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Almir Pazzianotto Pinto: Um certo capitão Bolsonaro

Que fazer, prosseguir com atividades não essenciais ou preservar vidas?

Longe estou de pretender traçar paralelo entre o capitão Jair Bolsonaro com o galante capitão Rodrigo Cambará, nascido da imaginação de Érico Veríssimo na trilogia O Tempo e o Vento. Tratarei do presidente da República que derrotou Fernando Haddad em duelo incruento e democrático, após terçarem armas e vencerem no primeiro turno políticos experientes como Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Henrique Meirelles, Álvaro Dias, Marina Silva e outros de menor projeção que me dispenso de nomear.

A História mostra como são difíceis e imprevisíveis as disputas eleitorais. Recordo-me da surpreendente derrota do brigadeiro Eduardo Gomes para o general Eurico Dutra, em 1945, e do retorno de Getúlio Vargas, em 1950. A vitória de Fernando Collor, em 1989, foi inesperada. O mesmo aconteceu na primeira eleição de Lula. Não nos esqueçamos das condições políticas reinantes em janeiro de 1985, quando, em pleno regime militar, Tancredo Neves impôs dura derrota a Paulo Maluf no colégio eleitoral.

Em maio de 2018 Jair Bolsonaro era tido, no jargão turfístico, como azarão, destinado a ficar em quarto ou quinto lugar. Despontava como favorito Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, candidato pelo Partido da Social Democracia Brasileira. A seguir viria Ciro Gomes. Mais atrás, Marina Silva e Álvaro Dias. Correndo por fora, o empresário João Amoêdo, do Partido Novo.

Não repisarei o que já se disse sobre o triunfo de Jair Bolsonaro. Aconteceu e basta. Foi eleito para exercer mandato de quatro anos, conforme prescreve a Constituição. Poderá candidatar-se à reeleição. Ao tomar posse prestou compromisso “de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”.

Promessa idêntica fizeram os presidentes anteriores. A fórmula encerra o óbvio. Sabemos, entretanto, que jamais foi respeitada. O juramento de defesa da Constituição tem sido pro forma. Não evita que a Lei Fundamental seja alvo de emendas retalhadoras. A de 1988 exibe mais de cem cicatrizes e, em nome de reformas, aguarda por muitas outras. A todo momento se ouve falar em nova Assembleia Constituinte ou em emenda parlamentarista.

Quanto ao bem geral do povo brasileiro, abstenho-me de comentar. Somos pobres e subdesenvolvidos. Se alguém alimentasse dúvida, a pandemia do coronavírus bastaria para eliminá-la. Com falta de recursos materiais e humanos, a assistência à população se sustenta graças à dedicação do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, dos auxiliares imediatos e mediatos, dos secretários da Saúde e médicos dos Estados, de grandes e pequenos municípios, da solidariedade de empresários e trabalhadores.

Quando votamos em Jair Bolsonaro – e me incluo entre os eleitores –, sabíamos o que estávamos fazendo. Conhecíamos os riscos de conduzir à chefia do Poder Executivo alguém que não se encontrava habilitado por completo para o cargo. Como paraquedista treinado para o combate corpo a corpo, afeito ao uso de armas brancas e de fogo, S. Exa. se revela incapacitado para conservar alianças que exijam tolerância e serenidade. Não sabe dialogar, ignora a arte oriental do silêncio e não tem a humildade beneditina para ouvir antes de argumentar.

O perfil paradoxal do presidente Bolsonaro mais se evidencia quando declara guerra ao ministro Mandetta pela exemplar correção no exercício do cargo. Devotado aos princípios da hierarquia e da disciplina, inerentes à organização das Forças Armadas, S. Exa. não compreende serem eles incompatíveis com a vida civil. Compete ao presidente da República, segundo a Constituição, a prerrogativa de nomear e exonerar ministros de Estado. Nunca, porém, de forma abusiva, como simples demonstração de autoridade. Afinal, a ele também se aplicam as exigências do artigo 37, cabendo-lhe observar, no interesse da República, os princípios de impessoalidade, moralidade e eficiência.

À falta de vacina, os países que melhores resultados colhem no combate à pandemia são os que adotam severa política de isolamento, ressalvados os serviços indispensáveis à satisfação das necessidades permanentes da sociedade. É impossível combinar a proteção à saúde, para garantir a sobrevivência do maior número possível de pessoas, com a plena continuidade do transporte, da comunicação, do turismo, da diversão, dos esportes, da grande e pequena indústria, do comércio atacadista, varejista e ambulante. Países que subestimaram o isolamento pagam alto preço em número de infectados e mortos.

Estamos cientes de que a pandemia trará prejuízos inevitáveis. Para o Brasil significa mais uma década perdida. Não há como evitá-lo. Empresas estão sendo fechadas e numerosos trabalhadores têm o contrato de trabalho suspenso ou são demitidos. O que fazer em tais circunstâncias? Privilegiar o prosseguimento de atividades não essenciais ou preservar vidas? A palavra é do leitor que se mantém enclausurado.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho


Cacá Diegues: O normal como problema

Vírus é resposta, embora brutal, à nossa pretensão, uma chamada de atenção aos limites de nossa íntima convivência

Não pensem que um dia a gente volta ao normal. Não é só que o vírus ainda pode matar muita gente, não sei quantos. Mas é que o mundo já não é mais o mesmo, e nunca mais será. Tudo muda tão depressa, diante de nossos olhos. O que aprendemos de manhã, já não serve para o fim da tarde. A cada momento, o vento sopra de um modo diferente para nos dizer o que se passa mais adiante ou um pouco atrás de nós.

Esse tempo do vírus é um tempo de desgraças, não é pra gente comemorar nada. Só um louco ou um ignorante pode preferir isso ou aquilo, no meio da incontrolável tempestade. Nós temos é que ficar atentos, vigiar a direção para onde o barco vai, depois que ela passar.

Levamos a vida provocando a Natureza, como se ela tivesse que nos obedecer e se manter sob nosso controle para sempre, agora que sabemos quase tudo dela. O vírus é uma resposta, embora brutal, à nossa pretensão, uma chamada de atenção aos limites de nossa íntima convivência. Como foram no passado a peste na Guerra do Peloponeso, a Negra no fim da Idade Média, a Gripe Espanhola na Primeira Guerra Mundial. É como se a Natureza, com muita sofisticação apesar da brutalidade, estivesse nos dizendo que fomos longe demais.

Bertrand Russel nos disse que “o amor é sábio e o ódio é tolo”. Mas nós, há tanto tempo, tentamos construir um mundo baseado na tolice do ódio, contra os semelhantes que sempre julgamos mais frágeis e talvez inferiores. Invisíveis eram as famílias moradoras de favelas, elas podiam ser substituídas de pronto em nossos serviços, tipo varejo ou mão de obra. Agora que o vírus ameaça maltratar preferencialmente essas populações, indefesas porque ignoradas, clamamos contra a hipótese e assustados pedimos socorro. Porque não podemos ficar sem seu papel, já milenar, de justificar por inércia nossos privilégios, nosso conforto pessoal. Com a pandemia se alastrando, os políticos procuram proteger a quem representam, fazendo sobreviver os que nos servem. Ao contrário do que podíamos supor, os invisíveis se tornam visíveis para seguirem servindo os mesmos, nos novos tempos.

E ainda nos dizem para evitar a “politização do vírus”. Está bem, não temos que politizar o vírus para defender ou atacar mandatos e candidaturas, não temos que nomear heróis, graças à maldade do vírus. Mas como podemos saber quem nos faz bem e quem nos faz mal, se não podemos politizar o evento? A ialorixá e educadora Wanda d’Omolú, em recente entrevista ao GLOBO, nos iluminou com a declaração de que “a Terra está passando por uma limpeza” e que “daqui a pouco, ela estará limpa e nós teremos oportunidade de fazer diferente”. Portanto, diz ela, “não podemos voltar ao normal, porque o normal era justamente o problema”.

O normal era países em guerra permanente, uns sufocando os outros; era a divisão do mundo entre uma esquerda e uma direita que, tirando muito pouco, era tudo a mesma coisa; era a superioridade da abstração religiosa de uma ideologia sobre a realidade; a exploração do trabalho, sem reconhecimento ou recompensa; a imensa desigualdade social e o racismo, que quase sempre a justifica; o julgamento do sonho, como uma negação do mundo real em que queremos viver. Tudo isso que faz da humanidade um projeto tão bonito, que ainda não deu certo. Não posso achar que voltar a esse normal seja um avanço, uma vitória da felicidade que buscamos durante a vida inteira.
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Em 30 de março, o Sinditelebrasil, sindicato das empresas de telecomunicações, pediu e conseguiu, junto ao Tribunal Regional da 1ª Região, uma decisão liminar que suspende o recolhimento da Condecine pelas empresas do setor. A Condecine é uma taxa devida por essas empresas, para o desenvolvimento do audiovisual brasileiro, responsável por 80% do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Como todo mundo sabe, Condecine e FSA são responsáveis pela existência atual de nosso cinema. Sem eles, em breve, não existirão mais filmes brasileiros de qualquer natureza.

Já as empresas de telecomunicações no Brasil nunca ganharam tanto dinheiro como agora. Sobretudo depois de declarado o justíssimo isolamento social, a quarentena que nos faz usar, muito mais vezes ao dia, nossos telefones e outros meios de comunicação. O crescimento do faturamento dessas empresas, nesse período, é de 300% .

As teles alegam à Justiça que, nesse momento de crise, seus lucros devem ser preservados como garantia de “manutenção de empregos”. Que tal comparar esses riscos com os de produtores, distribuidores e exibidores brasileiros, com a totalidade de salas de cinema no Brasil fechadas por causa dessa mesma crise? Está aí um bom exemplo do tal “normal” a que eles querem sempre voltar.


El País: Curva de infectados segue em ascensão e Bolsonaro mantém ‘corpo a corpo’

Dobra o número de casos em uma semana e total de pessoas com Covid-19 ultrapassa 20.000. Presidente volta a desautorizar discurso de Mandetta por isolamento social em visita a obras de hospital

O Brasil ultrapassou a marca de 20.000 pessoas infectadas pelo novo coronavírus neste sábado, o dobro em relação a uma semana atrás, segundo balanço diário do Ministério da Saúde sobre a pandemia. De sexta para sábado, houve uma queda nas mortes diárias ―68 óbitos nas 24 horas anteriores, uma desaceleração em relação à semana, quando chegaram a ocorrer 141 mortes em um único dia, na quinta. Entretanto, considerando o recorte de uma semana, o total de óbitos (que atingiu 1.124) é quase o triplo do sábado anterior, 4 de abril, quando o Brasil somava 432 vítimas da doença. Apesar dos números indicarem que a curva de infectados pela Covid-19 permanece em ascensão, o presidente Jair Bolsonaro voltou a ignorar as recomendações por distanciamento social, reforçadas neste sábado pela equipe técnica da Saúde.

Pelo segundo dia consecutivo, Bolsonaro reuniu aglomerações de pessoas a seu redor e, em visita às obras de um hospital de campanha em Águas Lindas de Goiás, cidade goiana próxima a Brasília, posou para fotos e abraçou apoiadores. Na sexta-feira Santa, em passeio pelas ruas da capital federal, já havia esfregado o próprio nariz antes de cumprimentar uma mulher idosa. A taxa de letalidade do vírus Sars-Cov-2 no país é de 5,4%, e o isolamento social é a principal medida para evitar a proliferação da doença.

O crescimento da curva de casos alarma as autoridades de saúde especialmente nas capitais de Amazonas, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo, por apresentarem tanto incidência quanto mortalidade muito acima de outras cidades. Na metrópole paulista, epicentro da pandemia no Brasil, o índice de mortos é de 28 por milhão de habitantes. A incidência é maior em Fortaleza, com 439 infectados a cada milhão de habitantes. O alto número de casos confirmados e as taxas de mortalidade fazem com que o Ministério da Saúde sugira o endurecimento das medidas restritivas nessas quatro capitais. “Temos preocupação principalmente com Fortaleza, Manaus, Rio de Janeiro e São Paulo. São cidades que ainda não podem relaxar o isolamento social”, afirmou Wanderson Oliveira, secretário de Vigilância em Saúde. Já de acordo com o secretário-executivo João Gabbardo, um iminente colapso do sistema de saúde sublinha a importância do isolamento social. “A curva está muito próxima da nossa capacidade de atendimento. Estamos próximos de atingir nosso limite, se não fizermos alguma coisa.”

Enquanto o presidente ignora o isolamento social imposto por governadores e prefeitos, o corpo técnico de seu Governo explica que os gestores locais têm autonomia para determinar o afrouxamento ou a intensificação das medidas restritivas. “Esperamos que o relaxamento não ocorra de forma desorganizada”, disse Wanderson Oliveira, antes de reforçar a recomendação do distanciamento social por parte do ministério e descartar, ao menos inicialmente, a possibilidade de lockdown (fechamento total das cidades). “É fundamental que o isolamento social não seja relaxado para não seja preciso adotar lockdown em nenhum lugar. Quando a curva sobe muito rápido, é impossível reduzi-la, nem mesmo com lockdown. O momento é de pensar em medidas de higiene, etiqueta e distanciamento social. Elas são as únicas e mais eficientes armas que nós dispomos neste momento. Mas a decisão sobre qual ação ou caminho tomar compete aos gestores locais.”

Em São Paulo, onde Bolsonaro abriu frente de oposição declarada às medidas de fechamento do comércio decretadas pelo governador João Doria, as autoridades locais têm sofrido para alcançar a taxa de 70% de distanciamento social, considerada fundamental para que os leitos do sistema de saúde sejam suficientes para atender a população ao longo da pandemia. Segundo monitoramento realizado por meio de telefones celulares, o percentual de isolamento no Estado foi de 57% na sexta-feira. Neste sábado, militantes bolsonaristas voltaram a promover carreata no centro da capital em protesto contra os decretos de Doria. “É um desafio que implica em adesão da população. As pessoas precisam compreender que essas medidas são para proteger quem elas mais gostam, sua família e a comunidade”, afirmou o secretário nacional de Vigilância em Saúde, defendendo o protocolo adotado pelo governador paulista.

O representante do Ministério da Saúde ainda salientou a recomendação para o uso de máscaras como forma de proteção individual e mecanismo para achatar a curva de contágio por Covid-19. “Nós incentivamos as pessoas a fabricar suas próprias máscaras. Eu creio que a adesão a essa estratégia tem sido muito positiva. É um novo hábito.” Na visita à obra do hospital em Goiás, Bolsonaro chegou de máscara, assim como o ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta e o governador do Estado, Ronaldo Caiado, mas tirou o equipamento de proteção ao caminhar em direção a apoiadores e saudá-los no local. “[A orientação] vale para todos os brasileiros. ​Posso recomendar, mas não posso viver a vida das pessoas”, criticou Mandetta, que tem balançado no cargo por desagradar Bolsonaro.

Ex-aliado e hoje desafeto político, Caiado também lamentou as atitudes do presidente após o evento. “Não foi uma posição minha. Ele é quem deve explicar essa situação”, disse Caiado a jornalistas. Nas redes sociais, entretanto, o governador goiano agradeceu “o carinho recebido” pelo presidente. A construção do hospital de campanha em Goiás, que contará com 200 leitos de baixa complexidade, é obra do Governo federal.

Também neste sábado, a ONG internacional Human Rights Watch (HRW) avaliou que o presidente tem sabotado esforços de governadores e do Ministério da Saúde no combate à pandemia no país. “O presidente Jair Bolsonaro está colocando os brasileiros em grave perigo ao incitá-los a não seguir o distanciamento social e outras medidas para conter a transmissão da Covid-19”, manifestou a organização em seu relatório, citando, inclusive, o episódio do último dia 15 de março, quando o presidente participou de manifestação que ajudou a convocar em apoio a seu Governo, já em meio ao avanço do coronavírus pelos Estados brasileiros. “Para evitar mortes com essa pandemia, os líderes devem garantir que as pessoas tenham acesso a informações precisas, baseadas em evidências, e essenciais para proteger sua saúde. O presidente Bolsonaro está fazendo tudo, menos isso”, aponta no documento José Miguel Vivanco, diretor da Divisão das Américas da HRW.


Elio Gaspari: Mandetta pegou o vírus do holofote

Ministro perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia"

O ministro Luís Henrique Mandetta perdeu uma oportunidade de ficar calado quando disse que “a saúde dialoga, sim, com o tráfico, com a milícia, porque eles também são seres humanos e também precisam colaborar, ajudar, participar.”

Para um ministro da Saúde que construiu sua reputação falando no valor do conhecimento, só se pode atribuir essa declaração à síndrome do holofote. Dialogar com as milícias e com o tráfico é coisa que o poder público do Rio de Janeiro pratica há décadas. O próprio Mandetta já viu a promiscuidade suprapartidária que dialoga com a contravenção em Mato Grosso do Sul.

A essência da fala do ministro é um truísmo. Em diversas áreas o poder público precisa dialogar com a bandidagem para trabalhar em paz. O que ela não precisa é legitimá-lo, coisa que Mandetta fez. Essa legitimação não funciona apenas como um gesto simbólico. Ela ampara organizações criminosas. Além disso, tanto os traficantes como as milícias dividem-se em facções. Como se faria esse diálogo: numa assembleia?

O ministro da Saúde poderia se informar sobre as consequências de sua fala com o ministro da Justiça, mas faz tempo que o doutor Sergio Moro entrou numa quarentena. Além dele, poderia também recorrer ao acervo de conhecimentos da família Bolsonaro com milicianos. Ninguém deve se meter com decisões profissionais dos médicos, mas eles também não devem ir além delas, atropelando as leis.

Numa guerra, o poder público pode precisar de algum tipo de entendimento com o crime organizado, mas não pode legitimá-lo. Em 1941, o governo americano entendeu-se com a máfia do porto de Nova York para que ela não atrapalhasse seus embarques militares. Mais: em 1943, quando a tropa do general George Patton desembarcou na Sicília, cultivou a simpatia da máfia. O “capo” Don Calogero Vizzini tornou-se prefeito da cidade de Villalba e coronel honorário do exército americano. O preço desse diálogo seria um problema dos italianos.

O general Patton nunca assumiu publicamente a ajuda da Máfia.

O Itaú Unibanco dá o exemplo
O Itaú Unibanco anunciará amanhã uma doação de R$ 1 bilhão para o combate à Covid-19. O dinheiro irá para a fundação do banco e será administrado exclusivamente por um conselho de profissionais da saúde, onde estarão diretores de hospitais públicos e privados. Dinheiro na veia.

Essa será a maior iniciativa filantrópica já ocorrida no Brasil e sua lembrança ficará gravada na história da pandemia. Para se ter uma ideia do tamanho da doação, estima-se que em 2016 todas as iniciativas filantrópicas de corporações brasileiras somaram R$ 2,4 bilhões. (Nessa cifra entraram ações relacionadas com cultura, meio ambiente e educação, por exemplo.)

De onde eles estão, Olavo Setúbal (1923-2008) e Walther Moreira Salles (1902-2001), criadores dos dois bancos, terão um momento de orgulho.

Andrew Carnegie
Não custa relembrar Andrew Carnegie.

Ele foi um pobre imigrante escocês que se tornou o homem mais rico dos Estados Unidos. Em 1901, aos 65 anos, vendeu seu império siderúrgico e passou o resto da vida distribuindo dinheiro. Carnegie ensinou:

“Morrer rico é uma desgraça”.

Ele se foi em 1919, depois de ter doado 350 milhões de dólares. (Algo como US$ 10,5 bilhões em dinheiro de hoje.)

Tasca
O ministro Alexandre de Moraes sabe Direito e travou a ofensiva de Bolsonaro contra as medidas de isolamento determinadas pelos governadores.

Na sua decisão, redigida em juridiquês, ele foi além. Reconhecendo que “não compete ao Poder Judiciário substituir o juízo de conveniência e oportunidade realizado pelo Presidente da República no exercício de suas competências constitucionais”. Até aí, o óbvio, mas o doutor foi além:

“Porem, é seu dever constitucional exercer o juízo de verificação da exatidão do exercício dessa discricionariedade executiva (...) verificando a realidade dos fatos e também a coerência lógica da decisão com as situações concretas.”

Se Moraes quer “coerência lógica” do presidente da “gripezinha”, perde seu tempo. Mesmo assim, não é atribuição do Poder Judiciário determinar sua interdição.

Em seu benefício, deve-se registrar que Alexandre de Moraes apenas segue uma virótica mania do Judiciário de ir além das próprias chinelas.

Sessões eletrônicas
As próximas sessões do Supremo Tribunal serão realizadas em videoconferências. Realiza-se assim o sonho de vários ministros.

Eles poderão ficar com os rostos no vídeo, tirando o som dos soporíferos votos de alguns colegas.

Memória
Nos anos 1940, o garoto Michel Temer vivia num sítio em Tietê, no interior de São Paulo, e por perto havia um bosque de eucaliptos chamado de Hospital. Ele não passava por perto e, muitas vezes, perdeu o sono por causa das assombrações que apareciam entre as árvores.

A memória da região contava que durante os surtos de febre amarela do início do século, era lá que se enterravam os doentes, alguns deles ainda vivos.

Carnificina
De um empresário que já viu de tudo:

“Vem aí uma carnificina em cima dos pequenos negociantes. Uma parte vai quebrar e quem tiver sorte venderá para um concorrente.”

Segunda-feira
Está entendido que, pelos piores motivos, Jair Bolsonaro quer demitir o ministro Luiz Henrique Mandetta. Também está entendido que Mandetta tem seus limites e se dispõe a ir embora para não ser avacalhado.

Mesmo assim, não se pode dizer que Bolsonaro estivesse disposto a demiti-lo na segunda-feira.

Ficou a impressão de que o presidente foi dissuadido por conselheiros militares (abracadabra). Admita-se, contudo, que a demissão iminente de Mandetta foi divulgada por gente que, sabendo-a incerta, queria que ao final Bolsonaro ficasse mal na fotografia, como se tivesse sido obrigado a engoli-lo.

O médico e o paciente querem se livrar um do outro. Ambos esperam o melhor momento.

Erosão
Em 2018 o candidato Jair Bolsonaro era o quindim da maioria dos médicos e de todos os empresários do agronegócio.

Com seu diagnóstico da “gripezinha” perdeu os médicos. Com a encrenca que seu ministro da Educassão arrumou com a China, perdeu as lideranças empresariais da lavoura e da pecuária.


Vera Magalhães: A revolta da cloroquina

Assim como a reação à vacina em 1904, a apologia a um remédio é irracional e perigosa

Cada epidemia que assola a humanidade tem seus surtos de irracionalidade, ignorância e aproveitamento político associados. Não é diferente com a covid-19, e o fenômeno não é uma exclusividade do Brasil, embora por aqui estejamos nos esforçando para passar à frente no campeonato desses efeitos incidentais.

Em 1904, o Rio de Janeiro viveu a Revolta da Vacina. O presidente Rodrigues Alves nomeou o médico sanitarista Oswaldo Cruz para tentar conter os surtos concomitantes de varíola, febre amarela e peste bubônica, que assolavam uma população crescente que vivia em condições sanitárias precárias. A obrigatoriedade de vacinação para a varíola, aprovada pelo Congresso, foi o estopim para uma revolta popular instrumentalizada por grupos políticos em novembro daquele ano.

Mais de um século depois, diante da pandemia do novo coronavírus, outra reação irracional e perigosa, insuflada por políticos e seus apoiadores, confunde a população e desarticula a estratégia nacional para o combate à propagação do vírus.

Trata-se da pregação do uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. Na última semana, o debate, que já era intenso nas hostes bolsonaristas, ganhou emissoras de TV aberta, fez com que o ministro da Saúde, Luiz Mandetta, fosse forçado a se pronunciar e colocou na berlinda até médicos conceituados, instados por comunicadores a dizer se haviam ou não usado os medicamentos em seus próprios tratamentos.

O uso dos dois fármacos no tratamento da covid-19 é controvertido: resultados positivos na evolução de alguns pacientes são relatados pelo mundo, bem como complicações que não só não resultam na propalada cura como pode fazer com que os pacientes evoluam para óbito.

Seu uso mais efetivo, até aqui, foi observado em laboratório, em dosagens e condições que não podem ser replicadas em pacientes. Seu efeito tem sido mais efetivo quando em associação com outras drogas, como antirretrovirais e corticoides. Esse coquetel só pode ser prescrito por médicos, de acordo com o histórico e as condições de cada doente.

Mas não é isso que se vê nas insanas redes sociais e na movimentação deliberada de Jair Bolsonaro. O que se tem é uma propaganda irresponsável dos poderes da cloroquina e da hidroxicloroquina, sem comprovação científica que a ampare. Chegou-se ao ridículo de parlamentares sempre dispostos a pagar mico para bajular Bolsonaro subirem hashtags como #RemediodoBolsonaro e #JairNobeldaPaz.

A “revolta” da cloroquina e da hidroxicloroquina embute riscos graves. O primeiro e mais evidente é contrapor seu efeito “milagroso” à necessidade de isolamento social, como se o uso liberasse as pessoas a relaxarem a quarentena. O efeito da semana da histeria cloroquínica foi justamente esse: em todo o País os índices de isolamento regridem perigosamente.

Sem testes em quantidades mínimas, o incentivo de Bolsonaro para que as pessoas voltem às ruas tem potencial genocida. Seu novo tour por Brasília, um dos lugares do Brasil que primeiro adotaram regras duras de distanciamento social, é um desserviço presidencial à saúde pública. Displicente, limpou o nariz no antebraço antes de dar a mão a simpatizantes, entre os quais idosos. Uma cena capaz de chocar um mundo quarentenado e envergonhar o Brasil.

Caso prospere a narrativa de que basta pressionar médicos para que receitem medicamentos de eficácia ainda não comprovada e todos podem sair por aí livremente, vamos viver uma tragédia. Neste caso, o presidente não será candidato ao Nobel da Paz (risos), mas sim ao título de chefe de Estado que pior lidou com o mais grave problema enfrentado pela humanidade neste século.


Hélio Schwartsman: O êxito alemão

Junto com Coreia do Sul, país já passou pelo primeiro pico epidêmico

Qual o segredo do sucesso da Alemanha no manejo da Covid-19? São vários. O mais óbvio deles é matemático. Por testar muito mais que outros países, os números teutônicos estão um pouco menos distantes dos reais.

Se você só testar cadáveres, terá 100% de letalidade; se testar apenas casos graves, essa cifra cai um pouco, chegando a índices como o italiano (12%), o britânico e o espanhol (10%). Mas, se testar de forma mais indiscriminada (o que também facilita identificar precocemente as cadeias de transmissão e desfazê-las), as taxas caem para menos de 2%, como é o caso da Alemanha e da Coreia do Sul, dois países duramente atingidos e que já passaram pelo primeiro pico epidêmico.

Isso, porém, é só parte da história. A Alemanha não se sai melhor apenas por apresentar números menos distorcidos. Ela também conseguiu achatar a curva exponencial, evitando sobrecarga sobre seu sistema de saúde, que já era bom e foi reforçado. Médicos alemães, ao contrário de italianos, não tiveram de decidir entre quem iria ou não para o ventilador, o que significa que salvaram proporcionalmente mais pacientes críticos que os colegas da Lombardia.

Um aspecto menos comentado do sucesso dos alemães é que, mesmo em condições normais, eles já vivem em maior isolamento social que os italianos (e ao menos outros seis povos europeus). Num interessante trabalho de 2008, com o objetivo de reunir dados comportamentais para a modelagem de infecções respiratórias, Joël Mossong e colaboradores monitoraram os contatos sociais de 7.290 participantes de oito países europeus. Enquanto os italianos apresentaram média de 19,77 interações diárias (a maior das oito nações), os alemães mantiveram apenas 7,95 (a menor).

Pode haver algo de verdade no clichê de que povos latinos são calorosos e efusivos enquanto os germânicos são frios e distantes. Não é uma constatação de muito bom augúrio para nós brasileiros.


Guilherme Amado: A democracia em quarentena

Há justificativa neste momento para vetar aglomerações, fechar igrejas e limitar o direito de ir e vir. Mas a vigilância é fundamental

Direito de livre assembleia proibido, ir e vir restrito, liberdade de culto com limitações. O coronavírus parece também ter obrigado a democracia a entrar em quarentena, com o mundo afundado em um misto de medidas necessárias para vencer a pandemia, mas também tentativas de líderes autoritários de se aproveitarem dela para ganhar mais poder e populistas que, usando a recorrente tática de vender soluções fáceis para problemas complexos, mais atrapalham do que ajudam seus países no combate à doença.

Scholars especializados no tema têm acompanhado com preocupação o impacto que o enfrentamento ao vírus pode ter na democracia de diversos países, muitos já convivendo com retrocessos nos últimos anos. Desde 2006, mais países veem suas democracias erodindo do que outros as têm fortalecido. De acordo com a Freedom House, organização sem fins lucrativos baseada nos Estados Unidos e que monitora os avanços e recuos das democracias de todo o mundo, 64 países se tornaram menos democráticos e somente 37 se fortaleceram em 2019. A perspectiva para este ano é que esse número seja ainda maior, por causa da pandemia.

Mas, onde muitos só veem janelas para o autoritarismo ganhar espaço, há quem aposte também na oportunidade que a Covid-19 está dando para as populações perceberem quão perigoso é entregar o comando do país a um populista.

Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán agora pode governar por decretos. Em Israel, o Parlamento e tribunais foram fechados, e Benjamin Netanyahu conseguiu adiar seu julgamento por corrupção por dois meses. Na Sérvia e na Turquia, veículos pró-regime deram voz a falsos especialistas que defenderam que suas populações são geneticamente protegidas do vírus. No México, López Obrador abriu mão da máscara e do álcool em gel e se apegou a imagens religiosas, sugerindo que os governados fizessem o mesmo, e demorou a admitir a gravidade do problema. No vizinho Estados Unidos, enquanto a governista Fox News culpava o Partido Democrata por espalhar medo, Donald Trump também passou por diversas fases, da banalização da doença à tentativa de criar o rótulo de “vírus chinês”, desaguando agora numa guerra à Organização Mundial da Saúde (OMS).

Por aqui, Jair Bolsonaro embarcou forte na onda negacionista. Perdeu três semanas batendo na tecla da “gripezinha”, pregando contra o isolamento, enquanto um de seus filhos e sua tropa digital escolhiam a China como bode expiatório. Não deu certo. O Datafolha apontou que 76% da população concorda com a quarentena como está sendo feita hoje, e houve um esforço diplomático de diferentes instituições para apaziguar as relações com a China. Diante do fracasso das duas tentativas iniciais, Bolsonaro apostou em badalar a cloroquina e a hidroxicloroquina como as soluções para a Covid-19, novamente à revelia da comunidade científica mundial e de seu próprio ministro da Saúde. E, ao menos para sua popularidade, deu certo.

Depois de dias enfraquecido nas redes sociais, começou uma reação. Segundo medição da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas, antes de o presidente e seus apoiadores concentrarem esforços na promoção da cloroquina e na associação da imagem de Bolsonaro a ela, a base bolsonarista representava apenas 12,3% das interações em torno do coronavírus no Twitter. A oposição tinha 59,6%. Ainda que possa ser uma vantagem momentânea, colou o discurso do “remédio de Bolsonaro”, maneira pela qual a militância passou a chamar os dois medicamentos. De acordo com medição da consultoria Bites, também na análise do sentimento dos internautas nas redes sociais, até às 21 horas da quarta-feira 8, eram 249 mil menções associando a cloroquina a Bolsonaro, pouco menos da metade de todos os tuítes de brasileiros sobre o coronavírus naquele dia. Os bolsonaristas saíram-se bem na ação para criar a percepção de que o presidente estava certo desde o começo, quando defendeu a cloroquina no combate à Covid-19 — o que, ressalte-se, ainda não é comprovado pela ciência.

Medidas severas para combater a pandemia, ainda que infrinjam temporariamente liberdades e direitos, não são por si só antidemocráticas.

Na Áustria, o ministro da Saúde tentou editar um decreto de Páscoa que autorizaria a polícia a entrar nas casas para checar se as famílias estavam se reunindo em almoços do feriado religioso. Uma medida como essa, um recurso extremo, não faria sentido sem o consentimento do Parlamento. Não à toa, o Ministério da Saúde austríaco desistiu após protestos da oposição e da sociedade civil.

No Brasil, algo desse tipo foi a tentativa de Bolsonaro de mudar a Lei de Acesso à Informação, praticamente suspendendo-a durante a pandemia, o que não só dificultaria a capacidade da sociedade de fiscalizar o poder público, como restringiria o direito à informação, fundamental para que a população esteja preparada para se prevenir e enfrentar a doença. O contrapeso dos outros Poderes se fez necessário. O Supremo Tribunal Federal suspendeu o efeito imediato da Medida Provisória que mudara a lei e o Congresso provavelmente alterará seu teor nas próximas semanas.

Autor de O povo contra a democracia, uma das bíblias para entender a ascensão do populismo autocrata, o alemão Yascha Mounk, professor em Harvard, é o âncora semanal de um dos mais interessantes podcasts para quem gosta de debates aprofundados sobre política. Em The good fight, disponível gratuitamente no site de Mounk, ele conversa com professores, jornalistas, diplomatas e outros profissionais envolvidos no debate sobre os rumos da democracia mundo afora. No último episódio, Mounk recebeu Daniel Ziblatt, também professor de Harvard, coautor de outro livro essencial para entender o populismo de direita atual, Como as democracias morrem. Os dois avaliam na conversa que a pandemia poderá atrapalhar os autocratas populistas que já estão no poder, quando táticas de usar bodes expiatórios falharem e os cidadãos perceberem a falta que fazem instituições fortes e sérias funcionando.

“Essa situação (a pandemia) favorecerá a oposição aos governos. Vai prejudicar os populistas que já estão no cargo. Acho que na verdade reduz as chances de reeleição. Pode enfraquecer alguém como Jair Bolsonaro, no Brasil”, analisa Mounk.

Blatt lembra que a crise econômica poderá enfraquecer quem já está no poder. “Essa crise de saúde torna-se uma crise econômica. Isso é bem provável. Isso vai enfraquecer dramaticamente tanto Bolsonaro quanto Trump”, afirma, lembrando que os populistas que estão na oposição, a exemplo da França, podem sair fortalecidos, se forem enxergados como alternativa.

As próximas semanas mostrarão quanto tempo vai durar o sucesso do discurso salvacionista da cloroquina. E se saberá se o Brasil está no grupo de países em que a pandemia fortaleceu o populismo ou naquele em que mais pessoas perceberam que não existem remédios milagrosos para problemas complexos.


Juan Arias: Bolsonaro se isola do resto do mundo obcecado por seu messianismo perigoso

Ao longo da história os falsos profetas acabaram sendo os maiores assassinos e enganadores das pessoas simples e menos escolarizadas

Entre os transtornos psiquiátricos que afetariam o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, apontados por um grupo de psicanalistas à Folha de S. Paulo figura seu messianismo de querer resolver o drama do coronavírus de forma milagrosa. Assim, se distancia do consenso mundial da ciência que afirma que ainda não existe nenhuma evidência médica de cura fora de uma possível vacina.

Esse messianismo do líder brasileiro e seu falso dilema de que seria preciso escolher que as pessoas morram de fome se forem isoladas ou do novo coronavírus pode levar a um perigoso e fatal equívoco.

Desse modo, o presidente isola o Brasil do resto do mundo, onde ainda não foi encontrada uma forma melhor de evitar que o novo vírus continue matando milhares de pessoas do que o isolamento social. Não por acaso estão sendo aconselhados Governos de unidade nacional para melhor fazer frente à tragédia. O inimigo que assombra o mundo é forte demais para que se possa brincar com ele com cálculos simplistas de política menor. É hora de o mundo estar nas mãos de todas as forças mais bem preparadas para enfrentar o perigo juntos, sem distinções ideológicas.

Já se sabe que todos os messianismos, usados e abusados pelos líderes populistas de todas as tendências políticas, são perigosos porque o ser humano é inclinado a acreditar em receitas milagrosas. Assim, os brasileiros podem acabar sendo arrastados pela miragem do presidente, desobedecendo autoridades ao afrouxar o isolamento, como já se viu em São Paulo e em outras localidades, com consequências que podem ser fatais.

Ao longo da história, os falsos profetas acabaram sendo os maiores assassinos e enganadores das pessoas simples e menos escolarizadas.

Em um país como o Brasil, com um forte componente religioso, brincar com receitas oferecidas pelos pastores ao presidente que consideram ungido por Deus para acabar com a peste é voltar ao obscurantismo da Idade Média, como já lembrei em outra coluna. Pretende-se, como então, substituir a ciência e a medicina por receitas de cunho messiânico.

Insistir como faz o presidente nessa volta aos tempos tristes em que a religião se apoderava da ciência e da medicina hoje significa isolar o Brasil do resto do mundo, onde a ciência está se unindo para dar uma resposta segura à doença mortal que possa evitar tanta morte e tanta dor.

Hoje está claro que nada nem ninguém será capaz de fazer o presidente brasileiro recuar de seu messianismo. Assim, os altos militares de seu Governo se equivocam se acreditam que basta que eles retoquem os discursos do presidente nas redes de rádio e televisão.

Vimos como essa falsa conversão dura menos de 24 horas para o presidente e em seguida sintoniza com o chamado “gabinete do ódio”, e multiplicado pelas redes sociais dominadas pelo seu pequeno grupo de seus seguidores mais fanáticos.

Daí a responsabilidade dos militares presentes no Governo, que deveriam entender neste momento que nem eles são mais capazes de fazer mudar a índole psicológica do ex-capitão Bolsonaro nem de conter seus arroubos autoritários. Não é um paradoxo que, na esperança de que o Brasil possa continuar sendo uma democracia sem ameaças contínuas de golpes autoritários, o país esteja hoje nas mãos dos militares?

Que a democracia conquistada no Brasil com dor e lágrimas depois da ditadura militar esteja hoje ameaçada pela personalidade totalitária do presidente já não é um segredo. Como tampouco o é que o presidente continue defendendo e exaltando a ditadura e a tortura, algo que o melhor do Exército, especialmente os mais jovens, hoje rejeitam e desejam esquecer, como soube esta coluna de testemunhas nos quartéis.

Esses ímpetos absolutistas do presidente só poderiam ser paralisados pelos importantes militares que continuam em seu Governo e que se equivocariam se pensarem que são capazes de detê-lo. Eles deveriam entender que, na realidade, o presidente já não governa.

Quando os militares decidiram entrar em um Governo saído das urnas foi dito que era uma maneira de mostrar que eles respeitariam a democracia e a Constituição.

Portanto, a esperança de que Bolsonaro renuncie a um poder que já não consegue exercer não passa tanto pela longa e complexa liturgia do impeachment ou pelas formas jurídicas de demissão forçada, mas pela esperança de que os militares sejam capazes de convencê-lo a se retirar para o bem da nação.

Depois da ditadura, os militares brasileiros deram provas de ter abraçado os valores da democracia e aceitado a Constituição. E assim foi entendido pela opinião pública, que, segundo as pesquisas, considera o Exército uma das instituições mais confiáveis do país.

São horas difíceis e perigosas para um país da importância do Brasil no xadrez mundial e, embora possa parecer um paradoxo em um país sul-americano, hoje a resolução da crise de Governo por que o país está passando, e que flerta com os tempos sombrios do autoritarismo, recai nas mãos dos militares.

Seria trágico se hoje a opinião pública brasileira também perdesse sua confiança nessa instituição se ela se mostrasse incapaz de deter os arroubos messiânicos e autoritários do presidente capitão aposentado, que muito jovem foi expulso do Exército. E que hoje ameaça até os generais de seu Governo, lembrando-lhe que agora o presidente é ele e somente ele.

O Brasil vive um daqueles momentos históricos em que um erro de cálculo pode arrastar o país para uma aventura da qual um dia terá de se arrepender.


Paulo César Nascimento: A economia da velocidade e a política

Que o mundo contemporâneo se caracteriza cada vez mais pela velocidade com que a realidade muda é algo palpável para toda e qualquer pessoa, não importa o país ou a região que habite. Este ritmo acelerado de mudanças atinge todas as instâncias da sociedade, e é, em larga medida, impulsionado pela economia, onde a velocidade se manifesta de forma mais clara, com consequências importantes para a política.

Alguém poderia argumentar, contudo, que não há nada de intrinsecamente novo na dinâmica do mundo moderno, e que mudanças são uma constante desde o surgimento do homo sapiens e suas civilizações. Já no século V a.C., por exemplo, filósofos pré-socráticos assinalaram a mutabilidade do mundo. O caso mais notório é o de Heráclito de Éfeso, cujo conhecido fragmento –  “não podemos entrar duas vezes no mesmo rio: suas águas não são nunca as mesmas e nós não somos nunca os mesmos” – parece atestar que não era indiferente, para os antigos, a ideia de que o mundo estava em constante mutação.

O pensamento de Heráclito, no entanto, se refere ao sempiterno ciclo da natureza, onde tudo se encontra em contínuo movimento. Nas sociedades, ao contrário, mudanças são causadas pela mão humana, sendo que a característica do mundo moderno, especialmente na atual era digital, não é tanto a mutabilidade em si, mas seu ritmo alucinante, sem precedentes na história.

Como o historiador israelense Yuval Noah Harari ilustrou muito bem em seu livro Sapiens: “Se, por exemplo, um camponês espanhol tivesse adormecido no ano 1000 e despertado 500 anos depois, ao som dos marinheiros de Colombo a bordo das caravelas Niña, Pinta e Santa Maria, o mundo lhe pareceria bastante familiar. Apesar das muitas mudanças na tecnologia, nos costumes e nas fronteiras políticas, esse viajante da Idade Média teria se sentido em casa. Mas se um dos marinheiros de Colombo tivesse caído em letargia similar e despertado ao toque de um iPhone do século XXI, ele se encontraria em um mundo estranho, para além de sua compreensão”.

Na realidade, esta velocidade que o mundo moderno experimenta não passou despercebida por diversos pensadores ainda na aurora da revolução industrial e do desenvolvimento capitalista, seja para criticá-la ou enaltecê-la.  “Tudo que é sólido desmancha no ar” talvez seja uma das mais famosas frases do Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, que veio à luz em 1848. Assinalando que “a burguesia não pode sobreviver sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e com eles as relações de produção”, os autores constatam ainda a “contínua perturbação de todas as relações sociais, a interminável incerteza e agitação” que este processo estaria gerando. E define a moderna sociedade burguesa como um “feiticeiro incapaz de controlar os poderes ocultos que desencadeou com suas fórmulas mágicas”.

Por volta de um século mais tarde, o influente economista austríaco Joseph Schumpeter  também se refere, em sua obra Capitalismo, Socialismo e Democracia, ao dinamismo da economia capitalista, que se manifestava no que ele denominou de “destruição criativa” – a inovação constante que o empresário é forçado a buscar para expandir seus negócios e gerar mais lucros, em um movimento que tornava obsoleto e inútil os produtos e os modos de produção que existiam anteriormente. Para Schumpeter, portanto, um capitalismo que fosse estático seria uma contradição em termos, já que para ele o sistema econômico exige contínua destruição e renovação, criando riqueza e novos negócios, ainda que nesse processo cause a ruína daquelas empresas que não souberam inovar.

Mais recentemente, vários sociólogos também constataram a peculiaridade do ritmo veloz da era moderna, analisando suas consequências para além da economia. É o caso do polonês Zigmunt Bauman, que caracterizou as sociedades modernas como “líquidas”, no sentido de que nelas tudo é fluido e passageiro. As constantes inovações tecnológicas, as mudanças súbitas nos valores e na economia acarretam, segundo Bauman, uma sensação generalizada de insegurança, com consequências que se estendem até ao relacionamento entre as pessoas e suas identidades. Já o sociólogo alemão Ulrich Beck vê a perda de controle sobre a aplicação rápida e massiva de novas tecnologias e a destruição do meio-ambiente como algumas das características das sociedades modernas, que ele denominou de “sociedades de risco”.

Outra corrente contemporânea de pensamento, o chamado “aceleracionismo”, também dedica-se a estudar o caráter dinâmico do capitalismo dos séculos XX e XXI. Inspirado em obras de ficção científica, e na filosofia de Deleuze e Guattari, o aceleracionismo desenvolveu-se de forma bastante eclética, mas tendo como ponto comum o diagnóstico de que, sendo impossível eliminar a dinâmica capitalista, trata-se então de acelerá-la ao máximo, seja para otimizar o processo produtivo e a inteligência humana - em uma versão tecnomaterialista -, seja para alcançar uma socialização mais coletiva que libere o ser humano, em uma versão aceleracionista mais à esquerda.

Os diversos autores e correntes de pensamento aqui sintetizados são apenas alguns exemplos de uma miríade de constatações sobre a formação do que poderíamos chamar de “economia da velocidade”. Com a revolução técnico-científica, a partir da segunda metade do século XX, e o advento da era digital, logo em seguida, eventos estes que envolveram diversas áreas do conhecimento como informática, robótica, telecomunicação, biotecnologia e engenharia genética, todas incentivadas e subsidiadas por grandes corporações, o mundo sofreu alterações ainda mais gigantescas. Estas alterações constituem o que o alemão Klaus Schwab, diretor do Fórum Econômico Mundial, denominou de “Quarta Revolução Industrial”, e que foram acompanhadas pelo desenvolvimento da nanotecnologia, da inteligência artificial e da “internet das coisas”. Estes saberes e instrumentos, aplicados à prática e levados a todas as regiões do planeta pela globalização, constituem uma revolução não só na produção, comércio e serviços, mas também nos valores e comportamento humanos.

A economia da velocidade tem ideologia própria: o desenvolvimento sem limites, atualmente defendido ferrenhamente pelos neoliberais, e presente também no marxismo sob a forma de “desenvolvimento das forças produtivas”. Mas desenvolvimento ou crescimento de que e para quê? Esta questão nunca é explicitada a fundo nas modernas democracias liberais, e no turbilhão da vida cotidiana, nem mesmo é levantada. Desenvolver, contudo, significa expandir e aprofundar algo que “já está ali” in statu nascendi. E o que “já está ali”, na origem da economia da velocidade, é a cultura do consumo, que o crescimento econômico tem que suprir em escalas cada vez maiores e mais rápidas.

O impacto da economia da velocidade na política é enorme e abarca diferentes dimensões. Uma de suas primeiras vítimas é o Estado-nação, cujas fronteiras tradicionalmente serviam para delimitar a cultura, a ordem política e as leis de uma comunidade, garantindo sua segurança e soberania. Nesta era de globalização, que na realidade nada mais é que a expansão mundial da economia da velocidade, o Estado-nação se vê invadido implacavelmente por atividades econômicas e financeiras internacionais, perdendo a capacidade de administrar seu território e elaborar políticas econômicas e sociais com alguma autonomia.

Poder-se-ia esperar que aqueles que se opõem ao status quo – as forças de esquerda, liberais humanistas, etc. – corressem em defesa do Estado-nação contra uma globalização que, tanto a organização global Oxfam como o Fórum Econômico Mundial de Davos reconhecem, não fez mais que acentuar as desigualdades sociais e reforçar a assimetria tecnológica e econômica entre países centrais e periféricos. Mas estas forças parecem sonhar com outro tipo de globalização, enquanto a defesa do Estado-nação tornou-se monopólio da extrema-direita, que prega um nacionalismo xenofóbico contra imigrantes e minorias étnicas e religiosas.

No plano doméstico de cada país, instituições políticas, organizações e agências estatais sofrem diretamente com a velocidade do mundo moderno. Este é o caso do legislativo nas democracias modernas, que não consegue acompanhar o ritmo da sociedade. Corporações, bancos, movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos apresentam reivindicações e exigem a aprovação de leis que o legislativo, com seu burocrático processo decisório, não consegue atender com a rapidez desejada.

É certo que este é um problema quase tão antigo como a humanidade. Basta lembrar que  Platão, ainda no século IV a.C., já apontava, no diálogo O Estadista,  o descompasso entre as leis escritas e a dinâmica da realidade. E, em fins dos anos 50 do século passado, cientistas políticos da escola behaviorista, como David Easton, assinalaram que os sistemas políticos modernos entram em desequilíbrio quando as crescentes demandas ou inputs vindos da sociedade não recebem o número adequado de outputs ou respostas de parte do sistema político.  No acelerado século XXI, contudo, este gap entre demandas e legislação se tornou ainda mais acentuado.

É preciso assinalar, por outro lado, que o Estado viu-se obrigado, historicamente, a multiplicar suas funções para atender à crescente complexidade da economia e à competição cada vez mais desenfreada das empresas no mercado interno e internacional, criando uma infinidade de órgãos de fiscalização, serviços sociais, agências reguladoras, etc. É certo que esta imensa burocracia acabou por comprometer a eficiência da administração, além de gerar crescentes déficits fiscais. Mas os filisteus neoliberais que colocam a culpa de todos os males do mundo no Estado esquecem que boa parte dos problemas deste tem origem justamente no tipo de economia e sociedade que defendem.

Além de enfraquecer o poder do Estado e suas instituições, a economia da velocidade afeta também o mercado de trabalho. Inovações ligadas à biotecnologia, informática, inteligência artificial, automação e disseminação do uso de algoritmos têm eliminado um número imenso de profissões, substituindo trabalhadores tanto em atividades físicas como cognitivas. Na realidade, o crescimento econômico já não expande o mercado de trabalho significativamente, e os postos criados são aproveitados apenas por aqueles poucos trabalhadores capazes de acompanhar as novas exigências das profissões especializadas.

Nesta situação, a grande maioria dos trabalhadores desempregados é obrigada a sobreviver de seguro social, ou tornam-se terceirizados, autônomos ou informais, com pouco ou nenhum direito trabalhista. As desigualdades sociais e a precariedade do trabalho aumentam, surgindo uma situação potencialmente explosiva que pode gerar distúrbios sociais e instabilidade política.

Além disso, na economia da velocidade, informação é tudo. A disputa desenfreada por fatias de mercado e consumidores faz com que empresas desenvolvam imensos arquivos de Big Data, através da tecnologia da informação e algoritmos, capazes de armazenar dados sobre as opções de consumo de populações inteiras.  Pior ainda, sistemas biométricos que permitem o monitoramento do comportamento humano estão sendo desenvolvidos por governos e empresas, reforçando um tipo de sociedade tendencialmente totalitária, como a descrita por George Orwell, em 1984.

Todas estas facetas do mundo moderno - economia veloz fomentando um consumo desenfreado, esgotamento dos recursos naturais e colapso do meio-ambiente, enfraquecimento do Estado e suas instituições, difusão de tecnologias que restringem o mercado de trabalho, advento de uma sociedade de vigilância - variam evidentemente de acordo com a história, a economia, a cultura e a situação política de cada país. Mas não deixam de tornar sombrias quaisquer previsões a respeito do futuro da humanidade, e levantam a questão sobre qual seria a melhor política para combatê-las.

Em um primeiro momento, poderia parecer que, se os problemas gerados pela economia da velocidade advêm da estrutura econômica e da arraigada cultura de consumo da contemporaneidade, somente uma mudança radical, uma verdadeira revolução política, poderia colocar as sociedades sobre novos trilhos. Extremistas  míopes e radicais de salão compartilham dessa visão, achando que é possível organizar uma resistência popular voltada para a derrubada de tal sistema, quando chegar o inevitável momento da crise econômica e instabilidade social.

O problema com essa estratégia é que, mesmo que ocorra uma situação de ruptura política, o novo governo que subir ao poder se confrontará com a mesma estrutura anterior que forma a base da economia da velocidade e sua cultura de consumo que, por sua vez, já faz parte do modo de vida da população e é por esta legitimada. Nesses casos, abre-se um abismo intransponível entre a nova elite dirigente e a população. Este foi o caso da revolução russa e de outros movimentos revolucionários que fracassaram em construir um novo modelo de sociedade.

Outra estratégia, de longa tradição na política, defendida por forças de centro-esquerda, é a de introduzir reformas paulatinas no sistema político, social e econômico, em um contexto de aprofundamento da democracia, de forma que essas mudanças sejam acompanhadas de uma conscientização da população sobre a necessidade de um novo modelo de sociedade, mais igualitário e solidário. Esta política foi levada a cabo pela socialdemocracia europeia, que obteve êxito em construir um “Estado de bem-estar social” na Europa, principalmente nos países escandinavos.

Ainda assim, seu êxito foi limitado. A acusação algo simplista que os comunistas dirigiam à socialdemocracia – que esta não fazia mais que “administrar o capitalismo”, acabou, ironicamente, revelando-se verdadeira, pois o ethos consumista nunca foi seriamente combatido pelos governos socialdemocratas, e a expansão do mercado acabou por desequilibrar a relação entre desenvolvimento e bem-estar, enfraquecendo os sindicatos e fortalecendo a mentalidade consumista.

A socialdemocracia foi também perdendo sua identidade política na medida em que enfrentou as sucessivas ondas neoconservadoras e neoliberais que surgiram desde os anos 80 do século passado com um discurso adaptado ao ideário liberal. Essa mudança na visão da socialdemocracia recebeu tratamento programático e teórico na ideia de “terceira via” do Partido Trabalhista britânico sob a liderança do então primeiro-ministro Tony Blair (1997-2007). Desde então, o Estado de bem-estar social vem sendo desmontado por políticas de ajuste fiscal e cortes orçamentários, comprometendo o nível de vida dos trabalhadores.

Para a centro-esquerda dos países periféricos, a questão da exclusão social é especialmente grave. O aprofundamento da democracia, nesses casos, tem como objetivo principal a inclusão social, e não poderia ser diferente. Alguns obstáculos, contudo, aparecem no caminho dessa estratégia. Operar reformas em contexto democrático exige apoio popular e respaldo político. Daí a tendência da centro-esquerda de formar amplas alianças com forças políticas muito diversas, de forma a garantir um apoio mais consistente tanto na sociedade como no governo. Tal política de alianças, por sua vez, sempre exige distribuição de poder entre aliados pouco ou nada comprometidos com mudanças políticas e sociais, o que acaba enfraquecendo o projeto de reformas, além de gerar constantes crises políticas.

Outro problema diz respeito ao aprofundamento do sistema democrático enquanto tal. Uma radicalização da democracia, que incorpore as camadas sociais excluídas, certamente irá reforçar a cultura do consumo e o sistema da economia da velocidade. Os excluídos, naturalmente, vão querer se atirar aos produtos e às bugigangas eletrônicas que simbolizam a aquisição de status social. Não vão ouvir apelos ao “desenvolvimento sustentável” nem sermões de teóricos do “decrescimento” sobre a necessidade de conter o consumo. E quem poderia condená-los, se este é o comportamento das elites que lhes servem de modelo e a realidade da cultura dominante da sociedade?

Pode ser que o teórico marxista Frederic Jameson estivesse certo quando disse que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Mas pesando os prós e contras, a estratégia de reformas é mais sensata e promissora que o “assalto aos céus” preconizado pelos extremistas.  É difícil, no contexto das atuais democracias modernas, imaginar outra política de mudanças que não esteja baseada em uma estratégia reformista.  Mas analisando a experiência nesse sentido, é preciso enfrentar o que parece ser um dos seus grandes desafios: como promover reformas que não se percam no emaranhado de alianças políticas, e que, ao amenizarem as consequências da economia da velocidade, não mantenham, paradoxalmente, o sistema que a sustenta.

*Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB)


Raul Jungmann: Um esboço de cenário pós-crise

Ao que tudo indica, em 2020 teremos uma contração do PIB da ordem de 4%. Já o mercado do trabalho deve chegar aos 14 ou 15 milhões de desempregados. Como se prevê que a economia irá se comportar em forma de “V”, em 2021 e 2022 estima-se um crescimento de 4%, o que, na média do triênio 2020/2022, dará um crescimento acumulado próximo a 6%.

Logo, é previsível que a renda a renda real medida pela Pnad contínua decresça, em 5% este ano. No conjunto, o cenário aponta para um quadriênio de relativa estagnação nos âmbitos econômico e social.

Na política, tendo o Presidente da República aberto mão do presidencialismo de coalizão e da coordenação e/ou alinhamento entre o Executivo e o Legislativo, o Congresso tende a distanciar-se da agenda governamental, intensificar seu movimento rumo a uma menor dependência do Planalto e a redução do apoio às reformas.

Isso, sobretudo após a condução da crise do coronavírus, mas também pela mudança do comando da Câmara e do Senado, cujos futuros presidentes dificilmente terão a sintonia e liderança dos atuais incumbentes em relação às reformas, em especial na Câmara.

Além das mudanças na Câmara e no Senado, igualmente no Judiciário haverá troca de guarda, com o fim do mandato do atual presidente do STF, Antônio Dias Toffoli que, juntamente com os atuais presidentes do Legislativo, compõe uma tríade afinada nas questões democráticas e de contenção aos excessos do Executivo. Quanto a este, seus movimentos têm conduzido ao distanciamento da Câmara e Senado, idem cúpula do Judiciário, academia, cultura, imprensa e, ainda que de modo lento, porém contínuo, apoio popular.

Já os militares, motivo de indagação ou apreensão de alguns, mantêm-se dentro dos limites institucionais e aí permanecerão. Porém, mais à frente, diante de uma vitória das oposições, ainda que hoje remota, terão que lidar com a sua substantiva presença e possível desengajamento das funções de mando, em especial as palacianas.

Se os próximos meses e anos não apontam para uma redução expressiva da presente instabilidade e tampouco para o resgate da capacidade plena de coordenação e governança do Executivo, pode-se prever a conclusão do mandato presidencial dentro do prazo constitucional, idem uma crescente dificuldade para sua reeleição.

*Raul Jungmann é ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa e Segurança Pública


Monica de Bolle: Precisamos falar sobre a renda básica permanente

A crise humanitária exposta pela Covid-19 deixa em evidência a extrema vulnerabilidade em que vive uma parte muito expressiva da população brasileira

Há poucos dias, foi sancionada a lei que institui a renda básica emergencial (RBE) de R$ 600 por mês, a serem pagos durante 3 meses prorrogáveis. Como eu já havia escrito neste espaço, a RBE tem por objetivo atender pessoas que não poderiam permanecer em casa para se proteger da epidemia caso não houvesse um programa de governo que as sustentasse durante o período de necessário distanciamento social. Embora a RBE em forma atual seja um benefício temporário, há muitos motivos para torná-la permanente.

O Brasil é um país espantoso. Segundo dados do IBGE, cerca de 50% dos trabalhadores com carteira assinada recebem entre um e dois salários mínimos, enquanto 80% recebem menos de dois salários mínimos. Apenas 10% dos trabalhadores formais ganham mais de R$ 3 mil por mês. De acordo com cálculos feitos por Marcelo Medeiros, metade da população brasileira vive com menos de R$ 1.000 por mês. Estamos falando de cerca de 100 milhões de pessoas que recebem tão somente cerca de um salário mínimo mensal per capita.

Agora, considerem: de acordo com o IBGE, 70% dos redimentos das famíllias de baixíssima renda são destinados a alimentação, transporte e moradia. Ou seja, a maior parte do fluxo mensal dessas pessoas é usada para a subsistência mais básica. Não estão incluídos gastos com vestuário, medicamentos ou itens de necessidade básica para cuidados pessoais. Essas pessoas vivem sem qualquer colchão de segurança, o que significa que, se o chefe de família adoece ou se há algum gasto extraordinário no mês, não há espaço no orçamento mensal para absorver o ocorrido.

Reflitam por um momento sobre isso. Em nosso país há cerca de 100 milhões de indivíduos que vivem na mais precária condição econômica, algo que muitos de nós não têm a capacidade de contemplar. Imaginem a diferença que faria na vida dessas pessoas receber uma transferência de renda sem qualquer condicionante todo mês. A renda básica permanente, pensada desse modo, é mais do que uma ajuda econômica, um assistencialismo. Ela confere dignidade.

Há quem se oponha à renda básica permanente argumentando que ela seria um desestímulo ao trabalho. Entendo o argumento se estamos tratando de pessoas com renda mais elevada do que o montante módico que mencionei anteriormente. Contudo, nem mesmo esse argumento encontra respaldo na literatura acadêmica existente. De acordo com vários estudos, o efeito de programas de transferência de renda sobre os incentivos ao trabalho são, na melhor das hipóteses, ambíguos. No caso brasileiro, quem em sã consciência realmente acredita que alguém que já vive com tão pouco vai deixar de trabalhar porque passou a receber um complemento do governo? A ideia é quase estapafúrdia.

Portanto, vamos ao outro lado da questão: quanto custaria esse benefício incondicional para os cofres públicos? Se 100 milhões de pessoas recebessem uma renda básica de R$ 600 mensais, o montante total no ano alcançaria cerca de 10 pontos percentuais do PIB, valor bastante alto. Com R$ 500 mensais, ou metade do salário mínimo, o custo cai para 8 pontos percentuais do PIB. Com R$ 350 mensais, ou um terço do salário mínimo, o custo seria de pouco mais de 5,5 pontos percentuais do PIB. Evidentemente, parte do gasto com a renda básica é revertido para os cofres públicos na forma de receitas mais altas provenientes de um impulso ao consumo. Afinal, são as pessoas de renda mais baixa que consomem mais como proporção da renda — o que os economistas chamam de propensão marginal a consumir.

Essa população não apenas sofrerá os efeitos mais diretos da epidemia e da crise econômica, mas tais efeitos serão prolongados dadas as curvas epidemiológicas e o curso da doença cujos dados estamos a observar. Mas a defesa da renda básica permanente transcende a crise humanitária que atravessamos.

De uma ótica mais pragmática, a renda básica permanente contribui para a estabilidade da economia e a cidadania na democracia. Já da perspectiva dos valores que compartilhamos, é uma questão de justiça, inclusão e liberdade nesse país tão profundamente desigual que é o Brasil. Chegou o momento de tratar desse tema com a importância e o senso de urgência que ele sempre mereceu.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


El País: SUS e planos de saúde ainda não acertaram regras para distribuir leitos

ANS libera 15 bilhões de fundo emergencial para operadoras. Atendimento de inadimplentes está condicionado a renegociação do contratos. “É um cheque em branco", critica pesquisador

Prestes a alcançar o pico de contágio por coronavírus, previsto pelo Ministério da Saúde para as semanas entre abril e maio, o Brasil ainda não tem uma coordenação entre SUS e rede privada para ampliar a capacidade de assistência e o número de leitos hospitalares, principalmente de UTIs (unidades de terapia intensiva). O país, que já registra 941 óbitos por Covid-19 e 17.857 casos, pode chegar ao colapso de ambos sistemas de saúde ainda este mês. Uma nota técnica da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostrou que, se 0,1% dos brasileiros estiverem contaminados até o fim de abril já haverá falta de leitos. E esse é o cenário otimista. Na projeção mais pessimista, com 1% da população infectada até o final do mês, 53% das microrregiões (agrupamentos de municípios) colapsariam. Ao mesmo tempo, os planos de saúde enfrentam uma “incerteza” com o aumento exponencial de seus gastos e confirmam, nas entrelinhas, que isso pode ser repassado para o bolso do consumidor.

“Os custos incorridos em um exercício servem de parâmetro para definir os valores das mensalidades no exercício seguinte. Logo, as variações de volumes de utilização e custos dos procedimentos médicos durante a pandemia serão consideradas nos cálculos vindouros”, explica Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), que reúne empresas do setor. Ela ressalta, no entanto, que ainda não é possível estimar a magnitude desses gastos e de seu impacto no valor dos planos. Anualmente, as operadoras, que atendem cerca de 47 milhões de pessoas, vêm segundo autorizadas a aumentar as mensalidades acima da inflação.

“É evidente a necessidade de ampliar o investimento na instalação de novos leitos clínicos e de UTI, em aquisição de novos equipamentos, bem como em assistência ambulatorial. Por outro lado, é preciso garantir esses recursos financeiros, necessários para o adequado atendimento. O aumento de demanda por serviços médicos em decorrência da disseminação do novo coronavírus fez crescer também as despesas relacionadas, o que exige um reforço de caixa às operadoras”, informa, em nota, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde).

Os 32.000 leitos de UTI para adultos no país, divididos praticamente ao meio entre os sistemas público (cerca de 163 milhões de pessoas dependem dele) e privado, e existentes em apenas 500 municípios, já funcionavam com mais de 80% de ocupação antes da pandemia —no SUS, entretanto, essa taxa é mais alta: fica entre 90% e 95% habitualmente, segundo a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB). Na semana passada, o Ministério da Saúde afirmou, através do secretário-executivo João Gabbardo, que está monitorando tanto os leitos públicos quanto os particulares. “Se [o SUS] precisar [de leitos privados], vai usar”, reiterou Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde, mas essa solicitação, segundo apurou o EL PAÍS, ainda não foi feita. No Ceará, um dos principais focos da doença no país, o Governo do Estado tomou para uso emergencial o hospital privado Hospital Leonardo da Vinci, que dispõe de 230 leitos de internação e de UTI. O local, entretanto, estava fechado havia 13 anos.

Em 13 de março, o Ministério da Saúde publicou orientações para adiar cirurgias eletivas e demais procedimentos não urgentes, com o objetivo de liberar mais leitos para pacientes com Covid-19. A Abramge ressalta que eles “serão realizados em algum momento”, e que há o risco de uma “avalanche” de procedimentos. “Isso exigirá recursos que seriam despendidos em meses, em poucos dias”, diz a nota. Uma semana depois, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), tida como sob forte influência do setor que deveria regular, anunciou a liberação de cerca de 15 bilhões de reais de um fundo garantidor aos planos de saúde, para afiançar sua solvência durante a crise. Esse valor corresponde a 20% de um fundo formado para emergências com dinheiro das próprias operadoras privadas, que há anos vêm pleiteando sua liberação pelo Governo. Na quarta-feira (08/04), a ANS acrescentou que, para ter acesso a esse recurso, as operadoras terão que assinar um termo comprometendo-se a atender usuários inadimplentes durante a pandemia desde que eles renegociem suas dívidas. Em princípio, a medida será válida até 30 de junho, mas depende da adesão das empresas.

Mario Scheffer, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), critica a decisão de flexibilizar o acesso a esse capital. “É um cheque em branco, porque os planos de saúde não apresentaram nenhum plano de uso desse capital. Essa ajuda deveria fazer com que o valor das mensalidades fosse reduzido. É o que várias escolas particulares, por exemplo, estão fazendo. Além disso, o ajuste dos planos deste ano nada têm a ver com a crise do coronavírus", diz o especialista.

Scheffer lembra que 80% dos planos de saúde são coletivos, feitos por sindicatos ou empresas, que, devido à crise, podem ficar inadimplentes. “As operadoras precisam ter um plano para lidar com essa inadimplência, devem criar uma moratória para as rescisões. E deveria ser proibida a rescisão unilateral do contrato por parte dos planos”, argumenta. O pesquisador também defende uma “regulação única de vagas, principalmente dos leitos de UTIs”, sob comando do SUS. “Em momentos como esse, de emergência sanitária, a rede privada deve subordinar-se ao Governo”, afirma.

O advogado Frederico Barbosa, sócio da consultoria estratégica BPGA, concorda em parte com Scheffer. “O Governo poderia vincular a liberação do dinheiro do fundo garantidor ao aumento da capacidade de leitos para o SUS. Poderia ser uma proposta, por exemplo, de 70% dos leitos para o SUS e 30% para a rede privada, hipoteticamente falando”.

Barbosa é um dos autores de uma proposta apresentada ao Ministério da Saúde —e ainda sem resposta— de parceria entre o SUS e os planos de saúde para gerir a escassez de leitos. Ele argumenta que, apesar de o Ministério da Saúde poder requisitar até mesmo todos os leitos privados diretamente aos hospitais, indenizando-os por possíveis prejuízos, isso seria “traumático”, pois deixaria os usuários dos planos sem atendimento. “Uma transferência mais eficiente envolveria apenas a cessão parcial de leitos existentes e a serem implantados pelos hospitais privados, por meio de um protocolo para a equidade dos leitos em ambos sistemas. Na prática, isso implicaria a transferência urgente e transitória de leitos privados para atendimento das necessidades do SUS”, diz.

Barbosa acredita que esse protocolo incentivaria a expansão do número total de leitos, principalmente com o apoio das operadoras de saúde, porque ficaria clara a responsabilidade do SUS em pagar à rede hospitalar privada pelos leitos que lhe fossem transferidos os mesmos valores pagos pelos planos de saúde. “Assim, as operadoras gastam menos e o SUS também pagaria por esses leitos um preço menor do que aquele que seria indenizado diretamente aos hospitais particulares”, explica.