensões essenciais. O protocolo indica como as prefeituras podem orientar suas ações a partir dos dados e evidências existentes; adaptar a organização dos serviços de saúde; fortalecer a prevenção através da comunicação com a população; e, por fim, reformular estratégias de gestão instaurando uma cadeia de comando e controle eficiente durante o período de crise. Não há tempo a perder: se quisermos evitar o total colapso do sistema hospitalar do país dentro de um mês, é necessário que governo federal e as prefeituras implementem essas ações esta semana.
*São respectivamente presidente do Conselho, diretor-executivo e diretor de pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde.
Alon Feuerwerker: A tempestade quase perfeita
A equação política e econômica do governo Jair Bolsonaro estava bem desenhada no plano inicial. O Congresso aprovaria as reformas liberais, no ritmo que fosse. A economia reagiria, mesmo num passo não espetacular. O ministro da Justiça colocaria seu capital popular a serviço do projeto bolsonarista. O presidente nesse meio tempo alimentaria politicamente sua base dia após dia rumo a 2022. E a esquerda continuaria ilhada, pelo menos no curto e médio prazos.
E a coisa vinha vindo.
Mesmo os percalços -todo governo tem- pareciam insuficientes para um desarranjo. O PIB de 2019 decepcionou? Nada que não pudesse ser deixado para trás com uma dose de esperança no futuro e advertências sobre o risco de repetir fracassos recentes. O presidente romper com seu próprio partido e ficar sem nenhum para chamar de seu era pouco, perto da simpatia de um Legislativo amplamente liberal-conservador pelo programa econômico.
Aí veio a pandemia do coronavírus. O imprevisível é mesmo muito difícil de prever.
Em janeiro/fevereiro já era possível antever a onda da crise sanitária. Foi avisado, mas talvez não sensibilizou. E transbordou em março. E somou-se à pendenga do Executivo com o Legislativo por causa do orçamento impositivo. E juntou-se à guerra do governo contra a imprensa. É notável, aliás, como o governo consegue brigar com dois atores, Congresso e imprensa, amplamente dispostos a apoiar as principais agendas do Planalto na política econômica.
Aí o presidente da República decidiu dar mais importância à ameaça de recessão que às preocupações do cidadão e da cidadã com a própria saúde.
Na crise de 2008/2009 Luiz Inácio Lula da Silva disse que ela chegaria aqui como uma marolinha. Não foi bem assim. O crescimento em 2009 foi menos zero vírgula qualquer coisa. Mas 2010 foi robusto e Lula conseguiu eleger a sucessora. Naquela crise o tema era economia. Lula podia pedir ao eleitor um tempo. Aguentem aí que vai melhorar. E tinha capital político para tanto. A conta veio depois, deu em junho de 2013, mas isso já é outra história.
Agora o assunto é a saúde. Não adianta dizer “outras doenças matam mais que o coronavírus”, a notícia do momento é a Covid-19. E as pessoas estão muito preocupadas com a ameaça à própria vida e à dos entes queridos. E só se fala nisso. E a aparente falta de cuidado do governo em sintonizar-se com a preocupação do distinto público potencializou as fragilidades que vinham latentes e juntou-se tudo numa tempestade quase perfeita.
Só não é a tempestade perfeita contra o governo Bolsonaro porque não há desejo relevante no mundo político de trocar o capitão pelo general que é seu vice. Nas várias franjas da política, prefere-se enfrentar um Bolsonaro manco em 2022 que entronizar agora Hamilton Mourão e dar a ele o passaporte para um “bolsonarismo sem Bolsonaro”, de viés racional e equilibrado. Mas tudo tem um limite, e na tempestade alguém tem de assumir o leme do barco.
Não existe espaço vazio na política. E isso não chega a ser uma novidade.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
El País: Coronavírus no Brasil segue a curva de países europeus e São Paulo prevê até 9 milhões de infectados
Biólogo explica que cenário no país pode ser ainda pior que o da Itália, que registra o maior número de óbitos até agora. Governo brasileiro se prepara para realizar testes em massa
O Brasil ultrapassou neste sábado a marca dos 1.000 casos confirmados do novo coronavírus. Ao menos 18 pessoas morreram em decorrência da doença até o momento. Os números compõem uma curva de crescimento da pandemia muito parecida com a de países da Europa, como Itália, França e Espanha, onde milhares de pessoas já morreram. “Estamos um pouco acima da Alemanha, bem abaixo da Itália e bem afastados da Coreia”, afirmou João Gabbardo, secretário-executivo do ministério da Saúde, neste sábado, frisando, a todo momento, que ainda temos poucos casos rastreados e que toda comparação tem que ser feita com cautela.
A Alemanha tem se mostrado uma exceção até o momento, com uma baixa taxa de letalidade diante dos outros países: 68 mortos para 19.000 casos confirmados, com várias hipóteses sendo discutidas para essa boa performance. Os alemães, assim como os sul-coreanos, vêm mostrando ao mundo que uma das chaves para tentar barrar a pandemia é a realização de testes em massa da população. Por isso, o Ministério da Saúde anunciou que, além dos 27.000 testes já enviados aos Estados, se prepara para realizar mais 10 milhões de testes rápidos nas próximas semanas. A expectativa é implementar em alguns lugares o esquema de drive thru, a exemplo da Coreia do Sul, onde as pessoas não precisaram nem sair do carro para serem testadas. Gabbardo disse que só agora a pasta está prevendo o volume de provas que era um desafio conseguir fornecedores que tivessem os prazos e qualidades. Só será testados quem estiver com sintomas.
Mas, por enquanto, os casos brasileiros da doença aumentam em uma crescente preocupante. Somente no Estado de São Paulo, epicentro dessa pandemia, há mais de 400 confirmações e 15 óbitos. Para tentar conter o vírus, as autoridades realizam projeções em busca de tomar medidas antecipadas e planejar recursos. O médico infectologista David Uip, coordenador da equipe que combate a pandemia em São Paulo, até a semana passada afirmava trabalhar com diversos cenários para o Estado, de 1% a 10% da população infectada. Já nesta sexta, ele mesmo admitiu que os cenários podem chegar a até 20% de doentes, o que daria nove milhões de pessoas. Internamente, a reportagem apurou que o Estado trabalha, por precaução, com cenários ainda mais extremos, com até 60% das pessoas infectadas e, dentro deles, uma porcentagem que precisará de internação.
Atila Iamarino, biólogo e doutor em microbiologia, explica que as projeções são feitas em cima de fatores como o comportamento da população diante da doença, quantas pessoas entram em contato umas com as outras e como o vírus se espalha. Baseada no histórico de países como China, Espanha ou Itália, as projeções estão tentando ser desenhadas aqui.
Porém, Iamarino lembra que no Brasil há um fator com o qual o vírus ainda não havia se deparado em outros países. E não é o calor. “China, França, Espanha, Itália, Estados Unidos e Coreia não têm favela”, diz. “Não há como isolar as pessoas que moram em um cômodo com várias outras”. Ele afirma que o isolamento social total, isto é, proibir que as pessoas saiam de casa, é a única medida que pode ser tomada para que o resultado dessa “guerra”, como afirmou o governador João Doria, não seja ainda mais devastador. “Por isso, aqui a situação é muito deferente. Mesmo os modelos que estão sendo estudados de como a doença progride podem ser muito otimistas num cenário como o nosso”, diz. “Na Itália houve somente um foco da doença, que foi a região da Lombardia”, afirma ele. “Hoje tem várias Lombardias dentro da Espanha acontecendo ao mesmo tempo. E, assim como na Espanha, aqui no Brasil não haverá somente um foco da doença”.
Na sexta-feira, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fez uma afirmação que condiz com esse cenário pintado pelo biólogo. “O cenário que estamos vendo, diferente da China, é que no Brasil estamos com todos os Estados com crescimento igual, e isso nos preocupa”. Mandetta também afirmou que até o final do mês que vem, o sistema vai colapsar. “Temos aí 30 dias para que a gente resista razoavelmente bem, com muitos casos, dependendo da dinâmica da sociedade. Mas, claramente, em final de abril nosso sistema entra em colapso”. Mais tarde, em entrevista coletiva, o ministro reforçou que o colapso somente ocorrerá se nada for feito.
O ministro tem motivos para se preocupar. “Se a doença progride a ponto de sair de uma única região, os casos começam a ser empilhados”, explica Iamarino. Nos Estados Unidos, por exemplo, há ao menos três focos da pandemia – Nova York, Washington e a Califórnia. “Cada um desses focos tem potencial de ser uma Wuhan. São três Wuhans empilhadas”, diz, sobre a primeira cidade a registrar a pandemia.
“Cobra silenciosa”
Um dos maiores problemas dessa doença, diz Iamarino, é justamente a sua ausência de sintomas. “Quando a China fez lockdown [proibiu a circulação das pessoas], e passou a ir atrás de testar todo mundo, perceberam que, enquanto eles estavam contabilizando só quem ia para o hospital com sintomas sérios, eles perdiam 86% das infecções que estavam acontecendo”, diz. “Até a pessoa procurar um hospital e receber o diagnóstico, nove dias já tinham se passado”.
E a demora em apresentar os sintomas é o que ajuda a tornar o coronavírus tão letal. “79% das transmissões da Covid-19 acontecem antes mesmo de as pessoas terem os sintomas”, diz. Ele compara com a SARS, doença em que 99% dos infectados desenvolvem febre e a transmissão só ocorre depois da febre. “A SARS é muito transmissível, mas dá sinais. É como uma cobra muito venenosa, mas com o chocalho na ponta do rabo. Você ouve ela chegando”, diz. “Já a Covid-19 é como uma cobra silenciosa: você não percebe ela chegando. E quando percebe, pode ser tarde”.
António Guterres: Juntos venceremos o vírus
Pandemia evidencia interligação da família humana
A convulsão causada pela Covid-19 sente-se por todo o lado. Sei que muitos estão ansiosos, preocupados e confusos. É perfeitamente normal. Estamos enfrentando uma ameaça inédita à nossa saúde. O vírus está se propagando, o perigo aumenta e os nossos sistemas de saúde, economias e rotinas estão sendo postos à prova severamente.
Os mais vulneráveis são mais afetados, particularmente idosos e aqueles com histórico clínico de risco, os que não têm acesso a cuidados de saúde de confiança, os que vivem em situação ou no limiar da pobreza.
Os efeitos sociais e econômicos adversos, resultantes da combinação da pandemia com a desaceleração econômica, irão nos afetar durante alguns meses. No entanto, a propagação do vírus atingirá um pico. As nossas economias irão se recuperar. Até lá, devemos atuar em conjunto para desacelerar a sua disseminação e cuidarmos uns dos outros.
É tempo de prudência, não de pânico. De ciência, não de estigma. De fatos, não de medo.
Apesar de classificada como pandemia, a situação é controlável. Podemos diminuir as transmissões, prevenir infecções e salvar vidas. Para tal, será necessária a adoção de ações pessoais, nacionais e internacionais, nunca antes implementadas.
A Covid-19 é o nosso inimigo comum. Temos de declarar guerra a este vírus. Isso significa que os países têm a responsabilidade de acelerar, reforçar e ampliar a sua ação. Como?
Implementando estratégias eficazes de contenção, ativando e reforçando sistemas de resposta a emergências, aumentando significativamente a capacidade de testar e tratar os pacientes, preparando os hospitais, garantindo que tenham espaço, recursos e pessoal, e implementando procedimentos médicos que salvam vidas. Todos nós temos, também, a responsabilidade de seguir os conselhos médicos e de adotar comportamentos simples e práticos, recomendados pelas autoridades de saúde.
Para além de constituir uma crise de saúde pública, o vírus está infectando também a economia mundial. Os mercados financeiros foram assolados pela incerteza. As cadeias globais de abastecimento foram perturbadas. O investimento e o consumo caíram, constituindo um risco real e crescente de uma recessão global. Os economistas das Nações Unidas estimam que o vírus poderá custar, pelo menos, US$ 1 bilhão neste ano —ou até bem mais.
Nenhum país poderá enfrentar isso sozinho. Mais do que nunca, os governos devem cooperar para revitalizar as economias, expandir o investimento público, promover o comércio e assegurar apoio às pessoas e comunidades mais afetadas pela doença ou mais vulneráveis aos seus impactos econômicos negativos —incluindo as mulheres, que muitas vezes suportam um peso desproporcional na prestação de cuidados.
Uma pandemia evidencia a interligação da nossa família humana. Impedir a propagação da Covid-19 é uma responsabilidade que deve ser partilhada por todos. As Nações Unidas, incluindo a Organização Mundial de Saúde (OMS), estão totalmente mobilizadas. Como parte da nossa família humana, estamos trabalhando 24 horas por dia com os governos, propondo diretrizes internacionais, ajudando o mundo a ultrapassar esta ameaça.
Estamos juntos, e juntos venceremos o vírus.
*António Guterres, Secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas)
José Roberto Mendonça de Barros: Parada súbita
Essa parada súbita já garante que 2020 será um ano de recessão global
Em 42 anos de MB Associados, nunca vi uma semana assim, com tantas mudanças profundas no cenário. É preciso ter humildade, porque não sabemos bem o que se passa. Mas é um ponto de inflexão para pessoas, empresas e países.
A combinação de um novo vírus e de conflitos geopolíticos (como a guerra comercial entre as duas grandes potências e a atual o petróleo) produziu uma parada súbita na China, depois na Europa, nos EUA e, agora, no Brasil.
Essas paradas súbitas são um terror, inclusive para economistas, pois produzem rupturas na oferta e nos fluxos financeiros, tanto maiores quanto maiores forem a alavancagem e o endividamento dos agentes, como nas empresas americanas de hoje, e quanto menores forem a saúde financeira e a renda de pessoas e pequenos negócios, como é o caso do Brasil.
O caso americano é o que melhor ilustra o que é essa parada, porque até muito recentemente sua economia vinha muito bem. Entretanto, a dívida corporativa nunca foi tão elevada, 47% do PIB, resultado de mais de uma década de crescimento e de juros muito baixos. Com a chegada do vírus, o mercado de crédito travou, apesar dos intensos esforços do FED, os “spreads” explodiram.
Muitas empresas mais frágeis financeiramente já estão tendo suas notas rebaixadas e poderão quebrar, pois a iliquidez rapidamente se transforma em insolvência.
Em outros casos, os efeitos ruins vieram da crise em grandes áreas de serviços, como turismo, hospitalidade, cruzeiros, artigos de luxo e outros. Cadeias longas estão sendo afetadas. O caso mais visível é o da Boeing, que já vinha sofrendo com a parada na produção do 737 MAX e que solicitou US$ 60 bilhões como assistência do governo para lidar com a crise. Mesmo que tudo dê certo, a dívida corporativa subirá para US$ 100 bilhões, num momento no qual poucas companhias comprarão aviões novos.
Além disso, a política no mundo inteiro passou a ser a do isolamento social. Nestas circunstâncias, a frenética baixa de juros tem efeito negligível.
Em uma situação dessas, a urgência exige ações rápidas, mas a política monetária fica menos eficiente e a política fiscal passa a exigir ferramentas, nem sempre disponíveis, como gastos focados ou suporte à liquidez em determinadas áreas.
Essa parada súbita já garante que 2020 será um ano de recessão global (definida como crescimento inferior a 1%), apesar dos grandes esforços das autoridades, sanitárias e econômicas, para deter a pandemia e impulsionar a economia.
Embora as projeções feitas hoje tenham uma acurácia limitada, os novos números de um banco internacional de primeira linha são impactantes.
No início do ano, projetava-se um crescimento do PIB global de 3,2% e agora, apenas 0,9%. Nos EUA, a projeção de 1,8% foi substituída por uma de 0,6%. Na China, o crescimento foi de 4%, em vez dos antigos 6%. Finalmente, na área do Euro, projeta-se agora um tombo de 5%, em vez de um crescimento de 0,9%.
No Brasil, a equipe econômica foi claramente pega no contrapé e tardou a responder. Entretanto, o ponto positivo foi entender que se trata de uma situação de emergência, que precisa ser enfrentada, antes de tudo, com mais gastos na saúde e na assistência aos segmentos mais frágeis da população, que inclui os trabalhadores informais, além da população em situação de pobreza.
Do lado das empresas, os pequenos negócios serão os mais afetados, até como consequência da política de isolamento social e terão de ter alguma atenção. Mas também serão necessárias políticas que preservem as empresas e a produção.
Infelizmente, por mais que essas medidas sejam bem sucedidas, uma recessão é inevitável: esperamos uma queda do PIB nos dois primeiros trimestres, com alguma recuperação mais próxima do final do ano. No melhor cenário, o crescimento do PIB ficará próximo de zero. É um duro revés para um país que luta há anos para voltar a crescer.
O programa de reformas deverá parar, mesmo porque, até recentemente, o Planalto continuava a antagonizar o Congresso. O ajuste fiscal e o investimento em infraestrutura deverão ficar para o próximo ano. Apenas medidas infraconstitucionais (ligadas a saneamento, energia e PPPs) poderão ser aprovadas.
Finalmente, se ao cabo de dois anos, o crescimento médio for de apenas 0,5% ao ano, dá para pensar em reeleição? Tudo indica que não, até porque muita gente está cansada da irrelevante pauta ideológica que prende a atenção de boa parte do Executivo.
* Economista e sócio da MB Associados.
Folha de S. Paulo: Fapesp libera R$ 30 milhões a startups e pesquisadores com projetos sobre coronavírus
Cada projeto empresarial aprovado receberá R$ 1,5 milhão para escalonar produtos ou serviços
O edital será publicado nesta sexta-feira (20) no site da Fapesp.
Em uma primeira chamada, R$ 10 milhões serão destinados a projetos de pesquisa sobre compreensão, redução de risco, gestão e prevenção ao vírus que já estejam em andamento, de acordo com o governo do Estado.
Os projetos devem ter duração de 24 meses e o valor máximo de cada proposta será de R$ 200 mil. O prazo para submissão vai até 22 de junho de 2020.
Na segunda chamada, a Fapesp e a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) vão liberar R$ 20 milhões a startups ou empresas de até 250 funcionários que consigam escalonar produtos de combate ao Covid-19.
O financiamento pode ser destinado a produtos como kits de diagnósticos e ventiladores pulmonares a soluções de tecnologias digitais e inteligência artificial para os serviços de saúde ou atendimento aos pacientes.
O prazo de submissão dessa etapa é 6 de abril, podendo ser prorrogado por 15 dias. Cada projeto aprovado terá R$ 1,5 milhão de apoio.
"As pesquisadoras que decodificaram o genoma do coronavírus no Brasil estavam desenvolvendo um projeto de outro tema. Esbarraram nessa possibilidade e pediram recurso adicional. A ideia é que façamos isso não no varejo, mas no atacado", disse a secretária de Desenvolvimento Econômico, Patricia Ellen.
O programa é uma antecipação do Ideia Gov, que seria lançado mais tarde pelo governo estadual para incentivar startups a corrigirem gargalos públicos.
"Nunca precisamos tanto de pesquisa como agora. Esse é o momento de acelerar, e não de postergar. Precisamos de pesquisa aplicada agora", disse o vice-governador de São Paulo, Rodrigo Garcia.