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El País: 'Hoje, dane-se o Estado mínimo, é preciso gastar e errar pelo lado do excesso', diz Monica De Bolle
Para a economista da Universidade Johns Hopkins, ministro Paulo Guedes está preso a dogmas ideológicos e mantém letargia para tomar decisões que afetam quem já está passando fome
Heloísa Mendonça, do El País
“E, para os defensores da calma e da serenidade, saibam: o momento é de urgência”, escreve a economista brasileira Monica de Bolle, em mais um tuíte para cobrar decisões rápidas de autoridades diante do quadro excepcional pelo qual passa o Brasil e o mundo. Pesquisadora do Instituto Peterson de Economia Internacional e professora da Universidade Johns Hopkins, em Washington, de Bolle tem sido incansável em defender que é preciso abandonar o teto de gastos para frear a escalada da pandemia de coronavírus e seus impactos econômicos. “Hoje, dane-se o Estado mínimo, você precisa gastar e é preciso errar pelo lado do excesso”, afirma a economista, que sempre pregou austeridade responsável.
Bolle critica a condução do ministro de Economia, o liberal Paulo Guedes, para enfrentar a crise e avalia que ao invés de tentar acalmar o mercado financeiro, o chefe da pasta deveria estar solucionando o problemas dos milhões de brasileiros que já não têm como se sustentar. Em entrevista ao EL PAÍS, a economista avalia que a posição negacionista de Jair Bolsonaro, que tenta minimizar a pandemia e quer afrouxar as regras de quarentena, pode escalar para uma situação “de absoluta instabilidade social e institucional”.
“Se você não aplicar o isolamento social e deixar a epidemia correr solta, como já vimos aqui em Nova York, o sistema de saúde entra em colapso e a economia junto. Não há como evitar o colapso econômico, ele vem na mesma forma, na verdade vem pior”.
Leia os principais trechos da entrevista:
Pergunta. O Senado aprovou, na noite desta segunda-feira, o projeto que prevê um auxílio emergencial de 600 reais para amparar os trabalhadores que perderam renda com a crise da pandemia de coronavírus. Agora a lei vai para sanção presidencial. A ajuda é suficiente?
Resposta. O texto aprovado foi tal qual o encaminhado pela Câmara, o que é bom, porque permite que o pagamento possa ser feito de imediato. Tenho algumas críticas, acredito que o projeto poderia ter sido aprimorado antes, mas isso é menos importante, porque o principal é que saia o pagamento. No entanto, acredito que seja necessário um projeto de lei complementar a esse, ajustando a cobertura do benefício para contemplar mais pessoas e não apenas os trabalhadores informais. No Brasil, há uma quantidade grande de trabalhadores formais cuja a situação é muito precária.
P. E a duração de três meses do benefício? É suficiente?
R. São três meses prorrogáveis, mas essa crise não terá acabado em 90 dias. Precisamos estender esse prazo para que as pessoas tenham a segurança mínima de que essa renda com a qual elas vão poder contar terá um prazo mais longo. Isso é muito importante para dar um chão às pessoas. Vários projetos que foram apresentados pela oposição queriam um prazo maior, mas o Governo resistiu e preferiu ficar só nos três meses. Jair Bolsonaro resiste em reconhecer que a crise vai ser mais longa do que três meses, porque isso vai de encontro com a narrativa a que ele se agarrou de que isso é uma crise de curto prazo, que vai acabar logo. Mas todo mundo já sabe que ela será mais longa, então é uma postura anacrônica. Ainda tem uma grande articulação de um PL complementar para ajustar esses dois parâmetros, mas é preferível aprovar dessa forma para não atrasar o processo de começar a pagar as pessoas. Mas isso depende do Governo Federal que tem que implementar a lei e desenhar a logística para isso. Já deveria ter feito isso na semana passada. Mais uma vez, o Governo está super atrasado. Alguns projetos de lei sobre medidas de proteção das empresas estão sendo formulados também. Outra vez, o Congresso vai propor um texto, que provavelmente será lei. Mas a implementação sempre é do Executivo. O Congresso vai até onde pode, mas precisa da perna do Governo para funcionar, se essa perna ficar inerte, como tocar para frente o que precisa?
P. Nos último dias, o Governo anunciou um pacote de medidas econômicas para amenizar os efeitos da crise, mas a maioria delas ainda estão no papel. O que é mais urgente?
R. É um caminhão de coisas que estão faltando, porque o Governo não fez quase nada, está em uma inércia absoluta. O Banco Central tomou ações importantes nas últimas semanas, todas elas na direção correta, de dar liquidez para o mercado, indiretamente para as empresas, que precisam também. O BC tem feito, no entanto, o esforço que pode, já que o protagonista precisa ser o Ministério da Economia. E o esforço maior que precisa ser feito é muito grande. Requer o repasse dos recursos ao Sistema Único de Saúde (SUS), a implantação da renda mínima, as linhas de crédito que você pode dar para as empresas para garantir empregos. Não se pode apenas atuar na frente das pessoas vulneráveis, mas também na manutenção dos empregos formais. E só se consegue isso dando sustentação para as empresas. É necessário desenhar qual a forma que você vai fazer isso, e a maneira a ser feita para uma empresa de médio porte é completamente diferente para um microempresário, ainda mais para as microempresas que estão muito endividadas e não vão conseguir linha de crédito dos bancos públicos. Para esses microempresários, é necessária uma ação parecida com a renda mínima. O Tesouro dá dinheiro diretamente para essas empresas com uma contrapartida de manutenção de emprego, dá para monitorar. Além disso, o microempresário muitas vezes é uma pessoa só, não é questão de manutenção de emprego é de sobrevivência dessas pessoas.
P. Fica claro que o Governo precisará adotar uma política de gastos fortes, mas tem uma equipe liderada por Paulo Guedes, um liberal que, desde o dia um, prometeu cortes e menos Estado na economia. Como avalia a condução do ministro diante da crise do coronavírus?
R. O Paulo Guedes está completamente despreparado neste momento para enfrentar essa crise. A letargia e a inércia já demonstram isso. A incapacidade de largar os dogmas ideológicos que ele tem, como o Estado mínimo, o Estado que não pode gastar, é completamente inapropriada para esse momento. Hoje, dane-se o Estado mínimo, você precisa gastar. É preciso é errar pelo lado do excesso não para o lado da cautela numa crise desse tipo.
P. Neste fim de semana, em uma live com representantes da corretora XP, Guedes afirmou que “é conversa fiada” os rumores de que ele sairia do cargo. A videoconferência foi vista como um movimento para acalmar o mercado financeiro.
R. Isso é mais um despreparo, essa preocupação de passar recado para o mercado. Ninguém tem que passar recado para o mercado, precisa trabalhar para as pessoas, são as pessoas que estão morrendo de fome e que já não têm condições de se sustentar que importam. É incrível essa surdez e essa cegueira. O mercado tem o auxílio do BC, não é hora do ministro da Economia ficar falando com o mercado, fazendo live para o mercado. O que que é isso? Ele deveria estar pensando em como implementar a renda mínima, como fará a distribuição dos 600 reais para as pessoas elegíveis a receber. Como ele vai fazer para lidar com as diferentes áreas de atuação e planos de ação para as empresas e os planos de manutenção de empregos. Quanto realmente ele vai destinar para o SUS. A calamidade está decretada. A lei de responsabilidade já dá a flexibilidade necessária. Ele já tem tudo que precisa para agir, ele não precisa de mais nada, precisa de agir, mas perde tempo com o mercado fazendo conferência, numa situação de absoluta emergência onde as ações são necessárias para ontem.
P. Uma das primeiras medidas anunciadas pelo ministério da Economia, que precisou recuar, mirou o lado das empresas — que poderiam suspender os contratos de trabalho —, mas não contemplou, em um primeiro momento, como o empregado iria sobreviver. Como resolver a questão dos empregados e empregadores?
R. É uma falta de entendimento total. Se você não estiver dando apoio para os trabalhadores de todos os tipos, informais, formais, autônomos, se não der sustentação para as pessoas, você também não está dando sustentação para as empresas. Tem que ser uma ação coordenada para as pessoas e empresas, para que você não tenha um desemprego em massa no país, porque isso também vai quebrar as empresas. Não vai ter gente para consumir. É uma absoluta falta de compreensão da gravidade do momento e da urgência das medidas, de sentar e trabalhar. Se não tem capacidade de fazer isso, pede ajuda. Há muitas pessoas dando ideias e tentando formular propostas que possam ser levadas para frente. Por que o ministro precisa ser tão turrão a ponto de não escutar?
P. A postura do presidente Jair Bolsonaro de minimizar a pandemia de coronavírus pode de fato afetar as decisões do ministério da Saúde e outras autoridades do país? Induzir a própria população a tomar um caminho contrário ao determinado pela OMS?
R. Em tese sim, mas na prática eu estou achando que não. Mesmo Santa Catarina que tem um governador [Comandante Moisés (PSL)] mais alinhado com Bolsonaro, que já estava cedendo às pressões do comércio e de alguns empresários local para abandonar as medidas de quarentena, voltou atrás. A manifestação da epidemia, que nas próximas duas semanas vai ser absurdamente dramática no país, vai impedir que as pessoas sigam essa linha. A população de modo geral está muito assustada com o que está acontecendo. A postura de Bolsonaro vai afetar em alguma medida, mas não de forma generalizada. Não acredito que governadores e prefeitos voltem atrás. Bolsonaro induz, no entanto, algumas pessoas, principalmente as mais vulneráveis — que vivem de pequenos comércios, biroscas, ou que são ambulantes — a se sentirem mais autorizadas a irem para rua. Essas pessoas sabem o risco que estão correndo, mas nessa situação a pessoa escolhe entre ficar em casa e não ter o que comer ou sair para conseguir dinheiro. Mas é terrível, porque coloca a vida da pessoa em risco com uma desinformação tremenda. É criminoso. É algo completamente criminoso, é de uma indigência absoluta. É surreal.
P. Ao combater as regras de quarentena, Bolsonaro se isola até mesmo de aliados políticos que têm grande peso em suas decisões, como o presidente Donald Trump, que chegou a adotar essa linha negacionista da doença, mas já voltou atrás…
R. A reviravolta do Trump é impressionante. Ele começou falando no início que era apenas uma gripe, um resfriado, nessa linha do Bolsonaro, que as pessoas morrem todo ano de gripe. Estava completamente embarcado nesse discurso. As pessoas ao redor dele conseguiram, no entanto, mudar seu alinhamento para algo mais pé no chão. Mesmo assim, ele titubeou quando afirmou que as pessoas poderiam sair do isolamento até o dia 12 de abril, mas neste domingo anunciou que a quarentena vai até o dia 30 de abril. O que mais mexe com Trump é a eleição. Ele percebeu, ao contrário do nosso presidente tupiniquim, que está entre a cruz e espada. Se ele deixar a epidemia correr solta, as mortes vão cair no colo dele. E se ele adotar as medidas de quarentena necessárias, a economia vai sofrer um baque, mas o Governo está fazendo as medidas para amenizar, estão passando os pacotes, o Fed [ Banco Central dos EUA] está atuante. O cálculo político de Trump é que ao dar voz aos médicos e infectologistas, apesar da economia parada e do desemprego, sua aprovação está crescendo. Seria um risco muito maior para a sobrevivência política dele manter essa linha de reabrir o comércio. Bolsonaro não tem uma eleição imediata em vista, no entanto, ele deveria fazer algum cálculo político, porque é óbvio que ele será culpado pelas mortes e pela sobrecarga no sistema de saúde. Os cientistas estão muito na linha de frente nos EUA, enquanto no Brasil, Bolsonaro desmente todas as pessoas que estão falando da gravidade da doença.
P. Bolsonaro tem criado ruído inclusive com o próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
R. Exatamente. Cria uma fissura entre ele e o Mandetta, tira dele a capacidade do que ele precisa fazer, o ministro fica desautorizado e é a pior sinalização, pior maneira de enfrentar a crise.
P. Quais medidas outros países estão implementando que deveriam ser exportadas aqui no Brasil para amenizar os efeitos da pandemia?
R. Acho que há um consenso de alguns pilares. É preciso dinheiro para o SUS a quantidade que for, pelo menos uns 50 bilhões de reais. Verbas para as micro e pequenas empresas no esquema de renda mínima, onde você tem como contrapartida não demitir funcionários. Eu calculei 30 bilhões de reais. Renda mínima para os 77 milhões do cadastro único com o esforço de recadastramento para alcançar umas 100 milhões de pessoas, já que sabemos que atualmente temos cerca de 50% a 60% da população em situação de vulnerabilidade. Quarto pilar, a proposta do Armínio Fraga [economista e ex-presidente do Banco Central] para empresas de maior porte que poderiam receber recursos de bancos públicos, onde o crédito está atrelado à manutenção do emprego. E um plano de reconversão industrial, que poderia ser viabilizado via BNDES, que consiste em um crédito para fazer a produção de equipamentos hospitalares. Converter suas plantas de produção em fábricas para equipamentos de saúde, toda parte de proteção, máscara e vestimentas. É isso que vejo os países fazendo de acordo com as necessidades específicas de cada país.
P. Alguns deputados e entidades começam a falar na contribuição dos mais ricos para ajudar amenizar essa crise, sugerindo a volta do debate de um aumento de impostos para grandes fortunas e patrimônios. Paulo Guedes já afirmou que descarta um plano de tributos nesse momento. Qual a sua opinião?
R. Acho que a discussão sobre o tema é válida, mas não neste momento. O mais importante é tomar as medidas de emergência, emitindo dívida e acabou. Mais para frente, como essas medidas vão ser mais permanentes que temporárias, você começa a ver como vamos fazer para financiar a médio prazo isso tudo. Aí sim tem que entrar a discussão sobre imposto sobre grandes fortunas, sobre patrimônio, um imposto progressivo de renda. Mas não é a reforma tributária que estava sendo discutida de unificar e simplificar imposto. Não. É uma reforma para inverter a pirâmide tributária no Brasil. Para que as pessoas de maior renda e patrimônio arquem com o custo de ter que fazer essa redistribuição para ajudar os mais vulneráveis. Mas não é a discussão a ser feita na hora da emergência. Este momento é de emitir dívida.
Bruno Boghossian: Bolsonaro insiste em desinformação para manipular debate sobre vírus
Mentirada é estratégia conhecida do presidente, mas agora põe vidas em risco
No início da tarde, o ministro da Saúde lançou um alerta. Henrique Mandetta afirmou ser "muito importante evitar as notícias falsas" sobre a pandemia do coronavírus e fez um apelo: "Estamos lidando com a vida de seres humanos". Ainda falta mandar o aviso ao presidente.
Jair Bolsonaro acordou no Dia da Mentira disposto a golpear a realidade. Pela manhã, ele publicou um vídeo para dizer que as medidas de isolamento implantadas no combate ao vírus haviam provocado desabastecimento de comida em Minas.
Não era verdade. A rádio CBN foi até a Ceasa e mostrou que a situação era normal. A gravação havia sido feita durante a limpeza do espaço. O presidente apagou a postagem e pediu desculpas, não sem antes ser desmentido pela ministra da Agricultura, que disse não haver notícias de desabastecimento no país..
Sergio Moro também pegou carona em relatos falsos. Na terça (31), o ministro da Justiça interrompeu uma entrevista no Planalto e divulgou o boato da prisão de um traficante que teria passado a cumprir pena em casa para evitar contágio pelo coronavírus. Era mentira. Segundo a Polícia Civil gaúcha, o tal homem não estivera preso antes.
O presidente e seus aliados continuam espalhando desinformação para manipular o debate da crise. Redes como Twitter e Instagram já tiveram que apagar ou editar postagens de bolsonaristas para conter a correnteza. O último alvo foi Regina Duarte, que publicou a informação falsa de liberação da cloroquina pela Anvisa no tratamento da Covid-19.
A mentirada é uma conhecida estratégia política do governo para produzir tumulto e confundir a população. A diferença é que, agora, esse jogo põe vidas em risco.
Porta-voz da ala radical do Planalto, Carlos Bolsonaro afirmou que o país caminhará para o socialismo se a população pobre depender de dinheiro do Estado para comer. Além da crise, os miseráveis também serão vítimas da cegueira ideológica.
El País: Brasil entra em corrida contra o relógio para obter material médico contra coronavírus
Mandetta admite problemas de estoque e aponta que o isolamento social é a única solução para proteger a população antes do pico de casos, em duas semanas
Enquanto o Brasil ainda tenta ampliar a capacidade de testagem para o coronavírus e fazer um desenho mais atual e real sobre a disseminação da doença ―com suas 240 mortes e 6.836 pessoas infectadas―, o país enfrenta o risco da falta de insumos que vão desde os equipamentos de proteção individuais para os profissionais de saúde até os respiradores, fundamentais para garantir a sobrevivência dos casos mais graves da Covid-19. “Nós estamos muito preocupados com a regularização de estoques”, afirmou o ministro Luiz Henrique Mandetta nesta segunda-feira (1), ao expor as dificuldades que o país enfrenta para adquirir esses materiais devido à alta demanda e à disputa no mercado internacional. Sem detalhar a capacidade estocada no Brasil, o ministro garantiu que no momento os Estados ainda estão abastecidos, mas disse que a situação pode se complicar em breve. "Agora é lutar com as armas que a gente tem”, afirmou o ministro, que ainda apontou o isolamento social como a única medida para frear o contágio e evitar o colapso do sistema de saúde. Neste momento, o país corre contra o relógio para conseguir expandir o Sistema Único de Saúde (SUS) antes de entrar no pico da doença. “Movimentar nesta fase é o que podemos fazer de pior”, acrescenta Mandetta.
O ministro informou nesta quarta-feira que o Brasil registrará um grande aumento de casos de Covid-19 até o final da semana que vem. De acordo com o ministro, se as medidas de isolamento social forem mantidas, as chances são de que 96% da população brasileira saia “bem” dessa crise sanitária. Ele ressaltou que o Brasil não fez lockdown, ou seja, o Governo não decretou quarentena total oficialmente, mas alertou de que o país “precisa redobrar o esforço”. "Se nós sairmos, se nos aglomerarmos, se nós fizermos movimentos bruscos e relaxarmos, podemos ficar com uma série de problemas em relação aos equipamentos de proteção individual, porque nós não estamos conseguindo adquirir de forma regular o nosso estoque”, afirmou, explicando que, no momento, todas as secretarias de saúde estaduais estão abastecidas.
“O nosso problema é que esse vírus foi extremamente duro. Derrubou, machucou e parou a produção dos EPIs (equipamento de proteção individual), que os hospitais utilizam no mundo todo”, lamentou Mandetta, referindo-se, principalmente, à China, maior produtora desses insumos. O ministro disse que compras de luvas, gorros, máscaras e outros materiais feitos pelo Brasil ao país asiático “caíram” quando a demanda mundial ficou hiperaquecida e depois que os Estados Unidos compraram um grande volume desses itens fundamentais no enfrentamento da crise de coronavírus.
“Hoje, os Estados Unidos mandaram 23 aviões cargueiros dos maiores para a China, para levar o material que eles adquiriram. As nossas compras, que tínhamos expectativa de concretizar para poder fazer o abastecimento, muitas caíram”, informou Mandetta. Segundo ele, fornecedores de respiradores, importantes para pacientes graves, já haviam sido contratados, mas avisaram que ficaram sem estoque.
O ministro também disse que o Governo Federal avançou na “possível compra” de 8.000 respiradores mecânicos, mas que já uma certeza em relação à entrega dos aparelhos. “Está havendo uma quebra entre o que você assina e o que recebe. Eu só acredito quando estiver dentro do país, na minha mão”, afirmou. “Quando acabar dessa epidemia, eu espero que nunca mais o mundo cometa o desatino de fazer 95% da produção de insumos que decidem a vida das pessoas em um único país”, acrescentou o ministro, referindo-se mais uma vez à China. Com o discurso, Mandetta ecoa outros Governos, como o da França, que também diz que buscará mais autonomia na produção de insumos médicos.
A corrida para a testagem
O Brasil também corre contra o tempo para ampliar a sua capacidade de testagem ―um dos principais gargalos do país no enfrentamento da epidemia. É um dispositivo fundamental tanto para que o Governo tenha uma dimensão mais real da disseminação do vírus quanto para que os profissionais de saúde possam determinar a quarentena a familiares de infectados. O ministro Luiz Henrique Mandetta explica que, nos próximos dias, haverá uma explosão de casos por conta da demanda reprimida que aguarda há dias o resultado da testagem. O ministro reconhece que há uma fila grande de espera, mas não mensura o tamanho dela. Diz apenas que o Brasil começou a automatizar o processamento dos testes PCR para dar agilidade a esse processo e começa a utilizar os testes rápidos, sem detalhar a capacidade total de testagem do país com as novas medidas.
Os chamados testes PCR são feitos em laboratório e têm uma complexidade e uma precisão maior na identificação. O profissional de saúde coleta material das vias respiratórias do paciente e o encaminha ao laboratório, que analisa se existe a carga genética (ou RNA) do novo coronavírus neste material. “Tem uma sensibilidade muito alta, de quase 100%”, explica Mandetta. Esse teste, porém, tem um custo mais alto e exige tanto capacidade de profissionais quanto de maquinário específico.
Atualmente, o teste PRC está sendo racionado e, portanto, é aplicado apenas nos casos suspeitos mais graves, de pessoas internadas com sintomas compatíveis com a Covid-19. Mandetta diz que o Brasil já começou a ampliar sua capacidade de testagem, mas não cita dados específicos sobre quantos testes diários o país consegue processar atualmente. Na semana passada, o país processava 6.700 testes diários. E os próprios técnicos do Ministério da Saúde projetam que o país precisaria atingir um total de 30.000 a 50.000 testes diários para desenhar com mais precisão a curva epidemiológica do coronavírus no Brasil. No momento, o retrato dos casos confirmados do Brasil é sempre um recorte do passado, por causa da demora para o resultado dos testes.
É nesse contexto que o Governo optou por trabalhar também com os testes rápidos e sorológicos. Embora numa velocidade bem inferior ao que prometeu há duas semanas (quando anunciou 5 milhões de novos testes para o fim de março), o Ministério da Saúde iniciou a distribuição de um primeiro lote de 500.000 unidades desse tipo pelo país. Esses testes especificamente identificam a presença de anticorpos produzidos pelo corpo humano ao entrarem em contato com o coronavírus e, por isso, só devem ser aplicados após o sexto dia dos sintomas da Covid-19. Antes disso, o teste ―que demora menos de meia hora para dar o resultado― não seria eficaz.
O teste sorológico que começou a ser distribuído nesta sexta-feira tem uma precisão muito inferior ao PCR para um resultado fiel do coronavírus. “Eles devem ser úteis, mas precisam ser avaliados e validados no Brasil”, explica a infectologista Carol Lazari, médica-chefe do setor de biologia molecular do Hospital das Clínicas. Ela alertava sobre a necessidade de observar no Brasil quanto esses testes conseguem detectar a doença e o quanto não dá falso positivo (no vocabulário médico, a sensibilidade e a especificidade dos testes, respectivamente). O ideal era que os testes tivessem 80% de sensibilidade. Mandetta diz que o Ministério espera que a sensibilidade dos testes que começam a ser distribuídos seja de 40%. Mesmo assim, destaca que esses materiais serão utilizados corretamente e poderão auxiliar o Governo a ter uma noção maior da disseminação do vírus no Brasil.
“A nossa estratégia é dupla”, ponderou o ministro, ao explicar que os casos graves continuarão a ser testados por PCR. Os testes rápidos ―ao todo, 5 milhões, doados pela mineradora Vale― serão utilizados apenas como instrumento de triagem, aplicados em profissionais de saúde e agentes de segurança com sintomas de síndrome gripal. "Ele serve apenas para marcar se a pessoa tem ou não o anticorpo que combate o vírus. Vai mostrar se você já teve no passado, e nesse caso está imune, ou se tem o vírus no período latente da doença”, afirma Mandetta.
Outros tipos de teste estão sendo negociados pelo ministério, que diz esperar chegar a 22,9 milhões deles, mas ainda trabalha na negociação direta com fornecedores e no diálogo com a iniciativa privada, que tem anunciado doações. O Governo diz que prepara a implantação de unidades volantes, um tipo de drive thru, como os realizados na Coreia do Sul e Estados Unidos, onde as pessoas poderão fazer o teste e receber o resultado no dia seguinte por meio de um aplicativo de celular. A ideia é utilizar a ferramenta em cidades com mais de 500.000 habitantes para conter surtos, isolando mais rapidamente os pacientes infectados.
Bernardo Mello Franco: Novo tom de Bolsonaro parece pegadinha de 1º de Abril
É sempre arriscado apostar na moderação de Jair Bolsonaro.
No pronunciamento de ontem, o presidente ensaiou uma mudança de tom sobre o coronavírus. Depois de chamar a epidemia de "gripezinha" e "resfriadinho", disse que o combate a ela será o "maior desafio da nossa geração".
Bolsonaro também pediu a "união de todos num grande pacto pela preservação da vida e dos empregos: Parlamento, Judiciário, governadores, prefeitos e sociedade".
Essa bandeira branca durou poucas horas. Hoje cedo, o presidente postou nas redes sociais um vídeo em que um homem diz que os governadores "querem ganhar nome e projeção política à custa do sofrimento da população".
No vídeo, o homem exalta Bolsonaro relata uma situação de desabastecimento na Ceasa de Belo Horizonte. Agora há pouco, o repórter da CBN Pedro Bohnenberger esteve lá e mostrou que não há desabastecimento. Pelo contrário: os feirantes disseram que as vendas aumentaram durante a pandemia. Ou seja, o presidente voltou a divulgar fake news para fazer luta política.
Ao que tudo indica, o novo tom de Bolsonaro na TV foi uma pegadinha antecipada de Primeiro de Abril, o Dia da Mentira.
Nelson de Sá: China começa a frear importações do Brasil
Pequim parou de aprovar frigoríficos, noticia Reuters; Bolsonaro é 'um perigo para os brasileiros', diz editorial do Guardian
Por agregadores e jornais como New York Times, a Reuters despachou a notícia "exclusiva" de que a "China não aprovou nenhum novo frigorífico brasileiro" no primeiro trimestre.
Em Brasília, o secretário de Relações Internacionais do Ministério da Agricultura acredita que é "por causa da pandemia" e assegura que "ainda há boa vontade dos dois lados".
A notícia vem duas semanas após Eduardo, filho de Jair Bolsonaro, tuitar que "a culpa [pela pandemia] é da China", causando um confronto diplomático.
Na última semana, o general Augusto Heleno saiu da quarentena para publicar afinal os requisitos de segurança das redes 5G, sem restrições à gigante chinesa Huawei, mas o gesto pouco repercutiu por lá.
O único registro que foi possível encontrar desde a sexta, nos agregadores e jornais chineses, saiu na plataforma de mídia 36Kr, de Pequim.
Por outro lado, portais como Baijiahao, do Baidu, vêm publicando como o "Brasil de repente mudou o discurso e impôs tarifas adicionais por cinco anos a produtos chineses" como louças de mesa e pneus de moto.
'UM PERIGO PARA OS BRASILEIROS'
Em editorial, o britânico The Guardian destaca que Jair Bolsonaro "está destruindo as tentativas de seu país de conter a disseminação do coronavírus", mas encerra o texto em nota positiva, apontando com ironia seu crescente "isolamento".
SEM GUAIDÓ
Em artigo no Wall Street Journal, Elliott Abrams, o responsável por Venezuela no governo americano, afirma já no enunciado que o "Departamento de Estado propõe que Maduro e Guaidó se afastem ambos", no que descreve como "um novo caminho" a ser buscado. Ou seja, "os EUA não apoiam nenhum partido em particular na Venezuela" e, em seu novo plano, os militares venezuelanos é que teriam "papel essencial".
A porta-voz do ministério chinês do exterior, Hua Chunying, respondeu por mídia social que "a China se opõe a qualquer força externa que, sob qualquer pretexto, infrinja a soberania da Venezuela".
DÉCADAS?
De início, o estudo de universidades americanas e britânicas publicado na Nature há duas semanas, sobre a origem do Covid-19, ecoou por derrubar a teoria conspiratória de que o vírus teria sido criado em laboratório.
Mas na semana passada um diretor do Departamento de Saúde dos EUA esclareceu, no site do órgão, com a ilustração acima, que o estudo mostra que o vírus pode ter sido transmitido de animais para seres humanos "anos ou talvez décadas" antes de se tornar letal, em Wuhan.
Foi parar nas manchetes do South China Morning Post, de Jack Ma, ao Drudge Report, "Coronavírus pode ter se espalhado entre humanos por décadas".
Nelson de Sá é jornalista, cobre mídia e política na Folha desde a eleição de 1989.
Jorge Abrahão: Um vírus democrático que evidencia a fragilidade da democracia
Vírus inicialmente atingiu mais abastados, mas evidenciará desigualdades aos chegar nos mais pobres
A crise do novo coronavírus tem uma característica rara num mundo habituado a descarregar seus problemas nos mais vulneráveis: no Ocidente, atingiu primeiramente os países mais ricos e, nesses, as pessoas que tiveram acesso a outros países que, via de regra, são as mais favorecidas. Com isso, o medo do vírus mobilizou parcela da população que normalmente está protegida, dado o acesso a condições materiais e de infraestrutura que a grande maioria não tem. Neste sentido, o vírus é democrático por ameaçar a todos, independentemente de sua condição financeira, o que não é trivial no mundo e, muito menos, no Brasil.
O problema é que o vírus vai chegar nos mais pobres e, então, aparecerão de maneira mais acentuada ainda a desigualdade e a diferença de condições para enfrentá-lo. Será que desta vez aprenderemos que não é possível manter tamanha quantidade de pessoas em situação tão vulnerável? Cairá a ficha de que temos recursos que poderiam ser melhor distribuídos, gerando uma sociedade mais equilibrada, que é interesse de todos?
Na realidade, a democracia na maioria dos países foi incapaz de melhorar a vida da maioria da população. Não porque intrinsecamente produza desigualdade, mas porque a política foi dominada pelos grandes grupos econômicos e passou a defender mais o interesse privado do que o interesse público. Não é por outro motivo que o Brasil ostenta vergonhosas concentração de renda e desigualdade social.
A consequência é que, em momentos de crise, estas feridas aparecem e, de repente, nos damos conta de que 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável e que 95 milhões de pessoas, quase metade da população, não têm coleta de esgoto —em um momento em que o saneamento básico faz a diferença para a saúde pública.
E habitações precárias fazem com que boa parte da população não possa assumir, minimamente, o isolamento social. Será que os governos vão finalmente investir para solucionar estes problemas? As prioridades serão, de fato, invertidas?
Do ponto de vista de sobrevivência das pessoas, há um bom tempo se discute a necessidade de garantir uma vida digna para todos. Antes da crise, era pela ameaça de desemprego de até 45% dos trabalhadores em função da revolução tecnológica, combinação de automação industrial e inteligência artificial, que avança rapidamente. Na última segunda-feira, 30 de março, o Congresso aprovou a proposta da renda básica emergencial. Será possível tornar a medida perene como uma necessidade da população mais vulnerável?
Pelo que se pode supor a tendência é a de voltarmos, no pós-corona, na mesma chave que estávamos antes da crise. Isto é, as coisas vão mudar para que tudo continue como sempre foi.
A pressão de parcela significativa do poder econômico —que tem enorme influência na política— pela volta imediata das atividades econômicas diz muito e reduz a esperança de que a quarentena tenha provocado reflexões mais profundas na elite econômica sobre nosso modelo de desenvolvimento e necessidades de transformação.
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A esperança por mudanças fica depositada nos cidadãos (as), já que muitos estão repensando a vida e conscientizando-se da insanidade deste turbilhão em que estamos metidos. O vírus evidenciou ainda mais a nossa fragilidade.
Cabe reconhecer a importância da política e o fato de que, sem ela, não enfrentaremos a crise. Justamente ela, a política, que vem sendo escorraçada por boa parte da sociedade. Em última instância, são os políticos que, para o bem e para o mal, estão enfrentando a crise.
Resta apostarmos no aprimoramento da democracia, que dependerá da participação, transparência e monitoramento da sociedade. Se o indicador for bem-estar da população, a democracia ainda está devendo, mas cabe cuidar para que os governos defendam o interesse da maioria da população e, efetivamente, proporcionem uma condição qualidade de vida para todos. Este é dos maiores desafios que temos pela frente, para evitar que aventureiros aproveitem de suas fragilidades e assumam o poder, perpetuando a desigualdade que não nos deixa avançar como nação.
Jorge Abrahão é coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis, organização realizadora da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis.
Maria Cristina Fernandes: Discurso dá guinada contra isolamento
Presidente dá guinada de 180 graus e abandona o discurso da “histeria e pânico” que marcou o pronunciamento anterior
Numa reação ao isolamento que lhe foi imposto desde o pronunciamento da semana passada, o presidente Jair Bolsonaro girou em 180 graus sua abordagem sobre a pandemia em pronunciamento em rede nacional.
No pior dia desde o início do enfrentamento do coronavírus no Brasil, quando foram registrados 42 mortos e 1.138 novos casos, o presidente abandonou o discurso da “histeria e pânico” que marcou o pronunciamento anterior. Disse que os efeitos das medidas não podem ser piores do que a doença que visam combater. “Minha preocupação sempre foi a de salvar vidas, tanto aquelas ameaçadas pela pandemia quanto pelo desemprego”.
O presidente voltou a comparar sua abordagem àquela feita pelo diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus. Bolsonaro citou um trecho do discurso do dirigente da OMS em que ele lembra sua origem pobre para se dizer preocupado com aqueles que precisam trabalhar para ganhar a vida.
Omitiu, no entanto, que este trecho foi precedido pela ponderação de Ghebreyesus de que os governos, ao adotarem medidas para restringir a circulação, devem garantir apoio às pessoas que perderam renda e aos mais velhos e vulneráveis.
Bolsonaro reproduziu um trecho do discurso do dirigente da OMS - “toda vida importa” - para se contrapor à sua própria declaração:
“Alguns vão morrer? Vão morrer, ué, lamento.” Insistiu na comparação a despeito de o diretor-geral da OMS ter esclarecido que não corroborara com o fim do confinamento, mas apenas apelara à sensibilidade dos governantes.
Bolsonaro citou medidas como a liberação de R$ 600 para trabalhadores informais, ainda pendente de sanção presidencial, linhas de crédito para empresas, além do adiamento no reajuste dos medicamentos e do pagamento das dívidas de Estados e municípios.
Na mão contrária à adotada há apenas uma semana, quando confrontara governadores e prefeitos pelo isolamento, o presidente conclamou a união de todas as autoridades para salvar vidas e elogiou a atuação dos profissionais de saúde e de atividades essenciais.
O discurso marca uma inflexão na postura. Os panelaços durante o pronunciamento nas grandes cidades, porém, sugerem que Bolsonaro demorou muito para voltar atrás e terá dificuldade em reconquistar a confiança da população.
Elio Gaspari: A lição do SUS para o mundo
Capotou o Brasil Paraíso dos grandes grupos de medicina privada
Em agosto passado, numa entrevista à repórter Érica Fraga, o professor José Pastore avisou: “Nosso mercado de seguros e previdência ainda não despertou para o fato de que 50% da população economicamente ativa está na informalidade”. Com que proteção? “Nada, zero. Nem proteção trabalhista, nem CLT, nem previdência, nem seguro-saúde, nada.”
Ele foi adiante: “No novo mundo do trabalho, você tem três enfermeiras num mesmo hospital. Uma é fixa, outra é terceirizada e a outra, freelancer. Fazem a mesma coisa, mas têm remuneração e benefícios diferentes. Isso é um escândalo para o direito do trabalho convencional”.
Tristemente, esse Brasil Fantasia explodiu com a epidemia da Covid-19. Capotou a economia que estava a “um milímetro do paraíso” (palavras de Paulo Guedes) com 38 milhões de brasileiros na informalidade. Capotou também o Brasil Paraíso dos grandes grupos de medicina privada. A conta da Covid-19 está nas costas do SUS, o patinho feio da medicina nacional.
Alguém poderia supor que num país desigual a desigualdade seria desigualmente repartida. Ilusão.
Quando surgiu a necessidade dos testes para detecção do coronavírus foi necessário que a Agência Nacional de Saúde determinasse a obrigatoriedade da cobertura pelos planos de saúde. Feito isso, a Federação Nacional da Saúde Suplementar (Fenasaúde), guilda das 15 grandes operadoras de planos, informou as condições para que essa cobertura fosse honrada.
A pessoa precisava estar com febre acima de 37,8 graus, tosse ou dificuldade para respirar. Segundo a guilda, “o exame específico será feito apenas nos casos em que houver indicação médica para casos classificados como suspeitos ou prováveis de doença pela Covid-19”.
Essas exigências seriam razoáveis, sobretudo sabendo-se que não há testes suficientes à mão. A guilda informou também que “a cobertura do tratamento a pacientes diagnosticados com Covid-19 já é assegurada a beneficiários de planos de saúde, conforme a segmentação (ambulatorial, hospitalar ou referência) contratada. Em casos indicados, o beneficiário terá direito a internação caso tenha contratado cobertura para atendimento hospitalar e desde que tenha cumprido os períodos de carência, se houver previsão contratual”. Não contratou? Está fora. As operadoras sabem que a conta irá para o patinho feio do SUS. Jogo jogado.
O silêncio e o rigor da rede de medicina privada pressupõem que ela existe no país dos com-plano que se subdivide entre os que tiverem “contratado cobertura para atendimento hospitalar” e aqueles que, azarados, não a contrataram.
Nos Estados Unidos, onde não há SUS, mas há capitalismo de verdade, o jogo foi outro. Na semana passada a seguradora Aetna (22 milhões de segurados) anunciou que não cobraria alguns pagamentos laterais exigidos nos contratos. A iniciativa espalhou-se com a rapidez do vírus e 78 operadoras anunciaram diversas modalidades de ajuda. David Cordani, CEO da seguradora Cigna (12 milhões de segurados), informou: “Nossos clientes com Covid-19 devem se preocupar com a luta contra o vírus e em prevenir sua propagação. Enquanto eles estiverem focados na recuperação de suas saúdes, terão nossa proteção”.
As operadoras americanas não bancarão todos os custos dos tratamentos. Apenas mostram que estão acordadas e preocupadas com a saúde de seus clientes.
Afonso Benites: Bolsonaro calibra tom, mas segue sem defender isolamento social
Mandatário se viu isolado politicamente e afastado até do aliado Trump na luta contra doença. Presidente distorceu fala de diretor-geral da OMS. Panelaços soaram em várias cidades brasileiras
Uma semana depois de fazer um pronunciamento na TV negando a gravidade do novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro voltou às telas brasileiras nesta terça-feira com um tom algo mais moderado sobre a pandemia. Saíram as menções à “gripezinha”, como ele havia se referido à doença, os ataques à imprensa e as ironias a prefeitos e governadores que haviam determinado medidas de isolamento social para conter a velocidade de contágios. O que apareceu desta vez foi um presidente que tentou se por à frente do combate da doença, citando especialmente que empregará as Força Armadas na tarefa, que chamou de “desafio da geração”. Ele também mencionou as perdas de vidas que serão ocasionadas pela Covid-19. Como costuma fazer, no entanto, seguiu acenando à sua base radical: não mencionou nem uma vez a importância de reduzir a circulação social para conter o avanço da doença, como martelam as autoridades do Ministério da Saúde e da OMS (Organização Mundial da Saúde): “Temos uma missão, salvar vidas, sem deixar para trás, os empregos”, equiparou. Como se tornou praxe há duas semanas, o pronunciamento foi acompanhando por panelaços em várias cidades brasileiras.
Nos últimos dias, Bolsonaro tem registrado seguidas perdas de apoio político, inclusive internamente no Governo. Ao contrário de vários líderes mundiais, ele segue insistindo que só deveriam ficar isolados os idosos e as pessoas que apresentem alguma doença grave. Até mesmo o americano Donald Trump, em quem ele se inspira, mudou de ideia e tem defendido ações drásticas de isolamento até o final de abril. Uma das estratégias da cúpula bolsonarista e do próprio presidente tem sido estimular circulação de notícias falsas e desinformação a respeito do novo coronavírus. Nesta terça-feira pela manhã, Bolsonaro decidiu selecionar um trecho de uma declaração do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, para dar a entender que o executivo da organização defende o fim do isolamento social em nome da proteção de emprego e renda. O próprio Adhanom veio a público para responder ao brasileiro, reafirmando a defesa das medidas restritivas ao lado do desenho de políticas para proteger os mais vulneráveis. No entanto, mesmo assim, Bolsonaro usou apenas o trecho que lhe interessava na TV.
Numa fala que também foi dirigida à população mais pobre, o presidente citou a sua preocupação com os empregos de diversas categorias, “como vendedores ambulantes, camelôs, vendedores de churrasquinho, diarista, ajudante de pedreiro, caminhoneiro e outros autônomos”. Bolsonaro, no entanto, ainda não sancionou um projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional que destina até 1.200 reais por família que ficar desassistida em decorrência da pandemia da Covid-19. Por ser dia 31 de março, dia do golpe militar, havia a expectativa de que o presidente falasse sobre a tomada de poder pelos militares em 1964, mas ele não o fez. Decidiu fazer uma sinalização aos militares e elogiar as ações das Forças Armadas no combate ao coronavírus. Politicamente, ele tem se sustentado cada vez mais em seu núcleo militar, ainda que haja fissuras fora do grupo que ele acolheu no Planalto. Uma eventual saída dele da presidência, ainda sem prazo definido, tem sido discutida internamente pela cúpula militar, que já informou ao vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) que o apoiaria, em caso de assunção à chefia do Executivo.
Maior salto em um único dia
Enquanto analistas discutem quanto a conduta errática do presidente atrapalha o país no combate à Covid-19, os números da pandemia escalam. O pronunciamento do presidente foi ao ar horas depois de uma entrevista coletiva dada pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, na qual ele anunciou o maior aumento diário no número absoluto de casos confirmados de coronavírus no país em um dia. Foram 1.138 novas infecções confirmadas nesta terça-feira, 20% do total acumulado desde o dia 25 de fevereiro, quando foi identificado o primeiro caso da doença no país.
Com base nos dados mais recentes do Ministério da Saúde, o Brasil soma agora 5.717 confirmados e 201 mortes pela Covid-19. O aumento representativo desta terça-feira pode estar relacionado à fila para processamento de testes nos laboratórios. Há relatos de demora de até 10 dias para a obtenção dos resultados, o que impacta as estatísticas. Mandetta também voltou a defender o isolamento social como importante ferramenta para frear a disseminação do vírus, outro ponto de divergência entre ele e Bolsonaro, que alardeia o isolamento vertical -que carece de estudos atestando sua eficácia. “No momento vamos fazer o máximo de isolamento social e incentivo ao homeworking possível”, afirmou. Ele não descarta, no entanto, mudanças nesta política, “quando chegar o momento de falar ‘estamos mais preparados’, vamos liberando e controlando pela epidemiologia. Vai ser um trabalho de muita precisão”.
Em São Paulo, epicentro da doença no país, a situação também preocupa. O Estado registrou de segunda para terça-feira 23 novas mortes, quase uma por hora, totalizando 136 óbitos relacionados ao Covid-19, de acordo com a Secretaria de Saúde. Trata-se do maior aumento em números absolutos já registrado. Para Mandetta, a situação de São Paulo tem algumas especificidades: “Mais de 80 dos 136 mortos registrados no Estado ocorreram em um mesmo hospital, que é ligado a um plano de saúde que só atende idosos”.
Andrea Jubé: Senador comprovou. 'Não é gripezinha'
Senadora Kátia Abreu critica “arroubos” de Bolsonaro
Quando embarcar para Campo Grande no fim de semana, o senador Nelsinho Trad (PSD-MS) terá completado 24 dias longe da esposa, Keilla, e da filha de seis anos, após cumprir a jornada de recuperação da infecção pelo coronavírus.
Ele é um dos recuperados num cenário desolador de 159 mortos e 4.579 brasileiros infectados, segundo dados de ontem do Ministério da Saúde. À coluna, Trad contradisse o presidente Jair Bolsonaro: “Só lhe asseguro uma coisa, isso não é gripezinha, é de arrebentar a boca do balão!”
Médico de formação, e primo-irmão do ministro Luiz Henrique Mandetta - que foi seu secretário de Saúde na Prefeitura de Campo Grande - Nelsinho Trad é defensor incondicional da política de isolamento social e exorta Bolsonaro a seguir as orientações do comandante da Saúde.
“Muita calma nessa hora: problemas na economia surgirão, fazendo ou não o isolamento social, mas será possível reagir a eles no momento adequado”, pondera o senador, considerado um aliado do Palácio do Planalto. “Sou aliado do Brasil”, retifica.
Ele é um dos 23 integrantes da comitiva que acompanhou Bolsonaro na viagem aos Estados Unidos no começo do mês e contraiu o vírus.
Trad revelou que teve febre alta e sentiu muito cansaço. “A febre não baixava, ficava em 38,5º, mesmo com a dipirona”, relembrou. “Isso é o sinal amarelo, foi quando eu assustei”. O médico o encaminhou para o hospital e ele passou cinco dias internado na unidade do Sírio Libanês, em Brasília, dois deles na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Trad e Mandetta integram a mesma família tradicional na política do Mato Grosso do Sul: o pai do senador é irmão da mãe do ministro. A parceria entre ambos vigorou pelos oito anos em que Trad comandou a Prefeitura de Campo Grande. Ele ressalva que Mandetta não foi nomeado pelos laços consanguíneos, mas por indicação das entidades médicas locais.
Trad é urologista, e Mandetta, ortopedista. Nenhum deles é infectologista, mas na prefeitura, enfrentaram epidemias complexas: dengue em 2006, Sars e leishmaniose. “Assim como o presidente Bolsonaro ouve o alerta dos economistas, ele deve escutar o ministro da Saúde, porque o Mandetta não está tirando isso [medidas de isolamento] da cabeça dele, é ciência, não é achismo”.
Mesmo assim, Trad contemporizou a escapada do presidente no domingo, em Brasília, quando deliberadamente se expôs, bem como aos populares com quem interagiu. “São os rompantes dele”. Para o senador, Bolsonaro está agindo como um “rádio que não está sintonizando bem”. Mas se ele deixar cada auxiliar atuar no seu quadrado, acredita que a crise possa ser controlada.
Bolsonaro violou a quarentena imposta por decreto do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), e saiu às ruas para circular entre comerciantes e ambulantes, estimulando-os a retornar ao trabalho apesar das medidas restritivas, que vêm sendo recomendadas não apenas pelo Ministério da Saúde, mas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Para assegurar a cura, Trad diz que seguiu “rigorosamente e disciplinadamente” o protocolo médico. Receita administrada, lembra ele, por países como Japão e Coreia do Sul, onde a epidemia tem sido contida. “Nesses países, a autoridade sanitária é respeitada, não tem ninguém querendo sair da linha”, comparou.
Trad não trocou dicas com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), de quem é próximo, e que também agonizou na cama com o vírus nas duas últimas semanas.
“A recuperação dele [Alcolumbre] está boa, mas não fico ligando”. Trad revela que o isolamento induz o doente a um modo de introspecção. “Cultivamos o exercício de ficar quietos”.
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A senadora Kátia Abreu (PP-TO) não foi infectada pelo coronavírus, mas é como se sentisse na pele cada sintoma da enfermidade que atingiu há cerca de uma semana seu filho do meio, o empresário Iratã, de 34 anos.
Ele teve muita tosse, sentiu-se febril, mas com pouca falta de ar. A senadora reconhece que o filho não observou as medidas restritivas, e agora encontra-se em total isolamento em seu quarto, na residência da família em Palmas.
“Como muitos jovens, achou que não se contaminaria”, lamentou a senadora. Ao contrário do que tem afirmado o presidente Jair Bolsonaro, as estatísticas mostram que no Brasil o vírus tem atacado adultos com menos de 50 anos com a mesma fúria com que dizimou populações de idosos na Itália e na Espanha.
Kátia dispensou os empregados domésticos e assumiu pessoalmente os cuidados com o filho, inclusive o preparo das refeições e a higienização das roupas. Próxima ao governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), que é médico, ouviu dele a advertência de que todos deveriam sair da casa, isolando o paciente. Mas ela desobedeceu o amigo: “E quem vai cuidar dele? Não desejo para mãe nenhuma a angústia pela qual estou passando”, desabafou. ”Qualquer mãe que passe pelo que estou passando não exclui as possibilidades mais trágicas”.
Embora distante, Kátia tem mantido contato telefônico diário com o vice-presidente do Senado, Antonio Anastasia (PSD-MG), e com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), sobre as ações do Congresso para mitigar os efeitos da pandemia. Ela vai propor um projeto para que os pacotes de internet de quem não puder pagá-los não sejam cortados, para que as pessoas não deixem de se informar sobre a pandemia.
Kátia condenou o tour de Bolsonaro no fim de semana pelas ruas do Distrito Federal. “Ele agiu com deslealdade com a população. As pessoas têm medo de perder o emprego, mas têm medo de perder a vida também”, argumentou.
Kátia diz que na sexta-feira, quando o governo apresentou o pacote de socorro às empresas para garantir o pagamento dos salários sem demissões, os parlamentares avaliaram que o cenário estava pacificado. “E agora ele [Bolsonaro] teve esse arroubo, isso não é normal”, criticou. “Precisamos combater o vírus, não o presidente!”
Marco Marrafon: CF estabelece cooperação federativa para superar crise do coronavírus
Em artigo publicado no site Conjur, o coordenador da Jornada da Cidadania, advogado Marco Marrafon, alerta para o risco de incerteza e insegurança jurídica
Em meio à pandemia ocasionada pelo coronavírus, a população assiste apreensiva aos choques e às divergências entre as opiniões e decisões do presidente da República e a de diversos governadores, especialmente em relação às medidas de isolamento social.
Em alguns estados também existem conflitos entre decretos estaduais em franca contrariedade com decretos municipais. No Estado de Mato Grosso, por exemplo, o Governador autorizou a abertura do comércio e o prefeito da capital determinou o seu fechamento.
Essas colisões revelam tensões iminentes no pacto federativo, que dá forma ao estado brasileiro enquanto federação e é concebido como o conjunto de princípios e regras que regulam as relações entre a União Federal, estados-membros e Distrito Federal e os municípios.
No contexto de crise, essa situação gera bastante insegurança jurídica. Contaminados por avalanches de fake news e por muita desinformação disseminada nos grupos de WhatsApp e nas redes sociais, gestores, empresários e os cidadãos em geral não sabem qual decisão seguir. Isolamento horizontal ou vertical? Abro ou fecho meu comércio? Essas são algumas das indagações mais ouvidas.
Sem planejamento e sem coordenação adequados, o monitoramento e a execução das políticas públicas de combate ao estado de emergência na saúde pública sofrem graves prejuízos.
É preciso, então, ir ao âmago das questões federativas e, a partir das diretrizes constitucionais, estabelecer balizas jurídicas claras que possam apontar caminhos e soluções para atenuar esse pernicioso quadro de incerteza em relação ao processo de governança e gestão da crise.
Como já mencionado em outras colunas aqui neste espaço, a Constituição brasileira de 1988 não adota o modelo estadualista-dualista de federalismo, descentralizado e típico dos Estados Unidos. Tampouco acata o paradigma oposto, o hierárquico centralizador presente em grande parte de nossa história.
Ainda que o artigo 21 estabeleça um amplo rol de competência administrativas exclusivas e que o artigo 22 trate de maneira igualmente ampla as competências legislativas privativas atribuídas à União, o que demonstra o grande prestígio e o papel de coordenação do ente nacional, é preciso atentar para o artigo 23 que define as competências comuns em matéria de saúde, políticas educacionais, meio-ambiente, cultura etc. indicando o caminho do federalismo cooperativo como o centro do modelo constitucional adotado.
Também o artigo 24, que dispõe sobre as competência concorrentes, traz a perspectiva de atuação conjunta entre União e Estados-Membros em diversos assuntos de grande relevância, tais como direito tributário, orçamento, proteção da natureza, defesa do solo, patrimônio histórico, cultural, artístico, dentre outros.
Nesses temas, cabe ao ente federal estabelecer as regras gerais e aos entes estaduais as regras suplementares. Havendo omissão da União, os Estados podem regular inteiramente a matéria (vide artigo 24, parágrafos 1°, 2°, 3° e 4°, CF/88).
Especificamente em relação às políticas para combater a pandemia de coronavírus, destaca-se o inciso II do artigo 23, que estabelece a competência comum para cuidar da saúde e o inciso XII do artigo 24, que inclui a proteção e a defesa da saúde no âmbito da competência concorrente.
Em interpretação sistemática, é preciso considerar também as competências locais e suplementares dos municípios (artigo 30, I e II, CF/88).
Isso significa que o mandamento constitucional que regula o tema impõe uma ação coordenada entre União, Estados-Membros e DF e Municípios para construírem soluções em conjunto e, assim, garantirem a efetividade das políticas públicas imprescindíveis para o momento.
Na mesma linha, ao apreciar as medidas cautelares requeridas ao STF nas ADIs 6.341 e 6.343, as quais impugnaram dispositivos da Medida Provisória – MPV n° 926/20, o Ministro Marco Aurélio manteve a eficácia dos atos normativos que atribuíam competências à União Federal para deliberar sobre as políticas a serem tomadas em relação à crise. Ao mesmo tempo, reconheceu a atuação suplementar dos Estados e Municípios.
Todavia, para que isso seja possível, são indispensáveis atitudes não predatórias entre os entes federados, isto é, as autoridades devem evitar confrontos, conciliar as diferenças e reforçar os pontos de convergência.
Caso não se realize a concertação necessária, cabe pontuar algumas diretrizes para solucionar eventuais conflitos de competência entre os entes federativos.
Primeira: como regra, não existe hierarquia nas competências federativas. Cada ente tem autonomia dentro da sua esfera de atuação. Havendo contradição, a análise tem que se dar caso a caso, de modo que prevalecerá a decisão do ente competente para tratar da questão concreta.
Segunda: havendo omissão por parte da União, os Estados podem regulamentar a matéria, cabendo a atuação suplementar dos Municípios, salvo nos casos em que o interesse for exclusivamente local, o que indica a prioridade da deliberação municipal.
Terceira: se o Poder Executivo Federal ou mesmo o presidente da República tomar decisões manifestamente incompatíveis com as orientações científicas e as políticas internacionalmente referendadas, é possível que os estados-membros, Distrito Federal e municípios exerçam o direito de resistência federativa. Ou seja, os entes subnacionais podem utilizar suas prerrogativas de auto-organização, autogoverno, auto-administração e autolegislação para implementar as ações necessárias. Ao mesmo tempo, devem buscar todas as possibilidades de atuação conjunta com órgãos federais de índole mais técnica, como as agências reguladoras, avançar no diálogo político com o Congresso Nacional e, em ultima ratio, recorrer ao Poder Judiciário.
Enfim, o pior cenário é o estado de incerteza e insegurança jurídica. Se ele permanecer, a superação da crise de emergência em saúde pública será lenta e muito dolorosa, uma vez que políticas públicas eficazes demandam um sistema de governança coeso, com planejamento e ação conjuntas.
Decisões difíceis deverão ser tomadas, mas a Constituição já estabeleceu o caminho. Cumpre aos agentes políticos deixarem de lado questões menores e populistas e exerceram com espírito coletivo e força de estadista o mandato a eles confiado pelo povo brasileiro.
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El País: Bolsonaro lidera negacionismo do coronavírus e incentiva ‘fake news’
Na TV, presidente questiona estatísticas das mortes e segue defendendo fim de ações de isolamento social. Twitter, Facebook e Instagram apagam postagens
Felipe Betim, El País
“O movimento negacionista do coronavírus agora tem um líder”. Foi com essa manchete que a revista norte-americana The Atlantic descreveu os discursos diários que o presidente Jair Bolsonaro promove contra as medidas de distanciamento social decretadas por governadores e prefeitos e recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo próprio Ministério da Saúde para conter a pandemia do coronavírus. No início da crise, o ultradireitista parecia seguir os passos do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que também minimizava os efeitos da Covid-19. Mas até mesmo Trump, vendo que seu país se transformara em epicentro mundial do novo vírus, mudou de atitude: negociou com o Congresso um pacote de dois trilhões de dólares (cerca de 10 trilhões de reais) para resgatar a economia, adotou um tom de conciliação com governadores, estendeu até 30 de abril as restrições à circulação e, no último fim de semana, chegou a dizer que poderia instituir o chamado lockdown nos Estados de Nova York, New Jersey e Connecticut. Em suma, o republicano deixou de lado a retórica de que a atividade econômica não pode e passou a salientar que, neste momento, a saúde dos estadounidenses deve ser a prioridade.
Bolsonaro, por ora, ignora a guinada daquele que lhe serve como modelo político e vem insistindo que as pessoas devem sair às ruas e trabalhar normalmente. “É um nível de irresponsabilidade que nunca vi num líder democraticamente eleito. Bolsonaro faz Trump parecer Churchill”, ironizou Ian Bremmer, presidente da consultoria de risco Eurasia Group, no Twitter. Agindo de maneira errática logo após atender as demandas de governadores, o mandatário brasileiro determinou em pronunciamento em cadeia nacional na passada terça-feira que “algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento do comércio e o confinamento em massa”. Também aproveitou a ocasião para forjar inimigos e se referir ao coronavírus como uma mera “gripezinha”.
Isolado politicamente, Bolsonaro dobrou a aposta na radicalização de sua base e estimulou as carretas de empresários em várias cidades pedindo pela reativação das atividades desde a sexta-feira. Além disso, mais uma vez driblou todas as orientações de médicos e especialistas e passeou no domingo por mercados e centrais de vendedores ambulantes na periferia de Brasília. Durante o chamado “coronatour”, o presidente cumprimentou cidadãos de Taguatinga, Ceilândia e Sobradinho, além de reforçar sua tese de que é importante fortalecer a economia. Alguns analistas acreditam que Bolsonaro não quer ser visto como responsável pela recessão na economia, diante de mortes inevitáveis, segundo sua visão. Por outro lado, se governadores e prefeitos têm sucesso em suas medidas e consigam conter o coronavírus, ele ainda poderia argumentar que estava certo ao dizer que não havia demasiados riscos para a saúde da população.
O presidente e seu entorno mais radical —sobretudo seus filhos— também vêm divulgando e incentivando medidas contra o isolamento ou fazendo ênfase sobre possíveis curas para o coronavírus. No domingo, o Twitter decidiu pela primeira vez barrar conteúdo compartilhado pelo ultradireitista e pagou dois vídeos que havia postado contra o isolamento social. Nesta segunda foi a vez do Facebook e do Instagram decidirem fazer o mesmo por considerar que conteúdo promovia a desinformação. O vídeo mostrava o presidente conversando com um ambulante: “Eles querem trabalhar. é o que eu tenho falado desde o começo”, dizia. “Aquele remédio lá, hidroxicloroquina, está dando certo em tudo o que é lugar”, continuava. Em nota ao portal BBC News Brasil, justificou a remoção dizendo que "viola nossos padrões da comunidade, que não permitem desinformação que possa causar danos reais às pessoas”.
Nesta segunda, em entrevista ao canal de televisão aberto Rede TV, Bolsonaro voltou a questionar os números de mortes provocadas pela Covid-19. “Parece que há interesse por parte de alguns governadores de inflar o número”, disse o presidente, ecoando uma notícia falsa, espalhada em grupos de WhatsApp e nas redes, de que um porteiro ou borracheiro teria tido sua morte erroneamente incluída nas estatísticas de coronavírus (veja aqui os números em tempo real).
O que Bolsonaro faz é utilizar “uma comunicação meticulosamente arquitetada para ironizar e atacar inimigos ideológicos e políticos, da imprensa ao médico Drauzio Varella, passando por governadores e prefeitos adversários", opina o cientista político Vinícius do Valle. “Bolsonaro quer, na verdade, o caos”, conclui Valle.
O motivo de querer o caos se deve à própria natureza do bolsonarismo, que precisa do conflito para se manter e se expandir, segundo Valle e outros estudiosos, como o historiador argentino Federico Finchelstein. “Eventualmente a realidade se impõe e inclusive os seguidores mais fanáticos em algum ponto deixam de acreditar neles. Mas, quando isso acontece, já terá havido muito sofrimento e muitas vítimas, no sentido literal do termo. As políticas de ajuste, de repressão e de discriminação têm suas consequências”, disse Finchelstein ao EL PAÍS na semana passada. Para Valle, Bolsonaro poderia encontrar na convulsão social a justificativa que precisa para tentar concentrar ainda mais poder em suas mãos, seja a partir de operações de Garantia da Lei e da Ordem ou da decretação de um Estado de Sítio.
Possível demissão de Mandetta
Um dos fatores que podem detonar esse caos à curto prazo é a possível troca de comando no Ministério da Saúde. No sábado, o ministro Luiz Henrique Mandetta e toda a sua equipe colocaram os cargos à disposição de Bolsonaro. Segundo apurou o EL PAÍS, os ministros e generais do Exército Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Walter Braga Netto (Casa Civil) tiveram de intervir e convencer Bolsonaro de que, sem Mandetta, a impressão que passaria para a opinião pública seria de ingovernabilidade em meio à crise ―está previsto que o pico de contágios aconteça em meados de abril.
Uma fonte do Palácio do Planalto relatou que o presidente foi relutante, porque se se sentiu “enquadrado” pelos militares. Mas, num primeiro momento, concordou em manter Mandetta no cargo —algo que foi reforçado nesta segunda-feira por Braga Netto durante a coletiva de imprensa com Mandetta e outros ministros.
Mandetta está decidido a não se demitir. Disse a aliados que só sai do ministério se for exonerado pelo presidente. Ao longo da última semana ele foi orientado a falar menos e deixar que o secretário-executivo da pasta, João Gabbardo dos Reis, e o titular da Vigilância em Saúde, Wanderson Oliveira, apareçam mais. Mas não acatou os conselhos. No sábado, foi protagonista de uma coletiva de imprensa na qual recomendou o isolamento social e contrariou as teses do presidente. Nesta segunda-feira também não deu um passo atrás.
Nos bastidores são ventilados três possíveis nomes para o Ministério da Saúde: o médico e deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), que já foi demitido pelo presidente do Ministério da Cidadania por não apresentar resultados; o contra-almirante da Marinha, Antônio Barra Torres, médico que preside a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e acompanhou Bolsonaro na manifestação do dia 15 de março; e, correndo por fora, o filantropo e gestor do Hospital do Amor (o antigo Hospital do Câncer de Barretos), Henrique Prata. Ele chegou a ser cogitado para assumir a pasta já no primeiro ano da gestão de ultradireita, mas o apoio político de Mandetta e sua capacidade de unir parte da direita entorno de Bolsonaro prevaleceu.