coronavirus

Elio Gaspari: Jair Bolsonaro é um ponto fora da curva

O astucioso e explícito ataque público de Jair Bolsonaro contra seu ministro da Saúde revelou a extensão dos tormentos de sua alma. Luiz Henrique Mandetta é uma solução, mas seu chefe vê nele um problema. Mesmo que ele tivesse dito que a Covid-19 seria uma “gripezinha”, o presidente deveria poupá-lo de ostensivas frituras.

Há pouco mais de um mês morreu o ex-ministro Gustavo Bebianno. Tinha 56 anos e foi levado pela tristeza, menos de um ano depois de ter sido demitido da Secretaria-Geral da Presidência em circunstâncias humilhantes pelo presidente por quem trabalhou quando os bolsonaristas cabiam numa Kombi. Na carta que Bebianno lhe escreveu, disse: “O senhor cultiva e alimenta teorias de conspiração, intrigas e ódio”.

Pouco depois, Bolsonaro demitiu o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz da Secretaria de Governo. Ele pouco falou, mas deixou uma frase críptica: “Tem que ter noção de consequência.”

Como disse o sábio Marco Maciel, “as consequências geralmente vêm depois”. Quando Bolsonaro diz que “o Mandetta quer fazer muito a vontade dele. Pode ser que ele esteja certo. Pode ser. Mas está faltando um pouco mais de humildade para ele” e que “a gente tá se bicando há um tempo”, o que ele faz é fritá-lo.

A fritura de Mandetta serve ao coronavírus e a ninguém mais. Bolsonaro sabe desidratar colaboradores e secou o ex-juiz Sergio Moro, mas a importância do Ministério da Justiça não pode ser comparada à da Saúde durante uma epidemia.

Desde o inicio da crise, Bolsonaro oscilou do negacionismo ao Apocalipse. O que pode parecer um comportamento errático, foi uma constante e equivocada defesa de seus interesses: “Se acabar a economia, acaba qualquer governo, acaba o meu governo”.

O negacionismo da “gripezinha” menosprezava a epidemia supondo que com isso poderia preservar a economia. Com a Covid-19, Bolsonaro passou a flertar com o caos do vídeo da central de abastecimento de Belo Horizonte às moscas. (Era mentira e ele se desculpou por não ter checado, quando devia ter pedido desculpas por ter acreditado.) As duas posturas nasceram de um só medo: “Acaba meu governo”.

Seu governo só deve acabar no dia 31 de dezembro de 2022, porque é isso que diz a Constituição. Até lá, ele terá que governar um país em em séria dificuldade, sem inventar “gripezinhas” ou estimular tensões e situações caóticas.

A História da República registra casos de presidentes que produziram desastres, mas nenhum deles teve padrão semelhante ao de Bolsonaro. Nem Jânio Quadros, um grande ator que se fazia passar por doido.

Entre o negacionismo e o flerte com o Apocalipse, Bolsonaro leva para o atacado a política venenosa que praticou no varejo com Bebianno e Santos Cruz, pessoas que decidiram trabalhar com ele. No atacado, ela muda de qualidade, porque pode-se mastigar uma pastilha de cianeto de potássio, mas não se pode receitá-la.

A lição de Ibrahim Sued
Em novembro de 1972 o jornalista Ibrahim Sued lançou seu livro “20 anos de caviar” na pérgola do Copacabana Palace. Barão do colunismo social, reuniu todo o Rio de Janeiro e autografou 1.012 exemplares. As pessoas pagavam pelo livro e o dinheiro era colocado em caixas de charutos.

Quando a festa terminou, Ibrahim entrou no seu carro com as caixas debaixo do braço. A noite havia sido uma consagração daquele turco enorme, criado na pobreza do velho Centro da cidade.

Ibrahim saiu do Copa em direção a Ipanema. Em todo o percurso, metia a mão na caixa de charutos e dava um punhado de notas a guardadores de carros ou às pessoas que perambulavam pela Avenida Atlântica.

Um amigo que estava no carro disse-lhe:

— Ibrahim, desse jeito você vai detonar a renda da noite.

O ‘Turco’ respondeu:

— É isso mesmo, o dinheiro tem que circular. Se não circulasse, não chegava a mim.

Quem puder, pode repetir a lição de vida e de ciência econômica de Ibrahim.

Bolsonaro acertou
Contrariando vários ministros, o presidente Jair Bolsonaro suspendeu por 60 dias um aumento de até 5% no preço dos remédios.

Na sua incorrigível opção pela realidade paralela, informou que a medida foi tomada “em comum acordo com a indústria farmacêutica”. Falso, a decisão foi tomada em desacordo com a guilda do setor. O Sindusfarma fez questão de registrar que não foi consultado.

Na patética videoconferência de empresários amigos da Federação das Indústrias de São Paulo com Bolsonaro, esse congelamento provisório havia sido uma das poucas propostas capazes de refrescar o andar de baixo. Ela partiu de Eugênio de Zagotti, representante das farmácias. Ele disse o óbvio: “O Brasil não precisa dessa manchete”. Foi contraditado por Carlos Sanchez, em nome da indústria, que ofereceu dois caminhos para que a providência fosse adotada: O governo poderia criar uma dólar especial para o seu setor, a R$ 4, ou as farmácias deveriam abrir mão de uma parte de sua margem de lucro, repassando-o à indústria.

Filantropia
Um teste feito no Hospital das Forças Armadas revelou que o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general da reserva Augusto Heleno, foi infectado pelo vírus. Sete dias depois, ele quebrou a quarentena, apareceu no Planalto e participou de uma reunião. A Secretaria de Comunicação da Presidência informou que a bizarria decorreu de um erro de dois médicos. Conta outra doutor, pois esses seriam os únicos médicos capazes de interromper prematuramente uma quarentena.

Cumprido o isolamento, um novo teste revelou que estava saudável. Apesar de estar encarregado da segurança institucional da República, revelou alguns de seus dados pessoais, permitindo que gaiatos anunciassem que o haviam filiado à Juventude Socialista e ao PT.

A divulgação do seu teste informou também que ele foi realizado num laboratório da Rede D’ Or, classificado como “cortesia”.

Sem palhaçada
As entrevistas de Jair Bolsonaro no cercadinho do Alvorada serviram para teatralidades, até o dia em que o presidente mandou que os jornalistas ficassem calados para ouvir o que dizia um dos integrantes de sua claque:

— É ele quem vai falar, não é vocês, não.

Bolsonaro criou um modelo inédito de encontros com a imprensa, a entrevista-auditório. De um lado ficam os profissionais e de outro os denominados “apoiadores”. O episódio passou da conta e jornalistas abandonaram o local.

No dia seguinte, um funcionário do Planalto pediu à claque que deixasse os jornalistas em paz. Tentou-se chegar a bom termo, mas no dia seguinte, a claque voltou a se manifestar.

Os jornalistas devem trabalhar em condições adversas e eventualmente ouvem desaforos, inclusive aqueles que partem de Bolsonaro. É o jogo jogado.

Eles não devem ser obrigados a enfeitar palhaçadas.


Dorrit Harazim: Saindo dos trilhos

Mandetta e Fauci conquistaram o respeito e a confiança de quem os ouve pela abordagem científica e realista

Dias atrás, um engenheiro da malha ferroviária do porto de Los Angeles, na Califórnia, pirou. Eduardo Moreno, de 44 anos, convencera-se de que a missão oficial do navio-hospital USNS Mercy,enviado pela Marinha para aliviar a profusão de infectados na Costa Leste, era mera operação de fachada. A embarcação seria, na verdade, parte de um golpe de Estado em curso. Por isso, ele resolveu agir: manteve um trem não tripulado da zona portuária em velocidade máxima, para muito além do final dos trilhos, e causou um estrondo/estrago monumental — a composição destruiu primeiro uma barreira de concreto, atropelou uma proteção de aço, e prosseguiu por vasta área de cascalho até parar. À polícia o autor justificou assim o rompante que pode lhe valer uma pena de até 20 anos: “Era a chance que eu tinha para chamar a atenção das pessoas sobre o que está realmente acontecendo aqui”.

Não se pode atribuir a insanidade do engenheiro ao coronavírus. Mas, à medida em que a humanidade sai dos trilhos pré-Covid 19, é de se prever que o planeta se torne mais propício a insânias individuais e coletivas.

Daí a importância de se manter sob rédea curta governantes inseguros no poder, destemperados por índole e/ou despreparados para apontar o rumo em tempos de perigo e medo global. As limitações e inclinações inerentes a cada dirigente tendem a se acentuar à medida que a espiral da calamidade for adquirindo forma mais cruel. Por enquanto, em países onde essa espiral está apenas começando, a real capilaridade do vírus e seu potencial de destruição apontam em uma única direção: dias piores virão.

Nas Filipinas do presidente Rodrigo Duterte, que sofre de várias insuficiências democráticas e comanda com poder quase absoluto o país de mais de 100 milhões de habitantes, a solução para o complexo problema atual é simples: as forças policiais e militares têm ordem de atirar para matar quem descumprir a quarentena imposta. Ponto. Não tem ministro da Saúde, governadores nem imprensa em condições de lhe fazer frente.

Já Estados Unidos e Brasil têm mais sorte: por força da necessidade e do gigantismo da crise, Donald Trump e Jair Bolsonaro optaram por terceirizar o problema, que acabou em mãos de quem não comunga das crenças e disparates dos dois presidentes. Trump e Bolsonaro acreditaram poder desresponsabilizar-se da marcha da pandemia içando a primeiro plano dois personagens que não poderiam ser mais diferentes entre si — o nova-iorquino Anthony Fauci, a maior autoridade americana em infectologia, e, aqui, o deputado formado em Ortopedia Luiz Henrique Mandetta, atual ministro da Saúde. Ambos conquistaram o respeito e a confiança de quem os ouve pela abordagem científica e realista do combate ao coronavírus. Ambos, também, começam a pagar por isso.

Esta semana o franzino e bem-humorado Dr. Fauci , que já serviu a vários ocupantes da Casa Branca e chegou aos 79 anos de idade com biografia estelar, passou a precisar de proteção extra de agentes de segurança. Tem recebido ameaças de morte em demasia por parte de seguidores de Donald Trump. Em Brasília, Mandetta cometeu o pecado capital de seu Ministério da Saúde ter ultrapassado o presidente em aprovação na condução do combate ao vírus. Não só ultrapassou, esmagou: 76% a 33%, segundo o último Datafolha.

Sobreviver nessa dislexia nacional não tem sido fácil nos dois países. Em Washington, Donald Trump consegue embaralhar uma frase que começa com “Isto não é uma crise financeira, é apenas um momento temporário no tempo” com o anúncio da injeção de US$ 1 trilhão na economia do país. Em Brasília o comportamento de Jair Bolsonaro é ainda mais errático, sempre que tem um microfone pela frente. Para não concluir de forma sorumbática, vale recorrer às memórias de um generoso humanista do século 20, o escritor Paul Goodman. “Esperança é o contrapeso para o nosso enorme sentido de vulnerabilidade”, escreveu em suas memórias. “É a nossa permanente negociação entre otimismo e desesperança, a contínua negação do cinismo, ingenuidade.

Temos esperança justamente por termos consciência de que eventos tenebrosos são sempre possíveis e não raro prováveis. Mas as escolhas que fazemos podem impactar o seu desenlace”.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro, presidente decorativo

Isolado, Bolsonaro passa a impressão de que deixou de governar. Enquanto ele anima a claque, uma junta de ministros decide sobre o que importa

No início de março, quando o país ainda discutia problemas menores, o deputado Eduardo Bolsonaro usou sua vocação diplomática para atacar a colega Bruna Furlan. Após semanas de negociação sobre a partilha do Orçamento, o Congresso havia mantido um veto presidencial por 398 a 2. Era uma boa notícia para o governo, mas o filho do capitão preferiu ir para cima de quem se opôs ao acordo.

“A senhora acha mesmo que os 57 milhões de brasileiros que elegeram Jair Bolsonaro querem um presidente decorativo?”, provocou, atiçando a milícia virtual contra a tucana. Um mês depois, o temor do Bananinha parece se materializar.

Os fatos dos últimos dias reforçam a impressão de que Bolsonaro deixou de governar. Na crise do coronavírus, uma junta de ministros passou a tomar as decisões que importam. Enquanto os auxiliares trabalham, o presidente se ocupa em animar a claque do Alvorada e esbravejar contra as medidas de distanciamento social.

Na segunda-feira, o general Braga Netto assumiu o papel simbólico de interventor. Recém-nomeado para a Casa Civil, passou a comandar entrevistas diárias com grupos de ministros no Planalto. A maioria dos participantes só faz figuração, mas transmite-se a ideia de que há alguma coordenação no governo.

O general também ajudou a montar um cordão sanitário em torno do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. O objetivo é impedir Bolsonaro de demiti-lo às vésperas do pico da epidemia. Os ministros Sergio Moro e Paulo Guedes, que não integram a ala sectária da Esplanada, juntaram-se ao esforço de blindagem.

“Estamos sob orientação do ministro Mandetta”, disse Guedes na terça. Dois dias depois, Moro também se contrapôs ao discurso do chefe. Sua mulher, Rosangela, foi mais direta no recado. “Entre ciência e achismos eu fico com a ciência. In Mandetta I trust”, ela escreveu, numa rede social.

No duelo entre o médico e o capitão, só restou a Bolsonaro o apoio dos filhos. Governadores, parlamentares e ministros do Supremo se alinharam abertamente a Mandetta. A opinião pública caminha no mesmo sentido. Segundo pesquisa Datafolha, a maioria (51%) dos brasileiros acha que o presidente atrapalha o combate à pandemia. A aprovação do ministro da Saúde saltou para 76%, o que aumenta o custo político de mandá-lo embora.

O isolamento de Bolsonaro tem produzido situações inusitadas. Na quinta, os presidentes da Câmara e do Senado ignoraram um convite para encontrá-lo no Alvorada. Preferiram jantar com Mandetta, alvo da ira do capitão. Na manhã seguinte, Rodrigo Maia tripudiou: “Ele não tem coragem de trocar o ministro”. O capitão deve ter espumado de raiva, mas o médico continua onde estava.

Apesar das aparências, Bolsonaro ainda é capaz de notar o que acontece à sua volta. Na terça-feira, ele passou novo recibo de esvaziamento. “O presidente sou eu!”, bradou. Há controvérsias. Para boa parte do meio político, o capitão já está fora do jogo. Virou uma peça de decoração, que poderá ser varrida do palácio quando a epidemia acabar.


Eliane Cantanhêde: Pedra e pedradas

Bolsonaro quer isolamento só acima dos 50 e Mandetta lista 19 condicionantes para saída

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro Luiz Henrique Mandetta (Saúde) não se suportam mais, mas não têm alternativa: Bolsonaro não pode demitir Mandetta e Mandetta não pode se demitir. Estão atrelados um ao outro pelo coronavírus. Unidos na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. E se detestando.

Entre os dois, há um muro: o isolamento social, única vacina possível para reduzir a audácia e a letalidade do vírus. Mandetta não pode cruzar esse muro, porque sua ação é “técnica e científica” e porque médicos “não abandonam o paciente”. Seu paciente é o Brasil. E Bolsonaro não pode dar uma canetada e criar o tal “isolamento vertical”, que, de isolamento, não tem nada. Não tem apoio para isso.

Cada lado prepara seu arsenal sob sigilo. Bolsonaro, que já falou duas vezes em editar um decreto e nunca editou, trabalha com um corte etário para relaxar o isolamento. O grupo de (maior) risco é acima dos 60 anos, mas ele estuda dar dez anos de lambuja. Abaixo dos 50, volta ao trabalho! Cola? Até agora não, tanto que a ideia está entre as quatro paredes do gabinete presidencial.

Já Mandetta propõe nos bastidores um desmame gradual do isolamento, listando 19 condicionantes técnicas a serem consideradas uma a uma, dependendo do cenário. A cada recuo da doença, um grau de relaxamento. Entretanto, o começo da implementação pode demorar 30 dias e o próprio ministro perguntou para sua equipe: “Ele vai ter paciência?” Quem será “ele”? Enquanto os dois se digladiam, as instituições assumem um lado e isolam Bolsonaro. Ministros do Supremo fazem fila e parlamentares se revezam para advertir o Planalto e apoiar o isolamento social. Até o vice Hamilton Mourão e o ministro Sérgio Moro (este sempre tão reverente à hierarquia) defendem publicamente a medida que o presidente rechaça.

Isolado institucionalmente e sofrendo restrições no próprio governo, Bolsonaro afasta aliados simbólicos, como os governadores Ronaldo Caiado (Goiás) e Carlos Moisés (Santa Catarina) e o ator Carlos Vereza, que foi cotado para a Secretaria de Cultura. Cada um deles corresponde a quantos decepcionados com os “achismos” do presidente?

A maior perda, aliás, vem das pesquisas. Metade das pessoas acha que Bolsonaro atrapalha mais do que ajuda no combate à pandemia e o que dói mesmo e abala o amor próprio do presidente é o aplauso vibrante da população ao seu “inimigo” Mandetta. Em vez de comemorar o grande trunfo do seu governo, Bolsonaro sofre. Só a psicologia, a psicanálise ou a psiquiatria para explicar.

Se Bolsonaro não pode demitir Mandetta “no meio da guerra”, Mandetta não pode se demitir. Desmontaria o Ministério da Saúde e jogaria o País num caos ainda maior. Uma irresponsabilidade histórica. Assim, o ministro avisou ao presidente que está pronto para ser o “bode expiatório” se tudo der errado e que fica até ser demitido.

Na mesma conversa, Mandetta fez enfática defesa do isolamento e alertou para as consequências do relaxamento: “Estamos preparados para caminhões do Exército transportando corpos pelas ruas, ao vivo, pela internet?” No dia seguinte, recorreu a Drummond: “No meio do caminho uma pedra, uma pedra no meio do caminho”.

Todos sabem quem é a “pedra” e o ministro passou a ser apedrejado na internet. Os mesmos que divulgam um falso desabastecimento no Ceasa-MG (burramente, porque é contra o próprio governo) inundam as redes desqualificando Mandetta, governadores e parlamentares pró-isolamento. Como isso ajuda Bolsonaro, não se sabe. Mas é ótimo para o coronavírus, a contaminação e as mortes. Mais do que irresponsável, macabro.


Vera Magalhães: O capitão em seu labirinto

Isolado, Bolsonaro parece crer que narrativa pode substituir realidade

A semana que se encerra neste domingo começou com o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, dobrando a aposta no negacionismo e saindo para um rolê pelas cidades-satélites de Brasília. Termina com sua autoridade ainda mais desgastada e sua figura reduzida à do capitão da reserva que sempre foi.

Assim como grande parte dos brasileiros e do resto do mundo, e por mais que esperneie contra ele, Bolsonaro está em isolamento radical. Está confinado num labirinto, cada vez mais solitário e sem contato com a realidade. Que outro chefe de Estado conseguiu a proeza de se indispor, em maior ou menor grau e quase simultaneamente, com o próprio ministro da Saúde, a Organização Mundial da Saúde, os governadores de quase todos os Estados, os presidentes da Câmara e do Senado, a imprensa e o Supremo Tribunal Federal em plena pandemia do novo coronavírus?

Por que a insistência quase obsessiva em trazer para o centro da discussão o fim do distanciamento social, as pesquisas com hidroxicloroquina, jejum e oração quando o foco deveria ser fazer os recursos já aprovados pelo Legislativo chegarem à ponta, aos mais necessitados?

Por que as redes ligadas e guiadas pelos Bolsonaro insistem em conclamar para este domingo manifestações que vão contra um consenso global, de que só o distanciamento social (que por ora no Brasil não é radical, aliás, longe disso) pode nos fazer aproveitar a grande vantagem comparativa que temos em relação ao resto do mundo: o fato de estarmos algumas semanas atrasados na epidemia e podermos aprender com o que tem dado certo e errado nos outros países?

São perguntas sinceras, não retóricas. Porque por mais que converse com políticos, economistas, analistas políticos e auxiliares de Bolsonaro não consigo ver cálculo – ou “método”, para usar a expressão consagrada pelo grande Carlos Andreazza – nas escolhas de um governo cada vez mais abilolado, na aposta de Bolsonaro num caos que já acaba com sua imagem e, no longo prazo, pode aniquilá-lo.

Diferentemente das vezes em que teve êxito em se apresentar como baluarte anticorrupção sem nunca ter dado nenhuma contribuição ao combate à corrupção, ou em furar a fila do antipetismo depois de uma vida dedicada apenas às causas miúdas e corporativas, e em posar de austero enquanto praticava rachadinha, punha os filhos na política e com eles construía um patrimônio invejável, empregava funcionários-fantasmas, usava auxílio-moradia tendo imóvel próprio e condecorava milicianos, no caso de uma pandemia em que pessoas morrem às dezenas dia após dia narrativa não serve para absolutamente nada.

É por isso que por mais que o presidente deambule em ziguezague em seu labirinto, guiado por filhos igualmente desnorteados e assistido por ministros cada vez mais omissos e coniventes, ele não chega à saída. Porque só uma capitulação diante dos fatos e a rendição à racionalidade podem evitar que, mais cedo ou mais tarde, o capitão seja visto por todos, até pelos que ainda hoje insistem em passar pano para seus abusos e suas sandices, como inviável para conduzir o País numa crise absoluta e definidora do futuro de toda a humanidade.

Bolsonaro precisa:

– Fazer com que o Ministério da Economia vença a catatonia de ter visto sua agenda mudar radicalmente e distribua de uma vez a Renda Básica Emergencial;

– Parar de sabotar Luiz Mandetta e deixá-lo comandar a ação integrada com governadores e prefeitos,

– E deixar de falar do que não entende, de isolamento social a medicamentos.

Se conseguir esse programa mínimo, que não requer brilhantismo nem grande coragem de estadista, dará a melhor contribuição de que é capaz para que atravessemos esse pesadelo e saiamos do labirinto em que estamos enfiados com aquele que deveria nos conduzir.


Ricardo Noblat: Bolsonaro ignora a lição de que as consequências vêm depois

Péssimo aluno de História, mas não só

Façam suas apostas: quanto tempo mais levará o presidente Jair Bolsonaro para detonar uma nova confusão capaz de alvoraçar seus devotos cativos em número cada vez menor, e despertar os instintos mais rudes dos seus desafetos que só fazem crescer?

Se não acordar, hoje, de maus bofes, caso continue a ouvir a opinião dos militares que o detém, Bolsonaro completará três dias de silêncio externo e de fúria represada no Palácio do Planalto onde dá expediente e no Palácio da Alvorada onde mora.

Ah, se as paredes falassem. Elas contariam sobre a paranoia de Bolsonaro que só fez se agigantar desde que o coronavírus desembarcou no país. Por que chegou tão rápido e com qual intenção? Quem garante que fará o mal alardeado?

Em grupo de WhatsApp, Bolsonaro referiu-se ao Covid-19 como “o vírus chinês”. O filho Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, copiou o pai e desatou uma crise diplomática para lá de dersastrosas com a China logo na hora que o Brasil mais precisa da sua ajuda.

Nem por isso desagradou ao pai. Bolsonaro não tira da cabeça que o vírus faz parte de uma grande conspiração para abreviar seu atual mandato. Conspiradores são todos os que o criticam aberta ou veladamente, e até mesmo alguns dos que o aconselham.

O general Braga Neto, chefe da Casa Civil, está no comando das ações contra o coronavírus. Paulo Guedes, ministro da Economia, parece ter acordado para o que lhe cabia fazer. Mandetta, ministro da Saúde, ainda está nos cascos – mas até quando?

Bolsonaro finge que governa, mas por ora está sendo governado. Dentro de mais duas ou três semanas, a crista da primeira grande onda do vírus estará à vista de todos. O sistema de saúde entrará em colapso. E aí… Aí seja o que Deus quiser.

Só então cairá a ficha dos que fizeram ouvidos moucos ao isolamento social decretado por governadores e prefeitos, recomendado pelas principais autoridades médicas do país e sabotado pelo presidente em conluio com pastores evangélicos.

Quando as avozinhas passarem a morrer nas áreas faveladas de grandes cidades, virá a baixo, ali, o atual modelo de organização e de funcionamento da vida econômica e social. São elas que criam os netos para que os pais possam trabalhar ou fazer bico.

A etapa seguinte será a da procura dos culpados por uma situação que nem em sonhos acreditou-se que seria possível. Sobrará para muitos. Sobrará menos para os que se anteciparam à desgraça. Sobrará preferencialmente para os que desdenharam dela.

Apresente-se, Bolsonaro! O senhor não disse que, salvo os idosos, os demais deveriam voltar a trabalhar para que a Economia não parasse? Não disse que o calor dos trópicos mataria o vírus? Não o chamou de uma “gripezinha”, “um resfriadinho”? E agora?

Agora, aguente as consequências. E reze para que seu governo ou desgoverno não desmorone antes do tempo.


Fernando Henrique Cardoso: Durante e depois da crise

Abra-se o Tesouro para garantir a sobrevivência das pessoas e empresas, depois se vê como pagar

Estamos atravessando tempos bicudos. Não só por causa do coronavírus, mas também porque há um vazio político no mundo. Quando não, há uma histeria direitista sem que se veja o “outro lado” do espectro. Ou sumiu, ou os tempos são outros e mesmo a antiga divisão, que persiste, entre esquerda e direita - com suas variantes ao redor de um centro abstrato - não dá mais conta das reais adversidades do mundo contemporâneo: aquecimento global, substituição de mão de obra por “máquinas inteligentes” e agora, como se fossem poucas as tormentas, as pandemias.

Estou, como bom cidadão - e idoso -, fazendo esforço para me isolar. Confesso que ando cansado de ouvir tanta gente, a toda hora, falando de doenças e mortes. Não me refiro aos especialistas, como o ministro da Saúde, que precisam mesmo falar. Ele tem sido competente, claro e sensível às necessidades do momento. Certos presidentes melhor que não falem, pois falam e “desfalam” ao sabor das circunstâncias, despreparados para entender o presente e, mais ainda, para projetar o futuro.

Sei que é difícil. Na última sexta-feira, assisti no Zoom (ah, quantos inventos de interlocução sem a presença das pessoas foram criados no mundo e como são úteis...) a uma discussão, organizada pela Fundação FHC, entre o ex-embaixador do Brasil na China Marcos Caramuru e um especialista americano em economia chinesa, Arthur Kroeber.

Além dos impactos econômicos da pandemia, discutiram o que poderá acontecer com a geopolítica mundial depois da crise. Kroeber afirmou que a crise reforça a posição dos setores mais duros da sociedade e do governo americano, que veem na China uma ameaça, um vírus a ser contido. O embaixador Caramuru acredita que, se essa visão prevalecer nos Estados Unidos, crescerá a influência chinesa no mundo. Para ele, só os Estados Unidos veem a China como adversária implacável da paz e da prosperidade. Os demais países - nós incluídos - deveriam aproveitar os espaços econômicos no futuro para aumentar nossas exportações e induzir os chineses a fazerem mais investimentos aqui.

É certo que é preciso pensar no depois. Os países e seus povos não vão acabar. A crise virótica, por mais difícil e custosa que seja em termos de vidas e de recursos, um dia vai passar. Mas, e antes disso, durante a pandemia? O óbvio já disse acima e a maioria das pessoas sabe e compartilha: nada, se possível, de ir à rua ou juntar-se com outras pessoas. Estamos todos (os que podemos...) como prisioneiros, não por ordem da Justiça ou pelo arbítrio dos poderosos, mas para tentarmos nos salvar e salvar os outros.

Aproveitemos para pensar no estilo de vida que vivemos. A solidariedade, no cotidiano da maioria das pessoas, transformou-se em mera frase, sem correspondência em atos. Por que não aproveitar a prisão voluntária para pensarmos um pouco mais sobre nós mesmos, nossa família, os amigos, os vizinhos e a sociedade mais ampla?

Sei que para alguns a adaptação em casa é mais fácil. Eu próprio aproveito para escrever e ler. Mas, e as pessoas que vivem nas favelas ou nas periferias sem verde algum, apinhadas sob um mesmo teto? E as que perderão o emprego como consequência indireta do coronavírus? Portanto, ao mesmo tempo que mergulharmos em nossa consciência para ver se ainda somos humanos, é hora de pensar também em como transformar em gesto a intenção de ser solidário. Não faltam boas iniciativas da sociedade civil para angariar e canalizar doações.

Sem diminuir a importância dessas iniciativas, a ação decisiva é dos governos. Os economistas não sabem qual será a profundidade da crise e em quanto tempo virá a recuperação. Mas num ponto a maioria concorda: às favas (por ora!) a ortodoxia e os ajustes fiscais. Voltamos aos tempos de Keynes e, quem sabe, os mais apressados deixarão de jogar os “social-democratas” na lata de lixo da História.

Os governos, e não só o daqui, começam a perceber que é melhor gastar já e salvar vidas do que manter a higidez fiscal e produzir cadáveres e depressão econômica. A dívida pública vai aumentar. Depois se verá como pagá-la. Este se é dúbio: em geral a maior parte da conta vai para o conjunto da população, e não para os que mais podem. Terá de haver mobilização política para que desta vez seja diferente.

Que o Tesouro se abra (e se já estiver vazio, que se endivide ainda mais). Com um porém: que os governos usem bem o dinheiro e não transformem gastos extraordinários em gastos permanentes. Melhor haver um “orçamento de guerra” do que criar bazucas permanentes contra o Tesouro.

É disto que se trata: reforçar estruturalmente a saúde pública e a ciência básica, fazer gastos extraordinários para garantir a sobrevivência das pessoas e das empresas mais vulneráveis e, mais à frente, distribuir com equidade a carga de impostos para reduzir o déficit e a dívida pública, que vão crescer inevitavelmente.

*Sociólogo, foi presidente da República


El País: Coronavírus chega às favelas brasileiras com impacto mais incerto que nas grandes cidades

Wuhan ou Madri pouco servem de modelo para as 30 milhões pessoas que não têm saneamento e, por isso, não conseguem seguir a recomendação mais básica para se evitar o contágio

Naiara Galarraga Cortázar, do El País

As autoridades e a população do Brasil podem ter alguma ideia do que virá com a expansão do coronavírus em uma megalópole como São Paulo, porque estão algumas semanas atrás de Wuhan ou de Madri. Mas, juntamente com as infinitas incertezas da crise, o país enfrenta a ameaça “com um agravante: não existe modelo de como o vírus se espalha pelas favelas”, alertou na semana passada o biólogo e divulgador Atila Iamarino.

Para os 30 milhões de brasileiros que não têm saneamento básico ou os 11 milhões que vivem em milhares de favelas espalhadas por um território com o dobro do tamanho da União Europeia, é difícil seguir a recomendação sanitária mais simples —lavar as mãos frequentemente com água e sabão— e o álcool em gel é um luxo inalcançável. E trabalhar em casa é uma quimera para famílias que dividem um ou dois quartos mal ventilados ou quando alimentar os filhos exige sair às ruas para vender doces ou cuidar de bebês ou dos jardins de outros.

Casos já foram confirmados em comunidades do Rio de Janeiro, enquanto o avanço da pandemia ganha velocidade. Até a tarde deste sábado, o total oficial no país era de 432 mortos e 10.278 infectados.

Nessas comunidades superpovoadas onde poucos confiam nas autoridades, o Estado só aparece com uniforme policial, faltam as infraestruturas mais básicas e as pessoas vivem com o que ganham no dia, combater o coronavírus é uma missão muito delicada que preocupa os governantes e na qual a sociedade civil pôs mãos à obra em uma tentativa de evitar a catástrofe.

“A crise já está nos afetando de forma muito violenta e sabemos que aqui vai contagiar muita gente”, explica por telefone Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores e do Comércio de Paraisópolis. Ele conta que, embora tenha demorado vários dias, o vibrante comércio dessa favela de 100.000 habitantes em São Paulo já está fechado, cumprindo as medidas de isolamento social recomendadas pelo Ministério de Saúde e pelo Governo estadual. São medidas drásticas, alinhadas com as diretrizes da OMS para enfrentar o perigo para a saúde, que o presidente Jair Bolsonaro considera exageradas devido a seus efeitos brutais na economia, porque “a fome mata mais que o vírus”.

Convencer os moradores a reduzir o contato com outras pessoas para frear os contágios não foi fácil, porque em Paraisópolis “alguns não acreditam que o vírus vá chegar, e outros não acreditam que vá ser tão violento”, diz Rodrigues. Cosme Filipsen, que vive na favela do Morro da Providência, no Rio, conta por telefone que, até poucos dias atrás, uma boa parte de seus moradores ainda se reunia para um churrasco e uma cerveja.

Essa incredulidade popular não é de surpreender se levarmos em conta que Bolsonaro encabeça aqueles que consideraram a Covid-19 uma “gripezinha” e continua incentivando a população a retomar completamente a atividade econômica, contrariando o critério do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. O ministro, que é médico, alerta que enquanto não houver vacina nem um número suficiente de leitos hospitalares suficientes, respiradores e máscaras, o mais eficaz é ficar em casa. “Além de ser ineficaz diante da pandemia, Bolsonaro coloca todos nós em perigo”, insiste Filipsen.

O vírus, que parece ter chegado à América Latina com um empresário brasileiro que voltou de Milão, avança em um país onde a grande desigualdade social complica ainda mais a batalha. Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, uma das instituições brasileiras de referência em pesquisa na área da saúde pública, explicou em uma entrevista recente que a Covid-19 “chega de classe executiva, mas se depara com uma realidade em que nós temos uma alta densidade populacional e em condições habitacionais de muitas vulnerabilidades, como é o caso de muitas das nossas periferias e favelas em todos os centros urbanos do Brasil. Além disso, temos uma mobilidade urbana difícil, com transportes lotados”.

O carioca Filipsen conta que seus recentes protestos nas redes sociais contra a falta de água em sua comunidade repercutiram na mídia e finalmente foi restabelecido o abastecimento na área, que “estava sem água desde três meses antes da pandemia”.

À intranquilidade pela falta de saneamento básico —“desprezado pelos políticos porque não aparece nas campanhas eleitorais”, diz o líder dos moradores de Paraisópolis— soma-se uma preocupação ainda mais urgente, o desastre econômico: os comerciantes perderam sua renda com o fechamento das lojas, e muitos porteiros ou babás que trabalhavam nos bairros de classe média alta “foram despedidos ou colocados em férias não remuneradas”.

Como as ajudas econômicas diretas anunciadas pelo Governo federal e por administrações estaduais e municipais ainda não se materializam nos bolsos dos brasileiros, as associações de moradores de inúmeras comunidades buscaram aliados para distribuir alimentos aos mais necessitados, além de informar as pessoas sobre a magnitude dos riscos e como evitá-los. Em Paraisópolis, estão até erguendo uma espécie de hospital de campanha.


Alon Feuerwerker: O samba de uma nota só

Neste curso coletivo de dimensões planetárias sobre epidemias, aprendemos que a curva epidêmica tem um trecho exponencial ascendente, logo no começo. Depois a subida inverte a curvatura, conforme algumas pessoas se imunizam e outras, infelizmente, vão a óbito. Uma hora chega o pico. E quando o fator “R”, o número de indivíduos que cada indivíduo contaminado contamina, cai abaixo de um, a curva começa a trajetória descendente. Numa imagem que é quase o espelho de quando subiu.

O enigma para o analista político é tentar decifrar se haverá correlação entre as idas e vindas da curva epidêmica e uma parente dela: a curva de aprovação/desaprovação dos políticos que lidam com a epidemia em cada país. Ou em cada estado. Ou em cada cidade. Quem disser que tem certeza provavelmente falta com a verdade. Ao final deste pesadelo (haverá um “final”?) poderemos ter certeza. Mas aí será trabalho para historiadores, os privilegiados que podem se dar ao luxo de fazer previsões só depois que tudo já aconteceu.

Políticos agem por instinto, e movidos principalmente (unicamente?) pelo humor do eleitorado do qual dependem. Donald Trump decidiu proibir exportações de produtos médicos necessários para ajudar pacientes da Covid-19 e profissionais da saúde. E mandou comprar/pegar tudo que fosse necessário comprar/pegar mundo afora. Para tristeza dos fãs da “globalização”, cada um só vota nas eleições de seu próprio país. E a contabilidade de mortos que interessa a Trump no ano eleitoral é a dentro das fronteiras dos Estados Unidos.

Por isso, ele combina bem o “blame game” (o esforço, por enquanto pouco produtivo apesar da propaganda, de emplacar a expressão “vírus chinês”) com uma versão mais tosca do “big stick”, versão que dispensa aquela parte de “fale macio”. E os índices mostram o presidente candidato à reeleição navegando em meio à curva crescente da epidemia nos Estados Unidos. No momento, o povo americano parece mais preocupado em sobreviver, e menos em discutir se lá atrás Trump subestimou o problema.

Por aqui, Jair Bolsonaro sofre algum desgaste por ser talvez mais teimoso. O ocupante da Casa Branca mudou o discurso e a linha de ação quando foi necessário, sem se preocupar em explicar por que alterou a rota. Assim funcionam os líderes. Bolsonaro já teve inúmeras oportunidades de ajustar o leme para indicar que se preocupa sim com o impacto da epidemia para a saúde e a vida, mas não aproveitou. Continua no samba de uma nota só, de que os efeitos econômicos da paradeira podem ser tão ou mais daninhos que os da Covid-19.

As pesquisas mostram por enquanto um desgaste para ele apenas na margem. Não está bem avaliado no combate à epidemia, mas mantém perto dele o eleitorado fiel desde a reta final do primeiro turno em 2018. Por cálculo, ou por instinto, ou por convicção, tanto faz, ele parece achar que isso será suficiente para concluir o mandato e brigar para continuar em 2022. Pode ser. Mas também pode estar subestimando o papel que o cansaço com o belicismo presidencial pode desempenhar para juntar gente contra ele até lá.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Evandro Milet: A disrupção do cisne negro

No seu livro “A Lógica do Cisne Negro”, Nassim Taleb nos apresentou o cisne negro(animal que se considerava inexistente até ser visto, pela primeira vez, na Austrália, no século XVII), como ele batizou um evento com três características: é imprevisível, ocasiona resultados impactantes e sentimos como se pudéssemos tê-los previstos, pois são retrospectivamente explicáveis.

A crise do novo coronavírus é um legítimo cisne negro. O mundo sairá dessa crise mais antenado com a possibilidade de novos cisnes negros, mais precavido com sopas de animais exóticos e com terrorismo de armas químicas, biológicas e digitais. O mundo mudou conceitos para evitar novos cisnes negros específicos como foram o 11/9 e a crise do sub-prime - mas o seu momento continuará imprevisível. Taleb critica a nossa ilusão de tentar prever o futuro, considerando os cisnes negros e o número de interações no sistema complexo em que vivemos tendendo ao infinito e desmentindo sistematicamente nossas previsões.

Mas temos que tentar. Provavelmente voltará com força a questão ambiental, momentaneamente adiada, que poderá disparar a qualquer momento o evento de um cisne negro devastador.

Depois do cisne negro da queda do Muro de Berlim, tivemos a impressão que a história havia acabado, como Fukuyama sugeriu, que o capitalismo e a democracia haviam vencido. Aí surge a China, com seu capitalismo de estado ou socialismo de mercado, mas sempre uma ditadura, e cresce aceleradamente colocando dúvidas sobre o fim da história. E mais recentemente despontam as tais democracias iliberais, onde o executivo vai minando as instituições mantendo uma aparência, mas cada menos democrática. A Hungria agora muda de patamar e avança com Orban conseguindo poderes absolutos para governar, sinalizando o exemplo para outros candidatos pelo mundo. O novo cisne negro pode vir da política, que embora dê sinais, não sofreu ainda um baque disruptivo geral.

Enquanto isso, a crise do coronavírus promete transformar o mundo e cada país. Depois de meses de transformação digital forçada, o Congresso terá feito sessões virtuais, a justiça terá atuado remotamente, a medicina e a educação também e os trabalhadores terão se acostumado ao home-office. A maioria não vai querer voltar mais. São consequências positivas deste cisne negro devastador.


Arnaldo Jardim: Gravidade da crise exige medidas urgentes

A crise mundial iniciada com a propagação do COVID-19 tem múltiplos aspectos a serem considerados. O mais importante, naturalmente, é a dimensão humana de todo sofrimento que a doença está levando a milhões de pessoas ao redor do mundo. O impacto na saúde pública é gigantesco e extrapola propriamente aos efeitos da doença. Mas não é só na saúde que os efeitos são sentidos.

A pandemia do coronavírus trará consequências imprevisíveis para a economia. Ao redor do mundo, a cada dia que passa, as previsões sobre o crescimento econômico esboçam um quadro desolador. A economia chinesa, que tem sido a locomotiva da economia mundial, deverá sofrer, no mínimo, uma retração de dois pontos percentuais no crescimento de seu PIB. Na Europa a queda deverá ser mais intensa. Na Itália, por exemplo, a economia parou. Nos Estados Unidos, o JPMorgan Chase and Co. estimou que a economia americana poderá encolher impressionantes 14% no segundo quadrimestre de 2020. Seria o pior resultado do pós-segunda Guerra Mundial.

Como cada país sofrerá as consequências dessa crise econômica depende, em muito, da reação das diversas autoridades. E é isso o que nos preocupa no caso brasileiro. O governo federal demorou em dimensionar o impacto da crise na economia. Um exemplo disso foi o encontro que o Ministro da Economia, Paulo Guedes, teve na semana passada com os principais líderes do legislativo. Na ocasião, o timoneiro de nossa economia foi incapaz de propor alguma medida e repetiu o inadequado discurso sobre a necessidade de aprovação das reformas, demonstrando a incapacidade de perceber a velocidade com que a crise se aproximava de nosso país e o resultado que uma eventual aprovação de reformas traria a curto prazo. Reformas, aliás, que sequer foram enviados ao Legislativo.

Apesar da demora, os fatos se impuserem e o governo federal teve que agir. O conjunto de medidas adotadas esta semana para o enfrentamento da crise econômica está na direção correta, embora, a nosso ver, algumas delas enfrentarão desafios. Preocupa-nos, por exemplo, como se dará a distribuição dos recursos para os autônomos.  Ou como será a ampliação do programa Bolsa Família. A velocidade da execução dessas medidas determinará seu êxito ou fracasso.

As medidas tomadas até agora são tímidas e devem se encaradas como o início do processo de ação dos governos frente à realidade da crise que estamos enfrentando. Devemos reforçar as medidas anticíclicas, para que nossa economia dirima as consequências da retração da atividade econômica. Auxiliar o setor privado ofertando crédito subsidiado, especialmente para capital de giro de micro e pequenas empresas é essencial. Ampliar prazo para pagamento de tributos federais também é uma necessidade urgente. Assim como adotar medidas que flexibilizem temporariamente as regras do mercado de trabalho é fundamental para a garantia dos empregos.

Nós, do Poder Legislativo, não estamos nos furtando de participar do processo de enfrentamento da crise e de propor soluções. Aprovamos o Estado de Calamidade, que nos permitirá flexibilizar a meta do resultado primário e aprovamos a Medida Provisória do Contribuinte Legal que trará mais de R$ 20 bilhões para a União e possibilitará a repactuação de diversas dívidas para com o fisco.  Além disso estamos enviando uma série de sugestões ao Poder Executivo. A Deputada Carmen Zanotto, representante do Cidadania na Comissão destinada a acompanhar as ações preventivas contra o coronavírus, por exemplo, sugeriu ao Executivo que sejam facilitados os trâmites aduaneiros e sanitários para a importação de medicamentes e itens de saúde, e que sejam proibidas as exportações de produtos que possam ser utilizados direta ou indiretamente no enfrentamento da crise.

Outras medidas podem e devem ser tomadas para aliviar os cidadãos e as empresas. Do ponto de vista das tarifas públicas poderíamos isentar ou reduzir, temporariamente, as tarifas de energia, gás, e água. Tais medidas teriam um potencial enorme de reduzir a pressão sobre todos, especialmente os mais pobres.

No que se refere a legislação trabalhista, poderíamos pensar na redução na jornada de trabalho e na redução proporcional dos salários. Isso poderia contribuir sobremaneira para a manutenção dos empregos. A ampliação dos prazos para a realização de exames ocupacionais e a suspensão dos prazos de contestação e de recursos administrativos seriam outras iniciativas importantes.

A política monetária também pode exercer um papel importante. Para isso é possível reduzir com mais intensidade a Selic e diminuir os depósitos compulsórios. Tais medidas podem ampliariam a oferta de crédito e reduzir o spread bancário.

Os bancos públicos, como o BNDES, devem participar desse esforço de ampliar as linhas de crédito e facilitar as condições dos financiamentos entendo a seriedade do momento e o papel que lhes cabem no processo de desenvolvimento da economia brasileira..

Neste momento devemos ter em mente que só com uma ação coordenada e com a participação de toda a sociedade, conseguiremos atravessar esses momentos de enorme tormenta. Devemos ter um olhar mais acurado com os mais pobres porque eles sofrerão com mais intensidade a crise que se inicia. Esperamos que nossos governantes estejam à altura do tamanho da crise que se inicia e possam desempenhar com grandeza o papel que lhes foi delegado pelo povo brasileiro.

* Deputado Arnaldo Jardim é líder do Cidadania na Câmara dos Deputados


Alon Feuerwerker: A política e os amigos

Todas as pesquisas mostram alguma corrosão da imagem do presidente da República, mas na margem. O público mais fiel continua firme. Mostram também que os governadores estão em alta. Isso é consistente com a preocupação central das pessoas neste momento: a saúde.

O risco imediato para o governo federal não está na popularidade, mas numa certa propensão ao isolamento político. Alimentar permanentemente a base numa guerra eterna contra os inimigos, reais ou virtuais, junta gente mas também ajuda a formar uma frente anti.

Até semanas atrás eram impensáveis gestos mútuos de respeito entre João Doria e Luiz Inácio Lula da Silva. Houve alguma reação agora quando aconteceu, mas nada perto do que seria se tivesse acontecido antes da pandemia da Covid-19.

É por isso que convém nunca esquecer do valioso conselho. Nunca rompa com seu amigo por causa de política. Depois os políticos se entendem e só quem ficou no prejuízo foi você, que perdeu um amigo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação