coronavirus

Cristovam Buarque: A voz do vírus

Diz-se que a verdade é a primeira vítima na guerra. Na epidemia é a lucidez. A urgência no atendimento para barrar a epidemia e cuidar da saúde das pessoas faz esquecer que a vida continuará depois. A saúde não assegura a vida plena para uma pessoa e a sociedade. No ano de 1348, auge da peste negra, o imperador Carlos IV fundou a Universidade de Praga. Depois, ela serviu para o Renascimento que abriu as portas para a ciência que indica como enfrentar a nova peste: com o isolamento.

A insensatez está levando ao debate sobre a importância e não sobre a urgência. Respirar e comer são igualmente importantes, mas o oxigênio é mais urgente. No lugar de debater o que é mais importante, o sensato é tomar as medidas urgentes para salvar as vidas hoje, cuidando da respiração das pessoas, sem esquecer de cuidar da recuperação da economia depois, para assegurar o necessário à vida plena: emprego, renda, produção, um propósito para viver e condições para buscar a felicidade.

O vírus está mostrando a falta de solidariedade dos que não pensam na urgência da epidemia, e a insensatez de não levar em conta o futuro depois dela. Precisamos ser solidários, como manda a ciência médica, com isolamento, leitos, respiradores e renda para os sem salário. Mas também temos que cuidar da recuperação posterior da economia e da sociedade.

O vírus está dizendo que fomos insensatos no passado. Há séculos deixamos milhões de pobres sem renda por causa da estrutura social. Falamos agora da necessidade de trabalho, mas nunca tivemos preocupação com pleno emprego. Dizemos que é preciso cuidar da higiene para evitar a transmissão do vírus, mas deixamos 35 milhões de pessoas sem água em casa para lavar as mãos e 100 milhões sem tratamento de esgoto. Criticamos a irresponsabilidade de um presidente que não entende a urgência do isolamento, mas esquecemos que a falta de água tratada e rede de esgoto é produto de governos anteriores. “Nossos” governos.

O vírus está nos indicando que o obscurantismo do atual presidente tem características de genocídio. Mas lembra que nas gestões anteriores não fizemos o suficiente para impedir dezenas de milhares de mortos por malária, dengue e sarampo. O vírus está nos apontando que não cuidamos do analfabetismo porque não há um “letravírus” que contamine os que aprenderam a ler, fazendo-os analfabetos outra vez. E lembrando que sem educação não daremos emprego e renda aos que sobreviverem, despreparados profissionalmente. Para viver não basta respirar.

O vírus nos revela ainda que ele foi trazido do exterior por avião para os bairros ricos e nos pergunta se a epidemia seria enfrentada com o mesmo rigor se tivesse chegado de ônibus, direto para os bairros pobres. Nesse caso, talvez estivesse recebendo a pouca atenção dada ao aedes aegypti, que transmite a dengue, ou do anopheles, que transmite a malária. Ele especula que se o vírus da poliomielite não atingisse as pessoas indiscriminadamente, talvez não tivéssemos dado ao mundo o exemplo das “gotinhas” que erradicaram essa antiga epidemia.

O vírus anuncia que para salvar nossas vidas estamos em quarentena, sobrevivendo à síndrome da abstinência ao vício do consumismo nos shoppings e à falta de viagens. Ele nos ensina que podemos ver o mundo, estudar, trabalhar mesmo sem sair de casa. E que a saúde de cada um depende da saúde de todos, que a solidariedade com os outros é necessária para a sobrevivência de cada um, que a saúde de cada um não será plenamente segura se não cuidarmos da saúde pública.

O vírus está confirmando que além de levarmos a sério a ciência médica precisamos respeitar a ciência econômica e sobretudo a velha aritmética. Que neste momento devemos gastar o que for preciso para atender às necessidade dos doentes, de trabalhadores desempregados e se empresários falidos, mas que não devemos deixar a conta ser paga depois pelos pobres com a carestia da inflação, nem pelos jovens que pagarão o aumento da dívida pública. A solidariedade na doença precisa ocorrer na hora de pagar a conta

O vírus tem falado que além da quarentena, precisamos de uma revolução no nosso comportamento e nas nossas prioridades. E nos grita que é preciso mudar o velho padrão do progresso baseado na voracidade do consumo e na ganância do lucro. Mas ele sussurra o medo de que, passada a epidemia, voltaremos aos velhos costumes de antes: o desprezo ao saneamento, à educação de base e à saúde pública, e a preferência pela ilusão inflacionária, obrigando os pobres a pagarem a conta com a carestia.

 


Felipe Salto e José Roberto Afonso: Um orçamento para a guerra

Proposta que cria regime excepcional fiscal e financeiro é arma poderosa

A gravidade da crise disparada pelo espalhamento da Covid-19 requer ações contundentes do Estado. Em tempos de guerra, gastos públicos vultosos serão necessários e precisarão ser planejados e executados com uma eficiência incomum. É recomendável ter um orçamento apartado para dar total transparência a fontes e usos de recursos e para blindar as contas públicas do risco de desarranjo e insustentabilidade.

A flexibilidade já está contemplada na Lei de Responsabilidade Fiscal e no teto de gastos (exceção para créditos extraordinários). Após a aprovação da calamidade pública pelo Congresso, endossada pelo STF, causou perplexidade a demora do governo federal em agir. Medidas provisórias criaram dotações extras para gastos com saúde com a intenção de tentar preservar empregos e distribuir renda mensal temporária, além de reforçar fundos de participação. A emergência certamente as justifica, mas está claro que falta um conjunto consistente de ações, de atos, de gastos e de dívidas.

Uma melhor ordenação desse esforço de guerra é regulada pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de iniciativa do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A PEC propõe um regime especial fiscal e financeiro para combater desde o coronavírus até os seus efeitos colaterais sobre a sociedade e a economia. Possibilitará a alocação e a aplicação céleres de recursos públicos na saúde (inclusive compra e requisição de bens e serviços), na proteção social e na reação à recessão econômica.

Um comitê gestor comandará todas as ações da crise, composto por representantes das três esferas de governo. O Congresso deverá emitir parecer sobre todas as medidas provisórias de aumento de despesas em até 15 dias. A regra de ouro será suspensa durante a calamidade, já que é inevitável contrair dívida pública para financiar custeio da saúde e transferências assistenciais.

Proposições legislativas ficarão imunes às amarras, desde que não criem compromisso permanente do gasto público. Não se poderá, por exemplo, contratar novos servidores permanentes ou reajustar salários.

Além das matérias fiscais, a PEC proposta contempla alterações na atuação do Banco Central e em suas relações com o Tesouro Nacional para promover uma intervenção emergencial. Permitirá a concessão direta de crédito para empresas, em linha com o que outros países têm feito.

A construção do orçamento de guerra pode ser reforçada e complementada por outras propostas de lei complementar, ordinária e decreto legislativo. Elas podem dar mais fluidez ao processo de contratação e fiscalização das despesas, na crise, e, ao mesmo tempo, assegurar conforto aos gestores compatível com atos tomados em caráter emergencial, sem prejudicar a transparência.

Em particular, há um projeto do senador José Serra (PSDB-SP) que cria um fundo para estruturar o arcabouço orçamentário, podendo incluir até recursos privados para financiar a construção de hospitais e leitos de UTIs, contratar médicos, comprar remédios e testes, dentre outras ações.

É importante atentar que o SUS é organizado de forma descentralizada. Especialmente na assistência médica, cerca de 95% do gasto é executado diretamente pela rede hospitalar estadual e municipal. A guerra é sempre nacional, e um orçamento unificado permitirá integrar e conciliar o financiamento centralizado com ações descentralizadas.

Traçar uma fronteira entre as contas públicas de guerra contra o coronavírus e o orçamento regular dará a agilidade necessária para enfrentar a emergência e assegurará o controle e a transparência. Serão várias frentes de batalha: saúde, proteção social, produção e crédito.

A proposta iniciada pela Câmara dos Deputados para criar um regime excepcional fiscal e financeiro é uma arma poderosa para o Brasil vencer essa guerra pela vida.

*Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal e autor do livro ‘Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade’ (ed. Record)

*José Roberto Afonso, doutor em economia pela Unicamp, professor do Instituto de Direito Público (IDP) e conselheiro da IFI


El País: Trabalhadores já encaram cortes nos salários

Em meio à crise com o coronavírus, não perder o emprego é motivo de celebração. Contratados como pessoas jurídicas também viram sua remuneração reduzida

Com a escalada da pandemia de coronavírus no Brasil e a paralisação de grande parte das atividades econômicas, várias empresas já começaram a demitir funcionários. Outras já começam a cortar salários, amparadas na Medida Provisória editada no início deste mês, que abriu essa brecha para este momento de emergência. Luciana* (nome fictício porque prefere não aparecer) foi contemplada por essa redução e precisou reajustar sua vida prática. Cancelou a pós-graduação e passou a terapia, que fazia semanalmente, para o regime quinzenal antes mesmo de saber quanto exatamente do seu salário seria cortado. “No dia 20 de março, deixamos de receber o vale-transporte e vale-refeição”, diz. Naquele momento, ela já havia sido avisada sobre uma possível renegociação salarial. Isso tudo antes de o presidente Jair Bolsonaro editar, na quarta-feira (1 de abril) a MP que permite a redução da jornada de trabalho e dos salários em até 100%, com uma compensação proporcional paga pelo Governo, mas só até o teto do seguro-desemprego (1.813,03 reais).

Funcionária de uma construtora e contratada via CLT, Luciana achou que, quando as primeiras conversas sobre renegociações ocorreram, a medida afetaria os altos cargos da empresa, que são contratos via Pessoa Jurídica (PJ). “Não imaginei que respingaria em todo mundo”, afirma. Mas nesta sexta-feira, ela recebeu a informação oficial da empresa: corte de 10% no salário de quem ganha até 5.000 reais e de 20%, para quem ganha acima desse valor, ao menos até junho. Para ela, foi um alívio. “Achei que seria de 40%”, diz. “Então não deixa de ser uma boa notícia”.

Embora o setor da construção civil tenha permissão para seguir operando durante a quarentena, a empresa onde trabalha Luciana é especializada em projetos em condomínios fechados. E as administrações dos condomínios suspenderam a realização de obras neste período, por medida de segurança. “A empresa está completamente parada”, conta. Com poucas informações sobre como funcionará a MP, ela diz não saber se vai ter direito a receber o complemento prometido pelo Governo diante do que a empresa está cortando em seu salário. “Não sei como vai funcionar, se vamos ter que ir ao banco, se teremos de dar entrada ou se o pagamento é automático”, afirma. “Vou esperar que as pessoas que mais precisam consigam receber [o complemento via seguro desemprego] e aí eu dou entrada no meu”. O Governo estima que 24,5 milhões de pessoas terão o contrato reduzido ou suspenso no país.

Segundo a nova lei, a condição de suspensão completa do contrato de trabalho poderá ter um prazo máximo de dois meses. Há, ainda, a possibilidade de redução de jornada. Nesse caso, o limite de tempo são três meses. A legislação permite que as negociações sejam feitas individual ou coletivamente. Além disso, o texto garante um período de estabilidade para qualquer trabalhador com contrato reduzido ou suspenso. Ao longo de todo o tempo em que estiver vigente o acordo, o trabalhador não pode ser dispensado. E fica estável por igual período ao fim do acordo.

Trabalhadores sem carteira no limbo
A contrapartida do Governo diante dos cortes atende, no entanto, só aos trabalhadores formais de empresas privadas com carteira e dos domésticos com carteira. Os dois grupos somam atualmente 35 milhões de pessoas, o que representa 53,5% da força de trabalho, segundo o IBGE. Os trabalhadores que muitas vezes são contratados como pessoas jurídicas para diminuir os custos trabalhistas das empresas ―a chamada pejotização― ficarão de fora de uma contrapartida do Governo caso tenham os salários reduzidos.

É o caso de Lucas*, que foi avisado no início da semana sobre o corte de 40% no seu salário, a princípio, durante abril e maio, já que a empresa de marketing em que trabalha, de cerca de 300 funcionários, sofreu uma drástica queda na demanda. “Na segunda-feira me informaram que irão reduzir o salário e a jornada de todos da empresa, do presidente ao motorista. Mas como sou PJ, acho que infelizmente não entro nessas regras de ajuda do Governo”, afirma. “No início, fiquei bravo com a situação, até porque trabalho com muitos prazos, então provavelmente não vou conseguir reduzir as horas da minha jornada para conseguir finalizar o que preciso, só o meu salário será cortado. Ainda assim, é melhor do que ser demitido, lá ninguém foi demitido ainda”, diz.

Estatais e empresas de capital misto não entram na MP
O engenheiro Henrique* teve o salário e a jornada reduzidos, mas também não receberá nenhuma compensação do Governo, porque é concursado da Petrobras. Estatais e empresas de capital misto, como Eletrobras e Petrobras, não poderão se beneficiar da MP, porque os regimes jurídicos são diferentes, e as contratações feitas por concurso público. Segundo o secretário especial de Previdência e Trabalho, Bruno Bianco, o objetivo da nova lei é preservar os empregos dos trabalhadores do setor privado.

Apesar de ter um trabalho estável, o engenheiro explica que o corte que ele e os colegas irão sofrer de um quarto do salário irá pesar para quem tem filhos e muitos compromissos financeiros. “No setor da energia estamos vivendo uma crise dupla. Temos de um lado uma forte queda de demanda por causa da epidemia de coronavírus e do outro, um excedente de petróleo por conta da guerra entre Arábia Saudita e Rússia”, diz ele, lembrando que os preços do brent foram para o chão. “A operação está próxima de não ser viável”, completa. Apesar da empresa ter reduzido seu horário de 8h para 6h ao dia, acredita que continuará trabalhando a carga horária de sempre porque trabalha com projetos que necessitam agilidade. “Ontem já não cumpri as 6 horas, porque estou com muitos projetos. Temos uma equipe muito comprometida”, explica.

Henrique afirma que está incomodado com a diferenciação que fizeram entre os cortes dos salários dos trabalhadores do regime administrativo ―do qual faz parte— e daqueles que ocupam cargos com gratificações extras. Este último grupo, que inclui gerentes, consultores, assessores e supervisores, terão a postergação do pagamento —entre 10% e 30%—, da remuneração mensal até setembro. “É tragicômico que justamente as pessoas com uma das melhores remunerações da empresa não sofrerão cortes, apenas um adiamento de parte do salário”, afirma.

Em nota ao EL PAÍS, a Petrobras justificou que os empregados em regime administrativo trabalharão por menos horas e a sua remuneração manterá o mesmo valor por hora trabalhada. “Já os gestores, é comum ficarem à disposição da companhia permanentemente durante todo o dia. Esses empregados não terão redução de jornada e, em momentos de crise, podem ser acionados inclusive em horários estendidos”, disse a petroleira, explicando que, a medida adotada foi de redução temporária da remuneração com postergação do pagamento.

Informais ainda não sabem como e quando receberão auxílio
Enquanto os trabalhadores formais se adaptam a uma realidade que não se sabe até quando vai durar, os informais de baixa renda ainda não sabem quando exatamente receberão um auxílio emergencial de 600 reais em decorrência da pandemia da Covid-19, que consta em outra MP sancionada pelo presidente, voltada para os informais. A dúvida geral é como ter acesso ao dinheiro.

Em um dos cruzamentos da avenida Pedroso de Morais, na zona oeste de São Paulo, o catador de lixo Luiz Antonio resolveu pedir dinheiro em um dos sinais de trânsito já que não consegue mais vender o material reciclável que recolhe. “Estou passando fome. Quando isso tudo vai acabar? Ouvi falar que o Governo vai dar uma ajuda, mas como que faço para ganhar?", disse à reportagem.

Nesta sexta-feira, o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, afirmou que os trabalhadores informais elegíveis “muito provavelmente” receberão antes da Páscoa o primeiro pagamento. E que será usado um aplicativo para celulares para identificar os trabalhadores informais que não estão em nenhum cadastro do Governo mas têm direito ao benefício. O alcance do auxílio vai depender, portanto, da taxa de adesão dessas pessoas, uma tarefa que não será fácil para o Governo, já que muitas delas não possuem smartphones ou internet.

* Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.


O Globo: Pandemia do coronavírus deve mudar a face do capitalismo

Empresas serão cobradas para terem atividades mais voltadas à sociedade, após ajuda oficial de trilhões de dólares recebidas dos governos. Presença do Estado será maior do que nos últimos anos

Vivian Oswald, O Globo

LONDRES - O confinamento inédito de metade da população mundial e o consequente pandemônio que se abateu sobre as economias globais devem mudar a face do capitalismo. A relação entre empresas, sociedade e governos mudou. Dificilmente voltará a ser o que era, na avaliação de especialistas. Fala-se até em um novo contrato social.

Grandes corporações e bancos sobretudo, socorridos com trilhões de dólares na crise financeira global de 2008, serão cobrados. Os mercados terão nova missão. Diante dos esforços para reconstruir as economias — só o Reino Unido já liberou 418 bilhões de libras (mais de R$ 2,5 trilhões) em pacotes de estímulos para minimizar os efeitos da pandemia do novo coronavírus —, a fatura começa a ser apresentada. O que se espera é um capitalismo mais benevolente.

— Assim como os contribuintes ajudaram a salvar os bancos em 2008, o governo agora quer trabalhar com os bancos para retribuir o favor e apoiar empresas e pessoas, as que mais precisam no Reino Unido — disse o ministro de Negócios, Energia e Estratégia Industrial, Alok Sharma.

Impostos mais altos
A declaração foi feita nos boletins diários do governo conservador britânico à televisão semana passada. O mesmo partido que, há mais de dez anos no poder, empunhava a bandeira da austeridade fiscal até pouco tempo atrás.

— Será totalmente inaceitável se os bancos rejeitarem empréstimos para as boas empresas — completou Sharma.

A presença do Estado deve ser maior daqui por diante como catalisador da recuperação. Sobretudo depois dos pacotes multibilionários de estímulos. A ajuda é para manter a economia em “hibernação”, diz Abhimay Muthoo, professor de economia e reitor da Universidade de Warwick:

— É preciso saber por quanto tempo os países conseguem manter a economia hibernando. Isso vai determinar o ritmo da retomada. O certo é que haverá nova ordem internacional. Vamos precisar de uma sociedade mais generosa, o que se traduz em redistribuição de renda, impostos mais altos, serviços públicos eficientes e Estados com presença maior do que nos últimos anos.

Espera-se uma recessão global. Itália e Espanha, as nações com o maior número de casos da Europa, devem perder 15% do PIB no primeiro trimestre, segundo a Oxford Economics.

— Governos poderão deixar claro às empresas que precisarem de apoio que ele dependerá de certos critérios. Outro ponto que me parece óbvio é que os dias de uso exagerado de recompra de ações para a maximização excessiva de lucros, possivelmente às custas de outros fins, podem ter acabado — disse Jim O’Neill, presidente da Chatham House, um dos centros de pesquisa mais prestigiados da Europa.

Recompra de ações
Ex-economista-chefe do banco Goldman Sachs e criador, em 2001, do acrônimo Brics — grupo de países em desenvolvimento que seriam as locomotivas da economia global: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul —, O’Neill trabalhou no mercado financeiro por mais de duas décadas. Mas há alguns anos defende um novo propósito para os lucros das empresas.

Segundo ele, em 2018, o total de operações de recompra de ações pelas dez maiores companhias americanas ficou próximo de US$ 1 trilhão. E os maiores compradores eram elas próprias, que teriam se tornado, nas palavras de O’Neill, meras administradoras de balanços, obcecadas por desempenho.

Em 2018, sugeriu taxar mais este tipo de operações, e dar crédito tributário para os gastos das empresas com investimentos. No limite, até mesmo tornar ilegais as operações de recompra em companhias com produtividade baixa. O tema estaria sendo estudado pelo governo britânico.

No ano passado, o Business Roundtable, que reúne presidentes de grandes empresas americanas, já falava no fim da cultura dos “acionistas primeiro”. Para a Social Market Foundation, as companhias têm a oportunidade de criar uma nova relação com a sociedade.

Novo contrato social
O diretor da entidade, James Kirkup, afirma que as empresas “deveriam concordar com um novo contrato social baseado no cumprimento das obrigações tributárias, no tratamento aos trabalhadores e no apoio às comunidades em troca da ajuda recebida durante a crise do coronavírus.

Uma das conclusões de um relatório coordenado por O’Neill para o governo britânico sobre a crescente resistência aos antibióticos era a de que a falta de investimentos para resolver o problema custará ao planeta dez milhões de vidas por ano a partir de 2050 em razão de infecções (e da falta de antibióticos). E causará prejuízo de US$ 100 trilhões à economia global.

O documento defende 29 intervenções que custariam US$ 42 bilhões para resolver a questão. Segundo O'Neill, o valor é menos do que o que as três maiores companhias farmacêuticas destinaram à recompra de suas próprias ações ao longo de uma década:

— Não é nada comparado aos custos de não resolver o problema ou ao colapso causado pela Covid-19 .


Demétrio Magnoli: ‘Não saia de casa!’

A vida ou a liberdade, o que vale mais?

‘Se eu pegar corona, peguei corona”, disse o jovem Brady Sluder, em 18 de março, Spring Break, quando festejava numa praia de Miami enquanto as autoridades recomendavam evitar aglomerações. Brady não é Jair mas, como ele, proclamava intuitivamente o princípio da filosofia libertária, alinhando-se com um variado espectro de pensadores que só reconhecem o deus das liberdades individuais. Brady perdeu — e pediu desculpas à sociedade. Jair perdeu até a companhia de Donald, não se desculpou e foi exilado para uma quarentena moral.

Nós vencemos. Mas quem somos “nós”?

“Não saia de casa!”. A ordem universal reflete a vitória da tradição filosófica do contrato social, que inscreve os direitos do indivíduo na moldura das normas de segurança coletiva. A tradição não é monolítica, fragmentando-se em tonalidades que se estendem do liberalismo progressista, numa ponta, ao totalitarismo, na ponta oposta. A Peste Negra em curso testa essas diferenças, colocando-nos diante de um espelho de cristal. Quem quer ser China?

A OMS exibe a China como modelo de eficiência, calando-se sobre a camuflagem inicial, a repressão aos médicos que davam o alerta, a brutalidade estatal do isolamento de Wuhan e, agora, sobre as suspeitas estatísticas chinesas, contaminadas pelo vírus do triunfalismo. Na Hungria, Viktor Orbán quer ser China: o primeiro-ministro obteve poderes de exceção por prazo indefinido de um parlamento controlado por seu partido, manipulando a crise sanitária para converter o país na primeira ditadura da União Europeia. “Não saia de casa!” — ou te coloco na cadeia por oito anos, ameaça o ídolo húngaro de Bolsonaro.

A vida ou a liberdade, o que vale mais? Da Itália à Suécia, passando por Espanha, França e Alemanha, estende-se um gradiente de medidas emergenciais que vão da quarentena severa a moderadas reduções de contatos sociais. Há penalidades, desde multas até processos criminais. Mas os governos estabelecem normas claras e temporárias, operando pela persuasão. Não é assim no Reino Unido, onde regras obscuras convivem com inumeráveis atos de arbítrio: drones filmam casais que passeiam com o cachorro no campo, motoristas são convocados a tribunais por dirigirem numa estrada aberta, policiais advertem alguém que fazia compras “não essenciais”.

“Agora estou dando uma ordem”, bradou Wilson Witzel, o improvável “campeão da vida” que mira “bem na cabecinha” e não entrega água potável às residências. O coronavírus carrega, no seu RNA, o gene do Estado policial. Mandetta explicou que “as pessoas podem caminhar, fazer algum esporte”. Witzel promete encarcerar os que desrespeitarem um isolamento social genérico. Na Rocinha, no Alemão, em tantas ilhas onde vale a lei da força, serão as milícias a aplicar sua ordem?

O vigilantismo escorre para baixo, despertando instintos latentes numa sociedade assustada. Moradores de edifícios cujas janelas se abrem para o longo viaduto do Minhocão, em São Paulo, vaiam, xingam, agridem pedestres e ciclistas que se atrevem a “caminhar, fazer algum esporte” na via elevada deserta. “Vai pra casa!” — o grito de guerra santifica, purifica, desinfeta. Fechamos fronteiras nacionais, trancamos rodovias intermunicipais. Por que não montar barreiras de vigilantes em torno de bairros ou quarteirões?

“Juntos vamos derrotar o coronavírus” — a capa unificada dos jornais brasileiros de 23 de março, cópia da iniciativa argentina, traz implícita uma curiosa mensagem jornalística contra a pluralidade de opiniões. “Juntos”, como quem? China ou Suécia? Alemanha ou Reino Unido? E com quem:

Mandetta ou Witzel? Orbán decretou penas de prisão para quem divulgar notícias sobre a pandemia classificadas como falsas pelo seu governo. A imprensa está pronta a aceitar qualquer medida formulada sob o alegado propósito de derrotar o “inimigo comum”?

Jair, a exemplo de Brady, nunca leu os libertários. Depois de confraternizar na praia, pode mudar radicalmente de ideia, imitando Viktor para se declarar um “presidente em guerra”. Vamos, juntos, proteger as liberdades enquanto protegemos a vida?


Fernando Limongi: Coronavírus evidencia que cartilha de Bolsonaro é delírio de loucos

Neoliberalismo primitivo do presidente e de Guedes vê na redução do Estado o remédio para todos os males do país

Diante da urgência do cenário que se desenha com a eclosão do coronavírus, cientista político considera que a cartilha neoliberal primitiva de Bolsonaro e Guedes, que vê na redução do Estado o remédio para todos os males do país, deve ser ignorada como delírio de loucos e dos que acreditam em mitos.

“Victor Hugo era um louco que se julgava Victor Hugo”, disse Jean Cocteau. Com pequenas adaptações, o chiste se presta para definir o atual ocupante do Palácio do Alvorada: Jair Bolsonaro é o mito inventado por um bando de malucos.

Analistas, por dever de ofício, devem decifrar o comportamento dos políticos, conferindo racionalidade a seus atos. A tentação de atribuir cálculo ao presidente tresloucado é enorme. Diz-se que há método na loucura, que tudo não passa de encenação meticulosamente arquitetada.

Dizer que está mirando 2022 não é senão reafirmar o óbvio. Que político não tem olho voltado para os eleitores e para as próximas eleições? E Bolsonaro nunca escondeu que só pensa em sua reeleição, que esta é sua única preocupação e que, para tanto, precisa abater toda e qualquer liderança, no seu governo ou fora dele, que possa lhe fazer sombra.

Comprou briga com João Doria e Wilson Witzel porque os dois podem enfrentá-lo no futuro. Disto não se duvida. A questão é se fez as escolhas certas e se o seu comportamento destemperado lhe renderá votos.

Para dizer o mesmo de outro modo: para ser reeleito, o presidente tem que cumprir o que prometeu. Mesmos os mais fiéis, mesmo os que acreditam em mitos, precisam ser satisfeitos. E é aí que entra o coronavírus.

O destempero e a insensatez não são novidades. Bolsonaro sempre foi e será assim. O cavalão, como era conhecido no Exército, é indomável. A novidade é o desespero.

A reeleição que dava por assegurada está indo para o ralo com a desorganização da economia. As perspectivas já não eram as melhores antes da epidemia; as promessas da retomada do crescimento não passavam disso, de promessas.

Mas Paulo Guedes (ministro da Economia), tanto quanto Bolsonaro, acredita no mito que criou para si mesmo, o de que seria simples resolver os problemas econômicos do país. Rebento do neoliberalismo original, aluno de Milton Friedman, o ministro acredita que basta diminuir o Estado para que o Brasil experimente um novo surto de crescimento.

O nó da questão estaria na regulação excessiva a tolher a iniciativa empresarial virtuosa. Para a Escola de Chicago, tudo quanto o Estado faz é atender interesses especiais de grupos organizados.

Pode parecer estranho, mas o fato é que o neoliberalismo primitivo tem grande afinidade com o discurso populista. Não por acaso, ao tomar posse, Paulo Guedes encheu os pulmões para dizer que o Brasil era o “paraíso dos rentistas”, que o reino destes verdadeiros parasitas chegaria ao fim.

De forma mais elaborada, em seu discurso de posse, declarou: “Os bancos públicos se perderam em grandes problemas com piratas privados e burocratas políticos. Burocratas corruptos e criaturas do pântano político se associaram contra o povo brasileiro”.

A harmonia do casal Bolsonaro-Guedes foi consumada no altar do populismo, com apelos simplistas em defesa do povo contra elites sanguessugas. Contudo, antes da eclosão da pandemia, Guedes vinha colhendo derrota atrás de derrota. O anúncio do pibinho e das revisões para baixo do crescimento deste ano foram as mais claras delas.

E todos os economistas de prol batiam na mesma tecla: sem reformas não haveria retomada do crescimento. O consenso, contudo, repousava na indefinição da lista de reformas prioritárias e de seu conteúdo. Em um ponto, contudo, quase todos concordavam: a disciplina fiscal não poderia ser abandonada.

E aí veio a pandemia, e qual foi a reposta de Guedes? No mínimo, tão atabalhoada quanto a de seu chefe. Inicialmente, defendeu que não havia motivos para mudar de rumos, que avançar as reformas teria se tornado ainda mais premente. Ou seja, o ministro não viu razões para abandonar a sua cartilha.

Com ou sem pandemia, o remédio seria o mesmo, diminuir o papel do Estado. Quando se convenceu de que alguma medida emergencial seria necessária, só se lembrou de aliviar o lado dos empresários, assinando medida provisória permitindo a suspensão temporária do pagamento de salários.

Enquanto isto, reconhecendo o inusitado da situação, a maior parte dos economistas ouvidos pela imprensa passou a defender programas de transferência de renda para os mais afetados, independente dos seus efeitos fiscais. Momentos extraordinários pediriam medidas excepcionais, e cada um dos entrevistados contribuiu com seu elenco de medidas emergenciais a serem adotadas.

Neste debate, a equipe econômica pouco contribuiu. Foi a voz discordante no novo consenso formado. Guedes saiu de cena, refugiando-se em seu apartamento, ao mesmo tempo em que Bolsonaro armava a sua guerra particular contra o isolamento social e suas repercussões sobre a renda dos trabalhadores impedidos de correr atrás de seu sustento.

Em nenhum momento, tudo indica, sua equipe econômica o instruiu de que havia alternativas, de que os autônomos e desempregados poderiam ser assistidos por programas de transferência de renda.

E se Bolsonaro quer se reeleger, se tem uma estratégia eleitoral, não seria mais apropriado assumir a paternidade dos programas defendidos pelos economistas? A solução da charada é simples: Bolsonaro não o faz porque não é isso o que ouve de seu guru.

Em meio a seu sumiço, o ministro encontrou tempo para se reunir com investidores. Pressionado a se posicionar, afirmou que, como cidadão, apoiava as medidas de isolamento social preconizadas pelo Ministério da Saúde. Por que precisou do adendo “como cidadão”? Qual sua posição como autoridade máxima da política econômica do governo? Evitou entrar em conflito com o chefe ou o apoia?

O fato é que o ministro resistiu o quanto pôde, recorrendo a inúmeros subterfúgios, postergando a entrada em vigor do plano aprovado pelo Congresso. Provavelmente, para parafrasear um de seus ídolos, vê no programa o início do caminho que leva à servidão. Carlos Bolsonaro, com sua sutileza e tato habitual, foi direto ao ponto: quem defende programas deste tipo são os esquerdistas.

A urgência do cenário que se desenha, contudo, recomenda que Bolsonaro e a ideologia que fundamenta seu governo sejam ignorados, como são ignorados os delírios dos loucos e dos que acreditam em mitos. Aplicando a regra usada pelo presidente para identificar seus filhos, não seria inadequado tratá-lo como o zero-zero, isto é, como um zero à esquerda.

*Fernando Limongi é professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e do departamento de ciência política da USP.


Benito Salomão: Política Fiscal em tempos de Coronavírus

Desde que esta pandemia desafiou os Estados nacionais no mundo todo, ficou evidente que a economia mundial caminharia rapidamente para uma recessão e que isto demandará esforços significativos dos governos para evitarem que os efeitos econômicos deste novo choque causem rupturas sociais. O cenário é desafiador, no artigo anterior publicado neste espaço, defendi a ação direta do Tesouro de forma que a política macroeconômica fosse direcionada a proteger camadas mais vulneráveis da população, bem como pequenos negócios. Mas afinal, pode o Tesouro arcar com os custos de políticas assistenciais em meio a uma crise fiscal pela qual o país vem passando a anos?

É preciso reconhecer que o momento fiscal brasileiro não é dos melhores, a dívida pública de 76% do PIB é elevada para padrões emergentes. Desde que Reinhart e Rogoff (2010) mostraram que dívidas públicas causam redução do crescimento econômico, um conjunto de evidências empíricas tem se debruçado a estudar este fenômeno. Por exemplo Carner et. al. (2010) mostram que o ponto de inflexão a partir do qual a dívida pública prejudica o crescimento é 77% do PIB. Neste cenário, pensado na ausência de catástrofes, a margem fiscal para expansão do gasto público no Brasil é realmente bastante limitada.

Vários fatores, no entanto, devem ser acrescentados nesta discussão. Primeiro que o conjunto de reformas aprovadas no Brasil pós impeachment estabilizou a trajetória da dívida, que hoje é alta, porém não explosiva. Isto ajuda a compreender de onde vem a margem fiscal para a implementação de políticas de combate ao Coronavírus. Segundo, graças a estas reformas, o custo de rolagem desta dívida pública é baixo para os padrões históricos brasileiros. Conforme visto pelo Gráfico 1, a estrutura a termo da taxa de juros para Letras do Tesouro Nacional (LTNs) é baixa tanto na ponta curta (títulos de 1 mês), quanto na ponta longa (títulos de 12 meses). É bem verdade que aqui não estou tratando do problema do custo das compromissadas, no entanto, a intenção é convencer o leitor que não temos problemas de financiamento desta dívida no curto prazo. Terceiro, o estado de expectativas dos agentes econômicos diante desta pandemia mudou de forma que quem não esperava intervenções fiscais na economia no cenário anterior, hoje espera.

Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional (STN)

Os instrumentos fiscais requerem momento certo para serem utilizados. Sob certas condições, DeLong e Summers (2012) e Blanchard (2019) discorrem que expansões fiscais podem não ter custos. Tais condições, no entanto, como taxa de juros inferiores a taxa de crescimento econômico não se verificam aqui, deve-se, portanto, esperar que a dívida pública cresça no curto prazo. Em uma conjuntura como esta, isto não é problema, uma vez que estimativas apontam para uma retração do produto entre -1,5% e -3,4% em 2020, neste cenário uma expansão dos gastos públicos pode amortecer sensivelmente a retração da atividade uma vez que, segundo Auerbach e Gorodnichenko (2013), os efeitos multiplicadores são maiores na fase recessiva do ciclo econômico.

Dadas as condições macroeconômicas postas, é evidente a necessidade de se expandir o gasto público durante este período de pandemia. No entanto, é preciso separar a política fiscal de calamidade da política fiscal de longo prazo. Neste cenário é preciso garantir que o regime fiscal volte após a pandemia, para seu enquadramento institucional anterior à pandemia, caracterizado pela responsabilidade fiscal e pela emenda constitucional 95 (teto de gastos públicos). Isto porque a política fiscal brasileira é enquadrada na taxonomia spend-tax, de Peacock e Wiseman (1979), o que significa que elevações temporárias de gastos podem levar à expansão permanente dos tributos que são prejudiciais ao crescimento de longo prazo.

Neste contexto, a resposta dada pela Câmara dos Deputados, propondo e aprovando a PEC 10/2020 denominada popularmente como “orçamento de guerra” parece ser bastante satisfatória no sentido de que fornece os recursos necessários para que o executivo faça o devido combate ao Coronavírus no front sanitário e social. No seu § 4º a proposta aprovada na Câmara estabelece a criação de um orçamento paralelo de caráter temporário e cujas despesas devem ser empenhadas exclusivamente no combate ao Coronavírus e seus efeitos sociais, sendo financiadas, conforme previsto em seu § 8º, em caráter de excepcionalidade pela emissão de dívida do Tesouro podendo ser adquirida pelo Banco Central (prática hoje vedada pela Lei de Responsabilidade Fiscal).

O projeto em tramitação no Senado faz face ao problema social de curto prazo já que se estima um montante próximo de R$700 bilhões ou 10% do PIB para fazer face as despesas necessárias. Porém, não altera o ordenamento normativo que regula as finanças públicas no Brasil, principalmente a Lei 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a Emenda Constitucional 95 (emenda do Teto de Gastos), mantendo assim o compromisso de equilíbrio fiscal no longo prazo e, com isto, o estado de expectativas. O projeto se vale apenas de dispositivos legais vigentes, uma vez que o artigo 167 da Constituição Federal em seu inciso XIII e § 3º admite a abertura de crédito suplementar em face de excepcionalidades imprevistas tais como guerras ou calamidade. A Lei de Responsabilidade Fiscal prevê em seu artigo 65, parágrafo II que o cumprimento dos limites legais de despesas com pessoal e endividamento ficam suspensos em face de calamidade pública, já no artigo 66, a lei prolonga os prazos para que o setor público volte aos limites estabelecidos.

Trata-se, portanto, de dinheiro novo injetado na economia, endividamento que em última instância será financiado por emissão monetária do Banco Central, que durante a pandemia está autorizado a adquirir títulos do Tesouro acomodando o passivo fiscal em seu balanço. Esta solução, não tende a ser inflacionária no curto praz por três motivos: primeiro, em função da queda repentina e aguda do gasto privado que deve provocar deflação nos próximos meses, segundo, em função do novo estado de expectativas de curto prazo desta economia em calamidade e, terceiro, em função desta medida não ter alterado os objetivos de longo prazo da política fiscal cristalizados na LRF e na EC 95, que voltam a vigorar após o estado de calamidade.

*Benito Salomão é doutorando em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia e Visiting Researcher na University of British Columbia.

 

REFERÊNCIAS

Auerbach, A. J., Gorodnichenko, Y., 2013. “Fiscal Multipliers in Recession and Expansion.” In Fiscal Policy after Financial Crisis. Edited by Alberto Alesina and Francesco Giavazzi. University Chicago Press.

Blanchard. O. 2019 “Public Debt and Low Interest Rates.” American Economic Review. Vol. 109(4): p. 1197-1229.

Caner, M., Grennes, T., Koehler-Geib, F., 2010. Finding the tipping point – when sovereign debt turns bad, World Bank Policy Research Working Paper No.5391.

DeLong, J. B; Summers, L. H., 2012 “Fiscal Policy in a Depressed Economy.” Brookings Papers on Economic Activity. Brookings Institutions, p. 233 – 297.

Peacock, A. T; Wiseman, J., 1979. Approaches to the Analysis of Government Expenditure Growth. Public Finance Review. Vol. 7. N. 1 p. 3 – 23.

Reinhart, C.M., Rogoff, K.S., 2010. Growth in a time of debt. American Economic Review. 100 (2), 573–578.


Paulo Leme: 2020 - O ano em que a Terra parou

Quando sairmos da fase aguda da crise, teremos de rever o papel do governo na economia

Durante a infância, sempre gostei de ler jornais, a revista National Geographic e gibis. Os jornais reportavam o presente, mostrando o assassinato do presidente Kennedy, a Guerra do Vietnã e as barbáries dos regimes militares na América Latina. A National Geographic mostrava o passado, com reportagens fascinantes sobre cosmologia e arqueologia (os horrores de Pompeia e a ambivalência entre a sofisticação artística e as atrocidades religiosas dos maias). Os gibis abriam as portas à imaginação e ao futuro, mostrando um mundo fantástico onde super-heróis combatiam psicopatas e alienígenas que planejavam aniquilar o planeta azul.

A minha geração tem a sorte de viver no mundo do pós-guerra e beneficiar-se das grandes descobertas médicas que protegem a vida: aspirina, antibióticos, raio X e imunizações. Hoje, protegidos pela ciência, seguros e instrumentos financeiros, adquirimos a falsa sensação de segurança contra a inevitabilidade da nossa finitude e a natureza aleatória da vida.

Durante a minha carreira, passei por dois momentos marcantes que pareciam, mas não foram o início do fim do mundo. O primeiro foi quando eu trabalhava em Wall Street e vivenciei os horrores dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Perambulei pelas ruas com fuligem à altura da cintura até encontrar uma balsa para voltar a New Jersey. Ao contornar o sul de Manhattan, vi uma montanha de escombros em chamas, aquilo que um dia foi o World Trade Center. O mundo parou, e Nova York ficou de luto.

O segundo foi durante a crise financeira de 2008, quando em setembro o governo americano decretou a falência do Lehman Brothers, o que gerou um efeito dominó que quase derrubou o sistema financeiro global. Em outubro, os grandes bancos estiveram a horas de quebrar, mas foram salvos por um conjunto de ações inimagináveis pelos bancos centrais e os governos das economias avançadas. Em menos de um ano, as forças que quase extinguiram o sistema financeiro contemporâneo metamorfosearam-se no maior “bull market” da história.

Extraí duas lições dessas experiências. O mundo é aleatório e, por mais que queiramos nos precaver contra todos os sinistros, sempre haverá um cisne negro que embaralhará todas as cartas e mudará o nosso destino. A segunda é que, por pior que seja, o sinistro termina e a vida continua. Como disse Thomas Fuller, “a hora mais escura da noite é justo aquela antes do amanhecer”.

E isso me traz à tragédia humana e econômica causada pelo coronavírus. Nem os mais ousados gibis de ficção científica seriam capazes de desenvolver um roteiro tão dramático: combinar políticos omissos com um patógeno capaz de ceifar vidas e parar a economia mundial. Resultado: “2020, o ano em que a Terra parou”.

Um governo tem três áreas em que sua atuação pode ser superior àquela do setor privado: Saúde, Segurança Pública e a capacidade de redirecionar grandes volumes de recursos em momentos excepcionais. Durante esta crise, a maioria dos governos falhou nessas missões. Nos últimos dez anos, a embreagem do processo político quebrou: as democracias ocidentais estão empoderando populistas despreparados para exercer o poder e que não representam os anseios e os valores da sociedade.

Nos Estados Unidos, há muito tempo que a comunidade científica alertou o presidente Trump sobre o coronavírus: ele tinha à sua disposição a informação necessária para preparar o país para enfrentar a pandemia. No entanto, ele e o establishment político ignoraram a ciência e não protegeram o país, ao não ter nenhuma estratégia de prevenção, testes, equipamentos e materiais hospitalares.

Há momentos em que só o governo é capaz de redirecionar rapidamente fatores de produção e recursos para um setor prioritário, como a Saúde. É a escolha entre produzir manteiga ou canhões. Quando há um colapso de uma parte importante da demanda privada e de parte da oferta (ruptura das cadeias produtivas e serviços), cabe ao governo injetar rapidamente os recursos maciços através da política fiscal, monetária e de crédito. Essa é a única maneira de evitar o colapso da produção e a destruição de negócios, capital e emprego.

O Fed foi extraordinário na velocidade e audácia com que entrou em campo disparando com todas as suas armas (10% do PIB) para evitar o colapso do sistema financeiro. O Congresso demorou muito, mas finalmente aprovou um programa fiscal de 10% do PIB. O que falta agora é que o presidente Trump e o Congresso permitam que médicos, cientistas e o setor privado reconstruam o sistema de saúde americano a tempo de limitar a tragédia.

Quando sairmos da fase aguda da crise, teremos de rever o papel do governo na economia, o funcionamento dos nossos regimes democráticos e reconstruir os mecanismos de cooperação global. Nos Estados Unidos, o governo se apropriou de 20% do PIB. A primeira pergunta é quem vai se beneficiar desses recursos e quem pagará a conta. A segunda pergunta é como encolher de volta o governo ao seu tamanho inicial.

A história do século 20 mostra que o Estado é como um gás: uma vez que se expande, é difícil colocá-lo de volta na garrafa e diminuir a sua influência na economia e restrições à liberdade.

PROFESSOR DE FINANÇAS  NA UNIVERSIDADE DE MIAMI


José Roberto Mendonça de Barros: Da parada súbita à recessão global

Não há uma coordenação na resposta do governo federal à crise

Como já colocamos no nosso último artigo, a expansão rápida do coronavírus provocou uma parada súbita nas principais economias do mundo, o que já garante que 2020 será um ano de recessão global, apesar dos grandes esforços das autoridades sanitárias e econômicas para deter a pandemia e suportar a economia.

A percepção da gravidade da situação está chegando aos poucos, o que faz com que as projeções mais recentes sejam sempre piores do que as anteriores.

O desconhecimento do vírus e de como lidar com ele gera uma enorme incerteza. Mas algumas coisas parecem claras. A crise será longa. Nos locais onde a contenção tem sido bem sucedida, decretou-se uma quarentena ampla e testagem em larga escala.

Na política econômica, a incerteza levou a lançar sobre a mesa todas as fichas fiscais e monetárias. É certo que o PIB do primeiro semestre será francamente negativo na maior parte dos países. Quedas de 3% a 10%, em bases anuais, para as principais regiões não devem surpreender.

Desde que não haja uma segunda onda da doença, todos esperam alguma recuperação no segundo semestre, em resposta aos esforços sanitários, à política fiscal expansionista e a uma política monetária agressiva. A dúvida aqui é qual será a velocidade da recuperação, se em formato de um V ou de um U. Muita gente espera o primeiro caso para a China e Estados Unidos e o segundo caso para a Europa.

Acho pouco provável que se confirme a expectativa otimista da recuperação rápida, dados os efeitos fortes sobre a saúde financeira das empresas, levando a muitas falências, e sobre a disposição de compra de um consumidor sofrido e assustado, tendo muitos vivido tragédias familiares recentes. Tudo indica que não seremos mais exatamente os mesmos.

O Brasil está atrasado na resposta ao vírus em várias frentes. Em primeiro lugar, e por incrível que possa parecer, o presidente ainda acredita e age como se o vírus fosse uma pequena gripe (caso único no mundo!), brigando com os Estados e prefeituras que decretaram o isolamento, medida universalmente aceita como necessária. Em consequência disso, não há uma coordenação na resposta do governo federal à crise, o que evidentemente resulta numa baixa eficiência da gestão.

Temos apenas uma coordenação na área de saúde, apesar do Planalto, onde um trabalho profissional está sendo realizado e é digno de apoio. Entretanto, mesmo aí temos de salientar o atraso de um mês na compra e aplicação de testes, bem como no suprimento de equipamentos, inclusive de proteção individual e outros materiais para a saúde, num mundo em que a oferta está curta.

Na frente econômica, após várias semanas, vai tomando forma um conjunto mais articulado de ações, embora em estágios muito diferentes de aprovação e com baixíssima taxa de execução. As medidas podem ser organizadas em seis áreas:

– Manter a logística e o abastecimento;
– Ações do Banco Central para garantir liquidez;
– Elevação dos gastos com saúde;
– Apoio aos mais vulneráveis: pobres e trabalhadores informais;
– Apoio às pequenas empresas, com manutenção de emprego;
– Flexibilização de certas condições contratuais: trabalho e outros.

As ações nas duas primeiras áreas andaram bem.

A elevação de gastos com saúde é certamente correta, mas, na sua maior parte, ainda não chegou na ponta final.

As ações nas áreas de apoio a pessoas e empresas mais vulneráveis estão muito lerdas, com baixa taxa de entrega. Aqui também não há uma liderança efetiva na discussão das medidas, prevalecendo um caráter algo burocrático.

Como muita gente, sinto falta de uma liderança equivalente àquela empoderada e exercida por Pedro Parente na ocasião do apagão de energia.

Olhando o conjunto, e mesmo considerando-se a efetiva colaboração do Congresso, as políticas federais de suporte à população irão tardar ainda um bocado de tempo.

Em consequência, a população vulnerável depende neste momento muito mais das ações locais, especialmente do grande movimento de solidariedade que a crise detonou, incluindo organizações não governamentais, pessoas e empresas.

De forma dramática estamos vendo o que significa a má distribuição de renda e a imperiosa necessidade de enfrentá-la.

A frase tem sido muito usada, mas é ainda assim verdadeira: nós e o País nunca mais seremos os mesmos.

*Economista e sócio da MB Associados.


Vinicius Torres Freire: Fatos, mentiras e mistérios do gasto contra o coronavírus

Dinheiro novo mesmo é R$ 210 bilhões, mas longe da fantasia do trilhão

O governo disse que está perto de destinar R$ 1 trilhão para atenuar a catástrofe sanitária e socioeconômica da epidemia. Não é verdade. Muita vez é besteira mesmo.

Isto posto, não se trata de pouco dinheiro, em boa parte arrancado por pressão social e parlamentar. Por exemplo, o governo estima gastar, em três meses, R$ 98 bilhões no auxílio a autônomos e informais e outros R$ 51,6 bilhões para compensar reduções de salário, via seguro-desemprego.

Seriam R$ 149,6 bilhões. Equivale a um mês de todos os rendimentos do trabalho pagos no país, excluídos os ganhos de empregadores e funcionários públicos (contas feitas com base na Pnad do IBGE). Ou seja, o governo vai pagar o equivalente a um terço do total dos rendimentos de trabalhadores, afora aqueles de quem emprega ou é servidor.

O pacote do trilhão é bobagem porque mistura picolé com asfalto: dinheiro novo, antecipação de despesas inevitáveis, adiamento de impostos, empréstimos e aumento de dinheiros possivelmente emprestáveis no sistema financeiro.

É bom ressaltar que as antecipações são importantes (do abono salarial e do 13º de beneficiários do INSS), assim como o adiamento de impostos. Sem isso, muitas famílias e empresas naufragariam. Mas não é dinheiro extra.

O gasto novo, incluindo despesas em saúde, auxílio a estados e municípios, diminuição de impostos e uns quebrados, anda pela casa estimada de R$ 210 bilhões. Enorme. É 15% da receita que o governo federal teve o ano passado inteiro; é quase quatro vezes o que o governo gastou em 2019 em investimentos (em obras, equipamentos etc.).

Essa é uma estimativa de despesa extra, nova. Não inclui, por exemplo, o crédito de até R$ 34 bilhões que o governo vai oferecer para que pequenas e médias empresas paguem salários. Crédito não é gasto, ainda que exista algum pequeno subsídio aí, pois esse e outros empréstimos do pacote são subsidiados (juros baixos) e deve haver calote.

Um mistério grande está em outra parte. O Banco Central deve ser autorizado a comprar dívidas privadas e títulos do Tesouro. É o que prevê emenda constitucional do “Orçamento de Guerra”, aprovada na sexta-feira (3) pela Câmara, a ser votada no Senado.

O BC poderá comprar dívida privada desde que o Tesouro entre com 25% do dinheiro (mais dívida). Sabe-se lá quanto o BC vai comprar de dívida privada, mas assim reduziria taxas de juros na praça e ficaria com algum calote.

A conta desse gasto é, além de complexa, por ora mera especulação. Importante: vamos saber de quem o Banco Central comprou dívida e em quais condições? Hum?

Ainda mais extraordinária é a possibilidade de o BC comprar títulos do Tesouro. Trocando em miúdos uma história comprida, na prática o BC assim ajudaria a reduzir juros da dívida pública de médio e longo prazos, no fim das contas criando dívida pública de curto prazo. Em certa medida, o BC também vai acabar financiando o governo. Enfim, caso acabe achatando as taxas de juros de prazo mais longo, pode aliviar o custo do dinheiro na praça em geral.

Quando vivíamos nos anos a.C., antes do corona, o governo já gostava da fantasia do trilhão: R$ 1 trilhão na reforma da Previdência, na venda de patrimônios ou em um pote no fim do arco-íris, como alardeou Jair Bolsonaro, no início do governo.

Por ora, não há trilhão na mesa, nem de longe. Mas há recursos importantes, ainda assim insuficientes, e uma medida novíssima para acompanhar, as compras de dívida do Banco Central.


Míriam Leitão: O presidente perde poderes

Presidente causa perturbação em meio à grave crise. Ainda assim, Congresso, Justiça, médicos, imprensa, prefeitos e governadores buscam uma saída

O presidente Bolsonaro está perdido em seu labirinto e isso ele mostra explicitamente nos atos do dia a dia. A última semana foi um bom exemplo. No domingo, ele foi às ruas estimular as pessoas a desobedecerem às orientações das autoridades de saúde. Na terça-feira, o conselho de governo, em longa reunião, conseguiu polir o pronunciamento que ele faria à noite. Amanheceu na quarta disposto a derrubar a obra dos seus conselheiros e postou vídeo falso que dizia haver desabastecimento na Ceasa de Minas. Na quinta, ele falou em demitir o ministro da Saúde, cujo trabalho tem alta aprovação popular. Várias vezes atacou governadores e, claro, culpou a imprensa. O presidente é um elemento perturbador no meio de uma crise devastadora.

Desde o início desta crise, Bolsonaro piorou. No episódio em que ele estimulou manifestações contra o Congresso, no domingo, 15 de março, o presidente foi aconselhado por várias pessoas do governo a não fazer isso, principalmente porque o surto do coronavírus estava entrando numa espiral. A uma das pessoas mais fiéis a ele no governo, e que sugeriu que ele desmobilizasse o ato, Bolsonaro deu uma resposta que revela bem o delírio persecutório em que vive mergulhado:

– Eu só tenho as ruas, a mídia quer me derrubar, o Rodrigo quer me derrubar, o Dória quer me derrubar. Eu não posso dizer para as ruas: vão pra casa. Eu preciso das ruas. Eu não estou estimulando, mas eles estão lá e eu abraço eles.

O Brasil estava entrando em período de grande padecimento e o que ocupava a cabeça do presidente era a ideia fixa de que todos são contra ele. E nem vê que as ruas estão se esvaziando. Ninguém é dono da rua, porque ela muda de lado.

Bolsonaro se perde em brigas laterais ou conflitos que ele mesmo inventa. Naquele primeiro pronunciamento em que disse que o Covid-19 era uma gripezinha, ele foi muito aconselhado dentro do Palácio a mudar o tom. Preferiu ouvir o grupo da milícia digital que tem sua sede dentro do próprio Palácio. Ele não apenas falou o que quis como continuou nas declarações rápidas demonstrando até a falta de empatia humana, ao tratar com desprezo as mortes ocorridas e por acontecer em decorrência da pandemia.

O pronunciamento da última terça-feira parecia uma mudança de rumo, mas o que houve de bom naquela fala foi enxertado pelos seus ministros. O objetivo de ir à TV que ele revelou à sua claque na porta do Palácio era disseminar a tese falsa de que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) defendia a volta ao trabalho. Corrigido no mesmo dia por Tedros Adhanon, e contido no conselho de governo, Bolsonaro mesmo assim usou indevidamente as declarações do secretário-geral da OMC.

Seu comportamento irresponsável diante da crise o deixa isolado e o torna periférico no seu próprio governo. Ele se consome de ciúmes dos subordinados que brilham. Mas até as decisões que toma para impor limites no seu ministério, como mudar o formato do briefing diário da saúde, está tendo efeito bumerangue. A cada dia se vê ministros indo lá e afirmando o oposto do que o presidente diz. O ministro Eduardo Ramos na sexta-feira agradeceu à imprensa e ao Congresso e disse que tem falado com os estados, o ministro Mandetta várias vezes reforçou a orientação dos governadores, a ministra da Agricultura desmentiu que houvesse risco de desabastecimento.

O Congresso, os economistas, a imprensa, os médicos, os infectologistas, os governadores e os prefeitos empurraram o executivo na direção certa do distanciamento social, da ampliação da rede de proteção social aos mais vulneráveis, do aumento dos gastos com saúde. E agora a sociedade cobra prazos de execução das medidas, principalmente no socorro a quem mais precisa. As ameaças do presidente de determinar a volta ao trabalho estão sendo contidas pelas alertas da Justiça. Se baixar a ordem de volta à atividade, o Supremo impedirá. E isso com base no direito à saúde consagrado na Constituição e no princípio de que saúde pública é atribuição compartilhada entre União, estados e municípios. O país vai se governando. Ao presidente, resta o teatro na porta do Alvorada para uma claque cada vez mais reduzida e os robôs controlados pelo filho 02.

O bonito da democracia é isso: ela encontra seu caminho, mesmo nas piores situações como a que vivemos.


Folha de S. Paulo: Indústria de guerra pela vida

Setor precisa garantir que não falte 'munição'

José Serra, Barjas Negri, Humberto Costa, José Gomes Temporão, Saraiva Felipe, Alexandre Padilha, Arthur Chioro, Marcelo Castro e Agenor Álvares
Ex-ministros da Saúde

O maior de todos os desafios que a pandemia de Covid-19 nos impõe diz respeito à nossa capacidade de organização solidária para minimizar a carga de sofrimento associada ao adoecimento, ao colapso dos sistemas de saúde e à morte de muitos. Além do evidente papel de liderança e de coordenação dos governos, do trabalho heroico dos profissionais de saúde e da comunidade científica na busca de um protocolo de tratamento, precisamos de uma indústria de guerra para enfrentar o novo coronavírus.

O setor produtivo tem demonstrado enorme capacidade criativa e de resolubilidade para diversos problemas enfrentados pelo mercado. A oportunidade agora é de se reorganizar internamente e de se posicionar entre os parceiros estratégicos da sociedade, produzindo os insumos essenciais para a proteção das equipes de saúde e hospitais: respiradores, testes laboratoriais, máscaras, lençóis, luvas, uniformes, álcool em gel.

A Política Nacional de Proteção e Defesa Civil dá competência ao governo para estimular a reorganização do setor produtivo e econômico das áreas atingidas por desastres. Ou seja, já dispomos dos instrumentos legais para o governo definir prioridades e coordenar as ações. É hora de a indústria juntar-se em um único esforço e fortalecer a saúde pública representada no Brasil pelo Sistema Único de Saúde, o SUS.

A reconversão industrial para equipamentos e insumos hospitalares é uma ação de emergência que já está em curso e deve ser acelerada. No Brasil há exemplos liderados pelo Senai (Serviço Nacional de Aprendizado Industrial), que precisam ser ampliados. A instituição já está desenvolvendo um projeto de aumento em escala industrial, em Curitiba, para, em 40 dias, ter a capacidade de ofertar 500 mil testes por mês —podendo dobrar, a partir de maio.

Outra ação importante do Senai é a organização de instruções para a indústria têxtil que deseja reorientar seu sistema produtivo a fim de fabricar máscaras de proteção e aventais de uso hospitalar.

Existem 25,2 mil empresas do segmento no Brasil, que empregam 1,5 milhão de trabalhadores diretos e 8 milhões indiretamente. O potencial é enorme, pois não se trata de produto de fabricação complexa e há alta demanda. Além disso, há insumos suficientes no Brasil para a produção desses itens.

Há empresários reinventando a sua conexão com seus consumidores e dispostos a preservar os laços estabelecidos com os seus funcionários treinados e experientes, porque acreditam que isso pode acelerar a recuperação das suas empresas depois que a pandemia passar.

São iniciativas como essas que a sociedade espera do setor privado. O chamamento feito pela Organização Mundial da Saúde e pela Câmara Internacional de Comércio ao setor industrial é que encare o combate à Covid-19 como a maior convocação que já recebeu em toda a sua história. É urgente o estabelecimento de ações coordenadas do setor privado com os governos, não somente para traçar cenários econômicos futuros, mas também, e principalmente, para atuarem já, na diminuição da velocidade com que o vírus se propaga e para mitigar os seus impactos.

Os empresários que lideram as contribuições solidárias aos esforços que hoje assistimos no Brasil e em outros países para o combate à pandemia poderão dizer, mais adiante, que fizeram a diferença.

Chegou a hora de saber a quem servimos para que, ao final, não haja dúvidas sobre para o que servimos. Estamos vivendo um momento de guerra contra o coronavírus. O front desse combate é o SUS, e a indústria brasileira precisa garantir que não falte “munição” para os profissionais de saúde nessa guerra pela vida.