coronavirus
Eliane Cantanhêde: De caminhões a aviões
Fim de isolamento com mortos de 9 Boeings e corpos na rua? Teich e governadores não farão
O Brasil ainda não chegou na fase de “caminhões do Exército transportando corpos pelas ruas”, como advertia o agora ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, mas já exibe cenas horripilantes de caminhões frigoríficos à saída de hospitais em Manaus para evitar outras cenas horripilantes, de corpos e pacientes, lado a lado, pelos corredores. Preparem suas almas e estômagos, porque o Brasil não é uma bolha e essas imagens vão se repetir.
Por ora, alternam-se números da realidade com imagens da realidade paralela em que habitam milhões de brasileiros e o presidente da República. São mais de 2 milhões de contaminados e 150 mil mortos no mundo, mais de 33 mil e 2 mil no Brasil, mas incautos amontoam-se pelas ruas, sem máscara, cuidado e medo. “Indo para o matadouro”, definiu a jornalista Monica Waldvogel.
Na mesma reunião com Bolsonaro e ministros em que falou dos “caminhões do Exército”, Mandetta comparou: se morressem mil pessoas, seria o correspondente à queda de quatro Boeings. Logo, hoje já seriam nove. Em frente ao aeroporto de Congonhas, o Memorial 17 de julho lembra os 199 mortos do voo TAM 3054, em 2007, meses depois que um Legacy se chocou no ar com o Gol 1907, deixando 154 vítimas. Foram os dois maiores acidentes aéreos brasileiros, com grande comoção nacional. Hoje, a Covid-19 já faz 2.347 mortos e famílias destroçadas, quase 12 vezes que em cada acidente, num só mês.
E o mundo parou (dizem que nunca mais voltou a ser o mesmo) naquele 11 de Setembro em que ataques terroristas fizeram 3 mil mortos em Nova York. Pois o terrorista coronavírus agora mata mais de 2 mil por dia – por dia! As vítimas já beiram 15 mil em NY e 35 mil na maior potência do mundo. Quantas Torres Gêmeas dá isso? E que mundo sairá dessa pandemia, que não tem ideologia, religião, raça e não poupa ricos e pobres?
No Brasil, como nos EUA, o coronavírus atacou “por cima”, os que podiam passear pelo mundo, e chega aos “de baixo”, que mal têm onde morar. Se em Nova York o maior índice de mortos é de negros e pobres, o que prever quando a Covid-19 sair dos bairros elegantes e se espraiar por periferias e favelas? E já saiu, está se espraiando.
E quando a pandemia deixar seu rastro macabro na Ásia, Europa e EUA, sossegar no resto das Américas e desabar na África? Não haverá caminhões do Exército nem frigoríficos suficientes e o continente pode se transformar num imenso Guayaquil, cidade do Equador com cadáveres pelas ruas.
Chocante? Sim, a realidade é chocante e quem ainda está sonhando precisa de uma chacoalhada. E é aí que entram as dúvidas sobre o novo ministro da Saúde, Nelson Teich. Com belo currículo e respeito dos pares, ele já defendeu publicamente o isolamento como principal arma para evitar uma tragédia maior, mas assumiu o ministério prometendo “alinhamento total” com um presidente que confronta, petulantemente, o isolamento.
Na conversa decisiva, Teich deixou boa impressão nos presentes, mas dúvidas na cabeça conturbada do presidente: seria capaz de transformar os achismos presidenciais em política de saúde? O mundo inteiro está aflito com os efeitos calamitosos da pandemia nas empresas e nos empregos, mas, como médico, gestor e especialista em saúde e economia, é improvável que o novo ministro jogue fora sua biografia assumindo o “risco” de um chefe eventual.
A melhor aposta está na senha do próprio presidente para Teich na posse: “Junte eu e o Mandetta e divida por dois”. Leia-se: o governo vai relaxar o isolamento, mas o ministro não topa loucuras e planeja um pouso controlado. Mesmo que topasse, governadores, Supremo e Congresso barrariam. Oremos!
Dorrit Harazim: Agora é pra valer
Brutalidade da disseminação da Covid-19 no Brasil começa a exibir suas entranhas
‘Tudo sob controle... Não sabemos de quem”, gracejou o vice-presidente Hamilton Mourão para jornalistas à saída da cerimônia de posse do novo ministro da Saúde. Comentário ligeirinho, espirituoso e ferino de quem sabe que não pode ser demitido do cargo pelo presidente da República. Nesta toada a autofagia em Brasília avança mais rápido do que o coronavírus. Em tempos normais, os embates intestinos no poder federal talvez fossem o mais alarmante para este momento de calamidade. Em tempos anormais como agora, eles consomem o resquício de lucidez que o país algum dia achou que tinha.
Quem fica mais nu a cada dia não é apenas o chefe da nação que se pensava rei — é o Brasil cru, sem fantasia, que vai emergir da pandemia. “Vai ser a devastação de uma raça chamada favela”, alerta Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa), do Data Favela e da FHolding. Athayde nada tem de incendiário. Ele se faz ouvir por conhecer o universo do qual fala. Em recente entrevista ao “Jornal do Commercio”, elencou as duas únicas opções para os 13,5 milhões que moram em favelas no Brasil — correr ou morrer afogado. “A favela está se contaminando. É gente que não pode parar, mas que ninguém vê...”, disse, referindo-se à base da pirâmide de serviços essenciais sem a qual o resto do país em quarentena entra em colapso. Athayde preferiria não falar de convulsão social, mas adverte que “as pessoas não vão morrer de sede do lado de uma caixa d’água porque ela tem dono”. E conclui: “A pior crise é a crise de perspectiva. A favela não quer desordem, sabe que é ela quem vai tomar o tiro de borracha. Mas ela perde a capacidade de sonhar. Por não ter mais nada, vai fazer o quê?”
Uma amostra do horizonte social se estreitando pode ser visto na tumultuada disponibilização do auxílio emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais mais vulneráveis. Pela previsão inicial do governo, o total de beneficiados alcançaria 51,4 milhões, número já corrigido para mais de 70 milhões, ou 40% da força de trabalho nacional em idade adulta. É tentacular o tamanho desse Brasil carente de rede de amparo que agora sai da invisibilidade e se posta em filas de até 10 horas em frente a agências da Caixa Econômica Federal. É todo um povo fora dos cadastros do governo, ou cujos dados são precários, irregulares, e que sempre viveu na berlinda da cidadania. Uma parcela de povo que tinha mais o que fazer do que regularizar sua pendência eleitoral. Voto obrigatório também dá nisso.
A operação de fazer chegar R$ 600 a esse mundão invisível é das mais complexas, sem dúvida. Como supor que ela seria alcançável apenas via internet, realizável através do preenchimento de um aplicativo de cadastramento? Na aflição de perder a vez, quem ficou horas tentando contornar as dificuldades do sistema tratou de se garantir correndo inutilmente para agências físicas da Caixa e da Receita, formando muralhas humanas hospitaleiras ao vírus. Quem sempre recebeu migalhas confia pouco em promessas.
Mais tarde do que cedo, o fluxo emergencial haverá de se regularizar, mas até lá a Covid-19, nascida na China mais de quatro meses atrás e aportada no Brasil em fevereiro, terá feito outras tantas vítimas. Que haverão de se somar ao passivo social da era anterior ao coronavírus — entre outros, uma fila de espera no INSS de 1,6 milhão de pedidos de benefícios aguardando análise.
O temido colapso das redes públicas de saúde agora bate com impiedade à porta do Brasil. Metade dos leitos de UTI do país, ou quase a metade, está instalada em hospitais privados. Considerando-se que 75% dos brasileiros dependem exclusivamente do SUS, e que é esta faixa da população que começa a ser ceifada pelo vírus, a tragédia anunciada se instala pra valer.
A história já comprovou que ser humano (do verbo ser, não do substantivo “ser humano”) é uma atividade coletiva. Veremos o quanto. A partir desta semana a brutalidade da disseminação da Covid-19 no Brasil começa a exibir suas entranhas. Com a nau em Brasília em modo disfuncional.
Celso Lafer: Variações sobre o coronavírus
Não temer o perigo e os seus remédios exige em todos os planos a coragem da liderança
A generalizada magnitude do impacto do coronavírus é opressiva. Instiga, na anormalidade dos isolamentos, um parar para pensar o alcance e significado do ineditismo de uma situação geradora, em escala planetária, de medo e insegurança.
A covid-19 é um grande exemplo do que Proudhon qualificou como a fecundidade do inesperado. Surpreendeu governantes e governados. Foi muito além dos cálculos dos peritos em riscos. Não se esgota no âmbito do acaso, que “tem do confuso mundo o regimento”, como diz Camões.
As medidas de contenção da pandemia, baseadas no necessário distanciamento e isolamento social que a ciência no estágio atual do conhecimento prescreve, vêm fulminando a lógica normal da vida cotidiana e da economia. Tornaram uma realidade presente a clássica figura literária de um “mundo às avessas”. Evoca o que diz Gil Vicente: “O mundo é já desgorgomelado/ tudo bem se vai ó (ao) fundo” (Auto Pastoril Português). A palavra desgorgomelado, segundo os estudiosos do léxico vicentino (Teyssier), é um neologismo rústico, calcado em degolado, ou seja, garganta cortada. Aponta assim para a inédita crise de um mundo que não está respirando social e economicamente. Corre o risco de afundar.
As sociedades contemporâneas, inseridas, para o bem e para o mal, num mundo interconectado e interdependente, são sociedades de risco, sujeitas aos desgorgolamentos. A ampliação do conhecimento vem permitindo, na lida com esses desafios, construir em todas as esferas mecanismos e processos de gestão de riscos de todos os tipos – políticos, econômico-financeiros, empresariais, ambientais, de saúde. A gestão de riscos permite ampliar o escopo da prudência mediante a elaboração das modernas técnicas de múltiplos cenários. Estes têm como tarefa avaliar as contingências de um sem-número de imprevistos que transbordam das regularidades do que é tido como usual.
Independentemente da maior ou menor existência de condutas negligentes, em todos os âmbitos da conduta humana, inclusive no plano da saúde e da ordem mundial, existem limites ao horizonte do previsível.
Com efeito, uma característica dos sistemas complexos do mundo contemporâneo, em que estamos inseridos, é a de que é impossível explicá-los completamente e, por via de consequência, ter a capacidade de controlá-los inteiramente. A complexidade induz o potencial da radicalidade da incerteza e dos seus desdobramentos em todas as áreas. É o que observa Thierry de Montbrial – um dos grandes estudiosos da ação estratégica – em texto de 1.º/4 sobre o coronavírus. É o que explica a vigência da observação de Proudhon sobre a fecundidade do inesperado e de seus desdobramentos, que estão e vão impactar a dinâmica de uma já precária ordem mundial permeada pelas forças centrífugas da fragmentação.
Como enfrentar em nosso país o inesperado da covid-19? Para o homem de razão e de ação não cabe a insensível resignação perante a fatalidade dos óbitos. Não cabe igualmente alimentar a expectativa de salvação em curto prazo por meio de um remédio ou de uma vacina que para serem descobertos e aplicados pressupõem o tempo da pesquisa, que não é o tempo da urgência da crise. O homem de razão e de ação parte da objetiva percepção de que estamos diante de um labirinto de dificuldades e cabe buscar os difíceis caminhos de saída recorrendo ao repertório dos conhecimentos existentes e aos cenários de contingência que permitem.
Na condução das políticas públicas da saúde e da economia, em especial na situação-limite do coronavírus, é indispensável ter zelo. Zelo é incompatível com o negacionismo em relação aos fatos e com improvisações e rompantes que alimentam a insegurança, corroem a confiança e dividem a sociedade.
“O verdadeiro zelo teme o perigo e trata dos remédios”, ensina o padre Antonio Vieira, que adverte: “O maior perigo não é quando se teme o perigo, é quando se teme o remédio”. Os remédios são aqueles que o estágio atual do conhecimento e da ciência validados pela Organização Mundial da Saúde indicam. Indicam seja em matéria de contenção e trato médico e hospitalar da pandemia, seja em matéria econômica, nas medidas emergenciais voltadas para mitigar o avassalador impacto da crise na vida das pessoas.
Não temer o perigo e seus remédios exige em todos os planos a coragem da liderança. Delas são exemplos, na área federal, o Ministério da Saúde na meritória gestão de Luiz Henrique Mandetta e a equipe econômica e outras objetivas equipes governamentais; no espaço da Federação, competentes governadores como João Doria e empenhados prefeitos como Bruno Covas; o Congresso e seus dirigentes; as antenas de sensibilidade do STF; a mídia no seu empenho em informar com transparência o que se passa; a sociedade civil nas suas manifestações e na miríade de múltiplos atos de solidariedade e filantropia.
Manter esse rumo, não fragilizar esse sentido de direção, é a única maneira que está ao nosso alcance para impedir um desgorgolamento que nos afundará num “mundo às avessas”.
* PROFESSOR EMÉRITO DA USP, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992 e 2001-2002)
Alon Feuerwerker: Ela vem aí
Neste planeta infestado pelo SARS-CoV-2, o Brasil deve ser o país mais mergulhado em guerras políticas com jeito de insolúveis. O país em que as diversas facções estão mais longe de alguma espécie de trégua. Talvez atrás do Iêmen. Um armistício aqui ajudaria não apenas contra a Covid-19, mas também a achar um caminho para retomar a economia de modo coordenado e combinado entre os entes federados. Sem isso, pagaremos todos um preço ainda maior.
O Brasil é mesmo uma federação, fato bem estabelecido no papel pela Constituição de 1988. O recente federalismo foi a diástole depois da sístole vivida nos anos do regime militar (1964-1985). E a redemocratização trouxe outro componente: a possibilidade de o Congresso ter voz na elaboração do orçamento, algo que vem sendo progressivamente hipertrofiado, tanto no volume dos recursos alocados às emendas quanto na crescente obrigatoriedade delas.
A crise da Nova República, cujos primeiros três atos foram junho de 2013, o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Jair Bolsonaro, é uma crise em progresso. A Covid-19 apenas catalisou a etapa atual da reação química. A chamada nova política, que em última instância supõe concentrar no presidente da República poderes quase absolutos para derrotar a velha, precisa agora, para sobreviver, neutralizar o federalismo e o poder do Parlamento.
Fosse Bolsonaro mais convencional, estaria aproveitando melhor a oportunidade de avançar sobre os demais poderes da República em nome da união nacional e da necessidade de somar esforços para enfrentar as crises da saúde e da economia. Seria uma fagocitose pacífica. Mas o presidente criado e cultivado no conflito prefere fazer as coisas ao modo dele. Tornando permanente e elevando a um novo patamar a pressão pela retomada do poder moderador.
Claro que isso iria produzir uma reação, bem de acordo com aquela Lei de Newton. Os governadores e o Congresso reagem a Bolsonaro emparedando-o. E a única certeza sobre essa queda de braço é que as coisas não ficarão como estão agora. Ou bem o presidente consegue neutralizar as forças centrífugas, ou, como temem seus eleitores mais fiéis, terá definitivamente amputada parte vital do poder a ele atribuído pelas urnas.
E como será o desfecho? Mas a pergunta que interessa é um pressuposto desta. Desfecho do quê? O que caracteriza nosso tempo? Se abrirmos os olhos notaremos já estar em pleno processo constituinte, resultado da caducidade daquele texto de 1988. A vida real já o ultrapassou. A dúvida agora é se a corda vai arrebentar para um lado ou para o outro. Por enquanto, quem avança são as tropas centrífugas. Mas convém não subestimar as centrípetas.
No Brasil já tivemos processos, e desfechos, constituintes de várias modalidades. Eles podem grosso modo ser agrupados em dois grandes tipos: os mais e os menos democráticos. Num extremo, 1988. No outro, 1937. E o que vai definir o grau de democracia embutido na próxima ruptura? As características do poder político encarregado pela sociedade de convocar e garantir os trabalhos da Constituinte que vem aí.
====================
Publicado originalmente na revista Veja 2.683, de 22 de abril de 2020
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Hamilton Garcia: A covid-19, os interesses e a política
Faz um mês estamos imersos em intensa discussão sobre a COVID-19, sob a ótica dos infectologistas e epidemiologistas, o que foi importantíssimo para aprendermos como lidar com a moléstia e sua propagação – não obstante as inevitáveis tolices, como a da ineficácia das máscaras para a proteção individual e coletiva. Aprendida a lição, cuja divulgação não pode cessar, é chegada a hora de abrirmos o leque da discussão sobre a pandemia, sobretudo em relação a seus efeitos de médio e longo-prazos.
Tornada pública em dezembro de 2019 pelas autoridades chinesas – depois de três semanas de abafamento por meio de prisões e censura[i] –, a epidemia está provocando, além de muitas mortes, um colapso nas economias, em escala mundial, cujos desdobramentos políticos ainda são incertos. O consenso é que sérias consequências sociais advirão do esforço de contenção da doença, embora se esteja longe de qualquer convergência programática de como lidar com o problema.
A crença ingênua de que a emergência faria cessar a disputa entre indivíduos e povos pela supremacia não resiste à simples observação da vida cotidiana. Ao contrário, o medo e as incertezas se constituem em ingredientes ainda mais picantes em meio aos dilemas e desafios políticos e econômicos que o mundo e o Brasil já vinham enfrentando, onde as fraturas entre sociedade e Estado apresentam cenários potencialmente explosivos de solução.
No caso brasileiro, o Governo Bolsonaro saiu em desvantagem ao menosprezar os sinais vindos do exterior e tentar minimizar os riscos e custos locais da epidemia – mesmo sendo observador privilegiado do erro dos governos europeus, enredados em querelas ideológicas sobre a globalização –, deixando seu Ministério sem rumo e o terreno aberto aos opositores acantonados nos Governos estaduais e no Congresso.
Já em fevereiro, a evolução da COVID-19 no Irã e na Itália chamavam atenção pelo crescimento rápido dos casos e mortes, e, embora o intercâmbio turístico entre Brasil e Itália fosse intenso, o Governo, por meio do Ministério da Saúde, se limitou a alterar a definição de casos suspeitos, incluindo pacientes provenientes destes países – no mesmo dia, o primeiro caso, importado da Itália, foi identificado em São Paulo[ii] –, deixando abertos portos e aeroportos sem qualquer alerta ou triagem sanitária, possibilitando a penetração livre do vírus no país.
A medida capital para frear o início da doença, em todos os países depois da China – e tempo, nesses casos, é vida, como se viu no bem sucedido caso alemão[iii] –, seria o confinamento temporário dos viajantes e/ou o fechamentos das fronteiras, o que, àquela altura, parecia inconcebível pelo perfil do público afetado (turistas e negociantes) e pelas políticas abusivas das empresas aéreas e hoteleiras, resistentes ao cancelamento/adiamento das viagens. A resistência também vinha dos devotos da globalização, que tachavam a medida de xenófoba e inócua, como fez o comentarista Demétrio Magnoli, na GloboNews, às vésperas do fechamento das fronteiras europeias, críticando os líderes da extrema-direita europeia nos seguintes termos: “o vírus não tem nação”.
As névoas ideológicas não cessariam, desde então, de prejudicar a discussão sobre o combate à pandemia e Bolsonaro não deixaria de se contrapor à torrente dominante (politicamente correta) com sua própria crença (politicamente incorreta), embora ambas, como dizia Marx&Engels[iv] há 174 anos, "de modo algum combatem o mundo real lutando contra a 'fraseologia' do mundo".
Os erros estratégicos do Governo e o desprezo do Presidente pela “gripezinha”, todavia, são apenas parte da explicação do problema. Em boa medida, ele e outros líderes mundiais se viram diante de poderosos interesses econômicos e de classe que os constrangeram no enfrentamento do problema ainda em fevereiro, quando os boletins epidemiológicos[v] já registravam sinais do poder de disseminação do vírus pelo mundo. China excetuada, dos 37 casos confirmados, no dia 04/02, em 11 países, sem óbitos, pulava-se para 216 casos confirmados, no dia 12/02, em 24 países, com um óbito, saltando-se para 1.200 casos confirmados, no dia 21/02, em 26 países, com oito óbitos.
Os interesses em questão giravam em torno das cadeias econômicas globalizadas, em particular o turismo que representa 10,4% do PIB mundial (US$8,8 trilhões) e emprega 319 milhões de pessoas, tendo os EUA a UE como principais destinos. No Brasil, embora menores, os números são igualmente significativos: 8,1% do PIB (US$152,5 bilhões) e 6,9 milhões de empregados[vi]. Tais interesses, contrários às medidas restritivas ao fluxo de viajantes, tiveram no Prefeito de Milão (Giuseppe Sala), do Partido Democrático, seu momento emblemático com sua malfadada campanha “Milão não para”, que chafurdou o Norte da Itália no caos hospitalar, para seus padrões.
O problema econômico seria uma explicação suficiente para o titubeio da maioria dos governos pelo mundo, mas deve-se acrescentar outra, não menos importante, de cunho ideológico e mesmo afetivo, que fez governos progressistas europeus, em guerra com a extrema-direita, verem o vírus como um estorvo às suas causas liberais, ao mesmo tempo que as classes altas faziam vista grossa às ameaças ao seu estilo de vida, baseado no consumo de luxo, da qual faz parte o turismo internacional. Neste quesito, a China se saiu bem melhor, não titubeando em fechar suas fronteiras assim que deixou de ser exportadora e se tornou importadora de casos.
Embaraçados por esses e outros constrangimentos, e com a proliferação da doença em meados de março, restou aos governantes correr atrás do prejuízo, inclusive no Brasil, impondo a quarentena horizontal como medida de emergência para por freio à avalanche prenunciada, sem planejamento ou medidas preparatórias para o fechamento de escolas, universidades, comércios, etc., tudo feito de supetão numa sexta-feira treze.
O problema pôde ser minorado, até aqui, por nossa condição de economia periférica, relativamente fechada, onde a população se distribui em vasto território por meio de precária rede de transporte, e cujas diferenças de classe produzem distanciamento social permanente sem a necessidade de decretos governamentais, para não falarmos na limitação da renda e das condições climáticas – a epidemia, aqui, teve início no verão –, fatores inicialmente inibidores do ritmo da proliferação viral, embora também potencializadores do tempo de sua duração.
O saldo final dos fatores, entre outros aqui não abordados (demográficos, comportamentais, políticos, etc.), aponta para um impacto da doença, até aqui, inferior aos padrões internacionais, em termos de mortes e hospitalizados.
Todavia, os mesmos fatores também indicam a probabilidade de um hiato entre as curvas, fazendo com que não só tenhamos curvas epidemiológicas mais socialmente segmentadas (classes altas, médias e baixas), como intervalos maiores entre elas, alongando a tensão temporal da crise e abrindo espaço para o esgotamento financeiro e psicológico dos setores mais vulneráveis, que entraram na quarentena em março quando só os mais ricos estavam sendo afetados, o que já impactou o isolamento/distanciamento social no momento em que ele é mais importante para os pobres.
Caso tal hipótese esteja correta, a quarentena precoce das classes populares, nas periferias urbanas e no interior, deverá entrar no rol dos erros estratégicos dos epidemiologistas, tanto pela ausência de modelos que levem em conta nossas especificidades, como pela subestimação de medidas cruciais como as barreiras sanitárias intermunicipais – que vêm se constituindo em freio importante à interiorização do vírus, onde foi implementada – e o próprio impacto da informação sobre os menos escolarizados.
Infelizmente, a vida é assim: aprendemos aos trancos e barrancos, muitas vezes a um custo acima do razoável se apenas a razão contasse – razão que, infelizmente, também foi infectada pelo vírus do sectarismo partidário. Mas, se pelo menos, ao final, tivermos aprendido a enfrentar a atual crise levando em conta nossos problemas concretos – em meio às inevitáveis narrativas ideológicas e inexoráveis rinhas político-corporativas –, ouvindo nossas inteligências autênticas, em diálogo com o mundo, então talvez tenhamos forjado a chave para o enfrentamento de toda nossa imensa gama de problemas que, no passado, nos esmeramos por esconder debaixo do tapete.
Notas
[i] Vide Crusoé, in. <https://crusoe.com.br/edicoes/101/a-verdade-abafada/>.
[ii] Portal PEBMED, In. <https://pebmed.com.br/coronavirus-tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-a-nova-pandemia/>.
[iii] “A Alemanha reconheceu seu surto muito cedo. Duas ou três semanas antes do que alguns países vizinhos”, disse o virologista Christian Drosten; vide El Pais de 21/0320, Baixa letalidade do coronavírus na Alemanha: três hipóteses sobre o fenômeno; in. <https://brasil.elpais.com/brasil/2020/03/20/ciencia/1584729408_422864.html>, em 13/04/20.
[iv] A Ideologia Alemã – crítica da filosofia alemã mais recente nos seus representantes L.Feuerbach, B.Bauer e M.Stirner e do Socialismo Alemão nos seus diferentes profetas; Ed. Centauro/SP-2006, p.14.
[v] Do Centro de Operações de Emergência em Saúde Pública para o Novo Coronavírus, vide Plataforma Integrada de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, Boletins 1-3, in. <https://www.saude.gov.br/boletins-epidemiologicos>, em 13/04/20.
[vi] Vide Folha de Londrina, in. <https://www.folhadelondrina.com.br/economia/turismo-movimenta-roda-da-economia-no-brasil-e-no-mundo-1028761.html>
Rogério L. Furquim Werneck: O que mais falta é lucidez
É preciso assegurar que a colossal expansão de dispêndio público que terá lugar em 2020 seja reversível
É hora de reler os parágrafos iniciais do famoso ensaio “How to Pay for the War”, sobre o financiamento do esforço de guerra britânico, escrito por John Maynard Keynes, em fevereiro de 1940, para aprimorar propostas preliminares que já tinha feito em dois artigos no “Times”, em novembro de 1939, logo no início da guerra.
“Não é fácil, para uma democracia, se preparar para a guerra. Não é da nossa índole dar ouvidos a analistas e cassandras. Nosso forte é saber improvisar. Mas é hora de dar mais atenção ao que andam dizendo. Ninguém sabe quanto tempo isso vai durar. Na área militar, há convicção de que o mais seguro, por ora, é nos prepararmos para um longo enfrentamento. É inadmissível que, na área econômica do governo, continuem a se pautar por perspectiva distinta. O que nos falta, no front econômico, é lucidez e coragem. Não recursos materiais.”
“Coragem acabará surgindo se, da fadiga e do tumulto da guerra, as lideranças políticas conseguirem extrair a lucidez requerida para perceber o que está ocorrendo e conseguir explicar ao público o que se faz necessário. E aí propor um plano socialmente justo, que saiba fazer desse momento de tamanho sacrifício, não uma desculpa para adiar reformas que terão de ser feitas, mas uma oportunidade para ir além do que até agora conseguimos, na redução das desigualdades.”
“Mais lucidez, portanto, é o que mais precisamos. E isso não é fácil. Porque, como os muitos aspectos do problema econômico a enfrentar estão inter-relacionados, nada pode ser resolvido isoladamente. Cada uso dos recursos disponíveis se faz à custa de um uso alternativo. E, uma vez decidido quanto poderá ficar disponível para consumo civil, ainda restará a mais intrincada de todas as questões, que é determinar a forma mais sábia de distribuir o consumo.”
O que é notável, passados 80 anos, em meio aos enormes desafios econômicos e sociais impostos pela pandemia, é quão atual continua sendo a preocupação central externada por Keynes nesses três parágrafos. O que ele mais temia, em 1940, é que faltasse a seu país a lucidez necessária para equacionar a penosa mobilização de recursos que uma guerra prolongada passara a exigir.
O que, no Brasil de hoje, mais se teme, no front econômico, é que, na tumultuada mobilização de recursos públicos que o combate à pandemia e a atenuação de seus desdobramentos socioeconômicos vêm exigindo, o país se perca nos excessos do imediatismo. E bote a perder suas possibilidades de enfrentar com sucesso os desafios com que terá de voltar a lidar, quando a Covid-19 tiver ficado para trás.
Não é o momento de medir esforços no combate à epidemia e a seus complexos efeitos colaterais. Mas é preciso assegurar que a colossal expansão de dispêndio público que terá lugar em 2020 seja reversível. E que tal expansão não seja perdulariamente amplificada, na esteira de pressões indefensáveis dos aproveitadores de sempre, que agora tentam fazer bom uso da consternação do país com a pandemia, para orquestrar nova e devastadora pilhagem do Tesouro.
É preciso, sobretudo, que as lideranças mais lúcidas do Congresso saibam separar o joio do trigo e conter a voracidade de governadores e prefeitos, que vêm tentando se aproveitar do tumulto para repassar aos contribuintes federais parte substancial da conta acumulada do descontrole fiscal dos governos subnacionais.
É preciso ter em mente que, passada a epidemia, o país estará no fundo de uma recessão de profundidade ainda não sabida, com um exército de desempregados muito maior que os 12 milhões de desocupados do início deste ano. E que, quando tivermos de voltar a encarar a difícil agenda da retomada do crescimento, o desafio da consolidação fiscal terá assumido proporções que, há três meses, pareceriam inimagináveis.
Na penosa construção de uma sociedade mais próspera e mais equânime, precisamos estar preparados para um longo embate, em muitas frentes, que mal terá começado quando a pandemia for superada. Não é hora de complacência com assaltos ao Tesouro.
*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
William Waack: O vírus vai decidir
Ninguém lidera em qualquer direção no principal cisma da política
O grande racha no governo e fora dele ocorre entre os que acreditam que a crise do coronavírus já está passando e os que acreditam que mal está começando. Não é simplesmente uma questão de opinião de quem confia possuir os melhores dados ou a melhor avaliação de riscos.
O conflito entre as duas linhas é de ampla natureza política e já tem severas implicações no relacionamento entre entes da Federação (presidente versus governadores, por exemplo), no sistema de governo (Executivo versus Legislativo) e no arcabouço jurídico mais abrangente (quais os poderes constitucionais do chefe de Estado, por exemplo). Além de ter profundo impacto nas medidas emergenciais para enfrentar a recessão trazida pela crise do coronavírus.
O presidente da República tem fé na versão de que o impacto econômico poderia ter sido bem menor não fosse o interesse de adversários políticos (governadores, a esquerda, “elites políticas” nebulosas, o “sistema”) em criar caos social para tirá-lo do poder. Está convencido de que a cloroquina não deixará o custo em vidas humanas ser tão alto como, por exemplo, nos Estados Unidos do ídolo Trump, que imita até nos erros.
Portanto, a principal linha de ação política do presidente no momento consiste em evitar que governadores e prefeitos transformem as medidas de ajuda emergenciais numa grande operação que teria como objetivo – claro, qual outro? – prejudicá-lo diretamente. “Reabrir” a economia virou sinônimo, para Bolsonaro, de sobrevivência política muito além de mobilizar sua base de seguidores.
Nisto entrou em sintonia fina com a equipe de Paulo Guedes, para a qual a Câmara dos Deputados criou um “seguro” contra a inevitável perda de arrecadação por parte de Estados e municípios que, na verdade, incentivaria a irresponsabilidade de prefeitos e governadores e, perversamente, os induziria a prorrogar medidas de isolamento que prejudicam a economia. Fala-se no gabinete de Guedes em “farra eleitoral” por parlamentares, governadores e prefeitos aproveitando uma crise de saúde.
Para a equipe econômica, “isolamento social” virou sinônimo de abuso fiscal e probabilidade alta de depressão após a recessão, apesar de destacados integrantes dela reconhecerem que a experiência internacional recente recomenda medidas restritivas (que prejudicam a economia) como única opção garantida para diminuir a proporção da tragédia de saúde pública.
Uma tragédia anunciada, antecipada e que a ala do governo menos comprometida com postulados ideológicos assume que é um risco iminente.
O resultado desse racha é uma perigosa paralisia política. O embate em torno das medidas emergenciais mobiliza setores do Executivo em busca de provocar uma divisão no Congresso (entre Senado e Câmara), enquanto setores do Legislativo buscam vantagens no que identificam corretamente como rachas dentro do Executivo. O presidente enfrenta os governadores e prefeitos em vários campos de atuação, levando o fracionado STF a arbitrar disputas políticas que arranham a Constituição, enquanto o poderoso corporativismo do funcionalismo público se defende nos três setores para não perder numa crise que empobrecerá o País inteiro.
Os graves contornos dessa crise indicam que ela é bem maior do que a capacidade dos principais atores políticos de manter qualquer controle dos acontecimentos de fundo, ou de liderar efetivamente em qualquer direção dos dois lados do “racha” apontado acima. Ficou para o vírus decidir.
El País: Mandetta eleva críticas a Bolsonaro e adverte sobre troca na Saúde
Novela da demissão se alonga porque presidente não escolheu substituto. Após coletiva desafiante, ministro fala à ‘Veja’ e diz que saída é irreversível
A entrevista à revista foi o último lance de mais um dia turbulento. O país se prepara para entrar numa fase mais aguda da pandemia, com hospitais de referência em São Paulo com mais de 80% das UTIs ocupadas, mas a energia em Brasília e na própria pasta segue drenada pelo impasse. No momento em que Mandetta fazia ao vivo nas TVs e para os principais meios do país a atualização diária dos registros de óbitos de coronavírus no Brasil —os falecimentos registrados já são 1.736—, o presidente Jair Bolsonaro mandava beijos e fazia sinal de corações para jornalistas que o questionavam no Palácio do Alvorada se ele demitiria seu escolhido para a Saúde.
Desde o início da crise, Bolsonaro e Mandetta divergem. O presidente defende um afrouxamento nas regras de distanciamento social e o uso amplificado da cloroquina como tratamento para todos infectados, na contramão dos principais países do mundo afetados pela pandemia. Já o ministro diz que as regras rígidas de isolamento social impostas por prefeitos e governadores devem, em sua maioria, ser mantidas para evitar um colapso no sistema de saúde. É obrigado a repetir diariamente que não há comprovação científica de que a cloroquina seja eficaz no tratamento de pacientes de Covid-19 em geral. “O vírus se impõe. A população se impõe. O vírus não negocia com ninguém. Não negociou com o [Donald] Trump, não vai negociar com nenhum Governo”, disse, à Veja nesta quarta, quando questionado sobre mudanças de rumo no ministério com sua provável saída.
Mandetta só não caiu ainda porque não há consenso sobre o nome de um substituto. Os candidatos são: o deputado Osmar Terra, um declarado opositor da atual gestão do ministério, e os médicos Roberto Kalil (cardiologista do Hospital Sírio-Libanês, conhecido por acompanhar pacientes ilustres, como ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva), Claudio Lottenberg (presidente do conselho de administração do Hospital Albert Einstein que foi secretário municipal de Saúde de São Paulo em 2005) e Nise Yamaguchi (imunologista e oncologista, entusiasta do uso da cloroquina contra a doença). Quem quer que aceite o desafio terá limitações para atender os desígnios do chefe contra as medidas de isolamento e em prol da reabertura da economia, já que nesta quarta o pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu que Estados e municípios têm, sim, autonomia para decidir que serviços podem funcionar durante a emergência.
Em uma das evidências da situação surreal na pasta, Mandetta chegou a dizer durante a coletiva coletiva que recebeu telefonemas dos sondados para substitui-lo. À Veja, repetiu: “Fico até encontrarem uma pessoa para assumir meu lugar”, disse o ministro, que goza de apoio popular —além do endosso majoritário medido pelo Datafolha, de acordo com pesquisa do Atlas Político, desta quarta-feira, nada menos que 76% da população se opõem à sua demissão. O ministro ainda conta com o suporte da frente parlamentar da saúde e de entidades médicas, mas perdeu o prestígio junto aos ministros militares depois que disse para a TV Globo, em entrevista ao Fantástico no domingo, que, durante a crise do coronavírus a população “não sabe se escuta o ministro ou o presidente”.
O descontentamento dos militares ficou estampado em uma manifestação do vice-presidente, o general Hamilton Mourão, ao jornal O Estado de S. Paulo, que ele mesmo repisou na sua conta no Twitter. “A respeito da entrevista do Ministro Mandetta, eu vou utilizar uma linguagem do polo: o ministro cruzou a linha da bola, ele não precisava ter dito determinadas coisas”.
Políticos que acompanham os bastidores desse cabo de guerra dizem que Mandetta não pedirá demissão. “Ele está na trincheira. Vai trabalhar até o último minuto. A decisão da saída ou não compete só ao presidente”, disse um deputado do Democratas. O próprio ministro repetiu nesta quarta, de novo, que só sairia em três ocasiões: quando o presidente Jair Bolsonaro não quiser o seu trabalho, se é infectado e obrigado a se afastar e quando sentir que o trabalho que vem fazendo já não é mais necessário. Aproveitando os holofotes, o ministro ressaltou que, enquanto for ministro, fará uma defesa intransigente “da vida, da ciência e do SUS (Sistema Único de Saúde)”.
Turbulência na ponta
Secretários de Saúde ouvidos pelo EL PAÍS relataram que nos últimos dias já havia um “cenário ruim” por conta da clara divergência entre o Ministério da Saúde e o Planalto na condução do combate ao coronavírus, especialmente após a entrevista de Mandetta ao Fantástico. E que esse clima se agravou nesta quarta-feira, com a divulgação do pedido de demissão do secretário Wanderson de Oliveira, visto por grande parte dos gestores como um profissional capacitado na condução da estratégica Secretaria de Vigilância em Saúde. Tanto secretários estaduais quanto municipais de Saúde participam frequentemente de reuniões com os gestores do ministério. No início da crise, eles haviam pleiteado essa participação mais ativa e foram atendidos por Mandetta.
Pelo menos três secretários de Saúde que conversaram com o EL PAÍS, e que preferiram não ter seus nomes divulgados, afirmaram que todos são cargos de confiança e que o presidente tem liberdade para mudar seus gestores. Ainda assim, a avaliação é que qualquer mudança no comando da crise neste momento seria ruim para o Brasil. Um secretário municipal de saúde pediu equilíbrio e disse temer que alterar o comando em áreas tão sensíveis agora podem impactar no trabalho construído e planejado até o momento. “As ações vêm sendo conduzidas com muita técnica. Não vejo mudança como algo interessante. Tem que ter equilíbrio e bom senso para uma troca”, afirmou.
Empoderados pelas semanas de exposição e reconhecimento públicos, Wanderson de Oliveira e o secretário-executivo do ministério, João Gabbardo, fizeram coro Mandetta na entrevista coletiva desta quarta —eles participam quase diariamente das falas à imprensa desde o começo da crise. Oliveira, que havia se queixado em carta do temor de ser demitido num tuíte, reclamou do “cansaço” pelos embates com o Planalto. Gabbardo recordou sua trajetória: “Quando sair, saio com ele. Ano que vem, completo 40 anos de Ministério da Saúde. Eu não vou jogar no lixo esse patrimônio. Vou ficar o tempo que for necessário para fazer a transição. A sociedade espera continuidade do nosso trabalho”. A eles, Mandetta fez uma promessa: “Entramos no ministério juntos, estamos no ministério juntos e sairemos do ministério juntos”. Ficou evidente que nenhum dos três quer sair de cena sem que suas mensagens fiquem bastante claras ao público. O Brasil espera a sequência da novela.
Marco Aurélio Nogueira: O vírus, a era global e a oportunidade que se abre
Se conseguirmos suportar o impacto da doença e não formos muito atrapalhados por governantes inescrupulosos, o vírus será controlado. A pandemia, porém, deixará marcas profundas
Pandemias já houve muitas na história. Todas produziram abalos e levaram a grandes transformações. Mas nenhuma foi como está sendo a do novo coronavírus.
A gripe espanhola (1917-1918), “a mãe de todas as pandemias”, foi uma variante mutante do vírus Influenza. Os cálculos sugerem que de 30 a 40% da população mundial foram infectados, com cerca de 50 milhões de mortes. Só no Brasil morreram 35 mil pessoas. Os números são imprecisos, mas indicam bem a letalidade da doença.
Antes dela houve a epidemia da cólera (1817-1824), que matou milhares de pessoas em praticamente todos os continentes. Causada por uma bactéria intestinal, a doença continua produzindo estragos pelo mundo, especialmente onde faltam condições básicas de saneamento básico e higiene.
A “peste negra”, a peste bubônica, causada por uma bactéria presente em ratos pretos assolou o norte da Europa e atingiu a China, o Oriente Médio e a Rússia, entre 1347 e 1352. Calcula-se que provocou mais de 25 milhões de mortes, ou seja, cerca de 1/3 da população europeia à época.
Depois da gripe espanhola, o mundo foi periodicamente sacudido por doenças pandêmicas. Quanto mais o mundo se integrou e manteve acesas as turbinas do produtivismo, mais os problemas se tornaram comuns a todos. Em 1957 houve a Gripe Asiática (2 milhões de mortos), dez anos depois a Gripe de Hong Kong (H3N2), que matou 1 milhão de pessoas, em 2009 foi a Gripe Suina (H1N1), que chegou a 187 países e provocou cerca de 300 mil mortes. De 1980 em diante, mais de 20 milhões de pessoas morreram devido a complicações da AIDS, causada pelo vírus do HIV, transmitido sexualmente. Uma epidemia trágica, ainda sem cura ou vacina.
O que há de diferente na pandemia do novo coronavírus?
Primeiro de tudo, ela é a primeira pandemia de uma época categoricamente global. Coincide com a expansão dos mercados, a porosidade das fronteiras nacionais, o desenvolvimentismo produtivista e antiecológico, a alta mobilidade e a circulação intensa das pessoas. Tudo isso facilita enormemente a que o vírus se espalhe. A própria estrutura complexa da vida atual, com seus componentes de fragmentação e individualização, contribui para que tudo reverbere com intensidade e meio fora de controle. Há risco, insegurança, incertezas, que se integram à experiência da vida cotidiana e fazem, entre outras coisas, com que todas as decisões se tornem dilemáticas. Ao mesmo tempo, vamo-nos dando conta do que há de intolerável e inadmissível no modo como vivemos: a desigualdade, o racismo, a miséria, a falta de condições dignas de existência, o desperdício, à agressão ao meio ambiente.
A época também é de crise da política e da democracia representativa. Isso abre buracos complicados entre os cidadãos, os legisladores e os governantes, dificultando a que as decisões tomadas no vértice estatal repercutam positivamente na vida comunitária. Os cidadãos desconfiam de seus governos e tendem a problematizar tudo o que parte deles. Recusam-se a obedecer, em nome de suas verdades e da convicção de que os governantes nada mais são do que “politiqueiros”. Sem uma dose mínima de “obediência”, uma pandemia como a do COVID torna-se quase impossível de ser debelada.
Como lembrou Byung-Chul Han, filósofo coreano que vive em Berlim, uma das vantagens dos asiáticos é que eles aceitam com facilidade a autoridade do Estado e suas ordens. Estariam mais predispostos a aceitar um Estado autoritário, que procede por tecnologia da informação e controles digitais. É um recurso de sobrevivência, mas também pode ser a porta de entrada de formas ditatoriais e não democráticas de organização da comunidade política, com controles permanentes sobre tudo e todos.
Em segundo lugar, a pandemia atual convive com redes e trocas frenéticas de informação. Isso, por um lado, é excelente, pois facilita a comunicação e a cooperação entre médicos, pesquisadores e cientistas. Ter dados disponíveis e acessíveis é uma poderosa ferramenta de conhecimento e gestão. A malha digital e a inteligência artificial são preciosas seja para monitorar ameaças, seja para debelá-las.
Por outro lado, porém, essa nova estrutura de informação e comunicação promove a produção incessante e a disseminação de notícias falsas, boatos e mentiras, que geram confusão e dificultam a gestão do problema. É o que a OMS chamou de “massivo infodêmico”, algo como um vírus que espalha desinformação e ideologias regressivas, anticientíficas e irracionais. No caso concreto do COVID-19, ativistas desse tipo – humanos e robôs, sistemas programados para disparar mensagens – estão na dianteira do “negacionismo” obscurantista (recusando-se a reconhecer a pandemia, o aquecimento global e até a curvatura da Terra) e da pregação de saídas nacionalistas hostis ao entendimento entre os Estados.
O COVID-19 irrompeu num momento de exuberância científica, de conhecimento ampliado, de reconhecimento do valor da ciência e de suas aplicações na área médica e sanitária.
Se os humanos conseguirem suportar o impacto inicial da doença (o confinamento) e não forem prejudicados por governantes inescrupulosos, que manipulam politicamente o problema e duvidam de sua gravidade, é de esperar que o vírus seja controlado. A vida, porém, não será mais a mesma. A pandemia deixará marcas profundas na experiência humana individual e coletiva, afetando a economia, o modo como se trabalha, os relacionamentos, a política.
O sistema produtivo conhecerá crise profunda, agravando ainda mais o mundo do trabalho, muita coisa nova surgirá, os desafios serão grandiosos. Será difícil que o neoliberalismo se reponha e uma nova versão do Estado social baterá às portas. Em meio a dor e medo, poderá se abrir uma oportunidade para que se comece a por em xeque o desenvolvimentismo produtivista, com sua cegueira ecológica, climática, ambiental, sua voracidade predatória. Poderá ser um bom momento para que se recupere a ideia, tão mal aproveitada antes, de “sustentabilidade”.
O problema é que falta uma alavanca que faça a roda reformadora girar: política democrática, programas de ação, agentes organizados que unifiquem os cidadãos e pautem os governos. Há um “vazio” existencial e político que impede a materialização de propostas democráticas consistentes. Caso não se reverta essa situação, a pandemia causará um efeito negativo adicional: levará à acomodação dos interesses dominantes e à reprodução (modificada em maior ou menor grau) do desenvolvimentismo prevalecente, com sua voracidade destruidora.
Poderá até ser pior. Em vez de reformas para frente, a pandemia poderá impulsionar o ressurgimento do “nacionalismo”, das pulsões “patrióticas”, em detrimento dos esforços de articulação internacional, a imposição do unilateralismo no lugar do multilateralismo. O que levará de roldão a democracia e parte importante do que há de humanismo, fraternidade e liberdade na experiência moderna.
*É professor titular de Teoria Política da Unesp
O Globo: Número de infectados pelo coronavírus é quinze vezes maior, aponta estudo
Estimativa de cientistas da USP e UNB apontam que o Brasil tem 313 mil casos, em vez de 23 mil anunciados pelo Ministério da Saúde
Ana Lucia Azevedo e Roberto Maltchik, O Globo
RIO - O número de casos de infecção pelo novo coronavírus no Brasil supera 313 mil pessoas, segundo uma nova análise de modelagem numérica da Covid-19 — o último boletim do Ministério da Saúde fala em 23.430 casos confirmados. A estimativa foi apresentada ontem pelo portal Covid-19 Brasil, que reúne cientistas e estudantes da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Brasília (UnB), entre outros centros de pesquisa do país. Para a data de 11 de abril, a modelagem estimou haver 313.288 infectados, número mais de 15 vezes maior que o oficial naquela data, de 20.727.
O Brasil é um dos países que menos testam no mundo, embora seja o 14° mais afetado. Se o número de casos subnotificados projetado fosse considerado, seria o segundo do mundo, atrás somente dos EUA, que testam 8.866 pessoas por milhão, enquanto o Brasil faz 296 testes por milhão de habitantes.
Medidas mais rígidas
O grupo, que tem acertado as projeções sobre a doença desde o início da epidemia, também projeta as estimativas de ocupação dos leitos de emergência e de UTIs nos estados. A primeira projeção detalhada, para o Distrito Federal, traça três cenários. Em todos, a situação é dramática.
— O modelo que trabalhamos considera que para os três cenários todos os leitos estão disponíveis no começo da epidemia. Mas, como segundo o próprio Ministério da Saúde informa, estamos em média com uma taxa de ocupação de 75%, e essas previsões podem ser mais dramáticas — observa o especialista em modelagem computacional Domingos Alves, integrante do grupo e líder do Laboratório de Inteligência em Saúde (LIS) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP).
O caos na rede de saúde em São Paulo poderá acontecer ainda mais cedo do que nos demais estados. A análise detalhada não foi realizada ainda para São Paulo, mas, devido ao número de infectados ser muito maior do que o notificado e ao fato de a população ter reduzido o engajamento às medidas de distanciamento social. Alves diz que o cenário é muito negativo.
— Se não houver medidas de distanciamento mais restritivas e o isolamento for reduzido, a cidade de São Paulo poderá ver o colapso de sua rede hospitalar já na próxima segunda-feira. Em Manaus, a rede já colapsou, a taxa de hospitalização está muito acima da capacidade de atendimento — afirma Alves.
O Maranhão, a despeito do número pequeno de casos notificados, é o estado que tem a maior discrepância com as projeções de casos subnotificados, em torno de 5.177,91%, segundo o estudo. No Rio de Janeiro, essa diferença foi estimada em 1.427,5%. Em São Paulo, 1.496,31%. E no Amazonas, 3.745,62%.
Para estimar o número de casos subnotificados de infecção por coronavírus no Brasil, os pesquisadores fizeram uma modelagem reversa para superar a colossal falta de dados sobre a doença no país devido à falta de testagem em massa. Os cientistas usaram como base de cálculo o número de mortes notificadas. Embora estas também sejam subnotificadas, é o indicador mais consolidado no país, explicou o cientista Rodrigo Gaete. Eles aplicaram a taxa de letalidade da Coreia do Sul e ajustaram os números à pirâmide etária do Brasil. A Coreia do Sul foi escolhida porque o país é um dos poucos com dados consolidados sobre testagem em massa desde os primeiros casos.
A modelagem numérica empregou ainda um ajuste no cálculo da letalidade proposto por cientistas chineses na revista Lancet e considerado o mais acurado. O ajuste foi feito para levar em conta o período entre o registro do óbito e a confirmação de caso. Se considerou para cálculo da taxa de letalidade a data em que a pessoa teria adoecido e não a em que morreu.
Com isso, para o cálculo, a data foi fixada em dez dias antes do registro, uma vez que os testes no Brasil têm sido realizados já em processo de agravamento da doença e não nos sintomas iniciais. No fim, a taxa de mortalidade real para o Brasil seria de 1,08%, muito menor que a de 5,7% registrada oficialmente.
— O número de mortos ainda assim é enorme, e deve ser ainda maior, porque o número real de infectados é muito grande — salienta Gaete.
Considerando o número de 1.124 óbitos em 11 de abril e o valor ajustado estimado de população infectada, de dez dias antes, naquela data, dia 1° de abril, haveria 104.368 brasileiros com coronavírus, em vez dos 6.836 casos notificados. Isso dá um percentual de 93,45% de subnotificação.
‘Testes são essenciais’
Gaete acredita que Manaus vive o caos agora porque olhou para os números errados no início da epidemia.
— Quando se pensava que tinha cerca de mil pessoas com o coronavírus, na verdade, já existiam 40 mil. Por isso, testes são essenciais, e o Brasil precisa desesperadamente fazer isolamento social se quiser evitar o colapso da rede de saúde e o caos — destaca o pesquisador.
Alves diz que as medidas de distanciamento social tomadas por Rio de Janeiro e São Paulo ajudaram a evitar que o pico da doença acontecesse em abril e a ganhar algum tempo, mas não o suficiente para os estados se prepararem. Ele observa que, conforme afirmou o ministro Luiz Henrique Mandetta ao Fantástico, anteontem, o pico dos casos deve acontecer em maio e junho, e haverá uma explosão de mortes, se o número de infecções continuar a crescer devido à redução do isolamento social daqueles que podem ficar em casa:
— Teremos em muitas cidades um cenário como o de Guaiaquil, no Equador, com pessoas mortas em casa e corpos nas ruas, porque os hospitais estarão lotados.
José Pastore: O vírus não espera decisões complicadas
Qual pequeno empresário dormirá sossegado após fazer acordos que podem ser questionados pelos sindicatos?
Imaginem uma empresa que precisa faturar hoje para pagar as contas amanhã. Fechada, sem vendas e sem faturamento, ela só pagará suas contas se o empresário tiver uma boa poupança. Esse é o caso das grandes corporações, mas não é o que ocorre com 82% das empresas brasileiras — pequenas e médias —que respondem por uma enormidade de empregos. Pesquisas recentes do Sebrae indicam que essas empresas aguentam, no máximo, 12 dias.
O governo lançou inúmeras medidas para acudir as pequenas empresas brasileiras com crédito, diferimento de pagamentos, isenções de impostos e contribuições etc. No campo trabalhista, abriu para elas duas possibilidades de aliviar suas responsabilidades em relação à folha de pagamentos. A Medida Provisória 936 contempla a redução de jornada e a suspensão do contrato do trabalho.
Reconhecendo o clima de catástrofe criado pela pandemia do coronavírus, empregados e empregadores têm a liberdade para fazer acordos individuais simples e expeditos para salvar os empregos. A velocidade é crucial para enfrentar um vírus ágil e competente.
O ministro Ricardo Lewandowski, do STF, em liminar, desejava que a redução de jornada e a suspensão de contrato de trabalho tivessem o aval dos sindicatos, pouco se importando com a demora exigida pela CLT. Ontem, reformou sua própria liminar para dizer que os acordos individuais valem, mas que os sindicatos não são arquivistas e que podem provocar as empresas para fazer acordos coletivos diferentes dos individuais.
A insegurança jurídica permaneceu. Qual é o pequeno empresário que vai dormir sossegado depois de fazer dezenas de acordos individuais sabendo que os mesmos podem ser questionados pelos sindicatos? Ou seja, a livre negociação direta entre empregados e empregador constante da MP 936 não teria nada de definitivo.
Lewandowski, com aguçada esgrima, revogou sem revogar. Numa hora de desespero, ele complicou o processo, dando um tiro no peito dos trabalhadores cujos empregos poderiam ser salvos por meio de um acordo individual simples, direto e temporário.
Consta que já foram realizados quase 300 mil acordos individuais à luz da MP 936. Com isso, foram salvos centenas de milhares de empregos. Imaginem a insegurança de quem firmou esses acordos se prevalecer a nova versão de Lewandowski!
As variações interpretativas do nobre ministro, com todo o respeito, farão as pequenas e médias empresas darem um passo atrás. Inseguras e não tendo fôlego para aguentar esse clima de insegurança, muitas vão partir para demissões em grande escala, não raro, sem pagar as verbas rescisórias por absoluta falta de recursos decorrente da paralisia econômica ora em andamento e sem data para terminar.
Se vingar, a nova “tese” do ministro Lewandowski provocará um flagelo. O próprio governo estima que serão acrescentados 12 milhões de desempregados em cima dos 12 milhões atuais. São quase 25% da força de trabalho! Um drama que só ocorreu nos Estados Unidos na crise de 1929.
Lembro que o empregado despedido hoje não encontrará trabalho (nem informal) por muitos meses. E, para obter as verbas rescisórias, terá de esperar um ano ou mais na Justiça do Trabalho.
É um drama de proporções gigantescas. Ao desconsiderar o estado de guerra criado pela pandemia e ignorar a situação quase falimentar da maioria das pequenas e médias empresas, o ministro Lewandowski deixou-as sem escolha. Na ausência de receita, sem capital de giro e sem perspectivas de breve recuperação e no meio de tanta insegurança, elas serão forçadas a demitir.
Estou certo de que os demais ministros do STF entenderão a destruição econômica e social que um sistema confuso e complexo como o proposto por Lewandowski provocará em todo o Brasil. O governo fez o que pôde. Criou ferramentas simples, ágeis, expeditas e com prazo certo para aliviar o desemprego. Não há por que não usá-las.
*José Pastore é professor da Universidade de São Paulo
Rubens Barbosa: O Brasil depois da covid-19
Sociedade civil deveria começar a discutir estratégias internas e externas de médio prazo
Como é natural, a quase totalidade das análises e dos comentários na imprensa falada, escrita, nas TVs e na mídia social se concentra hoje nos grandes desafios internos para superar a crise provocada pelo coronavírus. Depois de a pandemia passar, o Brasil e o mundo serão outros.
Do ângulo interno, os desafios econômico-financeiros, sociais, de logística, de modernização do Estado, do fim dos privilégios, da violência e da corrupção vão ter de ser enfrentados como nunca antes. O Brasil deverá ser reconstruído. O orçamento de guerra determinou despesas indispensáveis para atender aos trabalhadores formais e informais e as empresas afetadas pela quase paralisia da economia doméstica e global. Como tratar o déficit publico e fiscal? Como sair da recessão? Como gerar crescimento e reduzir as desigualdades e o desemprego? Como ficará o equilíbrio federativo? A sociedade brasileira vai ter de enfrentar um período de decisões profundas sobre as prioridades nacionais, as contas públicas, o funcionamento do Estado, a reativação da economia, a reindustrialização, enfim, essas e outras vulnerabilidades que, diante da crise, ficaram evidentes.
As incertezas são crescentes. Segundo os ministros de comércio exterior do G-20, a economia global em 2020 poderá reduzir-se em 5% ou 6% e o comércio externo, entre 5% e 30%. Como evoluirão a economia e o comércio internacional? Como as duas maiores potências globais, EUA e China, serão afetadas? Como evoluirá a governança global - ONU, OMC, BM, FMI e OMS, entre outros organismos? Como evoluirão a globalização e a dependência dos países e das empresas da capacidade industrial da China nas cadeias produtivas globais? A interdependência vai prevalecer ou as tendências e políticas nacionalistas e isolacionistas dominarão? Como ficará a disputa entre China e EUA pela hegemonia global no século 21? Como reagirão os países emergentes, potências médias, entre as quais se inclui o Brasil? Como os países enfrentarão a desigualdade entre as nações e dentro de seus territórios, cada vez mais uma ameaça à estabilidade política e econômica? Qual será, no mundo, o lugar desse Brasil que emergirá? Como as grandes transformações econômicas, comerciais e políticas afetarão os interesses nacionais? Como o Brasil se posicionará no contexto hemisférico e regional? Como o Brasil deveria reagir se a confrontação EUA-China continuar a se ampliar? Como o Brasil poderá contribuir para o fortalecimento da governança global? Como ficarão as políticas em relação ao meio ambiente e à mudança de clima em face da nova importância nas negociações comerciais, como Mercosul-União Europeia?
Levando em conta o peso da economia nacional, em especial no setor do agronegócio, e a necessidade de melhorar a competitividade do setor industrial e de serviços, com a tendência de descentralização da produção industrial da China, é provável que surjam oportunidades de investimento. Para isso - para competir com países em melhor posição, como Vietnã e outros asiáticos - os problemas internos políticos, econômicos e sociais deveriam ser rapidamente enfrentados para fortalecer a capacidade produtiva nacional. O Brasil vai depender de uma sólida base nacional para competir e para isso deverão ser adotadas medidas efetivas para reindustrialização e aumento da competitividade.
Controlada e superada a crise pandêmica, será importante ter uma visão estratégica de médio e longo prazos das perspectivas relativas à economia e à projeção externa do País. Todos os países vão estar afetados por crises em cascata. Como o Brasil poderá aproveitar as oportunidades e reduzir os riscos de modo a ter uma voz fortalecida no cenário internacional?
Não será fácil chegar a um consenso, pela polarização ideológica, pela divisão da sociedade brasileira e pela ausência de lideranças expressivas que possam inspirar essas discussões. O mundo não vai esperar pelo Brasil. A paralisia dos principais atores políticos e a falta de visão estratégica e de futuro levarão à marginalização e, mais uma vez, o País poderá perder uma oportunidade histórica para se afirmar como potência média a ser ouvida na defesa de seus interesses.
Em vista disso, a sociedade civil - empresários, trabalhadores, academia, junto com o Congresso, o Judiciário e o Executivo - deveria começar a discutir uma estratégia de médio prazo nas áreas interna e externa.
Pensando no Brasil em primeiro lugar e deixando de lado ideologias, os Ministérios da Economia, Agricultura, Itamaraty, SAE, Meio Ambiente e Infraestrutura, em especial, além da Escola Superior de Guerra, e os (poucos) think tanks existentes deveriam somar esforços e iniciar uma discussão com propostas e ações visando ao emprego e ao crescimento para serem postas em vigência em caráter emergencial no pós-pandemia. Um conselho gestor da reconstrução poderia ser criado para coordenar as “medidas de guerra”, que deverão ser tomadas - é bom lembrar - no período que antecede as eleições presidenciais de 2022.
O Brasil é uma das dez maiores economias do mundo e devemos agir como tal, tendo como objetivo, pelo menos, manter o País nessa categoria.
Desde já, mãos à obra!
*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)