coronavirus
Luiz Carlos Azedo: O tsunami
“Mesmo que a pandemia avance, Bolsonaro mantém litígio com governadores, prefeitos e autoridades de saúde, que defendem a permanência de Mandetta”
A epidemia de coronavírus é um tsunami invisível que varre o mundo. No momento, seu epicentro é Nova York, nos Estados Unidos, o que obrigou o presidente Donald Trump a mudar completamente o discurso no domingo, quando pediu para a população ficar em casa até 30 de abril. Trump vinha defendendo o afrouxamento das medidas de isolamento e chegou a declarar no sábado que uma quarentena não seria necessária em Nova York, New Jersey e Connecticut. Mudou de ideia no dia seguinte, quando admitiu que o pico da epidemia será daqui a 15 dias. Já são mais de 2 mil mortos e mais de 100 mil casos confirmados, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins, na economia mais poderosa do mundo. O sistema de saúde de Nova York está à beira do colapso.
Ao contrário de Trump, aqui, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro aproveitou o domingo para contestar a política de isolamento social e deu um rolé pelo comércio do Sudoeste, de Ceilândia e de Taguatinga, defendendo que as pessoas precisam trabalhar para sobreviver. Depois do périplo, devidamente registrado no Twitter — que apagou duas de suas postagens por colidirem com a orientação das autoridades de saúde pública —, Bolsonaro disse que era preciso enfrentar a situaçao como homem e não como moleque, porque as pessoas um dia vão mesmo morrer. Não se sabe a quem ele se referia, mas o fato é que desautorizou a orientaçao do seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o que aumentou as especulações de que ele seria demitido.
Não foi o que aconteceu, porém, apesar de Mandetta estar visivelmente constrangido na entrevista coletiva concedida no final da tarde de ontem pelo comitê de crise do Palácio do Planalto, que coordena as ações do governo contra a epidemia, sob comando do ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Souza Braga Netto. Quando Mandetta foi indagado pelos jornalistas sobre as divergências com Bolsonaro e se sairia do governo, foi interrompiodo por Braga Netto, que matou a pergunta no peito e respondeu: “Está fora de cogitação”, “Não existe essa ideia”. Também participaram da entrevista os ministros Tarcísio Gomes (Infraestrutura), Onyx Lorenzoni (Cidadania) e André Mendonça (Advocacia Geral da União), além de um representante do Ministério da Defesa.
Na sua entrevista, Mandetta desconversou sobre o assunto e reiterou que a orientaçao do Ministério é focada no combate à epidemia, em termos técnicos e científicos. Justificou a decisão de mudar o formato das avaliaçoes diárias, que agora serão feitas por todos os ministros, não sob seu comando, mas o de Braga Netto, com o argumento de que a pandemia transbordou a esfera de sua pasta e exige engajamento de todo o governo, o que é verdadeiro. Bolsonaro vem defendendo o relaxamento das medidas de isolamento adotadas nos estados e a retomada da atividade econômica, com a reabertura do comércio e volta dos estudantes às escolas. As recomendações de especialistas, da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do próprio Mandetta são de que o isolamento é necessário para evitar a expansão da pandemia.
Tensões
Ontem, o diretor executivo da Organização Mundial de Saúde (OMS), Michael Ryan, fez nova advertência quanto à expansão da pandemia. Disse que o coronavírus ultrapassou as ruas e está sendo levada para “dentro das famílias”, o que reforça a necessidade de isolamento social, sobretudo onde há transmissão comunitária e faltam testes, como é o caso do Brasil. “O ideal é que a quarentena ocorra em um lugar que não seja a casa [do infectado], porque esse doente pode infectar sua família. Mas isso não é sempre possível”, disse. No Brasil, já houve 159 mortes, com 4.579 casos confirmados, uma taxa de letalidade de 3,5%. A epidemia ainda está concentrada no Sudeste, com 2.507 casos, 55% do total. São Paulo é o epicentro, com 1.451 casos. O aumento do número de mortos de ontem para hoje no estado foi de 17%, sendo 7,9% o de casos.
Mesmo que a pandemia avance, Bolsonaro mantém seu litígio aberto com os governadores, prefeitos e autoridades de saúde pública, que defendem a permanência de Mandetta no cargo. O ex-ministro da Cidadania Osmar Terra(MDB-RS), que é deputado federal e médico, se movimenta para substituir Mandetta e faz coro com as teses de Bolsonaro. As relações de Mandetta com Bolsonaro vão de mal a pior e somente não houve uma ruptura porque o ministro já avisou que não pede demissão. Demiti-lo agora seria a implosão da equipe de sanitaristas do ministério e uma porta aberta para a articulação do impeachment do Bolsonaro, por crimes de responsabilidade. O Congresso está fazendo seu dever de casa, mas cobra um comportamento mais responsável do presidente da República.
Ontem, o Senado aprovou o chamado “corona voucher”, a ajuda de R$ 600,00 para os trabalhadores informais sem atividade, que se soma ao pacote de medidas econômicas anunciadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. É fundamental para garantir uma renda básica aos que ficaram sem nenhuma outra fonte e evitar uma situação de caos social. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, articula a aprovação do que está sendo chamado de “orçamento de guerra”, as medidas necessárias para o país atravessar a pandemia sem um cenário de tragédia social e reativar a economia logo depois. De certa forma, o foco na pandemia e nessas medidas econômicas é um elemento estabilizador do processo, em meio às tensões criadas por Bolsonaro, que ameçam transformar a pandemia num tsunami político.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-tsunami/
Folha de S. Paulo: Isolamento social durante pandemia pode levar a recuperação econômica mais rápida, diz estudo
Pesquisa norte-americana se baseia na experiência do país com a gripe espanhola entre 1918 e 1920
Érica Fraga, da Folha de S. Paulo
A adoção de medidas restritivas e duradouras de isolamento social durante uma pandemia, como a causada atualmente pelo coronavírus, pode levar a uma recuperação econômica mais rápida e robusta após o seu fim.
A conclusão se baseia na experiência dos Estados Unidos durante e após a chamada gripe espanhola, que se estendeu entre janeiro de 1918 e dezembro de 1920, causando, pelo menos, 50 milhões de mortes globalmente e infectando cerca de um terço da população mundial.
Segundo um estudo novo, localidades norte-americanas que reagiram mais prontamente à pandemia de 1918 registraram uma retomada mais forte no ano seguinte. A pesquisa foi intitulada “Pandemics depress the economy, public health interventions do not: evidence from the 1918 flu”.
Seus achados mostram que cidades que adotaram intervenções não-farmacêuticas (NPIs em inglês), como medidas de isolamento social, dez dias antes à chegada da pandemia registraram um aumento adicional de 5% no emprego industrial, em 1919, em relação à média analisada.
A duração do confinamento também tende a fazer diferença. De acordo com a pesquisa, a extensão das chamadas NPIs por 50 dias adicionais –em comparação à média– garantiu um crescimento extra de 6,5% no emprego no setor manufatureiro depois da pandemia.
O estudo que chegou a esses resultados foi feito pelos economistas Sergio Correia, Stephan Luck e Emil Verner. Os dois primeiros são do Federal Reserve (Fed, o Banco Central americano) e o terceiro é filiado à escola de negócios Sloan School of Management, do MIT (Massachusetts Institute of Techonology).
Trata-se ainda de uma pesquisa preliminar, que, após sua divulgação inicial nesta semana, está sujeita a mudanças em cálculos e premissas, principalmente com base em comentários que serão recebidos de outros estudiosos.
Porém, se forem sólidos, esses resultados indicarão que medidas mais drásticas de confinamento durante a atual pandemia da Covid-19 tendem a surtir efeito positivo em duas frentes cruciais para a sociedade.
Em primeiro lugar, Correia, Luck e Verner mostram que o confinamento contribui para taxas menores de fatalidade, conclusão parecida às de estudos anteriores que focaram apenas esse aspecto.
Adicionalmente, eles revelam que, ao reduzir o impacto sobre a saúde pública, esse tipo de medida surte efeito também na economia.
Segundo os autores, durante a gripe espanhola, há registro da adoção de políticas parecidas com as praticadas na crise atual, como fechamento de escolas, teatros e igrejas, banimento de encontros públicos e funerais, quarentena de pacientes suspeitos e horários comerciais reduzidos.
A intensidade dessas medidas, no entanto, variou entre diferentes cidades e estados americanos. Sua duração também. Foram essas diferenças que permitiram aos pesquisadores construir um modelo matemático que mensurou o impacto econômico das medidas adotadas durante a pandemia.
Embora as ações de confinamento social pareçam mitigar o impacto negativo da doença sobre a atividade produtiva no médio prazo, isso não significa que elas impeçam uma queda da produção e do emprego no auge da crise.
Correia, Luck e Verner também aferiram o efeito econômico mais imediato da gripe espanhola nos Estados Unidos e concluíram não só que ele existiu, como foi significativo.
“Em conjunto, nossas descobertas sugerem que as pandemias podem ter custos econômicos substanciais, e que as NPIs podem ter méritos econômicos, além de reduzir a mortalidade”, diz um trecho do estudo.
A questão que os pesquisadores não conseguem responder —por falta de dados suficientes— é por quais canais as medidas de intervenção não farmacêuticas amenizam esses efeitos econômicos em um segundo momento.
Eles esclarecem que é possível pensar tanto em hipóteses pelas quais o isolamento social exacerbaria o efeito econômico da pandemia, quanto em um cenário oposto a esse.
Defensores de medidas mais brandas de confinamento, como o presidente Jair Bolsonaro, argumentam que seu impacto econômico é muito drástico.
Correia, Luck e Verner ressaltam que esse argumento tem seu mérito, pelo menos, na teoria.
“Medidas de distanciamento social reduzem gastos em compras que requeiram contato interpessoal. Rendimentos correntes e futuros caem em consequência de rupturas do lado da oferta”, aponta o texto.
No entanto, eles notam que a pandemia em si provoca consequências econômicas severas, decorrentes do aumento na mortalidade, dos afastamentos dos doentes do trabalho e dos custos elevados com a saúde, como as que eles próprios mensuraram.
Se esse impacto for mitigado pela imposição de uma quarentena, é possível que o efeito negativo total da pandemia seja limitado.
Os achados do trio indicam que foi, exatamente, isso que ocorreu nos Estados Unidos, onde a gripe espanhola foi trazida pelos soldados que voltavam da guerra, atingindo, primeiramente, portanto, a costa leste do país, mais próxima do continente europeu.
Conforme as cidades do oeste se inteiravam das notícias vindas das regiões afetadas precocemente, elas tiveram tempo de reagir. Mas, na ausência de uma decisão centralizada imposta pelo governo federal sobre o que fazer, essas ações locais não foram uniformes.
Foi essa falta de coordenação que os autores exploraram em sua pesquisa.
Para evitar capturar em seus resultados os efeitos de outros acontecimentos não relacionados à pandemia —como o próprio impacto anterior da primeira guerra mundial—, eles descontaram de seus cálculos tendências de saúde e de atividade econômica anteriores a 1918.
Se uma cidade já vivia, portanto, uma expansão industrial provocada por um boom local específico à sua região, esse efeito não contaminou as conclusões do estudo relacionadas à gripe espanhola.
Ainda assim, os três ressaltam que há diferenças importantes de contexto histórico entre 1918 e 2020 que precisam ser consideradas ao transpor suas conclusões ao contexto atual.
Características da economia global atualmente —como uma maior integração comercial e industrial—podem fazer com que as consequências de diferentes políticas adotadas no combate à Covid-19 sejam diferentes.
Além disso, o coronavírus tem se mostrado mais letal entre idosos, enquanto a gripe espanhola teve efeitos piores em grupos mais jovens.
Ainda assim, eles defendem que suas conclusões jogam luz ao debate que se desenrola no mundo sobre como reagir à severidade da crise causada pela Covid-19.
Fernando Gabeira: Memórias do grupo de risco
Bolsonaro tornou-se uma espécie de Jim Jones, o pastor que levou seus seguidores ao suicídio coletivo
Nos últimos tempos, as coisas andam tão rápidas que todo dia escrevo um pouco. No final de semana, o epicentro da pandemia já havia se deslocado para os Estados Unidos, e Boris Johnson, primeiro-ministro inglês, foi contaminado pelo coronavírus.
Temo pelo Brasil. O vírus avança como em outros lugares. Somos mais vulneráveis pelas grandes concentrações urbanas, péssimas condições sanitárias. Os Estados Unidos eram o primeiro na lista de segurança sanitária no mundo: ricos e bem equipados.
Ao longo do caminho, não devemos nos concentrar apenas numa variável, o número de casos. Há outra muito importante: o índice de mortalidade.
Além de desvantagens historicamente acumuladas, temos outras de peso. O presidente da República, que deveria articular o esforço nacional, não acredita na importância da pandemia.
Bolsonaro se acha incólume porque um dia foi atleta. E estendeu essa blindagem aos brasileiros que, segundo ele, mergulham no esgoto e nada sofrem. No momento em que a Ciência tem um grande papel, Bolsonaro está cercado de terraplanistas, tornou-se uma espécie de Jim Jones, o pastor que levou seus seguidores ao suicídio coletivo.
A segunda desvantagem está no ministro da Economia, Paulo Guedes. Toda a sua história é a de luta para reduzir o papel econômico do Estado. Trabalhou no Chile de Pinochet e escreveu inúmeros artigos sobre o tema.
O dramático momento, de repente, exige uma intensa intervenção do Estado na economia. Guedes não se preparou para isso. É como se estivéssemos numa partida de futebol e resolvêssemos trocar o centroavante por um jogador de tênis.
Vera Magalhães sugeriu que escrevesse algo sobre o ano de 2020, um ano cancelado pela pandemia.
No mesmo dia, tinha conversado aqui em casa sobre uma viagem a Nova York. Quando minha mulher vai até NY, costumo vender minha câmera velha e comprar uma nova na Adorama. Rimos para não chorar: não haverá viagem, muito menos câmera, e Deus permita que haja Nova York no fim dessa estrada. O Flamengo seria campeão de tudo em 2020, mas não haverá campeões nesse tempo sinistro.
Mas vou voltar ao tema sugerido por Vera assim que a pandemia der uma trégua. No momento, tento refletir um pouco sobre ser velho em tempos de coronavírus. Aqui a dimensão transcende ao ano de 2020: o que será do resto de nossas vidas?
Toneladas de papel impresso falam da velhice. Mas a nossa é singular: acontece durante a pandemia, somos classificados como grupo de risco.
Leio notícias de que o velhinhos de comunidades serão levados para hotéis ou navios, que a polícia em São Paulo está detendo os rebeldes que saem às ruas. Tudo para o bem deles.
Passada a crise mais aguda, como será a vida dos velhos antes da chegada da vacina? Minhas leituras não estão concentradas na “Peste”, de Camus, ou no “Um diário do Ano da Peste”, de Daniel Defoe.
Nos momentos mais suaves da quarentena, volto-me para livros do tipo “Memórias de Adriano” e detenho-me em frases como esta: “Esta manhã, pela primeira vez ocorreu-me a ideia de que meu corpo, este fiel companheiro, esse amigo mais seguro e mais conhecido que a própria alma, não é senão um monstro derradeiro que acabará por devorar seu próprio dono.”
Isso é verdade para tempos normais. Como se aplica a tempos de coronavírus? Será que nossos corpos envelhecidos serão vistos como um perigo social?
Envelheci depois de muitas lutas contra preconceitos. Só me faltava essa. Quando passar a primeira onda, voltarei a sair por aí, explorando e transfigurando o mundo em imagens.
De novo, Adriano: “A impossibilidade de continuar a exprimir-se, modificar-se pela ação é talvez a única diferença entre os mortos e os vivos.”
Um corpo envelhecido não representa perigo especial. Ele contrai e transmite o coronavírus como uma criança ou um jovem.
A grande responsabilidade é evitar adoecer em tempos de grande crise para não ocupar o lugar de um mais jovem nos escassos respiradores.
Infelizmente, temos mais fuzis do que respiradores. Um padre italiano compreendeu isto e cedeu seu lugar para um jovem que tinha chances de uma vida longa e saudável.
Viver é muito perigoso e, de uma certa forma, a própria humanidade é um grupo de risco.
Revista Será?: Interdição por insanidade
Se ninguém notou ainda, vai uma informação importante: o Brasil não tem presidente. Com o poder equivalente a um chefe de Estado, temos uma biruta desorientada e autoritária, que resiste até a acompanhar o movimento dos ventos, quando muito, imita os movimentos transloucados do homem mais arrogante e poderoso do mundo. A Constituição prevê impedimento do Presidente da República em caso de crime de responsabilidade, mas os constituintes não poderiam imaginar que alguém chegasse à presidência da República com visível quadro de insanidade mental e demência crescente.
Quando confunde a opinião pública com medidas e discursos desencontrados, em direta contradição com a competente atuação do Ministro da Saúde, e mesmo com a definição de iniciativas na área econômica, quando minimiza a gravidade da pandemia, com desprezo pelos que, não sendo atletas como ele, podem ser sacrificados para manter a economia (apenas dois dias depois de decretar calamidade pública), Jair Bolsonaro está cometendo um crime de responsabilidade.
A discussão sobre a melhor alternativa para combater o Covid-19 – contenção ou mitigação – pode ser válida. Mas um governo tem que decidir o caminho que vai seguir, e não pode apostar no confronto solitário do chefe de Estado com seus ministros e com todos os governadores estaduais. Rigorosamente, ele poderia ser enquadrado no inciso VI do Artigo 85 da Constituição, que explicita como crime de responsabilidade atentar contra a “segurança interna do País”.
Mas, embora não esteja previsto na Constituição, o caso de Bolsonaro é mais psiquiátrico que político, mesmo assim de dramáticas consequências sociais, econômicas e políticas. A melhor solução para os desatinos de Jair Bolsonaro é a convocação de uma junta médica qualificada que, seguramente, atestaria sua incapacidade mental (para não falar da grave deficiência intelectual) para exercer o poder máximo de chefe de Estado do Brasil. Certo, a Constituicão não prevê a interdicão por insanidade mental. Mas estamos diante de uma emergência. E a maior calamidade nacional chama-se Jair Bolsonaro.
Domingos Meirelles: A Besta Fera de 1918
Os canhões ainda estavam embuçados pela fumaça no fim da 1ª Grande Guerra quando o mundo começou a enfrentar um novo, silencioso, e invisível inimigo: a chamada Gripe Espanhola, o maior holocausto médico da história da humanidade. A praga apareceu pela primeira vez em fevereiro de 1918 na cidade de San Sebastián, movimentado ponto turístico da costa setentrional da Espanha. Foi considerada uma gripe banal e logo esquecida. A região desfrutava de um clima agradável e ameno, onde podiam ser esquecidos os horrores das trincheiras da França, do outro lado da fronteira, cenário de destruição e desgraças, onde os Aliados lutavam desde 1914 contra os alemães e os países que apoiavam o Kaiser Guilherme II .
A Espanha era uma nação neutra, não se envolvera na guerra iniciada contra a Sérvia quatro anos atrás, após o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono da Áustria. Ferdinando tinha sido abatido a tiros, em Sarajevo, junto com sua mulher por um nacionalista iugoslavo. Na ensolarada San Sebastián era possível encontrar-se momentos de paz , longe não só do estrugir dos canhões como dos efeitos do gás mostarda que produzia uma névoa esverdeada letal, a mais nova arma de guerra alemã.
De repente, a gripe chegou. Não foi nada alarmante, apenas dois ou três dias de febre, seguidos de ligeiro mal-estar. No início, o vírus parecia escolher suas vítimas, atacava preferencialmente adultos jovens, poupando velhos e crianças, ao contrário do que acontece atualmente com o Coronavirus. Estudos recentes sustentam que os idosos não foram contaminados pelo vírus por terem adquirido resistência imunológica durante a pandemia ocorrida entre 1889 e 1890, conhecida como a ” Gripe Russa “.
Em março de 1918, soldados americanos que passavam por San Sebastián à caminho do front começaram a adoecer. Dois meses depois, o Rei Afonso XIII e oito milhões de súditos também estavam enfermos. Um terço da população de Madrid exibia sintomas de uma gripe como jamais se viu. Atividades governamentais foram suspensas, o comércio fechou as portas, os bondes deixaram de circular. A Espanha havia sido capturada pelo medo da peste.
A primeira onda da gripe começou logo a se espalhar pelo mundo. As tropas aliadas referiam-se a esse surto como ” a febre dos três dias “, embora durasse em média uma semana. Manifestava-se através de rápida elevação da temperatura, o rosto ficava logo vermelho, a cabeça latejava, os ossos doíam. Esse quadro desaparecia após intensa transpiração, o corpo ficava dolorido durante 15 dias, e a gripe desaparecia. Na primavera de 1918, poucos perceberam que a epidemia havia atravessado o Atlântico e atingido os Estados Unidos. Cerca de mil operários americanos que trabalhavam na Ford queixavam-se de febre e moleza no corpo. Em abril, 500 dos 1.900 presidiários de San Quentin estavam doentes.
O maior número de baixas tinha ocorrido, entretanto, em um campo de treinamento no Kansas, onde cerca de 20 mil recrutas estavam sendo preparados para lutar na Europa. A epidemia alastrou-se por outros acampamentos do exército, mas as autoridades sanitárias não deram muita importância, gripes e resfriados eram comuns em áreas onde milhares de homens de diferentes cidades passavam a viver juntos, misturando-se e passando vírus de uns para outros.
Os primeiros sinais de alarme ocorreram no final de maio quando a gripe apareceu na França. Tropas, inglesas, americanas, francesas e a população civil começaram a exibir os primeiros sintomas do vírus. No mês seguinte, ele chegava à Inglaterra, deixando o Rei Jorge V de cama. Logo depois alcançava a Ásia. Em junho, a gripe passou a interferir no curso da guerra. A Grande Frota do Rei Jorge foi abalroada pela pandemia antes mesmo de zarpar. Os seus 10.300 homens foram obrigados a desembarcar e permanecerem em terra durante três semanas, retardando o fim do conflito que só ocorreria em novembro.
Nem os alemães foram poupados pela epidemia. Todos os dias, o general Erich von Ludendorff amaldiçoava a gripe, dizia que ela debilitava os soldados e frustrava seus vitoriosos planos de ataque contra os Aliados. Apesar de se ter espalhado pelo mundo durante a primavera de 1918 havia regiões do planeta onde a ” influenzza “, como era também conhecida, não tinha produzido vítimas. A maior parte da África, Canadá e América do Sul não havia sido contaminada pelo vírus. Quando chegou o verão, os Estados Unidos e os países europeus sentiram extraordinário alívio. A gripe parecia ter desaparecido de vez sem deixar vestígios, como se jamais tivesse existido.
Alguns meses depois, em setembro, quase no fim da 1ª Grande Guerra, ela estava de volta como uma maldição. A segunda onda da gripe, além de extremamente contagiosa, havia-se transformado em uma peste assassina. Escolhera como caminho de volta os lugares por onde não havia passado. Cerca de 80% das pessoas atingidas pelo vírus não conseguiam sobreviver. Ela era 25 vezes mais letal que sua antecessora e a gripe comum.
Os doentes morriam em questão de dias, ou mesmo de horas, com os pulmões entupidos de catarro. Na maioria dos casos, ela começava como se fosse uma simples gripe, os pacientes respiravam com extrema dificuldade, deliravam com febre alta, sentiam calafrios, dores no corpo. Os pulmões infestados por bactérias, contraíam pneumonia, as pessoas contaminadas ficavam inconscientes, e morriam um dia depois.
A segunda onda maldita chegou aos Estados Unidos em agosto, trazida por um grupo de marinheiros desembarcados em Boston. Semanas depois começaram os óbitos. Em Fort Devens, Massachusetts, a 50 km a oeste de Boston, cerca de 60 mil soldados tinham sido contaminados por um tipo de pneumonia galopante jamais visto. Após serem infectados pela gripe, exibiam manchas castanho-avermelhadas no rosto, horas depois a cianose estendia-se por toda a face a partir das orelhas. A morte chegava em poucas horas. ” Era difícil distinguir um homem branco de um negro “, escreveu um dos médicos do acampamento. Os pacientes ficavam com falta de ar e morriam sufocados. Como não havia caixões suficientes, os corpos eram empilhados como sacas de arroz no necrotério do quartel. Os coveiros não tinham como enterrá-los porque também estavam doentes. Foram abertas covas coletivas e os mortos sepultados sem caixões, embrulhados nos próprios lençóis.
Os médicos militares patologistas enviados por Washington a Massachusetts ficaram horrorizados com que viram. O rosto dos soldados contaminados ficavam azulados, eles tossiam convulsivamente e o escarro que expeliam estava sempre tingido de sangue como se tivessem tuberculose. As enfermeiras sabiam que quando os pés dos doentes ficavam escuros, não havia muito o que fazer. Naquela época não havia também antibióticos nem respiradores como nos dias de hoje. Os médicos tratavam os pacientes com elixires e vacinas improvisadas que não produziam nenhum efeito, uma espécie de ” sopa ” preparada com sangue e muco dos pacientes . Antes de ser injetada, filtrava-se essa mistura para eliminar as células maiores, o resultado era inócuo. Deixava apenas um braço inchado e dolorido. A ” sopa ” era incapaz de interromper a progressão da gripe. Os doentes continuavam sangrando pelo nariz, pelos ouvidos, pelos olhos. O rosto ficava azulado pela falta de oxigênio, morriam sufocados pelo excesso de líquido nos pulmões.
Os patologistas enviados pelo Governo atribuíram inicialmente o expressivo número de mortes a uma espécie de envenenamento medicamentoso causado pela prescrição elevada de aspirina. Os médicos receitavam doses de 8 a 31 gramas por dia como parte do tratamento. O excesso de aspirina aumentava consideravelmente o número de glóbulos brancos no organismo. Os pulmões eram inundados por tamanha quantidade de líquido que acabava sufocando os pacientes.
Não era só o excesso de aspirina que causava a chamada ” tempestade de citonina”, os glóbulos brancos também multiplicavam-se rapidamente para combater a gripe. Era uma reação exagerada das defesas do próprio organismo para enfrentar o vírus. O excesso natural de citonina, acrescido pelas doses elevadas de aspirina apressava a morte dos doentes.
Doze mil americanos faleceram de gripe em setembro, todos os acampamentos do exército nos Estados Unidos estavam infectados. Acreditava-se que o surto talvez tivesse começado na Filadélfia em outubro, onde havia sido realizado um grande desfile público diante de 200 mil pessoas. O objetivo da festa era obter fundos para o esforço de guerra. Nenhum funcionário do serviço de saúde previu o desastre que estava à caminho.
Três dias depois, os 31 hospitais da cidade estavam lotados de doentes com graves problemas respiratórios. As pessoas contaminadas chegavam nos braços de parentes, em automóveis, transportadas em carroças e até em carrinhos de mão. O mês de outubro foi trágico para os Estados Unidos, o país registrou cerca de 195 mil mortos na mais severa pandemia da história da humanidade. Só os que tinham sido infectados pela primeira vez não foram contaminados quando a gripe voltou de forma avassaladora. O organismo havia criado anticorpos e resistiu ao novo ataque do vírus.
Não existe uma estatística segura sobre a quantidade de mortes causada pela pandemia de 1918, engordada por uma terceira onda, em fevereiro de 1919, que se dissipou naturalmente em maio do mesmo ano. Cerca de 500 mil soldados e civis morreram nos Estados Unidos. Estima-se que cerca de 100 milhões de pessoas tenham sido vitimadas em todo o mundo pelo vírus da gripe, número seis vezes maior que os 15 milhões de soldados abatidos em combate durante a 1ª Grande Guerra, no coração de uma Europa em escombros, que se considerava um exemplo civilização, e se orgulhava de hospedar os maiores cérebros do planeta.
*Domingos Meirelles é repórter especial da Rede Record de Televisão e autor de ” As Noites das Grandes Fogueiras– Uma História da Coluna Prestes ” e ” 1930 : Os Órfãos da Revolução
O Estado de S. Paulo: ‘Coronavírus isolou líderes populistas’, diz Steven Levitsky
Para Steven Levitsky, cientista político americano e coautor de 'Como as Democracias Morrrem', ignorar especialistas fez líderes como Trump e Bolsonaro reagirem tarde à pandemia
Para o cientista político Steven Levitsky, coautor do livro Como as Democracias Morrem, que mostra as razões da expansão populista nos últimos anos, o desprezo pela ciência e pela elite caiu por terra com o avanço da pandemia. Pegos de surpresa pelo surgimento do coronavírus, líderes populistas como Donald Trump, nos EUA, Jair Bolsonaro, no Brasil, e Andrés Manuel López Obrador, no México, correm risco de isolamento e de perder mais popularidade em razão da crise econômica.
A pandemia, segundo Levitsky, é o maior desafio dos populistas. Primeiro, porque corrói a popularidade que os sustentam. Sem popularidade, fica mais difícil tomar medidas autocráticas para ameaçar a democracia. Em segundo lugar, por colocar a própria sobrevivência desses líderes em risco. “A pandemia está mostrando que o desprezo desses populistas pela ciência e pelos especialistas vai custar caro”, disse. A seguir, trechos da conversa com Levitsky.
Por que populistas como Trump, Bolsonaro e Boris Johnson foram lentos ao reagir à pandemia?
Líderes populistas costumam se eleger atacando o establishment, dizendo ao povo que, uma vez no poder, varrerão a elite. Mas parte dessa elite é formada por especialistas – economistas, cientistas, técnicos, profissionais de saúde, como os que lideram agora o combate ao coronavírus. E a primeira resposta dos populistas à pandemia foi rejeitar os conselhos dos especialistas, recorrendo a pessoas próximas que não são do ramo. Bolsonaro preferiu ouvir conselhos dos filhos. Trump, do genro. Não é por acaso que Trump, Bolsonaro e (Andrés Manuel) López Obrador (presidente do México) demoraram a reagir. Já o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, é um caso à parte. Embora tenha demorado, ele acabou aceitando os conselhos de especialistas e foi mais rápido em adotar medidas. Mas ficou evidente que a inação inicial deve trazer consequências trágicas, como estamos vendo.
Se fosse possível formar um ranking, quem levaria a medalha de ouro em performance populista na reação ao coronavírus?
Todos cometeram erros, mas vale citar o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, cuja resposta à pandemia foi péssima – mas eu não chamaria ele de líder populista. Portanto, ele fica de fora dessa disputa. Sem sombra de dúvida, a medalha de ouro vai para Bolsonaro. Ele continua a desdenhar da crise. A maior parte do seu discurso (do dia 24) na TV continha inverdades que refletem um nível de ignorância que vai além da demonstrada por Trump. Vale notar que o desprezo do presidente brasileiro pelas recomendações de especialistas, parte da estratégia populista de rejeitar a elite, não tem precedentes na história recente do País. Políticos tradicionais, independentemente se eram de direita ou de esquerda, como José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula, tiveram ajuda de técnicos com experiência de governo.
No seu livro, o senhor afirma que parte da estratégia dos populistas é ignorar o respeito mútuo e a tolerância. Numa crise profunda, adotar essa estratégia autoritária tende a levar os populistas ao isolamento?
Depende do líder populista. Situações de emergência nacional, como guerras, desastres naturais e pandemias, exigem cooperação entre a classe política, entre o presidente e o Congresso, entre presidente, governadores e prefeitos, e entre governo e oposição. Os populistas costumam fazer de seus oponentes inimigos ferozes, o que dificulta esse tipo de cooperação durante uma crise.
Essa disputa costuma levar o líder populista ao isolamento?
Normalmente, o populista cria uma espécie de ambiente tóxico na política entre ele e seus oponentes. Isso não torna impossível reunir a classe política para responder a uma crise, mas certamente é mais difícil. Muitas vezes, durante situações do tipo, é comum uma união em torno do presidente. Aparentemente, isso não está acontecendo com Bolsonaro, que parece ser um caso claro de isolamento.
Tanto Trump quanto Bolsonaro culparam a China pela crise e evitaram adotar medidas drásticas, com medo de afetar a economia. Isso configura uma estratégia política populista?
Não sei se essa reação similar é coincidência ou o quanto Bolsonaro está copiando Trump. Mas não acredito que se trata de um movimento ideológico. Um dos mentores do trumpismo, Steve Bannon, foi defensor de uma resposta de saúde pública mais agressiva. Ou seja, neste aspecto, Bolsonaro agiu de forma diferente da preconizada pelo cérebro do trumpismo. Já Obrador, um populista de esquerda, agiu de forma semelhante à de Bolsonaro, criticando a paralisia da economia. Portanto, não acho que seja uma questão ideológica, e sim uma atitude intuitiva de um político personalista, nacionalista e, mais importante, antielitista. Um político com uma grossa camada narcisística, que acredita que ele mesmo, sozinho, sabe mais que os especialistas.
A gravidade da crise pode estimular os populistas a acumular mais poder?
É provável que líderes autoritários respondam a essa crise com medidas para ampliar seu poder. Mas não está claro quantos serão bem-sucedidos se começarem a tomar essas medidas. Um político isolado, como Bolsonaro, tentar aproveitar a situação para acumular poder tem menos chance de obter sucesso. O mesmo vale para Trump.
Mesmo numa situação especial como essa?
Sim. Se um líder não tem confiança do povo durante uma crise, deve evitar criar mais problemas para ele mesmo. É o que estamos começando ver no Brasil. Os brasileiros não estão respondendo bem a esse grande poder que o Bolsonaro tem para lidar com a pandemia.
Então o temor de que Bolsonaro se aproveite da crise para obter mais poder é exagerado?
Se você imaginar o cenário daqui a seis meses, com a economia em situação mais delicada do que hoje, Bolsonaro provavelmente terá menos apoio do que tinha, o que torna arriscado tentar algum movimento fora do jogo democrático.
É possível que o pronunciamento de Bolsonaro, no dia 24, tenha sido uma manobra para forçar uma situação que justifique medidas autoritárias?
Na crise em que o Brasil se encontra, não há nenhuma garantia de que Bolsonaro se comportará democraticamente. Precisamos nos preocupar todos os dias com o fato de Bolsonaro tentar quebrar as regras do jogo democrático. O fato de estar perdendo popularidade, e também porque muitos atores da política e da sociedade brasileira se recusam a apoiar uma aventura por parte dele, me leva a crer que, caso tente quebrar a ordem democrática, Bolsonaro fracassará.
Por que os populistas sempre buscam a polarização, mesmo em uma crise grave como agora?
Líderes populistas tendem a usar a mesma estratégia que funcionou para eles no passado. Se você chegar ao poder como populista, provavelmente continuará usando essa estratégia no poder.
Você ficou surpreso com o pronunciamento de Bolsonaro, indo na contramão das medidas de isolamento?
O que me impressionou mais foi como ele está copiando Trump. O pronunciamento foi consistente com seu comportamento desde que comecei acompanhar sua trajetória. Fiquei chocado com seu grau de ignorância – e, para ser sincero, não sei se ele é de fato tão ignorante quanto demonstra, como quando afirma acreditar que 90% dos jovens não serão contaminados pelo coronavírus e, portanto, devem voltar às aulas. Mas é arrepiante ver os dois maiores países do hemisfério, Brasil e EUA, governados por presidentes que vivem mentindo, respondendo a essa crise dessa maneira ignorante e irresponsável. Infelizmente, é o custo que temos de pagar por tê-los escolhido. O mundo estará olhando para a eleição presidencial nos EUA deste ano com atenção redobrada.
Com o impacto do coronavírus na economia, uma derrota de Trump sinalizaria que a onda populista pode murchar?
É o que espero. Tudo que Trump pretende agora é reviver a economia para que possa ganhar a reeleição – é com isso que ele se importa. Não há como prever os efeitos que ocorrerão nos próximos meses. De qualquer forma, a tendência é termos uma eleição muito disputada.
Mesmo a economia tendo pouco tempo para se recuperar?
Antes do coronavírus, apesar de a economia estar indo bem e Trump tivesse boas chances de se reeleger, é importante lembrar que sua aprovação era de apenas 43%. Ele não é um presidente muito popular, mas tem uma base muito forte. Não sabemos o que vai acontecer com a economia. Mas há projeções que indicam uma forte queda no segundo trimestre, com recuperação ao fim do terceiro trimestre – o que ajudaria Trump. Mas os EUA são vistos como um modelo para o restante do mundo. Se um líder populista for tirado do poder aqui nos EUA, acho que será um duro golpe para o populismo. É o que espero.
Eliane Cantanhêde: Isolamento sim!
Governo emite sinais trocados e Brasil começa a se dividir. Coronavírus agradece
Eta gripezinha que está custando caro! O presidente da República fala para um lado e os ministérios agem para o outro, anunciando montanhas de dinheiro para enfrentar o abandono dos miseráveis que precisam do Bolsa Família, a insegurança dos informais e a dramática ameaça aos empregos. Isolamento, sim, para salvar vidas. E medidas emergenciais para reduzir os danos na economia.
É a realidade se impondo, com as lições vindo assustadoramente de fora. Se não quer ouvir a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Ministério da Saúde, a ciência e as estatísticas, o presidente deve ao menos se informar sobre o que aconteceu nos dois países mais afetados pelo Covid-19 no mundo. Nos Estados Unidos, seu tão amado Trump foi obrigado a recuar e agora clama para os americanos ficarem em casa. Na Itália, o mea culpa do prefeito de Milão é um grito de alerta.
Trump, como o “amigo” brasileiro, minimizou o coronavírus até que os EUA passaram a ser o epicentro da doença, ultrapassando os cem mil infectados e beirando 1.500 mortos. Só aí ele se rendeu à única “vacina” contra a pandemia: o isolamento social. Na Itália, o prefeito de Milão desdenhou do tsunami, animando as pessoas a saírem. Agora admite: “Errei”. Tarde demais. Os italianos já contabilizam mais de 9 mil mortes, 919 só na sexta-feira.
“Infelizmente, algumas mortes terão. Paciência, acontece, e vamos tocar o barco”, conformava-se o presidente brasileiro no mesmo dia, ignorando alertas e estatísticas, a lógica, o bom senso, a humanidade. Pior: a responsabilidade. Tudo em nome do seu novo slogan político: “O Brasil não pode parar”. O problema é que, se milhões são contaminados e milhares morrem, aí é que o Brasil vai parar. Só não vê quem põe sua visão pessoal acima das evidências.
Num país dividido, com um governo que emite sinais trocados, governadores e prefeitos, em maioria, decidem deixar o capitão falando sozinho e se articulam para enfrentar a pandemia, acolher os infectados e evitar mortes, enquanto os do Nordeste lançam manifesto “pela vida”. Mas o efeito do comando do presidente contra o isolamento já se faz sentir, com governadores aliados de Mato Grosso, Santa Catarina, Rondônia e Roraima se assanhando para flexibilizar o isolamento.
Na sociedade, o mesmo. CNBB (bispos), OAB (advogados), ABI (imprensa), SBPC (ciência), ABC (ciência) e Comissão de Direitos Humanos de São Paulo fazem alerta “em defesa da vida” e conclamam a população a “ficar em casa”, em respeito à ciência, aos profissionais de saúde e à experiência internacional.
Do outro lado, as falas e a campanha do presidente produzem aumento de pessoas nas ruas, shoppings de Minas reabrindo, a ofertazinha bacana da CNI em tempos de gripezinha: testes rápidos de coronavírus, de 15 em 15 dias, para 9,4 milhões de trabalhadores industriais. Isolamento social? “Só para pessoas com exame positivo.”
Bolsonaristas vão alegremente às ruas contra o isolamento. Mas de carro, que ninguém é besta, enquanto defendem que seus empregados se exponham ao vírus em ônibus e metrôs e garantam seu lucro. Só não entenderam ainda, e vão entender na marra, que, se os trabalhadores se contaminarem, eles também vão se contaminar, depois contaminar seus amores, famílias, amigos. E, “infelizmente, algumas mortes virão...”, lembram?
É profundamente importante, sim, reduzir os danos na economia, nos empregos, na pobreza. E é por isso que o Estado está devidamente flexibilizando a prioridade fiscal para tomar as medidas necessárias. O que não pode é desdenhar da morte em nome da economia. Até porque nada comprova a eficácia desse método ignorante e desumano (para não buscar adjetivos e referências pavorosas na história).
Vera Magalhães: O mundo pós-corona
Da economia às relações pessoais, passando pela política, nada será como antes
Se há uma única certeza a respeito de como sairemos dessa pandemia que bagunçou o dia a dia das pessoas, as relações interpessoais, a economia e a geopolítica do planeta é que nada, em nenhum desses territórios, voltará a ser como antes quando (e se) tudo isso passar.
Governantes populares até a virada do ano foram solapados pela crise; outros cuja imagem já parecia desgastada renasceram das cinzas; aqueles com uma reeleição certa no horizonte padecem na incerteza, enquanto os casos escalam em seus países; lideranças jovens aparecem em países não centrais do globo, e chamam a atenção pela forma segura com que conduzem seus governados no combate a um inimigo invisível, mas poderoso.
Na economia, na meca do capitalismo mundial, os Estados Unidos, Donald Trump, depois de flertar em ondas com o negacionismo em relação à pandemia, terminou a semana acionando o Ato de Proteção de Defesa, uma lei da época da Guerra da Coreia, para exigir que empresas como as icônicas montadoras de veículos produzam ventiladores para respiradores pulmonares e os forneçam ao Estado.
O Reino Unido, outro país que tentou ser blasé, deu um cavalo de pau e terminou a semana com restrições severas à circulação e o príncipe Charles e o premiê Boris Johnson “coronados”, símbolo imagético dificilmente superável.
Não será possível retornar - depois que o mundo sair de uma quarentena dura, que separa famílias e obriga as pessoas a redescobrirem desde regras de higiene pessoal até técnicas de trabalho e estudo remotos - ao estado em que estávamos, de um mundo polarizado e radicalizado em certezas tão absolutas quanto estúpidas.
Sim, alguns países fecharam mais suas fronteiras e a ideia de um “vírus chinês” infectando o mundo favorece uma sinofobia que campeia pelas purulentas redes sociais, mas a evidência de que a mesma China que iniciou o contágio tem muito a ensinar ao mundo em termos de contenção e continuará a ser imprescindível na hora de “religar" a economia planetária forçam, por exemplo, a que o mesmo Trump teça loas ao amigo “Xi”.
Não será possível imaginar um futuro pós-pandemia sem que a ciência finalmente, na marra, passe a ser levada em conta em decisões políticas e econômicas. Epidemiologistas, sujeitos antes exóticos que podiam ser bons consultores de filmes-catástrofe, viraram consultores de Estado e estrelas televisivas. E será preciso que sejam ouvidos sobre o timing da retomada da normalidade.
O negacionismo científico, essa chaga do século 21, que levou à eleição de néscios aqui e alhures, está cobrando um preço em forma de vidas humanas bem antes de fritarmos graças ao subestimado aquecimento global. Isso é devastador, e não há dogmas econômicos ou narrativa que sejam capazes de dar conta da resposta necessária.
O que nos traz ao momento atual do Brasil. Jair Bolsonaro parece ter resolvido dobrar todas as apostas mundiais em termos de irresponsabilidade. Pode até levar alguns mínions entediados a tirarem suas SUVs blindadas das garagens para um rolê com cafonas bandeiras do Brasil no capô, mas já está claro que não vai calar as panelas, algumas delas nas mesmas varandas gourmet.
E, o que é mais dramático, pode comprometer seriamente nossa resposta a essa pandemia. O preço será cobrado em cadáveres. Quando a irresponsabilidade de um governante é sentida na pele das pessoas e daqueles a quem elas amam, não há rede de robôs na internet que contenha o estrago.
Já não somos os mesmos que éramos em janeiro. Em São Paulo, Nova York, Milão ou Wuhan. Não seremos os de antes quando um dia sairmos de casa. Ou os governantes percebem que o mundo é outro e que deles se exige lucidez, ou serão varridos do mapa.
Ricardo Noblat: Por ora, Mandetta garante lugar na galeria dos indemissíveis
Daqui a pouco só restarão Mourão e Moro
Luiz Henrique Mandetta entrou para a restrita galeria dos indemissíveis do governo. E mais: contra a vontade do presidente Jair Bolsonaro. Da galeria fazem parte o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, que Bolsonaro há dois dias chamou de “tosco”, o ministro Sergio Moro, da Justiça e da Segurança Pública, e o general Braga Neto, chefe da Casa Civil.
Não, Paulo Guedes, ministro da Economia, não faz parte da galeria. Fez no começo do governo. Mas com o pibinho de 1.1%, pisadas na bola do tipo anunciar o fim da “festa danada” das domésticas na Disney, e temperamento belicoso tal qual o de Bolsonaro, poderá deixar o governo de uma hora para a outra. Ou então ficar até o fim engolindo sapos indigestos.
O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete da Segurança Institucional? Indemissível? Só porque foi posto no governo por seus companheiros de farda para controlar Bolsonaro e desinflar todas as crises que ele pudesse criar? Não. Não faz parte da galeria. Deram-lhe uma missão impossível. Virou um acompanhante de luxo de Bolsonaro e tornou-se tão tóxico quanto ele.
Literalmente mais tóxico. Para desmentir a notícia de que participara de uma reunião no Palácio do Planalto depois de ter contraído o vírus, o general distribuiu uma nota onde disse que a história era mentirosa, mas em seguida admitiu que participara, sim, da reunião com a presença de Bolsonaro, Mourão e metade dos ministros. Alguns deles, em seguida, adoeceram.
Por ora, Braga Netto é indemissível porque assumiu o cargo outro dia. Bolsonaro trombaria de vez com os militares se mandasse Braga embora. De resto, ele foi paraquedista como Bolsonaro e como o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo. Braga está seguro – sabe-se lá até quando. Embora sue a camisa para manter-se no cargo, Ramos já se sentiu mais seguro.
Mandetta entrou, ontem, no Palácio do Planalto com um pé fora do governo e saiu com os dois dentro. Disse a Bolsonaro coisas que ele detestou ouvir, a ponto de ameaçar demiti-lo. Depois, em entrevista, repetiu várias delas. Como Bolsonaro poderia livrar-se de Mandetta em meio à crise que o país atravessa – primeiro por culpa do vírus, depois… Você sabe por culpa de quem.
“Estamos preparados para ver caminhões do Exército transportando corpos?” – indagou Mandetta a Bolsonaro no pior momento do encontro. Correção: num dos piores momentos. Não foi o único. Mandetta defendeu o isolamento social, o entendimento com os governadores e sugeriu a Bolsonaro que abandonasse a ideia de que “o Brasil não pode parar”. Pode.
Na entrevista, Mandetta afirmou ser contra a realização de carreatas, algumas delas marcadas para hoje por bolsonaristas que cobram a volta dos demais brasileiros às ruas, mas que não estão dispostos a saírem dos seus carros, nem de suas casas. Seria perigoso demais para a saúde. Quanto à saúde dos pobres, essa “gente simples que trabalha para nos alimentar e nos distrair”…
É de autoria do ex-Posto Ipiranga a definição do que são os pobres brasileiros. Está vendo só por que ele não faz parte da galeria dos indemissíveis? Se Bolsonaro insistir em proceder do jeito que procedeu até aqui, que se cuide para não acabar excluído da galeria. Restaria, além de Moro, Mourão, que está na moita, só piruando. Indemissível hoje, indemissível até 2022. Aço! Selva!
Folha de S. Paulo: Governo tem que cobrir salários e devolver FGTS, diz Persio Arida
Diante da perspectiva de queda sem precedentes do PIB, economista propõe achatamento da curva de juros, defende que governo complemente salários e sugere mudança institucional para permitir que BC possa comprar títulos do Tesouro em mercado. Neste momento só lunático veria risco inflacionário, afirma
A história vai mostrar que a ideia de que o coronavírus é uma gripezinha causou uma tragédia humana e social. Tivemos sorte porque o vírus demorou para chegar aqui, mas a desperdiçamos com a inépcia governamental.
Se o governo tivesse levado a sério a epidemia, poderia ter testado desde o começo do ano todos os viajantes que entraram no Brasil, como a China testa até hoje todos os que chegam do exterior. Poderia ter se preparado aumentando o número de leitos, estocando equipamentos médicos e de proteção para os profissionais da saúde. Poderia ter providenciado um grande estoque de kits de testagem do coronavírus.
Se o Brasil tivesse um sistema de saúde com grande capacidade ociosa, teríamos a opção de um tratamento social verticalizado, isolando os mais fragilizados e fazendo uma grande campanha de prevenção para o restante da população que iria trabalhar normalmente, mas não é esse o nosso caso.
O fato é que nenhuma sociedade tolera continuar a vida econômica como se nada estivesse acontecendo enquanto pessoas morrem na fila de espera do pronto-socorro ou do hospital porque não há vagas para internação. Nas nossas circunstâncias, as medidas de distanciamento social ou quarentena estão corretas —o resto é terraplanismo, oportunismo político ou lobby de empresários insatisfeitos.
Do ponto de vista econômico, há dois desafios. O primeiro é como responder à recessão. O segundo é como sair da quarentena sem causar repiques ou novos surtos de contaminação do coronavírus.
Começo pela recessão. As estimativas do PIB de 2020 variam muito, até porque dependem da duração da quarentena, da amplitude da rede de sustentação social que vier a ser implementada e também do que acontecerá no resto do mundo. Porém, a julgar pelo que acontece à nossa volta, teremos uma queda sem precedentes em nossa história.
A resposta do governo tem sido tímida, desorganizada e a reboque dos fatos. A garantia de que não faltará dinheiro para a saúde foi importante, mas muitas medidas anunciadas com pompa e circunstância não saíram do papel. E muito mais deve ser feito, tanto para pessoas físicas quanto para empresas, para reduzir ao mínimo o impacto da crise.
Várias propostas já foram escritas pelos economistas para assegurar uma rede de proteção social efetiva —e muitas delas já deveriam ter sido postas em prática. São medidas de caráter temporário e com foco nos mais necessitados. Segue uma lista, com alguns acréscimos meus:
1. O Tesouro deve pagar parte substancial dos salários dos trabalhadores. No Reino Unido, o governo paga 80% dos salários até determinado limite para evitar demissões.
2. Usando dados do Cadastro Único, Bolsa família, BPC e CPFs nas companhias telefônicas é possível ter um cadastro-base para um programa de transferência direta aos autônomos e desempregados, uma renda mínima para aqueles que comprovadamente não tem nenhuma outra fonte de renda.
3. Ampliar o alcance do seguro-desemprego e devolver aos trabalhadores parte expressiva ou até mesmo 100% do saldo de suas contas junto ao FGTS. Isso poderia ser viabilizado através de um empréstimo do Banco Central para a Caixa, tendo como lastro os créditos hoje financiados pelo FGTS.
4. Empréstimos a pessoas físicas com base no histórico do Imposto de Renda.
5. Diferir por lei parte do pagamento de prestações da casa própria, independentemente do banco que financiou a aquisição do imóvel.
Do ponto de vista das empresas, devemos postergar o pagamento de impostos e dívidas tributárias para preservar o caixa. O Tesouro deveria conceder empréstimos para pequenas e médias empresas, além de programas de apoio específicos a setores particularmente atingidos.
Obviamente tudo isso vai impactar a dívida pública. Uma coisa, no entanto, é uma dívida que cresce por irresponsabilidade populista dos governantes ou por força dos interesses privados incrustados no Orçamento; outra é um aumento excepcional de dívida diante de circunstâncias excepcionais.
O Banco Central tem respondido bem e agressivamente ao desafio de manter a liquidez do sistema financeiro. Faz sentido agora reduzir as taxas de juros, de curto e longo prazo. O preço dos empréstimos de liquidez importa mais que nunca em uma recessão. O Tesouro precisa encurtar o perfil da dívida pública, e o quadro institucional deve ser alterado para permitir ao Banco Central comprar títulos do Tesouro em mercado.
É importante diferenciar o que não deve ser feito do que pode ser feito dependendo da evolução da crise. Aumentar investimentos públicos ou comprar ações para fazer a Bolsa subir são exemplos de mau uso dos recursos públicos. Comprar debêntures e cotas de fundos de crédito, como faz o Banco Central Europeu, ou o Tesouro conceder empréstimos sem exigência de colateral são passos que podem vir a fazer sentido.
Deveríamos nos preocupar com a solvência do governo quando a dívida pública chegar a 85% ou 90% do PIB? E se o governo não conseguir mais vender papéis de dívida e tiver que pagar os credores em moeda?
Há uma enorme confusão nessa matéria. Bancos centrais imprimem papel moeda, mas no mundo digital em que vivemos os pagamentos feitos em papel-moeda são irrelevantes. O grosso das transações é feito por meio de cartões de crédito e débito, transferências bancárias ou aplicativos de pagamento digital. Exceto pelo papel-moeda, a “moeda” que o Banco Central cria é um depósito remunerado na conta de alguma instituição financeira.
A dívida pública, qualquer que seja seu tamanho, sempre pode ser paga. No limite, o Banco Central pode creditar os valores devidos na conta dos detentores dos papéis da dívida.
Disso não decorre que seu tamanho não faça diferença. Um estoque muito grande de dívida pública pode gerar pressões inflacionárias, mas só um lunático acharia que corremos um risco inflacionário nas circunstâncias atuais.
Além das medidas para minorar o efeito da recessão, temos que pensar na saída da quarentena. Todos sabemos que quarentenas por períodos longos de tempo são insustentáveis. O problema é que, por despreparo do governo, estamos às cegas.
É fácil pensar o ideal. Testagem em massa para poder diferenciar áreas onde o problema foi equacionado de outras onde o vírus ainda está se disseminando. Testar os que estão com febre, testar os que foram a hospitais, mas não precisaram ser internados, testar aleatória e maciçamente para detectar os assintomáticos.
Uma boa base de dados de contaminação pelo vírus, revisada diariamente, combinada com uma análise dos padrões de conectividade e da disponibilidade de leitos nos permitiria saber, com razoável segurança, quais cidades ou regiões poderiam reativar as atividades econômicas suspensas na quarentena.
Conhecemos a disponibilidade de leitos, e há estudos sobre conectividade disponíveis. Podemos mobilizar programadores que utilizem algoritmos de inteligência artificial para lidar com grande quantidade de dados.
O drama está na testagem em massa. O governo não se preocupou em ter a quantidade de kits necessários. Sem dados de testes abrangentes, a reativação da economia, muito provavelmente, levará a repiques do coronavirus.
Uma vacina vai demorar a surgir, mas a invenção de um teste rápido e barato do coronavirus ou uma combinação eficaz de remédios poderiam nos ajudar muito no curto prazo. São, no entanto, esperanças no momento. A triste realidade atual é que teremos de conviver com o vírus por mais tempo do que se imagina.
Em um discurso de estadista, o presidente francês, Emmanuel Macron, comparou a epidemia do coronavirus a uma guerra. Ganhar uma guerra, como bem sabem os generais, depende em boa medida do preparo prévio na logística, nos armamentos, nos planos de contingência e nos cenários de risco. Por incúria ou ignorância, entramos em uma guerra sem preparo algum.
*Persio Arida, economista, foi presidente do BNDES e do Banco Central no governo de Fernando Henrique Cardoso
**Este artigo foi escrito a partir de perguntas elaboradas pelos jornalistas Vinicius Torres Freire e Marcos Augusto Gonçalves.
Vinicius Torres Freire: Na coronacrise, é preciso dar dinheiro
Governo quer fazer o mínimo para combater o vírus e a ruína econômica
O governo tem preferido fazer o mínimo para atenuar a coronacrise. Quer gastar o mínimo possível, que não é o mínimo necessário ou prudente. Quer que a economia volte a rodar o quanto antes, sem as amarras de cordões sanitários e equivalentes; sem mais gasto público.
Essa é a opinião desse indivíduo que ocupa a Presidência, afinada com a de seus economistas, embora o indivíduo tenha também motivos que a razão desconhece.
A preferência fica evidente nas medidas de socorro. Em larga medida, trata-se de adiamento de impostos, antecipação de benefícios sociais, suspensão de dívidas ou oferta de crédito. Tais medidas são úteis, se parte de um plano maior, que inexiste, porém.
O adiamento de despesas cria um passivo, um peso a ser carregado por uma economia muito deprimida, o que deve tornar ainda mais lenta a recuperação depois da epidemia.
“Depois da epidemia” não é uma data, mas uma época, um tempo que vai se arrastar, uma convalescença demorada. O problema será tanto menor quando mais empresas e famílias resistam à peste econômica. Para que assim seja, é preciso compensar a renda destruída pelo paradão da coronacrise, não apenas criar passivos talvez impagáveis para daqui a alguns meses.
De mais impactante até agora, deve haver doação de R$ 60 bilhões para informais sem trabalho, que devem ficar com R$ 600 por mês cada um, graças ao Congresso, pois o governo propunha a mesquinharia de um terço disso.
O crédito para pequenas e médias empresas é uma boa ideia que o governo adotou no mínimo possível, com atraso. Não está previsto crédito para empresas que empregam dois terços dos trabalhadores com CLT (na média geral, ganham R$ 2.300 mensais).
Vários deles trabalham em empresas “grandes” (faturam mais de R$ 10 milhões por ano), várias delas com caixa. Certo. Mas muitas dessas “grandes” quebrarão também se não tiverem ajuda.
Ainda não há dinheiro ou plano para microempresas e seus milhões de empregados. A empresa mais comum no Brasil é a loja de roupas, 1,1 milhão de empresas, segundo o Sebrae. Em segundo lugar? Cabeleireiros, manicure e pedicure (808 mil). Comércio de comida: 508 mil. Restaurantes, lanchonetes e similares: 811 mil. Etc. A economia real é feita de uns 17 milhões de negócios modestos, vários já à beira da ruína.
Um pacote de crédito de bom tamanho para evitar a crise das micro, pequenas e médias seria o triplo do imaginado pelo governo, estimam entendidos. Além do mais, parte desse dinheiro deveria ser mera doação, em especial para os menores.
A saída da epidemia será lenta. Dependerá da redução do contágio e da letalidade, o que diminuiria o medo e a necessidade de confinamentos estritos. Menos contágio e mortes dependem de recursos para a saúde, mas ainda falta álcool em hospital.
O relaxamento das restrições dependerá de milhões de testes para que se coordene o isolamento de doentes e a reabertura da economia. Dependerá de remédios, ainda fora do horizonte. Dependerá de coordenação nacional, sabotada de modo feroz e ignorante pelo elemento na Presidência.
A retomada será tímida. Pessoas terão medo de se aglomerar nos comércios; terão menos renda e poupança. A economia mundial andará devagar. Mesmo na China, de tantas medidas agressivas, há tropeços na lenta recuperação e medo de recaída.
Mas, para haver retomada, é preciso aumentar o número de sobreviventes da peste econômica. Será simplesmente preciso dar muito dinheiro.
Bruno Boghossian: Bolsonaro está disposto a produzir massacre com sua ignorância
Presidente não tem evidências ou estudos para justificar reação delirante à crise
Duas universidades britânicas estimam que o Brasil terá centenas de milhares de mortos se não adotar medidas de distanciamento para enfrentar o coronavírus. Confrontado com essas previsões, Jair Bolsonaro deu risada. "Isso aí, no meu entender, é chute. Deve ter algum interesse econômico colocado em jogo aí", disse o presidente.
Bolsonaro é incapaz de apresentar evidências ou levantamentos sérios para justificar sua reação delirante à mais grave crise de saúde pública desta geração. O presidente se move por palpites, mentiras e interesses políticos. Está disposto a produzir um massacre com sua ignorância.
Pesquisadores brasileiros que trabalham diretamente no combate à pandemia alertam que há mais mortes por Covid-19 do que as anunciadas até agora. Esses especialistas dizem que algumas vítimas do vírus não recebem o diagnóstico correto.
Do sofá do Palácio da Alvorada, o presidente desconfia. Em entrevista à TV Bandeirantes, Bolsonaro disse que outras doenças causaram as mortes registradas até aqui. Ainda contestou, sem provas, as estatísticas do estado de São Paulo. "Não estou acreditando nesse número", afirmou, sem oferecer nenhum dado.
Não adianta que o prefeito de Milão tenha dito que foi um erro incentivar as pessoas a continuarem trabalhando quando o vírus começou a se espalhar. A 8.901 quilômetros de distância, o brasileiro acha que o problema da Itália é a idade da população. Por isso, ele quer que todos voltem às ruas imediatamente.
Os dois únicos planos concretos de Bolsonaro são baseados em puro achismo. Ele faz campanha pelo uso de cloroquina para tratar pacientes com Covid-19, mas não apresenta qualquer confirmação da eficácia do medicamento. Além disso, defende o isolamento de apenas parte da população, embora não tenha um mísero estudo sobre seu impacto.
O presidente despreza os fatos, mas sabe que o país terá milhares de mortes se a população seguir suas vontades. Ele não liga. "Alguns vão morrer. Lamento, é a vida", disse.