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El País: Hidroxicloroquina vira "muleta" para Bolsonaro e Trump

Medicamento, pesquisado em todo o mundo para tratar Covid-19 e defendido pela Casa Branca, se tornou munição de grupos bolsonaristas contrários ao isolamento social. Mandetta aponta riscos de efeitos colaterais

Cientistas do mundo inteiro correm contra o relógio em busca da cura e de uma vacina para o novo coronavírus. Por enquanto, nada de definitivo no front, a não ser tratamentos experimentais, alguns deles considerados promissores, mas ainda sem estudos em escala suficiente para serem considerados uma recomendação geral. Um deles é uso de cloroquina ou hidroxicloroquina, drogas para o combate da malária, artrite e lupus, em pacientes com Covid-19. No Brasil —e nos EUA— o tema não é apenas científico: virou pólvora para o embate político e arma na “guerra cultural” do países polarizados. Tanto Jair Bolsonaro como Donald Trump resolveram se transformar em defensores de primeira linha das substâncias, mesmo que a parte técnica dos Governos que comandam não endossem as recomendações com a mesma ênfase. A maior preocupação do especialistas, lá como aqui, é que a divulgação precoce do tema leve à automedicação ou ao uso indiscriminado antes que todos os riscos estejam mapeados.

No caso do Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, que é estritamente contrário às medidas de isolamento social contra a disseminação do vírus, tem insistido no tema e já dá como certo o sucesso no uso da droga para tratar a doença. Em pronunciamento em rede nacional nesta quarta-feira, o presidente afirmou que realizou um acordo com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, para que o Brasil continue recebendo matéria-prima para a produção da hidroxicloroquina. “De modo a a podermos tratar pacientes da Covid-19, bem como malária, lúpus e artrite”, afirmou. Do outro lado do debate, há um grupo de cientistas e médicos, incluindo o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que pedem cautela e tentam acelerar as pesquisas para chegar a uma conclusão mais segura sobre o uso dessas drogas nesta pandemia.

Mandetta vem afirmando que é necessário mais tempo de pesquisa sobre o medicamento, embora já tenha liberado a substância para tratamentos de pacientes em estado avançado e médio da doença. Via de regra, médicos no Brasil estão autorizados a prescrever a cloroquina e a hidroxicloroquina para pessoas com coronavírus contanto que haja consentimento formal do paciente. Nesta quarta, o ministro novamente ponderou que a substância pode trazer efeitos colaterais ainda desconhecidos, especialmente em idosos e naqueles que não realizaram teste para a Covid-19 e podem estar com outras doenças. “Será que vai proteger ou será que eles [idosos] podem ter arritmia cardíaca, precisar de CTI [Centro de Terapia Intensiva] e ter enfarte agudo do miocárdio?”, questionou. O ministro informou ter pedido ao Conselho Federal de Medicina que se posicione sobre a eficácia ou não da substância até 20 de abril.

No Brasil, há dois estudos em curso sobre a cloroquina e a hidroxicloroquina, medicamentos análogos, indicados para o tratamento de malária, reumatismos e lúpus, dentre outras doenças. Um deles é o da Coalização Covid Brasil, coordenado pelo Hospital Albert Einstein, Sírio Libanês HCor e BRICNet, rede que realiza estudos na área de medicina intensiva. O outro é coordenado pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e, embora ainda não tenha sido concluído, resultados preliminares apontam que a taxa de morte de quem usou a cloroquina no tratamento é a mesma daqueles que não usaram. Ambos os estudos estão sendo acompanhados pelo Ministério da Saúde e fazem parte de um conjunto de 9 pesquisas em curso sobre tratamentos para a doença.

Algumas publicações internacionais já apontam, no entanto, que a droga poderia ser capaz de atuar contra o coronavírus, impedindo sua replicação no organismo, de acordo com documento da Anvisa. O mesmo documento pondera, entretanto, que a margem entre a dose terapêutica e a dose tóxica da droga é estreita. Por isso, estudos conclusivos ainda são necessários. “Não sabemos se há um grupo de maior risco [às adversidades do medicamento], por exemplo”, afirma Antônio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica e professor titular da Escola Paulista de Medicina. “Mas eu nunca vi nenhum efeito colateral. Prescrevo há 40 anos esse remédio e nunca registrei nenhuma adversidade”. Mas Denizar Vianna, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde, do Ministério da Saúde, ressaltou durante entrevista coletiva que o principal efeito colateral de ambas as drogas é a possibilidade de causar arritmia cardíaca. “O coração é uma bomba que depende da ativação de um sistema elétrico próprio. Esse medicamento pode produzir um prolongamento de uma dessas fases elétricas do coração e propiciar um ambiente favorável a uma arritmia que pode ser potencialmente fatal”, afirmou nesta semana.

Apesar da ausência de conclusões, o Governo já vem movendo suas peças para aumentar a produção do medicamento, evitar a automedicação e garantir seu abastecimento. No dia 20 de março, a cloroquina e a hidroxicloroquina passaram a necessitar de receita médica em duas vias para serem compradas nas farmácias. A medida valerá especialmente para que os pacientes que já fazem uso da droga não fiquem desassistidos caso haja uma procura em massa nas farmácias. Paralelamente, os laboratórios químicos das Forças Armadas anunciaram que estão ampliando a produção da cloroquina podendo chegar à fabricação de 500.000 compridos por semana. E o Ministério da Saúde já anunciou a distribuição do remédio para os Estados. De acordo com o secretário da Saúde de São Paulo, José Henrique Germann, o Estado recebeu 200.000 comprimidos que já foram distribuídos aos hospitais.

Médicos ligados a opositores no alvo

Apesar do empenho mundial em busca de conclusões científicas sobre a medicação, Bolsonaro segue usando como munição política a possibilidade de haver um tratamento para a doença. “Há 40 dias venho falando do uso da hidroxicloroquina no tratamento do COVID-19. Sempre busquei tratar da vida das pessoas em primeiro lugar, mas também se [sic] preocupando em preservar empregos. Fiz, ao longo desse tempo, contato com dezenas médicos e chefes de Estados de outros países”, escreveu o presidente, nesta quarta-feira, em sua conta no Twitter. “Cada vez mais o uso da cloroquina se apresenta como algo eficaz. Dois renomados médicos no Brasil se recusaram a divulgar o que os curou da COVID-19. Seriam questões políticas, já que um pertence a equipe do Governador de SP?”, disse, em referência à gestão de seu oponente político, João Doria (PSDB).

Os dardos lançados pelo presidente tinham dois alvos bem claros. Trata-se de duas das maiores sumidades médicas do país, Roberto Kalil Filho, cardiologista do Hospital Sírio Libanês, e o infectologista David Uip, coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo. Ambos recém-curados do coronavírus. Kalil Filho recebeu alta nesta quarta-feira depois de passar 10 dias internado. No mesmo dia, ele afirmou à rádio Jovem Pan que usou a hidroxicloroquina, depois que um dos médicos que o tratava propôs seu uso. Ele ponderou, no entanto, que a droga foi apenas uma das que ele usou para se tratar, juntamente com outras, e que, não pretende, com isso, influenciar o tratamento de ninguém.

A declaração de Kalil alavancou ainda mais as provocações contra David Uip, que já vinha sendo pressionado a dizer se havia feito uso do medicamento. Retornando ao trabalho nesta semana após 15 dias afastado, e sabendo que era sobre ele a publicação de Bolsonaro no Twitter, Uip se defendeu. “Presidente, respeite o meu direito de não revelar o meu tratamento”, afirmou, durante entrevista coletiva nesta quarta-feira em São Paulo. “Não há nenhuma importância no que eu tomei ou deixei de tomar. “O que é importante é que eu não me automediquei. O resto é absolutamente pessoal”.

Uip, que chegou a ser tratado por Kalil antes que o cardiologista adoecesse, afirmou que não revelaria seu tratamento, um direito que tem, como paciente. Nas redes sociais chegaram até mesmo a publicar uma suposta receita médica de cloroquina emitida pela clínica de Uip a um paciente. O médico confirmou a veracidade do documento à Rádio Gaúcha, afirmando que a receita teria sido vazada por alguém do seu consultório. Na coletiva, no entanto, ele afirmou que tomará “as providências legais e adequadas a essa invasão da minha privacidade”.

Seja como for, o assunto movimenta torcidas virtuais contra e a favor de Bolsonaro, ou do medicamento, e isso, por si só, não é um efeito colateral desprezível no modus operandi bolsonarista. Nos EUA, analistas políticos argumentam que Trump cumpre seu roteiro de sempre: se agarrar em uma visão “otimista” e “antissistema”, dessa vez em relação à pandemia. No caso de as drogas comprovadamente se mostrarem efetivas, o presidente dos EUA poderá dizer que se antecipou aos especialistas “do sistema”. Caso não dê certo, o ocupante da Casa Branca tem experiência em apenas mudar o foco da conversa e ignorar a campanha anterior. Não seria a primeira vez que Bolsonaro seguiria seu script.


Eliane Brum: O futuro pós-coronavírus já está em disputa

Como impedir que o capitalismo, que já nos roubou o presente, nos roube também o amanhã?

Nós, os que hoje estamos vivos, nunca enfrentamos uma ameaça como o novo coronavírus. Se tantos repetem que o mundo nunca mais será o mesmo, qual é então o mundo que queremos?

Ninguém se iluda. Enquanto a pandemia é enfrentada, essa resposta já está sendo disputada. É ela que vai determinar o futuro próximo. Lutar pela vida ameaçada pelo vírus é o imperativo da emergência. É preciso, porém, fazer algo ainda mais difícil: lutar pelo futuro pós-vírus. Se não o fizermos, a retomada da “normalidade” será a volta da brutalidade cotidiana que só é “normal” para poucos, uma normalidade arrancada da vida dos muitos que diariamente têm seus corpos esgotados. O rompimento do “normal”, provocado pelo vírus, pode ser a oportunidade para desenhar uma sociedade baseada em outros princípios, capaz de barrar a catástrofe climática e promover justiça social. O pior que pode nos acontecer depois da pandemia será justamente voltar à “normalidade”.

As grandes corporações já começam a se mover para garantir o controle do que virá. Na semana passada, as companhias de petróleo foram recebidas por Donald Trump na Casa Branca. Não foram discutir como salvar os mais pobres dos efeitos da pandemia. No Reino Unido, as companhias de aviação fazem lobby por subsídio governamental e, claro, desregulamentação. Tampouco elas foram se reunir para tomar chá e discutir investimentos na área social.

Diante do novo coronavírus, até baluartes da imprensa liberal, como The Economist e Financial Times, ambos nascidos no berço do capitalismo, têm anunciado que é preciso dar um passo atrás. Maior intervenção do Estado e políticas como renda mínima e taxação de fortunas, antes consideradas “exóticas” por esses segmentos, têm sido elencadas na abordagem do novo contrato social no mundo pós-pandemia. Conceder um pouco para garantir que nada mude no essencial é um truque antigo.

Com o vírus, descobrimos que aqueles que afirmavam ser impossível parar de produzir, reduzir o número de voos, aumentar os investimentos dos governos e mudar radicalmente os hábitos apenas mentiam. O mundo mudou em menos de três meses em nome da vida. É também em nome da vida que precisamos manter as boas práticas que surgiram deste período e pressionar como nunca antes por outro tipo de sociedade, tecida com outros fios.

A tarefa é inadiável. Se não fizermos isso, o mundo pós-coronavírus será ainda mais brutal e o colapso climático se aprofundará. Para o extermínio da natureza não há nem jamais haverá vacina. Nosso futuro depende de enterrar o sistema capitalista que exauriu o planeta e nos trouxe até o tempo das pandemias. E para isso também não serve o comunismo que explorou, destruiu vidas, corroeu a natureza e oprimiu os corpos. Precisamos encontrar outros caminhos. E rápido. Muitos dizem que é ingênuo. Outros dizem que é impossível. O que é ingênuo é sentar na cadeira de pregos que se tornou o presente e esperar os efeitos da brutal superexploração da natureza (terminar de) deformar a face do planeta. Impossível é seguirmos vivendo como temos vivido.

O isolamento físico tem que ser usado para produzir pensamento social e para atuar coletivamente, em rede. Este artigo, dividido em duas partes, é uma colaboração para o debate do futuro que precisa ser travado no presente. Agora.

1) No Brasil, todos os caminhos levam ao neoliberalismo

O presente, no Brasil, é uma armadilha. Temos um antipresidente – e a antipresidência é um conceito criado pelo bolsonarismo – que faz oposição ao seu próprio governo. A técnica ficou clara desde o início do mandato, mas ganhou contornos dramáticos na pandemia, quando Jair Bolsonaro abriu guerra contra seu próprio ministro da Saúde. A negação da realidade, como método de manutenção do poder, tem vários efeitos sobre a população. Um deles é ocupar o noticiário e sequestrar o debate.

Em vez de debater a ameaça mais urgente, estamos travando o falso debate lançado contra os brasileiros por Bolsonaro: isolamento ou não isolamento, ou saúde versus economia. É o que acontece quando se elege um homem que, no passado, planejou explodir bombas nos quartéis para pressionar por aumento salarial. As bombas de Bolsonaro hoje são de desinformação, visam ao caos e também podem matar.

O problema é ainda maior porque a negação da realidade também produz realidade. Neste caso, não só a de colocar a população em risco, mas também a de fazer acreditar que há oposição real. Essa ilusão que cresce no Brasil, até por desespero, pode comprometer o futuro de forma irreversível.

Se Jair Bolsonaro (sem partido) renunciar, o que parece bastante improvável no momento, ou se for impedido, o que também ainda parece distante, quem assume é o vice. Hamilton Mourão é um general quatro estrelas da reserva que até a eleição era considerado golpista, devido a várias declarações públicas. Ainda na campanha, chegou a dizer, em entrevista à GloboNews, que em “caso de anarquia” um presidente pode dar um “autogolpe” com “o emprego das forças armadas”. Comparado a Bolsonaro, até um pitbull torna-se “moderado”. É o que vem acontecendo com Mourão, como escrevi mais de um ano atrás.

O terceiro na hierarquia é Rodrigo Maia (DEM). Além de indiciado pela Polícia Federal por corrupção, o presidente da Câmara dos Deputados é totalmente identificado com o neoliberalismo que nos trouxe até a situação atual e com as forças mais conservadoras do país, com exceção (por enquanto) dos evangélicos de resultados. O que tornou Maia um exemplo de moderação e competência para o que chamam de “mercado” foi realizar a reforma previdenciária que, se era necessária, claramente o modelo aprovado não foi nem o melhor nem o mais justo para os trabalhadores, que tiveram suas vidas ainda mais precarizadas. Maia, a quem até o advento do bolsonanorismo parte dos brasileiros preferia ver pelas costas (ou na cadeia), tornou-se uma espécie de oráculo do bom senso, o que mostra o nível do abismo em se encontra o Brasil.

E então temos os novos candidatos a estadistas, na figura dos governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro. João Doria (PSDB) e Wilson Witzel (PSC). Doria, o gerente privatizador, e Witzel, defensor da violência policial nas favelas. Até ontem, ambos eram unha e carne com Bolsonaro. Ou vogal e consoante, no caso de Doria, que se elegeu como “Bolsodoria”. Para conter a pandemia, eles apenas seguem em seus estados as orientações sanitárias internacionais, mas, como fazer o óbvio é fazer o oposto do que Bolsonaro prega, despontam como defensores do povo contra o bolsovírus. Têm os olhos grudados na eleição presidencial de 2022.

Bolsonaro presta um grande serviço aos ex-melhores amigos. Em São Paulo, especialmente, ele livra Doria de explicar o pouco investimento na rede de saúde pública pelo seu partido, que comanda o Estado há mais de 25 anos. Na ponta, é essa falta de investimento no Sistema Único de Saúde (SUS) que vai resultar em mortes por coronavírus.

Em todo o país, o falso debate eclipsa o verdadeiro debate. A pandemia tornou explícita a importância do estatuto público da saúde. E revelou toda a monstruosidade da PEC-95, a do teto dos gastos públicos do governo de Michel Temer (MDB), típica política neoliberal de Estado mínimo, que tirou bilhões da saúde. Grande parte desta conta está sendo paga agora. Com vidas.

No atestado de óbito, as vítimas terão “morte por coronavírus”. Mas, em parte dos casos, o que as terá matado é a precarização da saúde pública, o aumento da desigualdade e da miséria nos últimos anos, a falta de investimento em saneamento e moradia digna. E, finalmente, o fato de que há uma parte da população que segue exposta ao vírus porque não lhes é permitido parar de trabalhar.

A imagem da armadilha em que o Brasil está enfiado é a do ministro da Saúde, Luiz Henrique MandettaAo afrontar o chefe e tomar medidas óbvias na pandemia, Mandetta se tornou o novo herói nacional. Todos os erros, como demorar a providenciar testes, máscaras e outros equipamentos de proteção, são perdoados. Principal opositor de seu ministro, Bolsonaro também presta um grande serviço a ele. E a seu próprio governo, já que, qualquer que seja o resultado, pode ser atribuído ou distanciado do governo. Essa é a esperteza de abarcar a situação e a oposição.

Vejamos quem é o novo herói nacional, hoje adulado e apoiado por todos os campos ideológicos. Mandetta, conhecido defensor dos ruralistas, na saúde se manifestou frontalmente contra o programa Mais Médicos e militou contra o aborto. Também já lamentou a fragmentação das famílias causadas pela Lei do Divórcio. Dilma Rousseff demarcou muito menos terras indígenas que seus antecessores, uma das razões porque recebe severas críticas de indígenas e ativistas do meio ambiente. Ainda assim, Mandetta achou que a presidenta exagerava. “A presidente está dirigindo a sua raiva contra os produtores rurais, colocando todo o seu querer mal ao Brasil no agronegócio", discursou no plenário, em 2016. No ano seguinte, foi um crítico feroz da Carne Fraca, operação da Polícia Federal que investigou as irregularidades nos frigoríficos.

O novo herói brasileiro aponta onde está o Brasil. Cada um conclua. A oposição real, como já se tornou explícito, é fraca. E não consegue mostrar qual é a sua grande diferença, muito menos convencer a população de que é diferente. Enroscada com Lula e com o PT, ou brigando com Lula e com o PT, a esquerda deixou de disputar o país. Acha que disputa, é claro, mas ninguém liga. O desempenho mais sólido é o do Psol, mas o partido ecoa apenas num número pequeno de brasileiros.

Isso não significa dizer que a esquerda seria uma solução, na medida em que parte significativa da esquerda brasileira segue cimentada no século 20, totalmente alienada das grandes questões atuais, como a crise climática e a destruição da vida natural no planeta. Quem fez oposição de fato, no Brasil pré-pandemia dos últimos anos, foram grupos identitários: mulheres, jovens, negros e indígenas. A oposição é política, mas não tem partidos políticos como protagonistas. E ainda é preciso ter partidos políticos para fazer a disputa do futuro.

Assim, no período pós-pandemia, ou mesmo durante a pandemia, já que não se sabe se ela acaba, todos os caminhos levam à direita neoliberal. Este é o buraco diante do Brasil. É também o buraco em muitos países – grande parte deles atolados na crise das democracias ocidentais, alguns às voltas com os déspotas eleitos.

O Brasil tem, portanto, dois gigantescos desafios. O primeiro é impedir que o vírus mate milhares de brasileiros. Não há dúvida de que serão os mais pobres que morrerão mais. Os que não têm casas compatíveis com o isolamento; os que têm sido obrigados pelos patrões a trabalhar; os que foram demitidos; os que vivem de bicos, na informalidade, e já não conseguem trabalhar. Os que não vão conseguir se alimentar com os 600 reais que o governo está oferecendo. Os que não têm esgoto, não têm água e logo não terão também comida. Os que ficarem doentes e não encontrarem vagas na rede pública de saúde, sabotada nos últimos anos em nome da privatização e do lobby dos planos privados de saúde.

auxílio emergencial de 600 reais para os informais é mais uma prova do buraco paradoxalmente grande – e ao mesmo tempo claustrofóbico – em que o país está enfiado. Diante dos 200 reais inicialmente propostos pelo ministro da Economia Paulo Guedes, de repente 600 reais passaram a soar com notas de decência. O valor, porém, é totalmente indecente. Ninguém vive no Brasil com dignidade mínima com 600 reais. Para a outra metade dos trabalhadores, a que têm carteira assinada, o governo permitiu cortes de jornada e de salários.

Para quem se enrosca com o significado de neoliberal, é isso. Vale a pena pesquisar para encontrar definições mais sofisticadas e completas. Em um parágrafo, o que pode ser dito é que os neoliberais acreditam que o Estado deve interferir o mínimo possível e que o Mercado se autorregula. Para isso, é fundamental enfraquecer as representações de trabalhadores e a palavra para tudo é “flexibilização”. Privatizar, desregulamentar, flexibilizar – estes são os verbos favoritos do neoliberalismo. Perceba então que toda vez que “flexibilizaram” algo no Brasil, foram os trabalhadores urbanos e rurais, os indígenas, a natureza e outras espécies que se ferraram. Ao trabalhador precarizado e com cada vez menos direitos deram o nome bonito e moderno de “empreendedor”. Livre e autônomo para morrer trabalhando. E, se não conseguiu “empreender”, as razões para o fracasso também lhe pertencem. Veja agora você, que é “empreendedor”, em que situação está. E veja se é isso que você quer continuar a ser.

No estágio neoliberal do capitalismo todas as relações são, ao mesmo tempo, reduzidas ao consumo – e submetidas ao consumo. O que define cada “indivíduo” é sua capacidade de consumir. Suas escolhas se reduzem a escolher entre produtos, marcas, preços, cores, formatos; sua liberdade é a de consumir o que sua renda permitir e a de desejar se exaurir mais para ter mais dinheiro para consumir. Toda a vida é mediada por mercadorias e, acima de qualquer outra identidade, você é consumidor.

É neste sistema que o planeta, supostamente à disposição dos consumidores, foi consumido; que espécies inteiras foram destruídas e outras subjugadas para terem seus corpos consumidos em produção industrial. É assim que você nasce para, consumindo seu corpo e seu tempo, se consumir. E é assim que os humanos se tornaram, a partir da revolução industrial, que iniciou um processo cada vez mais veloz de emissão de CO2 pela queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo etc), uma força de destruição do planeta.

Pressionadas pelo colapso da natureza que provocaram e pela evidência de que haverá mais pandemias, as grandes corporações que controlam o mundo e aqueles que se beneficiam delas tentam agora reinventar o sistema de destruição, como já fizeram no passado, para continuar no controle. Têm muita chance de conseguir.

No Brasil, Bolsonaro fez o serviço de esticar tanto os limites, que tornou todas as forças conservadoras ao seu redor aceitáveis. Não sei o quanto ele percebe que este é o seu principal papel. O fato é que o executa brilhantemente. Cada vez que se comporta como um maníaco, faz figuras que até ontem causariam arrepios despontarem como estadistas. Antes dele, um Mourão na presidência era inimaginável depois de mais de 20 anos de ditadura militar. Antes dele, Rodrigo Maia era só mais um representante tradicionalíssimo de um Congresso marcado por corrupção e fisiologia. Antes dele, Doria e Witzel, cada um no seu estilo, jamais receberiam aplausos de parte da esquerda ou afagos de Lula. Antes dele, Mandetta era um político preocupado em apoiar projetos corporativos de setores da saúde e fazer lobby para ruralistas. Graças a Bolsonaro e à incompetência da oposição real, todos eles nos lideram.

É assim que vai ser, então?

O Brasil tem dois enfrentamentos urgentes para fazer: a disputa do presente, que é o novo coronavírus, e a disputa do futuro, que se dá também agora, no presente.

Enfrentar uma pandemia num país em que desigualdade e pobreza extrema aumentaram nos últimos anos pelas políticas neoliberais é um imenso desafio. Mas talvez seja ainda maior o desafio de imaginar um futuro que não seja a volta de uma normalidade que só era normal para os privilegiados de sempre. Na armadilha que se tornou o país, todos os caminhos levam ao mesmo lugar. Os personagens que disputam o presente e o futuro dentro da estrutura do Estado são no fundo todos iguais – ou pelo menos muito parecidos.

Como aprender com o coronavírus a criar um futuro que não seja mais aniquilação?

Parece quase impossível quando todas as saídas estão barradas pelas tropas neoliberais. Elas já se organizam para chicotear a população após a pandemia, com o imperativo de produzir para poder superar a recessão e retomar o dogma do crescimento. Já tivemos indícios de que o coronavírus será usado para impor perdas de direitos e de liberdades. A China, com seu comunismo capitalista (sim, isso é possível), ampliou ainda mais sua vigilância despótica sobre a população. É apenas um sinal do que está por vir.

Em breve, pode apostar, os governos vão pedir o sacrifício de todos, que nunca é o de todos, mas o dos de sempre. Prestem atenção ao significado que será dado à palavra “retomada” – e pensem no que será retomado. A pandemia é nova. Os métodos dos que trouxeram o planeta até este estado de coisas, não.

Parece impossível disputar o futuro nessas condições. Mas tudo o que temos é encontrar um caminho para minar a criatura chamada capitalismo, que no nosso tempo se expressa pelo neoliberalismo, e impedir que se regenere. Mais do que nunca, hoje lutamos pela vida.

2) Temos que barrar os senhores do mundo antes de eles conseguirem dar o golpe (mais uma vez)

Há tempos os pensadores ocidentais não se empenhavam tanto em interpretar um momento. Faz todo o sentido. Nada é – ou foi – maior do que essa pandemia como ameaça global capaz de mudar tudo em um segundo. Inclusive o olhar dos humanos sobre si mesmos, ao descobrir a espécie, esta que sempre se considerou dona do planeta, ameaçada por um ser microscópico. Já existe pelo menos um livro com coletânea de artigos de filósofos sobre o coronavírus e seus efeitos. Há uma diferença, porém. Há os pensadores que compreenderam a crise climática e há os que seguem às voltas com dilemas do século 20, como grande parte da esquerda mundial, e que não foram afetados pelas angústias da época atual.

Entre os pensadores conectados com a emergência do clima, o francês Bruno Latour é o autor de uma das melhores contribuições para pensar o momento já como ação. O texto foi traduzido pela filósofa brasileira Déborah Danowski, outra pensadora relevante sobre o contexto atual. Em sua análise, Latour assim define a lição posta pelo novo coronavírus: “A primeira lição do coronavírus é também a mais espantosa. De fato, ficou provado que é possível, em questão de semanas, suspender, em todo o mundo e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar. A todos os argumentos apresentados pelos ecologistas sobre a necessidade de alterarmos nosso modo de vida, sempre se opunha o argumento da força irreversível do ‘trem do progresso’, que nada era capaz de tirar dos trilhos, ‘em virtude’, dizia-se, da ‘globalização’”.

E aponta o risco: “Qualquer motorista sabe que, para ter alguma chance de se salvar fazendo uma rápida manobra no volante, sem sair da estrada, é melhor primeiro desacelerar... Infelizmente, não são só os ecologistas que veem nessa pausa súbita no sistema de produção globalizado uma grande oportunidade de fazer avançar seu programa de aterrissagem. Os adeptos da globalização, aqueles que, em meados do século 20, inventaram a ideia de escapar das restrições planetárias, também veem nela uma excelente oportunidade de se desvencilhar ainda mais radicalmente do que resta de obstáculos à sua fuga para fora do mundo. Para eles, essa é uma oportunidade boa demais de se livrar do resto do Estado social, da rede de segurança dos mais pobres, do que ainda resta de regulamentação contra a poluição e, mais cinicamente ainda, de se livrar de toda essa gente em excesso que atulha o planeta. (...) Os adeptos da globalização são perigosos porque eles sabem que perderam, sabem que a negação das mudanças climáticas não poderá continuar indefinidamente, que não há mais nenhuma chance de conciliar seu ‘desenvolvimento’ com os vários ‘envelopes’ do planeta com os quais a economia terá que se haver mais cedo ou mais tarde. Isto é o que os torna dispostos a tentar de tudo para se aproveitar mais uma (última?) vez das condições excepcionais, para poder durar um pouco mais e proteger a si próprios e aos seus filhos”.

Antes que alguém levante a balela do desenvolvimento “sustentável” como a panaceia capaz de colocar o capitalismo de novo nos trilhos, vale escutar outro pensador, este indígena. Autor de Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras), Ailton Krenak provocou ódio e ranger de dentes tempos atrás, ao afirmar que “sustentabilidade era vaidade pessoal”. Toda corporação, incluindo as mais destrutivas, tem hoje um gerente de sustentabilidade. Faz parte da capacidade de cooptação e adaptação do capitalismo. Sempre uma cretinice a mais.

Em março, já com a pandemia atravessando o globo, Krenak assim explicou na abertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, ao falar sobre perspectivas anticoloniais: “Nós vivemos precariamente uma relação de consumir o que a mãe natureza nos proporciona. E nós sempre fizemos um uso do que a nossa mãe nos proporciona da maneira mais folgada possível. Até que um dia nós nos constituímos numa constelação tão imensa de gente que consome tudo, que a nossa mãe natureza falou: peraí, vocês estão a fim de acabar geral com tudo que pode existir, aqui, como equilíbrio e como possibilidade daquilo que é fluxo da vida? Vocês vão esquadrinhar a produção da vida e decidir quantos pedaços de vida cada um pode obter? E, nessa desigualdade escandalosa, vocês vão sair por aí administrando a água, o oxigênio, a comida, o solo? E então [a natureza] começou a botar limites à nossa ambição.

Uma maneira que os humanos fizeram para administrar isso foi criando a ideia, por exemplo, de que existe um meio ambiente e que esse universo é uma coisa que você pode gerenciar. E dentro desse meio ambiente alguns fluxos vitais podem ser medidos, avaliados e habilitados, alguns deles inclusive com selos de sustentabilidade.

Se você tirar água do aquífero Guarani, por exemplo, uma água de muito boa qualidade, e se você engarrafar direitinho, você é uma empresa sustentável. Mas quem disse que tirar água do aquífero Guarani é sustentável? Você pratica uma violência na origem e recebe um selo sustentável no caminho. E assim com a madeira. Isso é uma sacanagem, não tem esse papo de água sustentável e não tem esse papo de madeira sustentável”.

Diz então a verdade terrível, que é também o ponto de partida de qualquer proposta para o futuro que formos capazes de esboçar: “Nós somos uma civilização insustentável, nós somos insustentáveis. Como é que então vamos produzir alguma coisa em equilíbrio?”.

Este é o desafio.

Assim que novo coronavírus der uma brecha, os profetas do neoliberalismo começarão a sua pregação: “É preciso produzir e crescer!”. Não há dogma maior na economia do que o do crescimento. Milhares de economistas perderão seu emprego no ramo da astrologia econômica caso o dogma do crescimento seja desmascarado. Crescer é o imperativo de todo país. Quem não lembra do “fazer o bolo da economia crescer para então repartir o bolo” que o ministro da ditadura e astrólogo econômico maior do Brasil, Delfim Netto, repetia no regime de exceção? Mais tarde, com a expansão do neoliberalismo, nem isso. Bastava que os mais pobres soubessem que, se o país crescesse, alguma coisinha poderia eventualmente sobrar pra eles.

O dogma do crescimento é construído sobre uma mentira: a possibilidade de explorar infinitamente os recursos de um planeta com recursos finitos. Bastam dois neurônios para entender que não é possível. E aí vem o outro dogma, o da sustentabilidade, como se fosse possível tornar sustentável o que, em sua estrutura, é insustentável.

O que o dogma do crescimento faz é proteger os privilégios dos muito ricos: o problema deixa de ser a distribuição igualitária das riquezas existentes e passa a ser o crescimento insuficiente, que não permite garantir o suficiente para todos. O imperativo de crescer é repetido à exaustão para encobrir a injustiça estrutural: a desigualdade na distribuição de riquezas. Carregando seu corpo exaurido, mesmo o pobre passa a acreditar que sua miséria é provocada por falta de crescimento. Sem reparar que nos momentos em que o tal bolo cresceu, as fatias se tornaram maiores para os que já eram donos do bolo e sobrou para ele, quando muito, a farofa da cobertura.

No Brasil, o 1% mais rico concentra quase um terço da renda (28,3%), o que dá ao país o título de vice-campeão mundial em desigualdade, segundo o último Relatório de Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (ONU). O Brasil só perde para o Catar – e apenas por 0,7%. Cinco bilionários brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade mais pobre do país, segundo estudo da organização não-governamental britânica Oxfam, publicado em 2018. Cinco pessoas concentram a mesma renda que 100 milhões de brasileiros. Este é o problema. Não é por falta de exploração da natureza que o país é tremendamente desigual. Ao contrário. O esgotamento dos suportes de vida do planeta é um dos principais geradores de pobreza e de desigualdade.

O dogma do crescimento, que faz as engrenagens do capitalismo girar, foi determinante para produzir a emergência climática. O que a emergência climática torna explícito é que já não será possível “crescer”. É necessário mudar radicalmente o modo de vida porque, como diz a jovem Greta Thunberg, “nossa casa está em chamas”. Diante do superaquecimento global e da perda de ecossistemas vitais, realmente imperativo é distribuir as riquezas existentes.

É esse conteúdo explosivo que faz com que as grandes corporações que dominam o planeta apoiem negacionistas do clima como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Com esses déspotas eleitos disseminando mentiras e distraindo o mundo com falsos problemas, elas ganham tempo. Já sabem que não dá mais para seguir, mas farão o impossível para ganhar o máximo enquanto for possível. Guardadas as proporções, é como a indústria do cigarro: negou os malefícios por décadas, contra todas as pesquisas científicas, e ganhou dinheiro produzindo câncer enquanto deu. Ainda hoje, contabiliza cifras bilionárias.

O desafio que nossa geração tem pela frente é imenso. E será duro. Muito duro. Como a crise climática se desenrola num outro tempo, o encontro com a realidade era sempre adiado pela maioria, apesar dos gritos dos cientistas e dos jovens. Os negacionistas foram eleitos porque grande parte da população mundial quer continuar negando o inegável junto com eles. Então o vírus escancara a realidade. Dele não dá para fugir, já que fugir é morrer.

O que temos hoje é uma janela de realidade, o momento em que todos, absolutamente todos, são obrigados a se encontrar com a verdade. É por isso que Bolsonaro se tornou ainda mais pirotécnico. Para manter o poder ele precisa falsificar a realidade. Vinha conseguindo, e o vírus arrancou de uma vez essa possibilidade. Diz então que “o vírus não é tudo isso que dizem”. Porque, apavorado, sabe que o vírus é muito mais. Diante da verdade da morte, nenhuma mentira vinga.

Bruno Latour assim anuncia o impasse da janela aberta pelo coronavírus: “Se a oportunidade serve para eles, serve para nós também. Se tudo para, tudo pode ser recolocado em questão, infletido, selecionado, triado, interrompido de vez ou, pelo contrário, acelerado. Agora é que é a hora de fazer o balanço de fim de ano. À exigência do bom senso: ‘Retomemos a produção o mais rápido possível’, temos de responder com um grito: ‘De jeito nenhum!’. A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes”.

Para que possamos seguir esse debate, reproduzo aqui as perguntas que ele lança para cada um e para o coletivo:

“Aproveitemos a suspensão forçada da maior parte das atividades para fazer um inventário daquelas que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas. Responda às seguintes perguntas, primeiro individualmente e depois coletivamente:

1) Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que não fossem retomadas?

2) Descreva por que essa atividade lhe parece prejudicial / supérflua / perigosa / sem sentido e de que forma o seu desaparecimento / suspensão / substituição tornaria outras atividades que você prefere mais fáceis / pertinentes. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 1).

3) Que medidas você sugere para facilitar a transição para outras atividades daqueles trabalhadores /empregados / agentes / empresários que não poderão mais continuar nas atividades que você está suprimindo?

4) Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que fossem ampliadas / retomadas ou mesmo criadas a partir do zero?

5) Descreva por que essa atividade lhe parece positiva e como ela torna outras atividades que você prefere mais fáceis / harmoniosas / pertinentes e ajuda a combater aquelas que você considera desfavoráveis. (Faça um parágrafo separado para cada uma das respostas listadas na pergunta 4).

6) Que medidas você sugere para ajudar os trabalhadores / empregados /agentes / empresários a adquirir as capacidades / meios / receitas / instrumentos para retomar / desenvolver / criar esta atividade?

Acrescento à lista uma pergunta minha. Não há nada que as grandes corporações que controlam o planeta, assim como os políticos neoliberais que os representam nas várias instâncias do Estado, temam mais do que a desobediência civil. No Brasil, as esmolas que concedem para que os mais pobres sobrevivam à pandemia têm por objetivo estancar a possibilidade do “caos social” ou de uma “convulsão social”. Ou seja: o povo nas ruas e já sem nada a perder.

Desde o final de 2018, o movimento que mais balançou a “normalidade” que os senhores do mundo tanto prezam foi a desobediência civil dos adolescentes, que se recusaram a ir para a escola a cada sexta-feira. No ato da greve escolar, eles denunciavam que os adultos roubaram o seu futuro ao não fazer o necessário para conter o colapso climático. Sem futuro, para que estudar? Como são crianças e adolescentes, esta era a desobediência civil disponível. E como funcionou.

Assim, a minha pergunta é: qual poderia ser a melhor ação de desobediência civil neste momento?

No Brasil de Bolsonaro, sabemos que nossa principal desobediência civil é sobreviver. Mas, para além de nos mantermos vivos, como podemos desobedecer aos produtores de morte para criarmos um futuro onde possamos existir com todos os outros?

Encerro com Ailton Krenak, porque acho que as melhores ideias virão dos pensadores indígenas, daqueles que sabem como viver sem esgotar o planeta e sem produzir iniquidades. Ele diz: “O próprio enunciado de alguma coisa que virá depois anima nosso sentido de viver. É a ideia de adiar o fim do mundo. Nós adiamos o fim de cada mundo, a cada dia, exatamente criando um desejo de verdade de nos encontrarmos amanhã, no final do dia, no ano que vem. Esses mundos encapsulados uns nos outros que nos desafiam a pensar um possível encontro das nossas existências – é um desafio maravilhoso”.

Vamos?

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


William Waack: Quando fechar, quando abrir

Bolsonaro não é o único chefe de Estado que não sabe como sair do dilema

A realidade se encarregou de lembrar Jair Bolsonaro de que ele pode trocar de ministro quanto quiser, mas não pode trocar quanto quiser de política de saúde. Os limites aplicados às vontades do presidente – não importam méritos ou motivações – foram antes de mais nada institucionais. Em princípio, não é mau sinal.

Entrou como freio uma estrutura federativa que, no caso do combate ao coronavírus, concede aos operadores do SUS uma grande margem de ação. E os operadores são, em primeira linha, governadores e prefeitos. Além da eterna crise fiscal, eles se ressentem hoje sobretudo de falta de coordenação política, e estão assustadíssimos com a nada remota probabilidade de colapso de partes do sistema de saúde. Clamam por liderança.

É outro problema que veio junto de Bolsonaro e que a crise do coronavírus apenas escancarou. O presidente acha que seu poder vem da caneta, que ele diz não ter pavor nenhum de usar (mas não pode). Na verdade, o poder presidencial no Brasil vem de algo que o atual ocupante do Planalto renunciou a aplicar ou o faz de forma inconsistente, errática e subordinada exclusivamente ao curtíssimo prazo de redes sociais: ditar a agenda política.

Sob o avanço da doença, a postura de Bolsonaro consiste o tempo todo em “salvar” seu governo, que ele enxerga exclusivamente pelo prisma de uma ameaça de crise social urdida por adversários reais ou imaginários mancomunados para destruir a economia e criar o caos. As manobras que faz para neutralizar inimigos (governadores, por exemplo) e afastar obstáculos ao que considera necessário realizar (o ministro da Saúde e o isolamento social, por exemplo) são perfeitamente racionais dentro desse quadro mental que beira a paranoia.

O problema é muito maior e, mesmo em seu jeito tosco (Bolsonaro sobre Bolsonaro), o presidente fala diariamente de um dilema para o qual os principais chefes de governo nas democracias liberais ainda não encontraram saída. Em termos bastante brutais, trata-se de saber até quando precisa durar o fechamento de economias antes que a devastação delas se torne irrecuperável. Na outra ponta, reabrindo as economias, trata-se de saber qual é o limite tolerável do número de mortos, a partir do qual a falência de qualquer carreira política é irrecuperável.

Projeções e análises de curvas estatísticas sobre economia e saúde pública permitem no máximo contornos de cenários nebulosos, sem horizonte de tempo e qualquer “certeza”. Em outras palavras, dirigentes políticos ao redor do mundo democrático liberal estão sendo obrigados a “sentir” o dia a dia de temperaturas políticas e situações de degradação econômica e social que parecem ser, neste momento, muito mais abrangentes e que aparentemente estão reagindo timidamente ao inédito volume de medidas de estímulo e combate à recessão.

Para os que se sentem fascinados por entender qual papel exercem personalidades na História, a atual crise e sua imprevisibilidade oferecem alguns contrastes eloquentes. Donald Trump, por exemplo, ziguezagueia exibindo seu narcisismo (ele se proclamou um “gênio muito estável”). Angela Merkel, na outra ponta, demonstra uma postura próxima ao estoicismo (filha de um teólogo protestante em país comunista). E Jair Bolsonaro?

Chegou ao Palácio do Planalto na crista de uma onda política e social que ele apenas em parte entendeu e controlou, onda que vai ficar parecendo apenas uma marola diante das proporções da crise de saúde e economia que começamos a enfrentar agora. Nela, Bolsonaro não aprendeu a nadar, e está se afogando.


Vera Magalhães: A hora da escalada

Semanas de pico da pandemia não permitirão mais os erros cometidos até aqui

Vai começar a subida da montanha, metáfora que vem sendo usada pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para designar a fase, que há muito se sabe que chegaria, de escalada rumo ao pico de contaminação pela covid-19 no Brasil.

Até aqui, alguns fatores ajudaram e outros atrapalharam sobremaneira a preparação do País para essa escalada inexorável, pela qual todas as demais nações do globo passaram ou estão passando.

As nossas vantagens comparativas vêm sobretudo do timing. A contaminação começou na China e se espalhou pela Europa e pelos Estados Unidos antes de chegar aqui de maneira sustentada, o que nos deu tempo para aprender com acertos e erros de outros povos e outros governos.

Foi positivo, por exemplo, para que os governos estaduais e mesmo o governo federal decretassem situações de emergência, calamidade ou quarentena, a depender da designação, e com isso pudessem restringir a atividade econômica e a circulação de pessoas e preparar a retaguarda do sistema de saúde, que já está sendo pressionado e deve enfrentar uma situação próxima ao colapso, quando não de colapso efetivo, nos próximos dias.

Mas não soubemos aproveitar plenamente o que os especialistas chamam de “vantagem temporal” que o vírus nos deu. E isso graças a imperdoáveis erros e omissões políticos, que podem cobrar um preço enorme em termos de vidas perdidas e situação social e econômica agravada.

Nenhum desses erros tem a ver com a decisão de distanciamento social, como quer fazer crer a narrativa bolsonarista que campeia irresponsavelmente em gabinetes de Brasília e nas redes sociais, atormentando uma sociedade já assustada e que precisa de diretrizes inequívocas das autoridades para se guiar numa tempestade inédita.

Eles decorreram justamente do oposto: o boicote inexplicável do presidente da República e de seu entorno a tudo que envolve o protocolo de combate à pandemia, do distanciamento em si à liderança do ministro da Saúde. Birra.

Enquanto desautorizava Mandetta, divulgava medicamento e fazia traquinagem furando o distanciamento, Bolsonaro deixou de tomar providências urgentes e relevantes que ajudariam a preparar as mochilas de escalada dos brasileiros.

A começar pelas providências da área econômica. Essas, sim, deveriam ter sido alvo da obstinação teimosa do presidente. Por que não exigiu e cobrou a execução de um cronograma enxuto para o pagamento da ajuda emergencial de R$ 600 (que pode chegar a R$ 1.200) aos mais vulneráveis, que só começará a ser paga, se tudo der certo, amanhã?

Qual a razão para o presidente não ter impedido que qualquer auxiliar seu, a começar pelo filho e chegando ao ministro da Educação, que nada tem a ver com o peixe, criasse encrenca com a China no momento em que o Brasil vai precisar do país para retomar suas exportações e para importar insumos de emergência para o combate à própria pandemia?

Essas, sim, são tarefas eminentes ao uso da autoridade presidencial, essa que Bolsonaro adora afetar, ameaçando infantilmente usar a caneta para depois recuar, o que acaba apenas por desmoralizá-lo mais perante auxiliares, eleitores e o resto do mundo.

O presidente tirou uma “folga” ontem, depois de pintar o sete na segunda-feira e deixar o País com o fôlego preso diante da possibilidade de demitir o titular da Saúde em plena crise. O recuo não pode ser considerado definitivo, e a trégua de um dia estranhamente tranquilo pode ser aquela calmaria que antecede o caos.

Mas foi um bom teste. Se o presidente mantiver o foco em não atrapalhar a escalada, pode ser que cheguemos ao doloroso cume e comecemos a descer de volta menos machucados que nossos vizinhos desenvolvidos.


Bernardo Mello Franco: Sinais de afrouxamento

Enquanto Mandetta balançava, o Ministério da Saúde afrouxou regras de isolamento. “Isso fará com que a curva de contágio se acelere”, alerta o professor Roberto Medronho

Três semanas depois de registrar a primeira morte pelo coronavírus, o Brasil ultrapassou a marca das cem em um único dia. O recorde desta terça marca uma nova fase na epidemia. Daqui para a frente, o país deverá enfrentar uma forte escalada no número de vítimas da Covid-19.

“Ainda estamos no início da ascensão da curva epidêmica. Nos próximos dias, ela vai se acelerar de forma contundente”, prevê o epidemiologista Roberto Medronho, da UFRJ. “Agora entramos numa subida contínua até o pico da epidemia. E depois a descida ainda será lenta”, adverte.

Para o professor, o pico dos casos ocorrerá entre a última semana de abril e a primeira semana de maio. “Na velocidade atual, essa escalada levará ao colapso do sistema de saúde”, avisa.

Ontem Medronho estava mais pessimista. O motivo era o último Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, que indicou um afrouxamento nas medidas de isolamento social. O documento saiu na segunda-feira, quando o ministro Luiz Henrique Mandetta chegou a arrumar as gavetas para deixar o cargo.

A linguagem usada no texto sugere um recuo negociado com o Planalto. Depois de resistir às pressões de Jair Bolsonaro pelo fim das restrições, a pasta passou a acenar com uma “transição para distanciamento social seletivo”.

“Vejo isso com muita apreensão. Na prática, parece um eufemismo para o tal isolamento vertical defendido pelo presidente”, critica o professor Medronho. “O afrouxamento das medidas fará com que a curva de contágio se acelere. Quem propunha isso mudou de ideia e hoje está na UTI”, afirma, referindo-se ao primeiro-ministro britânico Boris Johnson.

O epidemiologista traça um cenário sombrio caso o Brasil baixe a guarda contra o vírus. “Tudo o que não queremos é ver caminhões do Exército levando corpos para outras cidades por falta de vaga nos cemitérios. Isso ocorreu na Lombardia, a região mais rica de um país de primeiro mundo”, lembra.

Para Medronho, é preciso escapar da falsa escolha entre a economia e a saúde. “Se não mantivermos o isolamento rígido, a crise vai se aprofundar mais adiante. A prioridade agora é salvar vidas”, afirma.


Dora Kaufman: O coronavírus tira-nos das ruas, oferecendo-nos a vida virtual

“Eu tenho coronavírus, porque, embora pareça que a doença ainda não entrou no meu corpo, os entes queridos a têm; porque o coronavírus está passando por cidades pelas quais passei nas últimas semanas; porque o coronavírus mudou com um trinado de dedos como se fosse um milagre, uma catástrofe, uma tragédia sem remédio, absolutamente tudo”, assim María Galindo (p.119), ativista boliviana, inicia seu artigo publicado na coletânea “Sopa Wuhan” (2020). E prossegue ressaltando a impossibilidade no momento de agir ou pensar sem o coronavírus no meio, ao eliminar o espaço social mais vital e democrático que são as ruas e nos oferecer o domínio da vida virtual. Plenamente de acordo, não tenho como evitar o tema do COVID-19.

O vírus pegou o mundo num momento de crise – política, econômica, moral, ética – em que predomina a insegurança e a incerteza sobre o futuro; talvez isso justifique o clima (ou desejo?) de que “o mundo não será o mesmo pós COVID-19”. Os textos da coletânea “Sopa Wuham” ilustram esse sentimento: “Mas talvez outro vírus ideológico, e muito mais benéfico, se espalhe e esperançosamente nos infecte: o vírus do pensamento de uma sociedade alternativa, uma sociedade além do Estado-nação, uma sociedade que se atualiza em formas de solidariedade e cooperação global”, vaticina Slavoj Žižek (p.22); Giorgio Agamben (p.137), que cometeu um equívoco em seu artigo de fevereiro, em março,  torna-se esperançoso de que “Por esse motivo – uma vez declarada a emergência, a praga, se assim for -, não acho que, pelo menos para os que mantiveram o mínimo de clareza, será possível viver como antes”.

Em outro artigo, refletindo sobre o pânico provocado pelo COVID-19, Zizek (2020b) aventa a possibilidade de ocorrer um duro golpe no capitalismo e o surgimento de um comunismo reinventado, “um golpe do Kill Bill no sistema capitalista”; aposta contestada por Byung-Chul Han (2020): “Žižek alega que o vírus deu um golpe fatal no capitalismo e evoca um comunismo sombrio. Ele até acredita que o vírus poderia derrubar o regime chinês. Žižek está errado”.

O escritor israelense Yuval Harari (2020) adverte que “as decisões tomadas pelas pessoas e pelos governos nas próximas semanas provavelmente moldarão o mundo nos próximos anos. Moldarão não apenas nossos sistemas de saúde, mas também nossa economia, política e cultura. Devemos agir de forma rápida e decisiva. Também devemos levar em consideração as consequências a longo prazo de nossas ações. Ao escolher entre alternativas, devemos nos perguntar não apenas como superar a ameaça imediata, mas também que tipo de mundo habitaremos quando a tempestade passar”.

Numa postura mais pragmática, Bruno Latour (2020), aproveitando a suspensão das atividades ordinárias, propõe que façamos um “inventário das atividades que gostaríamos que não fossem retomadas e daquelas que, pelo contrário, gostaríamos que fossem ampliadas”, e endereça seis perguntas objetivas como contribuição à essa reflexão.

Parece-me precipitado apostar em mudanças radicais, mas constato que sim, há uma tomada de consciência sobre a premência da sociedade em enfrentar desafios cruciais e, a partir daí, emergem alternativas, algumas conflitantes. Sem maiores pretensões, segue um apanhado de parte do que tenho lido e debatido.

A desigualdade se tornou assustadoramente visível, dentro e entre países, impondo um novo Contrato Social entre o Estado, o mercado e a sociedade civil (maior equilíbrio entre as competências). A ideia de Estado de Bem-Estar Social deve ganhar relevância (contrapondo-se às “soluções de mercado”); é da responsabilidade do Estado áreas como saúde e segurança (violência física e ataques externos) e calamidades de grandes proporções numa espécie de “mecanismo de seguro”.

Cabe aos governos a responsabilidade por políticas de proteção social aos vulneráveis, por meio de redes de proteção estruturais, e não conjunturais (barreira: grau de endividamento dos países pós-crise financeira de 2008; políticas fiscais menos restritivas com o consequente aumento da dívida pública gerará déficit que de alguma forma terá que ser financiado). Não está claro se esse novo contrato social irá enfraquecer ou fortalecer os governos iliberais (democracia parcial), autoritários e antidemocráticos (será que o poder de governar por decreto conquistado pelos governos da Hungria e Israel será temporário?).

A dimensão da crise alerta para a tradicional subestimação por parte da elite de que o bem-estar individual, a partir de um determinado ponto, passa a depender do bem-estar geral (não adianta se isolar que o resto do mundo “acaba te pegando”). Fração da elite brasileira, aparentemente, tem se mobilizado de forma inédita no sentido de contribuir socialmente (ainda muito centrado em declarações, menos em ações efetivas).

As gigantes de tecnologia do ocidente (plataformas tecnológicas), com conhecimento e imensa base de dados, até agora desempenharam um papel relativamente tímido; diferente da China onde, por exemplo, a varejista de comércio eletrônico Alibaba é parceira estratégica no esforço do governo em enfrentar a epidemia. O aplicativo “Código de Saúde Alipay”, por exemplo, tem sido fundamental no afrouxamento do isolamento social; obrigatório nos smartphone dos chineses, identifica quem deve ou não ser colocado em quarentena ou liberado para o transporte público (após o usuário preencher um formulário na Alipay com detalhes pessoais, o software gera um código QR em uma das três cores: verde,  liberado;  amarelo, em casa por sete dias; e vermelho, quarentena de duas semanas).

Convivem discursos e iniciativas de cooperação entre países com discursos e iniciativas nacionalistas; convive a percepção de que a desigualdade entre países é um problema global (construir muros isolando os países não é uma opção) com o foco no local como dinâmica defensiva (oposto a cooperação internacional). Questões a serem observadas: teremos um retrocesso da globalização a favor do local, inclusive na produção industrial? a percepção de vulnerabilidade (dependência da cadeia global de suprimentos) terá efeito de internalizar a produção? os países vão “fechar” suas fronteiras ou vão fortalecer a globalização?

A China produz cerca de 90% dos produtos e equipamentos médicos necessários para enfrentar a epidemia, por conta disso já firmou acordos de fornecimento com 30 países, com destaque para os EUA. Existe uma campanha atual na China a favor de ajudar o resto do mundo, visto como uma oportunidade de melhorar sua imagem e ocupar um espaço maior na geopolítica mundial (sem desprezar o interesse puramente econômico: o país depende da demanda externa para manter suas taxas históricas de crescimento). A China irá liderar a recuperação econômica pós-COVID-19, aproveitando-se da relativa “fragilização” dos EUA?

Observa-se uma falta de protagonismo dos organismos multilaterais, exceto o OMS (Organização Mundial da Saúde). Instituições como FMI, Banco Mundial, OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), fóruns regionais, poderiam/deveriam estar liderando o esforço de cooperação entre os países. Aparentemente, esses organismos não estão preparados para enfrentar uma crise global dessa dimensão, mantendo o formato tradicional de atuação como a do FMI, por exemplo, empenhado em mobilizar US$ 1 trilhão para conceder empréstimos aos países necessitados.

Valorização da ciência e a consequente premência de alocar recursos significativos na geração de conhecimento, reconhecendo a interdependência entre desenvolvimento científico e apoio governamental. Fortalecimento da percepção, quase generalizada, da estreita associação entre credibilidade e competência.

Impactos no trabalho. Em geral, em situação de crise observa-se uma aceleração de tendências tecnológicas, a COVID-19 tem o potencial de acelerar o processo de automação nas empresas (redução de custo, aumento de eficiência), agravando a já em curso substituição homem-máquina com aumento significativo do desemprego, o que impacta os menos favorecidos e, indiretamente, a recuperação econômica (redução de consumo, que alimenta o desemprego num ciclo vicioso).

Na educação. Há quase consenso de que a educação é a única atividade humana que não sofreu alternações significativas nas últimas décadas. O lockdown impôs uma experiência forçada com as novas tecnologias digitais de comunicação; os educadores (instituições e professores) e os alunos, foram obrigada a aprender e a incorporar essas tecnologias em tempo recorde. Provavelmente, impactarão positivamente as metodologias de ensino.

A mídia, particularmente os grandes veículos de comunicação, têm desempenhado papel central na crise, com amplo reconhecimento como fonte confiável de informação. O comportamento, em geral, tem sido se atualizar pelos jornais e menos pelas redes sociais (aparentemente, aumentou a re-publicação de matérias dos grandes jornais pelos usuários das plataformas sociais).

A recuperação econômica deverá ser mais lenta, em parte, pelo efeito devastador nas pequenas e mico empresas, particularmente no Brasil onde elas representam cerca de 30% do PIB e 52% dos empregos com carteira assinada (Fonte: Sebrae). Em geral, as grandes empresas têm “colchão de liquidez”, ou seja, caixa para atravessar a crise (além de acesso mais fácil e mais barato ao mercado de capitais e bancário). O mercado aposta numa “limpeza” Darwiniana, em que muitas empresas vão desaparecer e as empresas de setores protegidos vão sair mais fortalecidas. Muda a percepção de risco, com um novo olhar sobre a resiliência de negócios e de empresas.

Dilemas éticos

Tensão entre privacidade e liberdade individual versus uso de dados pessoais no combate à epidemia. Os instrumentos de vigilância são úteis no controle da epidemia; vários países (não apenas a China) estão usando dados para rastrear seus cidadãos. A Assembléia Global de Privacidade – (GPA-Global Privacy Assembly) identificou mudanças relacionadas à privacidade de dados em pelo menos 27 países, o risco é que as medidas de emergência se tornem permanentes.  Como observou Michel Foucault (2001), analisando os efeitos de epidemias no século XVIII, “a peste traz consigo também o sonho político de um poder exaustivo, de um poder sem obstáculos, de um poder inteiramente transparente a seu objeto, de um poder que se exerce plenamente” (p.59). Estamos dispostos a abrir mão desses pilares da nossa cultura aderindo à um novo pacto social? Qual o ponto de equilíbrio (break-event) entre sermos “livres” e sermos cuidados?

Valorização da solidariedade diante da constatação da fragilidade humana versus auto proteção (países, cidades, comunidades, famílias). O sentimento de solidariedade é real ou aparente como parece acreditar Byung-Chul Han (“o vírus nos isola e nos individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte”)? Qual será o vetor resultante entre a tomada de consciência de que somos interdependentes e a exacerbação do sentimento nacionalista (vide discurso do Presidente Emmanuel Macron, 04/04/2020).

As grandes crises moldam a história. A gripe espanhola de 1918, por exemplo, estimulou a criação de serviços nacionais de saúde mundo afora, inclusive no Brasil: entre 1919-20, o Congresso Nacional aprovou a reforma na estrutura federal de saúde, posteriormente sancionada pelo Presidente Epitácio Pessoa, considerada a origem do SUS (1988). O Estado do Bem-Estar Social decorre, em parte, da Grande Depressão de 1929 e da Segunda Guerra Mundial. A crise financeira de 2008 limitou a capacidade dos governos de proverem serviços públicos pressionados pelo endividamento para “salvar” o sistema financeiro, o que deteriorou os sistemas de saúde. A epidemia do COVID-19 ainda está em seus primórdios, o tempo do isolamento social e da suspensão do “estado de normalidade” determinará o grau e a extensão dos impactos na economia, na sociedade e na vida dos indivíduos. Transitaremos pelos espaços públicos com a mesma desenvoltura anterior a epidemia, ou como especula Žižek (2020a) “não sermos tão felizes nos parques, não entraremos com confiança em banheiros públicos”?

“Não projeto o futuro. Não há futuro imaginável. E há um certo mistério nessa vida sem planos, nesses dias que não são mais do que dias. […] Continuo na esperança de que esse horror una o planeta, fortaleça o valor da ciência, da imprensa, da razão, da boa política e da compaixão, enquanto aguardo um milagre que combata tanto a peste, quanto a funesta cultura do ódio” (Fernanda Torres, Folha de SP, 05/04).

Referências

Sopa de Wuhan: Pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemias. Editorial: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio). Disponível em:  http://iips.usac.edu.gt/wp-content/uploads/2020/03/Sopa-de-Wuhan-ASPO.pdf. Acesso em: 05/04/2020.

Foucault, Michel. Aula de 15 de janeiro de 1975. In: FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.39 – 68.

Han, byung-chul. La emergencia viral el mundo de mañana. El País, 22/03/2020. Disponível em: https://elpais.com/ideas/2020-03-21/la-emergencia-viral-y-el-mundo-de-manana-byung-chul-han-el-filosofo-surcoreano-que-piensa-desde-berlin.html. Acesso em: 05/04/2020.

Harari, Yuval Noah. The world after coronavirus. Jornal Financial Times, março, 2020. Desponível em: https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75. Acesso em: 05/04/2020.

Latour, Bruno. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. Disponível em: http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/downloads/P-202-AOC-03-20-PORTUGAIS.pdf. Acesso em: 05/04/2020.

Kroeber, Arthur. A China e o Coronavírus, Webinar, Instituto Fernando Henrique Cardoso. Disponível em: https://www.facebook.com/fundacaoFHC/videos/501289844086377/. Acesso em: 05/04/2020.

Raghuram Rajan, ex-presidente do BC da Índia, diz que a hora é de salvar vidas, entrevista de Robinson Borges, jornal Valor  Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/04/03/raghuram-rajan-ex-presidente-do-bc-da-india-diz-que-a-hora-e-de-salvar-vidas.ghtml. Acesso em: 05/04/2020.

República do Amanhã, associação sem fins lucrativos voltada para promover discussões sobre os grandes desafios da sociedade. Coordenação: Otávio de Barros (http://republicadoamanha.org). Debate via zoom com 29 participantes de distintas área de conhecimento e experiências profissionais, 04/04/2020.

Torres, Fernanda. Sigo na esperança de que esse horror nos una, mas aguardo um milagre. Jornal Folha de São Paulo, 05/04/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/fernandatorres/2020/04/sigo-na-esperanca-de-que-esse-horror-nos-una-mas-aguardo-um-milagre.shtml. Acesso em: 05/04/2020.

Žižek, Slavoj. Sobre el coronavirus y el capitalismo // Debate Žižek – Byung-Chul Han. 2020a. Disponível em: http://lobosuelto.com/sobre-el-coronavirus-y-el-capitalismo-debate-zizek-byung-chul-han/. Acesso em: 05/04/2020.

_______________. PANDEMIC! COVID-19 SHAKES THE WORLD. OR Books, 2020b. Disponível em: https://www.orbooks.com/faq/. Acesso em: 05/04/2020.


Ranier Bragon: Navio-fantasma

Bolsonaro criou para si uma escolha de Sofia

Há bastante tempo, ninguém mais pode se dizer desavisado, apanhado de calças curtas em um território envolto em sombras. Do batedor de carimbos até o mais alto lustra-botas, seja no palácio, seja em qualquer outro lugar, inclusive na imprensa, todos já sabem muito bem a quem servem e o que tudo isso representa.

Resta-nos perguntar: mesmo que não sejam nem de longe inocentes, como reagirão, no caso de demissão de Luiz Henrique Mandetta, aqueles do governo que ainda tentam vender um verniz de sensatez e seriedade?

É certo que, sob uma lupa rigorosa, o ministro da Saúde pode não ter tido um desempenho tão bom assim. Mas o simples fato de não agir como um paspalhão —a exemplo do colega de Esplanada que "cuida" da Educação— o torna quase um Oswaldo Cruz dos dias atuais.

No mês passado, esta Folha ponderou, em editorial, que o melhor a fazer na ocasião seria deixar Bolsonaro isolado, falando e fazendo asneiras sozinho, enquanto os capacitados lidavam com o novo coronavírus. Mas o presidente quer retomar o leme do seu navio-fantasma.

Nesta segunda-feira (6), noticiou-se que Mandetta seria, enfim, demitido. A simples ameaça gerou panelaços e mobilização de servidores em frente ao ministério.

De acordo com o Datafolha, uma robusta maioria popular aprova o trabalho do ministro e o isolamento social defendido pela pasta e pela quase totalidade da ciência e das lideranças mundiais.

Por temor da reação popular ou pressão de auxiliares, até o início da noite não havia confirmação de que Bolsonaro tenha tido peito para escantear o subordinado. O que se sabe é que esse Salomão dos trópicos conseguiu criar para si uma escolha de Sofia: ou mantém Mandetta e passa o recibo de sua completa desmoralização e perda de autoridade ou o demite —e põe sobre suas costas e nas dos apoiadores todo o peso da responsabilidade de tratar a vida e morte de milhões de pessoas com base em achismo de botequim.


Andrea Jubé: O capitão prepara o adeus ao marechal

Bolsonaro não desistiu de demitir ministro da Saúde

O começo teve ar de mau agouro. No dia 20 de novembro de 2018, quando confirmou a escolha do ex-deputado federal Luiz Henrique Mandetta para compor o seu time de auxiliares, o então presidente eleito Jair Bolsonaro disse aos jornalistas: “eu confirmo o marechal Mandetta, que se Deus quiser assumirá ano que vem com essa enorme missão”.

É singular a associação do nome de Mandetta, na largada do governo, a um posto da hierarquia militar extinto em 1967. O marechalato havia se transformado no regime militar em uma espécie de sinecura a militares em fim de carreira, e o fim da patente - embora decretado como uma tentativa do presidente Castello Branco de impor revés ao general Costa e Silva - acabou recepcionado como um aceno à austeridade fiscal.

Voltando ao presente, é como se Bolsonaro ao anunciar o “marechal Mandetta” para o ministério o tivesse nomeado já com prazo de validade.

Sem vaticínios ou ilações, o que os fatos mostram nas últimas semanas é o desgaste da relação entre o presidente e o auxiliar acentuando-se num crescendo quase insuportável. No domingo, Bolsonaro admitiu a um interlocutor que o visitou no Palácio da Alvorada que a decisão de demitir o ministro da Saúde é irrevogável. A dúvida continua sendo quando consumar o ato.

Segundo interlocutores que se reuniram com o presidente nos últimos dois dias, Bolsonaro está convicto de que Mandetta extrapolou os limites da hierarquia e incorreu em quebra de confiança em uma sequência de ações que remontam ao início da crise do coronavírus.

Bolsonaro ouviu de um de seus comensais no Alvorada neste fim de semana que errou ao não imitar neste episódio o presidente americano Donald Trump, que se abespinhou com seu secretário de Saúde Alex Azar, o porta-voz da pandemia que roubou a cena.

Trump sugeriu que a palavra sobre a crise deveria ficar com o responsável pelo Centro dos Serviços de Medicare e Medicaid, Seema Verma. Depois, rendeu-se à figura de Azar e passou a dar entrevistas ao lado do auxiliar. Bolsonaro, na visão de aliados, errou porque ao contrário de Trump, preferiu romper com Mandetta e se isolar.

A conclusão de quem ouviu Bolsonaro e Mandetta ao longo da fervura é de que a demissão do ministro se transformou em uma questão de honra para o presidente, convencido de que o auxiliar desafiou sua autoridade. Bolsonaro tornou público esse inconformismo. Em uma entrevista de rádio, teve de lembrar: “O presidente sou eu”. No domingo, foi mais explícito: “A hora deles não chegou, mas vai chegar. E a minha caneta funciona e será usada”.

Num momento em que as pesquisas de opinião atestam a deterioração de sua popularidade, Bolsonaro continua dando sinais de que vai mais uma vez ceder à ala ideológica do governo e comprovar a influência de Olavo de Carvalho.

No meio da tarde de domingo, o guru bolsonarista em sua conta no Facebook a cobrança: “Fora, ministro Punhetta [Mandetta]!” E prosseguiu: “O Punhetta [sic] é o exemplo típico do que acontece quando um governo escolhe seus altos funcionários por puros ‘critérios técnicos’, sem levar em conta a sua fidelidade ideológica”.

Poucas horas depois, um Bolsonaro visivelmente contrariado pareceu em sintonia com Olavo ao admitir a apoiadores na porta do Alvorada, que havia se equivocado na composição de seu ministério. “Escolhi por critérios técnicos, errei com alguns, alguns já foram embora, estamos vivendo agora um novo momento”.

A opção pela ala ideológica enquanto a economia marcha sobre o cadafalso terá um custo político. Após horas de suspense, com impacto direto no mercado, e nova onda de panelaços em bairros influentes de São Paulo, Bolsonaro terminou o dia sem demitir o ministro da Saúde. Mas o ambiente continua tenso e os sinais estão truncados.

O embate arrastado com o ministro da Saúde já fez ruir o apoio do grupo político que avalizou a nomeação do “marechal Mandetta”, capitaneado pelo governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), agora um opositor declarado de Bolsonaro. Da mesma ala, o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, saiu enfraquecido da Casa Civil, e o correligionário Abelardo Lupion perdeu o cargo de assessor especial no Planalto.

O apoio residual do DEM ao governo ainda não virou pó porque a manutenção de Mandetta no cargo garante a interlocução com os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (RJ). Se o ministro for afastado, a relação institucional pode implodir.

Enquanto Mandetta e sua equipe agonizaram mais 24 horas ontem no cargo, o ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, cotado para substitui-lo, roubou os holofotes ao participar de uma reunião com Bolsonaro e os quatro ministros do Planalto - Walter Souza Braga Netto (Casa Civil), Jorge Antônio de Oliveira (Secretaria-Geral da Presidência), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional). A pauta foi a epidemia do coronavírus, mas sem o titular da Saúde.

Mandetta continua na cadeira, mas Terra calçou as chuteiras e está no aquecimento. Desde o ano passado, o emedebista faz movimentos discretos para tentar sentar na cadeira. A saúde sempre foi feudo do MDB, o partido dirigiu a pasta com o ex-deputado Saraiva Felipe (MG) e o hoje senador Marcelo Castro (PI).

De um lado, a cúpula do MDB afirma que se Terra for convidado por Bolsonaro, será um nome de sua cota pessoal. Nos últimos dias, as redes sociais do MDB publicaram mensagens explícitas de apoio a Mandetta e às medidas de distanciamento social.

A “cota pessoal” vale como retórica, mas se Terra ascender à Saúde, levará junto o MDB e acirrará a disputa de poder entre as siglas hegemônicas no Congresso. O MDB não tem ministério, mas tem os dois interlocutores do Planalto com o parlamento: os líderes do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (TO), e no Senado, Fernando Bezerra Coelho (PE).

Bolsonaro não tem base de apoio formal no Congresso, mas DEM e MDB têm apoiado o governo nas agendas econômicas. Acirrar a disputa entre as duas siglas às vésperas da sucessão nas presidências da Câmara e do Senado é inoportuno. Se ao fim e ao cabo Bolsonaro defenestrar o “marechal Mandetta”, perderá o DEM e a linha direta com o Congresso, num ambiente tenso em que a palavra “impeachment” deixou de ser um sussurro.


Pedro Cafardo: É uma bênção quando o nº 1 sabe dar ordens

Pessoas sensatas agem para que medidas restritivas façam efeito e crise possa ser superada o mais rápido possível

Chegará o dia em que os paulistanos lotarão a avenida Paulista, os cariocas superlotarão as praias de Copacabana e Ipanema e os brasileiros, em geral, sairão às ruas para comemorar o “Dia da Vitoria”. Muitos, com lágrimas nos olhos, esquecerão sua condição de petista ou bolsonarista, de esquerda ou direita e se abraçarão na via pública. Como no fim da Segunda Guerra, um marinheiro uniformizado beijará uma jovem enfermeira no cais do porto de Santos, a exemplo do que um americano fez na Time Square, em 1945.

Sim, esse dia da vitória, que na verdade será a derrota do coronavírus, vai chegar. Acredita-se, porém, que não haverá um único dia D dessa vitória, porque a retomada será gradual e também em tempos diferentes, dependendo do país e da cidade. Em Wuhan, na China, por exemplo, as comemorações já começaram.

Seja como for, haverá um momento em que, a um sinal das autoridades da área da saúde, a vida voltará ao normal. Estaremos livres das quarentenas e dos isolamentos sociais, sem riscos de morrer por deficiência respiratória. Estará terminada uma batalha global nunca antes travada pela humanidade com tamanha intensidade, caracterizada de um lado por um único inimigo, poderoso, e, de outro, por quase 8 bilhões de terráqueos.

As crianças e os jovens voltarão às escolas saindo cedinho de casa. As igrejas reabrirão suas portas para reunir seus fiéis. Os “farialimers” e similares retornarão aos escritórios refrigerados e os operários, às fábricas. Os casais voltarão a entrar nas salas de cinema com enormes sacos de pipoca. Os fanáticos por futebol voltarão aos estádios para berrar a favor e contra seus times - os técnicos voltarão a ser chamados de burros, e as mães dos árbitros, desrespeitadas.

Novos livros, uns bons e outros nem tanto, baseados em vida real ou em ficções imaginadas nos momentos de solidão, chegarão às livrarias. Compositores mostrarão músicas também criadas no desalento da quarentena. Algumas delas nos farão chorar.

Aviões voltarão a decolar cheios de turistas - inclusive, com empregadas domésticas -, levando filhos à Disney. Bares ficarão cheios de jovens e idosos falando alto. Restaurantes finos reabrirão suas portas, reescreverão seus cardápios com preços assustadores e reorganizarão filas de espera.

Filas também voltarão às lojas lotéricas, de pessoas com esperança de acertar na Mega-Sena. Os shopping centers recuperarão seu público fiel, que mais passeia do que compra. Os bailes funk, demonstração cultural das periferias, retomarão seus batidões barulhentos. O trânsito das grandes cidades voltará a ser infernal, as estradas ficarão congestionadas nos fins de semana, e as bicicletas reaparecerão em grande número.

A melhor notícia de todas, porém, é a certeza de que, nove meses depois do isolamento, o índice de natalidade aumentará muito em todo o mundo. Milhões de bebês virão substituir vidas tristemente perdidas e darão início à geração pós-corona. Serão os novos “baby boomers”, talvez tão numerosos quanto no pós-guerra, e que não terão as lembranças terríveis de seus pais e avós sobre esses tempos de doença, isolamento e sofrimento. Nem sofrerão com a memória de tantas perdas de pessoas queridas.

Orgulhosa de seus avanços tecnológicos em todas as áreas, inclusive na da medicina, a atual geração nunca imaginou que seria encurralada e ameaçada não pela bomba atômica ou pelas armas químicas dos ditadores, mas sim por uma microscópica proteína coberta de finíssima camada de gordura, um vírus.

Hora das pessoas sensatas
Os parágrafos acima não são devaneios. É certo que essa vitória sobre o vírus virá mais cedo ou mais tarde, ainda que seja gradual e que não tenhamos um dia D e que milhares de bravos soldados fiquem pelo caminho. E todo o esforço das pessoas sensatas, neste momento, é para que essa vitória venha o mais cedo possível.

Infelizmente, a Presidência da República ainda tenta convencer a opinião pública de que seus subordinados estão errados em suas determinações de isolamento social amplo. Vários chefes de Estado que tinham opinião semelhante mudaram de ideia à medida que o impacto da pandemia aumentava em seus países.

Não há espaço, num momento como este, para contestações leigas contra determinações da ciência. Vale, então, fazer uma citação de uma grande personalidade do século 20:

“O poder numa crise nacional, quando um homem acredita saber que ordens devem ser dadas, é uma bênção. Em qualquer esfera de ação, não há comparação entre as posições do número um e dos números dois, três ou quatro. Os deveres e problemas de todas as pessoas que não são o número um, são muito diferentes e, sob muitos aspectos, mais difíceis. É sempre uma infelicidade quando o número dois ou o número três têm que tomar a iniciativa de um plano ou de uma medida de peso. Ele tem que considerar não apenas os méritos da medida, mas também a cabeça do chefe; não apenas o que deve recomendar em sua posição e não apenas o que fazer, mas também o modo de obter anuência para isso e o modo de conseguir que seja executado”.

A citação entre aspas é de Winston Churchill, o poderoso primeiro-ministro britânico um dos líderes dos países aliados durante a Segunda Guerra. A declaração está em seu monumental livro de seis volumes, “Memórias da Segunda Guerra Mundial”, algumas páginas antes de citar sua famosa frase dita na Câmara dos Comuns - “Nada tenho a oferecer senão sangue, trabalho, suor e lágrimas” - ao conclamar o país para a vitória contra Adolf Hitler.

Em qualquer tempo da história, sem dúvida, é uma bênção quando o número um sabe quais ordens devem ser dadas. Neste momento, seria imprescindível.

*Pedro Cafardo é editor-executivo


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro risca o fósforo e toca harpa

Demitir Mandetta agora significaria atear fogo às vestes. Embora Bolsonaro o veja como ameaça, o ministro é quem ainda empresta alguma credibilidade ao governo

Há dez dias, a revista britânica “The Economist” chamou o presidente do Brasil de “BolsoNero”. O apelido resume o espanto global com o homem que governa o maior país da América Latina. Enquanto o mundo faz um esforço de guerra contra o coronavírus, o capitão insiste em tratar a pandemia como uma “gripezinha”, a ser curada com jejum, reza e declarações amalucadas.

Ontem Bolsonaro indicou que assumiria de vez o papel de piromaníaco. Ele riscou o fósforo no início da tarde, ao comunicar aliados que pretendia demitir o ministro da Saúde. Quando os bombeiros conseguiram conter o incêndio, o presidente já tocava harpa diante das labaredas.

Mandar Luiz Henrique Mandetta para casa significaria atear fogo às próprias vestes. Embora Bolsonaro o veja como ameaça, o ministro é quem ainda empresta alguma credibilidade a seu governo. Numa equipe repleta de aloprados e bajuladores, ele se destaca pela serenidade e pelo apego à ciência.

Na comparação com o chefe, o ex-deputado pantaneiro ganhou porte de estadista. Pesquisas mostram que ele já se tornou mais popular que o presidente. Ontem a notícia de sua possível demissão interrompeu a alta da Bolsa, freou a queda do dólar e antecipou o horário do panelaço.

Ao jogar Mandetta na fogueira, Bolsonaro não arrisca só a popularidade. O ministro costurou uma ampla rede de apoio, que une Congresso, Judiciário e setores do governo e da sociedade. Uma demissão humilhante teria potencial para mobilizar essas forças contra o Planalto. No limite, poderia custar o fim antecipado do mandato presidencial.

Para azar do capitão, a permanência do ministro não estanca sua sangria. Aos olhos dos políticos, Bolsonaro terminou o dia ainda mais esvaziado. Ele virou um presidente que não preside: ameaça demitir e não demite; anuncia que não tem medo de usar a caneta e refuga diante do papel.

Ainda há quem se anime a dançar ao som desta música. No domingo, o ministro da Educação voltou a ofender a China com um tuíte racista. Além de ser o maior parceiro comercial do Brasil, o país produz mais de 90% dos equipamentos que faltam aos hospitais. A irresponsabilidade de Bolsonaro e sua turma não produz apenas tumulto e vergonha. Também põe em risco as vidas dos brasileiros.


Afonso Benites: Militares e cúpula do Legislativo intervêm para manter Mandetta, a despeito de Bolsonaro

Alcolumbre adverte Planalto sobre estremecimento com Parlamento, em caso de demissão. Ministro pede “paz” para trabalhar

Desconfortável por ter um subordinado que pensa e age diferente de si, o presidente Jair Bolsonaro pretendia demitir Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde nesta segunda-feira e trocá-lo pelo deputado federal Osmar Terra. Não conseguiu. Assim que a notícia veio à tona, começaram as poderosas pressões para evitar que o mandatário concretizasse a exoneração do ministro, que é mais popular que o seu próprio chefe por causa da coordenação das ações de enfrentamento à pandemia da Covid-19.

Houve quatro frentes de críticas contra a decisão até então tomada pelo presidente: 1) generais do Exército, um deles na ativa, com assento no Planalto, disseram que lhe faltaria apoio popular e político para demitir um ministro que tem seguido as recomendações das principais autoridades sanitárias do mundo; 2) congressistas o alertaram sobre a possibilidade de atrapalhar ainda mais a relação no Legislativo e de ver um dos pedidos de impeachment contra ele prosperar em médio prazo; 3) no Judiciário, ao menos dois ministros do Supremo Tribunal Federal queixaram-se de falta de liderança política no país e; 4) nas redes sociais, pulularam manifestações de apoio a Mandetta. O ministro ganhou ainda uma demonstração de suporte entre os seus: cerca de 150 servidores do Ministério da Saúde fizeram um protesto em frente à sede do órgão para ameaçar uma demissão coletiva, caso se concretizasse sua exoneração.

Novo round
No domingo, Bolsonaro demonstrou, mais uma vez, estar descontente com a atuação de Mandetta na pasta. Ao falar a um grupo de religiosos apoiadores que o aguardavam na entrada do Palácio da Alvorada, o presidente disse que havia ministros que estavam se sentindo estrelas e que poderia usar a “caneta” contra eles. Não citou nomes. Mas o recado foi direto ao ministro da Saúde. “Algumas pessoas no meu Governo, algo subiu à cabeça deles. Estão se achando. Eram pessoas normais, mas de repente viraram estrelas. Falam pelos cotovelos. Tem provocações”, afirmou. “Mas a hora deles não chegou ainda não. Vai chegar a hora deles. A minha caneta funciona. Não tenho medo de usar a caneta nem pavor. E ela vai ser usada para o bem do Brasil, não é para o meu bem. Nada pessoal meu. A gente vai vencer essa”, declarou o presidente.

No sábado, o ministro deu mais uma demonstração dos holofotes que atraiu: gravou um vídeo para músicos campeões de audiência no Brasil que fizeram apresentações ao vivo em suas redes sociais, como Xand do Avião e Jorge & Mateus. Na gravação, Mandetta disse a eles que o “show não pode parar”, mas as aglomerações, sim. Enquanto isso, a interlocutores, o ministro reagia às queixas de Bolsonaro. Disse que não aceitava ameaças. Que se Bolsonaro tivesse algo a fazer, que agisse, que o demitisse. E insistiu em seu discurso feito na semana passada quando foi questionado se abandonaria o cargo: “Médico não abandona paciente”.

Depois de um dia de inteiro de rumores e uma série de reuniões, inclusive com Bolsonaro e sua equipe de ministros, Mandetta surgiu para falar com a imprensa depois das 20h. Discursando na sede do Ministério da Saúde, em Brasília, e em mais um sintoma de uma crise com o Planalto que ganha ares surrealistas em meio à pandemia, admitiu que vários funcionários seus já estavam limpando suas gavetas para irem embora, inclusive as dele. E deu o recado: “Nós vamos continuar porque continuando a gente vai conseguir enfrentar o nosso inimigo, que tem nome e sobrenome, a Covid-19”.

A altivez do ex-deputado vinha do respaldo angariado ao longo do dia e na semana passada. O presidente do Congresso Nacional, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), transmitiu o seguinte recado a Bolsonaro por meio dos ministros-generais Luiz Eduardo Ramos (Governo) e Walter Braga Netto (Casa Civil): “o Congresso é contra a saída de Mandetta. Isso iria prejudicar a relação com o Parlamento”. Chamado para conversar pessoalmente com o presidente, Alcolumbre avisou que não o encontraria e que a discussão estava acima de questões partidárias. Mandetta é filiado ao DEM de Alcolumbre, pelo qual cumpriu dois mandatos de deputado federal por Mato Grosso do Sul.

A pressão mais intensa, contudo, veio dos militares dias antes. Na noite de quinta-feira passada, quatro generais com assento no Planalto se reuniram com Bolsonaro logo após ele conceder uma polêmica entrevista à rádio Jovem Pan, na qual disse que faltava humildade a Mandetta e que ele deveria ouvi-lo mais. O quarteto disse a Bolsonaro que ele deveria se calar para não deixar a crise sanitária e econômica ainda mais grave. Pediram para ele não mexer em sua equipe, por enquanto. Tampouco provocar governadores e prefeitos que decretaram quarentenas. Disseram que, se ele não mudasse sua postura, poderia ser pressionado a deixar o cargo.

Em um primeiro momento, parecia que o presidente tinha ouvido as advertências e acatado os conselhos. Mas as declarações no domingo e as sinalizações da segunda-feira demonstraram que não foi bem assim. Para um interlocutor que estava no encontro com os militares na quinta-feira, não ficou de todo claro se Bolsonaro esperava tamanha reação, e de tantas frentes coordenadas, contra a queda do ministro.

O cerne da discórdia entre chefe e subordinado é o fato de o ministro ser a favor do distanciamento social, com medidas que incluem o isolamento do maior número de pessoas em cidades onde haja uma disseminação da doença. O presidente, por sua vez, entende que só quem deveria se isolar seriam os grupos mais vulneráveis, idosos e pessoas com comorbidades. Bolsonaro está preocupado com os efeitos de uma inevitável quebradeira econômica, com os gastos que o Governo terá para ajudar a população mais pobre e com suas próprias perspectivas de reeleição em meio à crise sem precedentes.

Quem tem ajudado na “fritura” de Mandetta é exatamente seu potencial substituto, Osmar Terra. Deputado federal pelo MDB do Rio Grande do Sul, e demitido por Bolsonaro do Ministério da Cidadania em fevereiro, o parlamentar nega a importância do distanciamento social como ação para coibir a disseminação massiva do coronavírus, assim como o mandatário. No fim de semana agiu intensamente contra seu antigo colega de Parlamento. Participou de reuniões entre Bolsonaro e médicos que são contrários ao isolamento horizontal, publicou artigo em jornal e deu entrevistas para dizer que a quarentena não auxilia no controle da pandemia de Covid-19. Algo que é refutado pelas principais autoridades sanitárias do mundo.

Em suas redes sociais, Terra recebeu sanção do Twitter ao dizer que que a “quarentena aumenta os casos de coronavírus”. Em uma entrevista que concedeu por videoconferência, ao portal bolsonarista Crítica Nacional, o deputado disse que no Brasil não vão morrer nem 5.000 pessoas. Falou, equivocadamente, que as medidas de isolamentos não funcionaram em nenhum local do mundo e reclamou das quarentenas no país. “Essas medidas drásticas não adiantam nada. Não fica uma pessoa a mais ou a menos internada por causa da quarentena. Não tem uma pessoa a mais ou a menos morrendo por causa da quarentena. Ela não atrapalha o vírus”, afirmou.

Em um grupo de parlamentares do DEM, Mandetta chamou o deputado do MDB de “Osmar Trevas”. “Vamos seguir a ciência, disciplina, planejamento, foco. Não perca. Esses barulhos que vem ao lado, fulano falou isso, beltrano falou aqui, esquece. Eles estão aqui do lado. Apesar dos pesares, foco, aqui!”, afirmou o ministro em uma coletiva durante a noite.

Esse não foi o primeiro dia do fico de Mandetta. Nem deve ser o último até o fim da crise da pandemia. “Infelizmente começamos com mais um solavanco a semana de trabalho. Espero que possamos entrar um período de paz, daqui pra frente”, afirmou.


El País: 'Os profetas do neoliberalismo viraram promotores da economia social', diz Badie

Um dos maiores especialistas em relações internacionais, Bertrand Badie afirma que a crise desatada pela Covid-19 está evidenciando de forma dolorosa a verdadeira face da globalização

Que um vírus originado em um mercado de Wuhan tenha se espalhado pelos cinco continentes em apenas algumas semanas, causando uma das crises sanitárias mais graves da história da humanidade não surpreende Bertrand Badie, um dos maiores especialistas franceses da globalização. O cientista político de 69 anos, professor emérito no Science Po (Instituto de Estudos Políticos de Paris) e pesquisador associado ao Centro de Estudos e Pesquisas Internacionais (CERI), há décadas defende que a ação individual de um dos 6 bilhões de habitantes do planeta pode ser mais importante do que a decisão de qualquer Governo. Em um “mundo único” em que as fronteiras já não impedem que o que acontece em um país tenha efeitos imediatos nos outros, onde a interdependência entre os diferentes setores de atividade humana jamais havia sido tão importante e a mobilidade, tanto humana como de mercadorias, tão veloz, “um aperto de mãos em Wuhan” pode colocar em xeque toda a humanidade, afirma. Por isso, o autor do recente ensaio L’Hégémonie Contestée acha que a crise atual precisa abrir nossos olhos para a importância da dimensão social da mundialização, abandonando o dogma neoliberal que se limita a conceber o ser humano como um simples ator econômico para abraçar um multilateralismo inclusivo.

Pergunta. Acha que a pandemia do coronavírus revelou o verdadeiro rosto da globalização?

Resposta. Penso que, até essa crise, a opinião pública e, o que é ainda mais surpreendente, os dirigentes dos diferentes países do mundo ignoravam e pretendiam ignorar o que esse fenômeno realmente significa. A mundialização muda profundamente o próprio significado da alteridade. O outro, em nosso antigo sistema westfaliano, era o inimigo potencial; depois, com o livre comércio e a aceleração das trocas comerciais, o outro se transformou em um competidor, um rival, e não vimos que, no plano social, estava sendo criada outra definição de alteridade, em que o outro era um parceiro cujo destino está profundamente ligado ao nosso. Isso significa que entramos em mundo que já não é o da hostilidade e da competição, e sim necessariamente o da solidariedade, porque agora se quero sobreviver e, ainda mais, ganhar, preciso me assegurar de que o outro sobreviva e que o outro ganhe, e temos muita dificuldade em admitir isso. Essa dificuldade nos levou nesse contexto de crise a escutar idiotices como “é um vírus chinês” e “o vírus é um inimigo do povo americano”, como afirmou o presidente dos Estados Unidos. Donald Trump não entendeu que o verdadeiro significado da mundialização está na criação de necessidades de integração social que devemos satisfazer urgentemente, do contrário nos encaminharemos ao desastre.

P. O senhor defende que é a fraqueza, e não a força, que rege o mundo globalizado em que vivemos. A que se refere?

R. Em um mundo inclusivo, interdependente e móvel, é o fraco que decide enquanto o poderoso está perpetuamente em uma posição reativa e defensiva. Devemos levar muito a sério as novas necessidades de segurança humana já que dos segmentos de população mais inseguros, frágeis em termos de saúde, economia, alimentação e condições climáticas, vem necessariamente o risco mais agudo da crise. Não devemos nos esquecer que esse vírus nasceu em um mercado de Wuhan caracterizado por uma grande precariedade sanitária. A vulnerabilidade de nossas sociedades extraordinariamente sofisticadas é, em última instância, bem alta. Entramos em um mundo invertido em que a lógica da fraqueza é a lei. Isso se observa em outros conflitos que ameaçam o planeta como o Sahel, Oriente Médio, a bacia do Congo e o Chifre da África, que continuam sendo áreas de grande fraqueza e que, de certo modo, conformam a agenda internacional.

P. Por que os Estados continuam priorizando o investimento militar para garantir sua segurança, sem se preocupar com os focos de vulnerabilidade que o senhor menciona?

R. Vivemos durante séculos e séculos com a ideia de que o que nos ameaça e causa nossa insegurança é de natureza militar e interestatal. No mundo de hoje gasta-se por volta de dois trilhões de dólares (10 trilhões de reais) em orçamento militar. Precisamos admitir que essa competição só adula a arrogância dos Estados e não tem nenhuma eficácia em termos humanos. O Programa das Nações Unidas ao Desenvolvimento deixou claro em um relatório de 1994 que a principal ameaça ao mundo era a humana, a alimentar, a sanitária, a ambiental, entre outras, e ninguém, nenhum líder do planeta levou a sério essa advertência, seguindo os incertos caminhos do investimento militar. Se pelo menos essa crise servir para que os dirigentes que até agora não estavam à altura de sua responsabilidade, e que não quiseram ver o que estava diante de seus olhos, levem a sério, então terá servido para algo.

P. O que lhe inspira a guinada keynesiana que de repente impregna o discurso de alguns políticos mais conhecidos por sua orientação liberal como Donald Trump e Emmanuel Macron?

R. É preciso lembrar que o social foi assassinado pelo neoliberalismo e relegado a um mero efeito de goteira. A famosa fórmula tão elogiada pelo Banco Mundial de que “o crescimento é bom para os pobres” porque acabarão se beneficiando de seus efeitos, reflete a maneira como o social foi concebido nos últimos 30 anos. Se hoje os profetas do neoliberalismo estão se transformando em promotores da economia social é porque concebem, diante da catástrofe atual, que já não será possível fazer o mesmo que antes e que será necessário voltar aos imperativos sociais.

P. Acha que essa mudança social será duradoura?

R. É muito cedo para saber se irá se manter após a crise ou se as velhas práticas voltarão. Há um sinal de otimismo, entretanto, no fato de que o novo foco dessa direita que se confundia com o ultraliberalismo, responsável pelo desmantelamento dos serviços públicos, foi anterior à crise sanitária. O ano de 2019 foi extremamente turbulento com a proliferação de movimentos sociais em todo o mundo e isso teve consequências. A prova disso é, por exemplo, o tom social adotado por Boris Johnson no Reino Unido durante as últimas eleições legislativas. A ideia de investir em questões sociais praticamente se transformou no slogan do Partido Conservador Britânico. Acho que isso significa que essa redescoberta do social não depende totalmente do medo ao coronavírus, há algo mais, e isso me faz pensar que, aconteça o que acontecer, nunca voltará a ser o mesmo.

P. A União Europeia está sendo muito criticada por sua incapacidade de proporcionar uma solução comum contra a pandemia da Covid-19...

R. Essa é, de fato, a grande decepção dessa crise, e talvez o ponto mais obscuro. A Europa esteve até agora, e quero ser muito cuidadoso com minha formulação, em um nível zero de integração. Ou seja, uma incapacidade total, não digo parcial, para dar uma resposta integrada a uma crise que, comparada com todas as que enfrentamos, é exatamente a que precisa de mais solidariedade. Esse fracasso pôde ser observado tanto no plano sanitário, com a ausência de coordenação entre Estados membros —cada Estado faz do seu jeito e frequentemente de maneira contraditória—, como econômico, com um BCE (Banco Central Europeu) cuja primeira ação foi totalmente desastrosa e causou uma espécie de quebra nas Bolsas que poderia ter sido ainda mais considerável.

P. Christine Lagarde corrigiu isso ligeiramente depois, concorda?

R. É verdade que existiu uma pequena inflexão, em ritmo forçado, mas a verdade é que continuamos sem ter acordo sobre os Eurobônus (ou coronabônus), no meu entendimento, a maior expressão do que se pode fazer juntos para enfrentar a crise financeira que se aproxima no horizonte. O problema é que ainda que consigamos chegar a uma solução comum, o dano já está feito. Estamos vendo o verdadeiro rosto da União Europeia e suas lacunas no plano da solidariedade. Outro aspecto com o qual precisamos nos preocupar é por que não importa qual seja a questão na UE, encontramos essa distância entre o norte e o sul? E isso desde Maastricht. Acabará tendo efeitos catastróficos e podemos até nos perguntar se algum dia acabaremos por ter duas Europas.

P. O que resta da governança global diante da retomada soberanista que estamos vendo nos últimos anos?

R. A inoperância da Europa é um reflexo do fracasso da governança mundial. A ação da OMS se reduz a ler todas as noites um comunicado em um inglês aproximado para pedir aos Estados que façam alguma coisa, o que é verdadeiramente desastroso quando a OMS deveria ter sido a task force no assunto, o órgão que coordena as políticas de saúde, que organiza a ajuda técnica e médica e, principalmente, que produz normas. O grande perigo é justamente a falta de padrões comuns, e que cada país continue operando por sua conta e à sua maneira.

P. A solução para sair dessa crise está, de acordo com o senhor, em mais multilateralismo e decisões comuns. O mundo atual, entretanto, está cheio de líderes nacionalistas, de Trump, passando por Bolsonaro, a Johnson. É paradoxal, não acha?

R. Acho que podemos dizer que os planetas nunca estiveram tão mal alinhados. Há uma necessidade de governança local como nunca em nossa história, e ao mesmo tempo um auge de nacionalismo que não havia sido visto até agora. Ambos são inconciliáveis. De modo que a única razão à esperança é que o nacionalismo é uma ideologia vazia que não tem nada a oferecer. Todas as tentativas de gestão estritamente nacional da crise falharam. Líderes como Johnson, Trump e até Bolsonaro, que partiram de premissas nacionalistas, e negacionistas, precisaram mudar seu discurso, cada um a sua maneira. Além disso, o desprezo desses políticos liberais pelos desafios sanitários nos leva a outro ponto essencial que abordei no ensaio L´impuissance de la Puissance, que é a flagrante impotência de um país como os Estados Unidos diante dessa pandemia. A evolução da crise nos EUA é aterrorizante e em parte se deve a essa concepção herdada da Escola de Chicago de total cegueira diante das ameaças e dramas coletivos.

P. Há outras grandes ameaças, como a mudança climática, que requerem uma ação conjunta a curto prazo. Acha que o coronavírus mudará a mentalidade dos políticos mais céticos sobre a necessidade de investir recursos antes que não se possa mais voltar atrás?

R. Logicamente, esse raciocínio é imparável. Humanamente já é diferente e politicamente, ainda mais. Humanamente, é difícil olhar os dois objetivos ao mesmo tempo ainda que estejam muito ligados, mas politicamente, o fato de que a luta contra o aquecimento global signifique gastos, esforços, sacrifícios a curto prazo para se ter conquistas a longo prazo transforma esse investimento em algo politicamente suspeito. Após essa crise, os Estados terão que investir muito para reconstruir a economia global. Aceitaremos gastar e investir muito pelo clima, ou seja, acrescentar gastos aos gastos? Sou bem pessimista.

P. Sairá algo bom dessa crise?

R. Sempre há esperança. O próprio de uma crise, aumentar o medo, é o que permite o desenvolvimento da criatividade humana e social. A crise econômica de 1929 que levou os nacionalistas a vencer nas urnas, também inventou o keynesianismo e permitiu que a economia nacional se revitalizasse até a vingança do neoliberalismo nos anos oitenta. Também foram as grandes guerras, e as mais mortíferas, que trouxeram, pelo menos na Europa, invenções absolutamente extraordinárias e que por fim permitiram a resolução de problemas que não poderiam ser resolvidos em contextos de paz e mobilização. Quanto mais forte essa crise for, portanto, mais romperá os esquemas e os círculos viciosos e por isso acho que algo positivo pode sair dela. Quando, como e por quê, não sabemos.