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William Waack: A sofisticação de Bolsonaro

Presidente está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados

Jair Bolsonaro bradou que o “povo está no poder” ao discursar numa manifestação abertamente golpista em frente do QG do Exército, e se empenha em provar o que disse. Está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados.

Para seus padrões, é a mais sofisticada jogada política desde que assumiu. Tentar arrebanhar uns 200 deputados da confusa e amorfa massa de parlamentares identificada como “Centrão”. Em busca do que até agora dizia não ser necessário para governar, ou seja, uma base razoavelmente ampla e coordenada na Câmara dos Deputados.

Os motivos para proceder de forma que prometeu jamais empregar – trocar cargos por apoio político – são dos mais diversos, inclusive a vontade pessoal de “punir” quem considera chantagista, conspirador e traidor, o atual presidente da Câmara, de quem Bolsonaro pretende tomar parte efetiva do controle do “Centrão”. Um dos mais relevantes motivos para a ação do presidente, porém, é o reconhecimento tácito de que o poder do chefe do Executivo diminuiu desde que ele assumiu.

Outro motivo é o efetivo cerco que esferas políticas e institucionais impuseram ao presidente via STF. Bolsonaro tem razão em apontar para o outro lado da Praça dos Três Poderes ao se dirigir por redes sociais a apoiadores e dizer que “eles” (ministros do STF) o impedem de fazer o que quer. Reconhece que, sem o Supremo e o Legislativo, nada vai.

A outra operação política sofisticada (para padrões bolsonaristas) encabeçada pelo Planalto lembra fortemente o que se fez nos tempos da tal “velha política”, que, teoricamente, teria deixado de existir. É sacar praticamente a fundo perdido dos cofres públicos, investir em grandes obras e ver no que dá.

A possibilidade surgiu com a tal ajuda de emergência a governadores e prefeitos que o próprio ministro da Economia chamou de “farra fiscal aproveitando-se de uma crise de saúde pública”. As modalidades desse socorro estão em negociação, mas já abriram uma avenida que permitiria ao Executivo utilizar um “orçamento de guerra” praticamente sem limites e sem restrições do tipo Lei de Responsabilidade Fiscal.

Claro, enquanto for tudo “temporário”, isto é, enquanto durar o estado de calamidade. Sabe-se que, no Brasil, “temporário” em questões fiscais é termo elástico – desonerações “temporárias” de folhas de pagamento, por exemplo, já duram uns 10 anos. E a julgar pelo que se ouve falar no Planalto, o “temporário” entraria pelo próximo ano (para provável desespero do secretário do Tesouro) e abriria a janela para execução de um plano de recuperação baseado em investimentos públicos com foco central em infraestrutura.

É um tipo de intervenção estatal que requer centralização e coordenação e a tarefa foi atribuída a um oficial de Estado-Maior, general Braga Netto, ministro da Casa Civil. Talvez uma pitada de oportunismo político (quem não tem?) tenha levado o ministro Paulo Guedes, um dedicado aluno de Milton Friedman, a cooperar estreitamente nessa empreitada e abraçar-se a John Maynard Keynes. Famoso pela frase, entre outras, de que “se mudam os fatos, eu mudo de opinião” (Guedes, tal como os clássicos Friedman e Keynes, gostaria que os políticos o ouvissem mais).

Os fatos que mudaram são de enorme magnitude. A crise do coronavírus tornou imprevisível o tamanho da tragédia de saúde pública e econômica no mundo e no Brasil. Ela escancarou a falta de liderança no topo do Executivo, a profunda disfuncionalidade do sistema de governo brasileiro e agravou a situação de um país já prisioneiro da armadilha da renda média, com produtividade estagnada – e sem ter conseguido levar adiante o essencial das reformas estruturantes.

Sim, não há manuais prontos para lidar com uma crise dessas. Que já é uma lição prática do esqueçam o que eu disse antes.


RPD || Gloria Alvarez: Compartilhar. Um ato de cidadania

O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que o mundo inteiro está vivendo com a pandemia de Covid-19, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem, avalia Gloria Alvarez em artigo

Da noite para o dia, milhões de brasileiros que diariamente trabalhavam para, naquele dia, ter o que comer em casa ficaram desamparados, sem alternativa para substituir o desemprego ou o subemprego. A chegada da pandemia provocada pelo Novo Coronavírus fora determinante e desesperante, especialmente para aqueles milhões que não pertencem ao Cadastro Único do Ministério da Cidadania, não têm Bolsa Família, muito menos FGTS, RG, título de eleitor e um simples CPF regularizado. Um desses brasileiros, respondendo a um repórter, definiu-se como “uma pessoa que não existe”. Foi quebrada a rotina diária de passar a montar a barraquinha de biscoitos, balas e chocolate, e ficar sob sol e chuva à espera do resultado de suas vendas. No final do dia, depois das contas com o “empresário” (o dono da barraquinha e dos produtos), mal ou bem, restava algum para gastar na vendinha comprando a refeição das crianças e da mulher. Agora, nem pensar. A barraca não podia mais ser montada. O negócio terceirizado dessa “pessoa que não existe” fora fulminado pelas ações preventivas para conter o vírus.

Na comunidade onde esse típico nordestino acariocado mora, instalou-se o medo. As entidades que distribuíam cestas básicas cerraram as portas. As faxinas que sua mulher fazia foram desmarcadas e a hora de pagar o aluguel do quartinho se aproximava, ao passo que os sacos de arroz e de feijão murchavam. E a recomendação geral era “não sair de casa”. Como? Ficar sem comida? Aumentar a dívida na vendinha? Como pagar depois? Esse cidadão brasileiro, invisível, não viu outra saída.

A primeira fagulha de luz no fim do túnel chegou com uma cesta básica entregue por quem menos esperava: o “empresário” que fornecia as balas e os biscoitos para ele vender. Claro que na cesta havia muita bala e biscoito. Mas também açúcar, feijão e arroz. Emocionado, agradeceu,

Logo depois, uma das clientes da mulher ligou pedindo sua conta bancária (como se ela tivesse...). Queria depositar a diária, apesar de a faxina não ter sido feita. Benza Deus!

A escola das crianças, fechada, sem aulas, mandou aviso: distribuiria para os pais o estoque de alimentos destinados à merenda dos alunos antes que o prazo de validade vencesse.
O líder comunitário comunicou que o movimento Ação da Cidadania (fundado pelo sociólogo Herbert de Souza) estava recolhendo nos restaurantes estoque de alimentos in natura, que em breve também venceriam, e entregando para as associações distribuírem nas comunidades do Rio de Janeiro.

Nosso personagem começou a sentir alguma mudança. Será? Pensou esperançoso.

Os especialistas não parecem ver, ainda, essa tão esperada mudança na cultura de doação do brasileiro. E como seria bem-vinda para ajudar esses cidadãos invisíveis a tomarem rumo e acertarem o passo no caminho de um reconhecimento social... Ora justificam que a crise econômica e a política deixaram o brasileiro desconfiado ao escolher uma causa para contribuir. Ora argumentam que é uma questão de educação, que deve vir de casa e da escola. “O brasileiro não considera a doação como um ato de cidadania”. Alegam também que não há estímulo governamental para aumentar as doações. Esses espasmos de solidariedade nos momentos de crises são previstos por esses técnicos que dirigem associações e organizações sem fins lucrativos (ONGs). A prática que têm no dia a dia, tentando reverter a vida de inúmeros cidadãos invisíveis, embasa tais opiniões.

Apontam, no entanto, que estimular a cultura de doação seria um dos grandes passos para fortalecer a sociedade civil. Algumas iniciativas criativas germinam e trabalham para promover essa mudança no conceito de solidariedade. O Arredondar (arredondar.org.br), por exemplo, desde 2011 adota as microdoações, geradas a partir do troco no varejo. De centavo em centavo, já arrecadaram quase R$ 5 milhões através de 23 milhões de doações. No portfólio da entidade estão catalogadas mais de 80 ONGs certificadas, que são beneficiadas.

O papel das ONGs e de associações comunitárias nos momentos de crise, como o que estamos vivendo com o coronavírus, é fundamental para chegar onde o Estado e as empresas não conseguem. Elas atuam fiscalizando o comportamento do Estado, dão voz às populações e complementam a ação das políticas públicas. Nesses momentos a credibilidade, a capacidade e a organização para receber e distribuir doações mobilizam a solidariedade. Um exemplo foi o sucesso que a Comunitas (www.comunitas.org) alcançou ao levantar R$ 4,2 milhões para doar 60 respiradores para hospitais públicos de São Paulo e ainda mais R$ 23,5 milhões e mais 345 respiradores. O link https://emergenciacovid19.gife.org.br registrava R$ 1.037.862.747,00, no dia 08/04. Era o total parcial do levantamento feito pela campanha Emergência Covid-19, através de institutos, fundações e empresas.

Ações solidárias espontâneas brotaram também de março para cá. Dois restaurantes do Recife se revezam no fornecimento gratuito de almoço para os profissionais de saúde. Na marmita, um bilhete intitulado “Um sincero obrigado”. Inúmeros professores promovem aulas gratuitas de ginástica, de inglês, artesanato, gastronomia, administração de finanças e palestras. Médicos se oferecem nos prédios onde moram e na vizinhança para “avaliar situações de gastroenterites, hipertensão e outras doenças, para renovar receitas de remédios de uso contínuo e orientar sobre sintomas de urgências”. Jovens colocam avisos nos elevadores e os distribuem pelas mídias sociais (www.vizinhodobem.com.br) oferecendo-se para atender a idosos que precisem de compras de mercado ou farmácia.

Na situação em que vivemos, com uma pandemia que está matando dezenas de milhares de habitantes do planeta e esfacelando todas as economias mundiais, só há uma esperança para quem, hoje, se sente como “pessoa que não existe”: uma radical mudança no comportamento do ser humano, adotando o ato de compartilhar tempo ou dinheiro como uma ação civil transformadora e construtiva. Como? Deixando de querer só para si e conseguindo enxergar quem está ao seu lado, implorando para deixar de ser invisível.


RPD || Ricardo Tavares: Democracia estressada

Política norte-americana segue intensa e no centro da epidemia do coronavírus Covid-19 que assola os Estados Unidos. Enquanto Trump demostra grande dificuldade em se adaptar ao novo cenário para concorrer à reeleição, os democratas definiram Biden como o candidato à Presidência

O novo corona vírus pode ter paralisado a sociedade e a economia norte-americanas, mas a política continua sua dinâmica intensa. Nos EUA, os conflitos políticos estão no centro da gestão da pandemia, que está influenciando decisivamente a preparação para as eleições presidenciais em novembro deste ano.

O Presidente Donald Trump faz coletivas de imprensa diárias sobre a pandemia com longas digressões que muitas vezes contradizem seus técnicos também presentes. Esta alta exposição à mídia, apesar do gerenciamento desastrado da crise, fez crescer sua popularidade.
No Partido Democrata, a pandemia resolveu a disputa entre o Vice-Presidente Joe Biden e o Senador Bernie Sanders; Sanders finalmente reconheceu que não tem chance alguma de ganhar as primárias contra Biden e encerrou sua campanha. Biden é o candidato Democrata à Presidência.

O Partido Republicano continuou sua trajetória de desencorajar eleitores a votarem, uma estratégia que assegura a predominância do partido na política americana, apesar de a maioria ter votado Democrata em eleições recentes. No estado de Wisconsin, os Republicanos forçaram o voto presencial, descartando o adiamento das primárias até junho.

Trump
Trump não esconde sua decepção com a pandemia. Esperava fazer campanha para a reeleição em cima de seu desempenho econômico. Em fevereiro, a taxa de desemprego nos EUA era de 3.5%, a mais baixa das últimas décadas. Hoje, há 17 milhões de desempregados e, nas próximas duas semanas, devem ser 20 milhões, uma taxa de desemprego de 15% da força de trabalho.

O presidente dos EUA está mostrando grande dificuldade de se adaptar ao novo cenário. Sua administração está povoada de pessoas leais, independente de sua competência. Mesmo com os pacotes de apoio a pessoas e empresas já aprovados pelo Congresso, a implementação administrativa das políticas tem sido lenta e ineficaz.

Se os eleitores decidirem se preocupar com o desempenho do Presidente na área de saúde, a situação de Trump pode ser ainda pior, dependendo do status da pandemia próximo à data das eleições, 3 de novembro. De momento, ainda falta tudo nos hospitais americanos. Médicos compram suas próprias máscaras em muitos Estados. O governo federal não coordena as iniciativas dos estaduais, é cada um por si. Alguns Estados estão-se coordenando entre si. Os EUA ainda são o único país capaz de liderar uma ampla coordenação internacional de resposta à crise da pandemia, mas a diplomacia americana parece estar falida.

Biden
As eleições de novembro serão Trump X Biden. Joe, como o candidato é popularmente conhecido, fez uma campanha bastante errática nas primárias do Partido Democrata. Perdeu as três primeiras primárias. O crescimento de Bernie Sanders assustou os centristas do Partido, que se uniram em torno de Biden para impedir uma vitória do candidato visto como socialista. O golpe de misericórdia em Sanders, no entanto, foi dado pelos eleitores negros nas primárias do sul dos EUA. Foram vitórias avassaladoras em Estados onde os membros do Partido são predominantemente negros que criaram momento para a candidatura de Biden, até o ponto em que sua vitória se tornou certa. O conceito de “classe trabalhadora” de Sanders não atraiu o eleitorado negro.

Biden é admirado por seu grande trabalho como Vice-Presidente de Barrack Obama, o primeiro presidente negro da história do país. Mais: os eleitores negros são o grupo mais fiel ao Partido Democrata. As condições sociais desta população melhoram em administrações democratas. Sem uma maciça presença de eleitores negros nas urnas – o voto nos EUA é facultativo – é quase impossível uma vitória Democrata para a presidência.

Quatro anos atrás, Bernie Sanders continuou em campanha contra Hillary Clinton nas primárias democratas de 2016, mesmo depois de não ter mais chances de vitória. Isto contribuiu para o desgaste da candidatura de Clinton, e foi aproveitado pela campanha de Trump. Muitos eleitores que votaram em Sanders nas primárias do Partido Democrata vieram a votar em Trump, principalmente em Estados do meio-oeste. A saída de Sanders das primárias, diante da crise da pandemia e do risco de um prolongamento até o verão americano deste processo, tenta evitar uma repetição deste fenômeno.

No entanto, é impossível prever o resultado das eleições de novembro. Biden cresceu na adversidade durante as primárias. Venceu apesar de ter menos dinheiro de campanha do que Sanders. Mas mostrou deficiências como debatedor e ator de campanhas. Biden enfrentará em novembro a campanha extremamente bem financiada de Donald Trump, que joga pesado e não hesita em usar táticas de baixo nível.

Estresse
Nenhuma democracia ocidental em um país desenvolvido possui um partido político dedicado a desencorajar estrategicamente eleitores de irem às urnas. O Partido Republicano de hoje é um partido de base rural num país totalmente urbanizado. Reúne quatro forças essenciais para seu sucesso: uma aliança de grupos “pro-business”, religiosos evangélicos, defensores do acesso fácil a armas (organizados nacionalmente pela NRA – National Rifle Association), e o importante apoio do grupo de media Fox News, do empresário australiano-americano Robert Murdoch.

Em 2016, Trump perdeu no voto popular agregado nacionalmente, mas ganhou no Colégio Eleitoral, através do qual o presidente é escolhido por delegados eleitos Estado por Estado. Este Colégio é uma influência do federalismo do sistema político americano e neutraliza a influência dos Estados e das cidades mais populosas. Como o voto é facultativo, a lógica eleitoral tem dois elementos – motivar seus eleitores a ir votar e, ao mesmo tempo, desencorajar os eleitores de seu opositor a se apresentar nos locais de votação. A eleição ocorre num dia comum de trabalho. Nas últimas eleições presidenciais, o índice de votação variou entre 49%, em 1996, ao máximo de 58.2%, em 2008, quando Obama venceu pela primeira vez. Em 2016, somente 55.7% dos eleitores inscritos compareceram às urnas.

Um episódio preocupante ocorreu na semana passada em Wisconsin. O governador do Partido Democrata, Tony Evers, determinou o adiamento das primárias no Estado para junho deste ano, a fim de evitar a aglomeração de pessoas, por conta da pandemia. O legislativo estadual, controlado por Republicanos, apesar de os Democratas obterem a maioria dos votos no Estado, recusou a mudança. O caso foi parar na Suprema Corte do EUA, que deu ganho de causa aos legisladores. O voto ocorreu sob grande risco para os eleitores.

Esta batalha pelas condições de votação durante a pandemia pode chegar até o dia 3 de novembro de 2020, data das eleições presidenciais. O Partido Democrata apoia o voto pelo correio e outras medidas para maximizar a participação popular, ao passo que o Partido Republicano resiste à adoção maciça destas medidas. Este quadro levou o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, que se tornou comentarista político, a proclamar recentemente: “A democracia americana pode estar morrendo.” Não está, mas certamente está bastante estressada, ainda mais em tempos de corona vírus.

*Ricardo Tavares é consultor internacional de empresas de tecnologia. É mestre em ciência política pelo Iuperj e membro do Council on Foreign Relations (CFR).


RPD || Reportagem especial: Na guerra contra coronavírus, ciência pode salvar vidas

Pesquisadores do mundo todo se mobilizam em busca de imunização eficaz; pesquisador de Harvard ressalta “método científico hiperacelerado”

Cleomar Almeida

A corrida pela produção de vacina contra o coronavírus faz cientistas do mundo todo aumentarem os esforços em pesquisas para salvar a vida de milhares de pessoas. Mais de 100 testes de diferentes imunizações foram divulgados desde o início da pandemia. Ao menos sete estão sendo analisados em pacientes humanos em diferentes países. No Brasil, onde também há testes em andamento, a ameaça é ainda maior para 50 milhões de pessoas adultas, o equivalente a um terço dessa população. Elas sofrem doenças crônicas ou passaram dos 60 anos.
Apesar de todos os esforços de pesquisa envidados em muitos laboratórios pelo mundo, inclusive no Brasil, a perspectiva mais otimista de contar com alguma vacina ou tratamento eficaz contra o coronavírus deverá tardar, mas não há saída à certificação da ciência. Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) realizaram levantamento sobre a quantidade de pessoas no grupo de risco no Brasil, onde a ciência também tem de enfrentar obstáculos ainda maiores devido à politização do combate ao coronavírus, como no caso da exoneração do médico Luiz Henrique Mandetta do cargo de ministro da Saúde. Além disso, o presidente Jair Bolsonaro ganha cada vez mais destaque como líder que estimula parte da população a agir como ele próprio e não cumprir orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), como isolamento social e uso de máscaras.

O infectologista e pesquisador da Fiocruz Júlio Croda afirmou que o Brasil teve tempo para se preparar contra a pandemia, mas, conforme disse, a politização prejudicou o combate ao coronavírus. Assim como ele, o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Ribeiro, reforçou que o uso da cloroquina, defendida por Bolsonaro, não tem comprovação de eficácia no tratamento de pacientes infectados.
Diante da emergência global de saúde pública provocada pela Covid-19, cientistas estão flexibilizando protocolos mais estritos de desenvolvimento de vacinas. Normalmente, é um processo demorado e bastante trabalhoso, pois envolve várias etapas de testes em animais e avaliações sobre a toxicidade antes das três fases obrigatórias de testes clínicos em pessoas. Diretora brasileira da OMS, a médica Mariângela Simão é otimista: “Teremos uma vacina, se tudo correr bem. O desafio será distribuí-la”.

No Brasil, pesquisadores da Fiocruz de Minas Gerais estão modificando o vírus influenza, causador da gripe, para que ele carregue trechos do material genético do Sars-CoV-2 associados à proteína S – da superfície do coronavírus, o gancho molecular usado pelo Sars-CoV-2 para se conectar às células humanas. O objetivo é produzir um vírus defectivo, que invade as células inicialmente, sem se propagar para outras, depois. O desenvolvimento pré-clínico, com testes em animais, deve levar de 12 a 18 meses, seguido dos testes clínicos.
Já os pesquisadores do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) estão desenvolvendo outra vacina contra o coronavírus. A expectativa é de que, nos próximos meses, a fórmula seja testada em animais.
“Acreditamos que a estratégia que estamos empregando para participar desse esforço mundial para desenvolver uma candidata a vacina contra a Covid-19 é muito promissora e poderá induzir uma resposta imunológica melhor do que a de outras propostas que têm surgido, baseadas fundamentalmente em vacinas de mRNA”, disse o diretor do Laboratório de Imunologia do Incor e coordenador do projeto, Jorge Kalil, conforme divulgou a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

Utilizada no desenvolvimento da primeira vacina experimental contra o Sars-CoV-2, anunciada no fim de fevereiro nos Estados Unidos, a plataforma tecnológica de mRNA se baseia na inserção na vacina de moléculas sintéticas de RNA mensageiro (mRNA) ― que contêm as instruções para produção de alguma proteína reconhecível pelo sistema imunológico.
De acordo com a pesquisa, o objetivo é que o sistema imunológico reconheça essas proteínas artificiais para posteriormente identificar e combater o coronavírus real. A plataforma que será utilizada pelos pesquisadores do Incor é fundamentada no uso de partículas semelhantes a vírus (VLPs, na sigla em inglês de virus-like particles).

As VLPs são estruturas multiproteicas com características semelhantes às de um vírus e facilmente reconhecidas pelas células do sistema imune. No entanto, elas não têm material genético do vírus, o que impossibilita a replicação. Por isso, são seguras para o desenvolvimento de vacinas.

Em artigo publicado no The New York Times, o médico Marc Lipsitch, professor do Departamento de Epidemiologia, Imunologia e Doenças Infecciosas da Universidade Harvard, afirma que o ponto de equilíbrio entre todas essas incertezas ficará mais claro quando mais pesquisas sorológicas, ou exames de sangue para detectar anticorpos, forem conduzidos com grande número de pessoas. “Estudos desse tipo estão começando e devem mostrar resultados em breve. É claro que muito dependerá da sensibilidade e especificidade dos diversos testes: quão bem eles conseguem identificar anticorpos ao Sars-CoV-2 quando estão presentes e se conseguem evitar sinais espúrios de anticorpos a vírus aparentados”, escreveu.

Lipsitch também defende a realização de mais estudos. “São necessárias mais pesquisas científicas sobre quase todos os aspectos deste novo vírus, mas, nesta pandemia, assim como em pandemias anteriores, decisões que terão consequências enormes precisam ser tomadas antes de dispormos de dados definitivos”, disse, para enfatizar: “Em vista dessa urgência, o método científico – formular hipóteses informadas e testá-las com experimentos e epidemiologia cuidadosa – é hiperacelerado”.


 

Pesquisas exploram diferentes testes de vacinas
Os Estados Unidos desenvolveram a primeira vacina contra a Covid-19 a ser testada em humanos. A imunização se baseia em trechos de RNA que integram o material genético do vírus. O RNA viral da vacina contém a receita para a produção da chamada proteína S. A expectativa é que, dentro das células, o pedaço de RNA seja usado para iniciar a produção da proteína S, a qual, por sua vez, desencadeará uma reação de defesa do organismo. Quando o organismo entrar em contato com o vírus real, espera-se que já esteja com anticorpos prontos para combatê-lo.

A técnica é considerada relativamente segura, mas ainda falta comprovação de sua eficácia. Nenhuma vacina de RNA já foi liberada para uso comercial no mundo. Os testes começaram em 16 de março, na fase 1 (que mede apenas a segurança). A fase 2, que investiga a eficácia mais diretamente, pode começar em poucos meses. A pesquisa é uma parceria entre o governo americano, o Instituto de Pesquisa em Saúde Kaiser Permanente, em Seattle (EUA), e a empresa de biotecnologia Moderna. A empresa farmacêutica Pfizer anunciou que também quer testar sua própria vacina de RNA contra o coronavírus em seres humanos a partir de agosto de 2020.

Na China, uma vacina começou a ser testada um pouco depois da americana, mas foi a primeira a alcançar a fase 2 dos testes clínicos. Pesquisadores da empresa farmacêutica chinesa CanSino recrutaram 500 voluntários neste mês. A técnica é similar à que havia sido usada no desenvolvimento de uma vacina contra o ebola. A CanSino aposta em patógeno modificado, do grupo dos adenovírus, como vetor.
De acordo com cientistas, o adenovírus geneticamente modificado carregará material genético com código para produção da proteína S, semelhante ao caso da vacina americana de RNA. A diferença é que os vírus conseguem repassar a informação genética da imunização, o que, em tese, pode ser mais eficiente do que o material genético solto. No entanto, pode haver mais riscos de efeitos colaterais. A expectativa é de que resultados mais exatos da abordagem sejam divulgados em um ano.

Uma abordagem muito parecida à da China está sendo usada por pesquisadores da Universidade de Oxford (Reino Unido). Os testes começaram em março e devem durar cerca de um ano.

Neste mês, a empresa de biotecnologia americana Inovio Pharmaceuticals começou a testar outra vacina na fase 1. O método tem muitas semelhanças com a vacina de RNA. A diferença é que o genoma do vírus, na parte correspondente ao código da proteína S, foi adaptado para uma molécula de DNA. Para injetar a vacina na pele ou nos músculos dos voluntários, os pesquisadores usam tecnologia que emite breve pulso elétrico, facilitando a entrada do material genético nas células por meio da abertura de pequenos poros. Até 40 voluntários, recrutados em duas cidades americanas, vão receber o fármaco na fase 1. O objetivo é ter a vacina para uso comercial em prazo de 12 meses a 18 meses.
A China também produz outras duas vacinas baseadas em células. As abordagens estão sendo desenvolvidas pelo Instituto Médico Genoimune de Shenzhen. Os cientistas acreditam que seria possível usar células geneticamente modificadas como vacinas. Essas células dendríticas, como são conhecidas, ajudam o sistema imunológico a reconhecer invasores.

Os pesquisadores querem incluir, no material genético das células, uma espécie de biblioteca de vários fragmentos de genes do Sars-CoV-2, assim como outros genes com a receita de moléculas que ativam o sistema imune. Ao produzir arquivo de substâncias estranhas quando entrarem em contato com o organismo, elas desencadeariam uma reação similar a uma infecção real, sem os riscos do contato com o vírus. A fase 1 do projeto já está em andamento. O grupo de Shenzhen planeja concluir o desenvolvimento da vacina até julho de 2023.


BCG pode ser grande aliada contra Covid-19
Aplicada em bebês recém-nascidos em países acometidos pela tuberculose, a vacina BCG, ou Bacillus Calmette-Guérin, está sendo pesquisada em pelo menos quatro países para ser aplicada na prevenção ao coronavírus. Estudo de pesquisadores dos Estados Unidos sugere que países que incluem a BCG no programa universal de imunização, como Japão, China e Brasil, podem ter 10 vezes menos casos de infecção de Covid-19 em relação aos demais.

Os pesquisadores americanos fizeram estudo com 178 países, durante a pandemia, e compararam aqueles em que a BCG é obrigatória com outros onde não há programa universal de imunização que inclua essa vacina. Os resultados preliminares mostram que, nos países onde a BCG não é obrigatória, o número de contaminados e mortos pela Covid-19 é 10 vezes maior.

Na Austrália, 4 mil profissionais de saúde participarão de uma pesquisa prática. Metade vai receber um produto sem efeito terapêutico. Na outra metade, será aplicada a dose da BCG. Os pesquisadores querem analisar se, em caso de possível infecção pelo coronavírus, os efeitos serão, ou não, mais leves.

A BCG é a vacina aplicada no braço em bebês recém-nascidos. No Brasil, é obrigatória desde a década de 1970, o que, segundo especialistas, ajuda a garantir alta cobertura vacinal. De acordo com os estudiosos, se for comprovada a eficácia da BCG contra o coronavírus, o Brasil sairá em vantagem.


RPD || Entrevista especial: 'Vamos viver de forma dramática com a Covid-19 até o final do ano', diz Hélio Bacha

Entrevistado especial desta 18ª edição da Revista Política Democrática Online, o médico infectologista do Hospital Albert Einstein (SP), Hélio Arthur Bacha, avalia que é impensável encerrar o isolamento social neste momento no Brasil

"Minha experiência pessoal tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória. Ela absolutamente não tem nada a ver com H1N1. É como me perguntam sempre: ‘o que é pior, a epidemia do H1N1 ou essa? ’, eu digo: 'essa, porque a pior é sempre a atual'. E essa tem características muito especiais", alerta o médico infectologista do Hospital Albert Einstein (SP), Hélio Arthur Bacha, entrevistado especial desta 18ª edição da Revista Política Democrática Online.

De acordo com Bacha, "a experiência com outras epidemias ajuda, em termos de previsibilidade do avanço, dos cuidados necessários. Mas muitas vezes atrapalha, porque se imagina que vai ser sempre igual àquela última, e não é. Ela não é a mesma coisa do ponto de vista epidemiológico, de comportamento, de rapidez, de avanço", alerta. "Não é a mesma coisa do ponto de vista clínico. A doença se apresenta de uma forma muito diferente, a evolução da doença não é uma evolução de começo, meio e fim, é muito cheia de acidentes no evoluir da clínica. E é uma doença muito especial. E, do ponto de vista dos pacientes, também. Não me lembro de ter encontrado nenhuma infecção que lembre essa. Nenhuma", informa o médico infectologista.

Ele próprio uma vítima da Covid-19, Bacha avalia que foi contaminado após cerca de três semanas de atendimento a pacientes com a doença. Recuperado, ele conclui que a sua experiência tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória. E considera impensável a suspensão do isolamento social, como quer o presidente Jair Bolsonaro. "A única arma que temos contra a doença é o isolamento. Não temos alternativas. Quando escuto a alternativa do isolamento vertical, vejo apenas uma vontade, muito longe de se implantar", avalia.

Bacha estima que a Covid-19 é uma doença que pode ser atenuada em número de casos, mas que veio para ficar. Na entrevista que concedeu à Revista Política Democrática Online, o médico infectologista também trata do papel do Sistema Único de Saúde (SUS) e do presidente Bolsonaro, que, para ele, "aparentemente está fazendo uma aposta política, pondo suas fichas na área da saúde, da crise sanitária, dessa pandemia que corre o mundo e o Brasil”. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista de Helio Bacha:

Revista Política Democrática Online (RPD): A Revista agradece sua gentileza de nos conceder esta entrevista por Zoom, em seu último dia no hospital, desta vez como paciente. A primeira pergunta é: como o senhor se contaminou com o Covid-19?

Helio Bacha (HB): Desde janeiro, venho trabalhando em função da epidemia. Passei o mês de janeiro na Itália, onde ouvi as primeiras notícias a respeito de Wuhan. Por coincidência, a Itália viria a ser o foco mais importante da Europa no mês seguinte. Àquela época, não se tinha ideia da dimensão, tamanho, importância e do inusitado dessa doença. Nem os próprios chineses tinham. Quando, em Wuhan, se observaram os cinco primeiros casos graves da doença, a província já estava tomada pelo vírus. Não se podia fazer muita coisa, além do bloqueio que os chineses conseguiram fazer bem.

O aprendizado de como se comportava o vírus veio fundamentalmente da Itália. Foi um aprendizado para os italianos e para o mundo. E quem pensou que pudesse ser diferente, como os Estados Unidos, está pagando um preço alto. O comportamento padrão da doença é o padrão italiano, a não ser em alguns países onde se conseguiu um controle social muito grande, diagnósticos precoces e pronto isolamento, como na Coréia do Sul. Mas o padrão para o mundo é o italiano.

Na Itália, inicialmente pensou-se em fazer um bloqueio de fronteiras, mas não funcionou. Não há barreira – nem de distância nem de eficácia – que impeça o vírus de chegar aonde quer que seja. Do Alasca à América do Sul, da Europa à Ásia, hoje é uma pandemia. O vírus logrou alcançar a todos os lugares do planeta.

 

RPD: O senhor, quando chegou ao Brasil, já estava contaminado? Ou a doença demorou para aparecer? 

HB: Não. Cheguei ao Brasil em 23 de janeiro, antes de um primeiro caso. O casal de chineses que chegou à Itália não tinha sido identificado. Posteriormente, concluiu-se que a infecção provavelmente já se havia instalado no país, pouco antes de 15 de janeiro. Codogno, que é uma cidade pequena, não tinha mais o paciente zero. Toda a região da Lombardia já estava contaminada de maneira intensa. Só se pôde verificar a dimensão da contaminação pelo número de paciente graves.

Houve, de início, forte enfrentamento ideológico. O prefeito de Milão, Sala, que é de centro-esquerda, se apresentava com o lema “Milão não pode parar”, aconselhado por virologistas de confiança, que, com a experiência das outras infecções por corona vírus – como o Covid 2002, pelo SARS, pelo MERS, de 2009 –, acreditavam que a Covid19 teria velocidade possível de ser controlada. E o governador da Lombardia, Attilio Fontana, que é da Lega, partido de direita, defendia a política do bloqueio. Acabou prevalecendo a posição do prefeito.

Uma coisa foi a Lombardia; outra, foi o conjunto da Itália, onde o bloqueio funcionou. O bloqueio funcionou com graduação regional clara; o que não funcionou foi a estrutura de saúde, de atenção médica, de cuidados intensivos. Essa foi uma situação lamentável, porque os italianos não imaginavam a velocidade de apresentação de casos graves, descaso que se repetiu em outros lugares do mundo, como nos Estados Unidos, em particular, em Nova Iorque.

 

RPD: Quando o senhor percebeu que estava contaminado?

HB: Trabalho em um hospital onde os preparativos de combate à epidemia começaram em janeiro. Ao surgirem os primeiros casos, cuidei de vários, claro que com proteção pessoal. Mas o início da epidemia sempre tem um elemento de surpresa e eu devo ter-me infectado em alguma situação que não sei identificar exatamente. Só sei que, depois de duas, três semanas de atendimento a pacientes, já estava contaminado com o Covid-19.

Minha experiência pessoal tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória. Ela absolutamente não tem nada a ver com o H1N1. É como me perguntam sempre: "o que é pior, a epidemia do H1N1 ou essa?", eu digo: "essa, porque a pior é sempre a atual". E essa tem características muito especiais. Algumas vezes, a experiência com outras epidemias ajuda, em termos de previsibilidade do avanço e dos cuidados necessários. Mas muitas vezes atrapalha, porque se imagina que vai ser sempre igual àquela última, e não é. Ela não é a mesma coisa do ponto de vista epidemiológico, de comportamento, de rapidez, de avanço. Não é a mesma coisa do ponto de vista clínico. A doença se apresenta de uma forma muito diferente, a evolução da doença não é uma evolução de começo, meio e fim. É muito cheia de acidentes no evoluir da clínica. É uma doença muito especial. E, do ponto de vista dos pacientes, também. Não me lembro de ter encontrado nenhuma infecção que me lembre essa. Nenhuma.

A infecção foi um exercício, nos doze primeiros dias, de piora, piora, piora, piora. Amanhã eu vou estar melhor, me dizia, e voltava a piorar. Por sorte, mantive a serenidade, com um sentimento de resignação, uma sensação de calvário, mas não perdi a serenidade em momento algum.

 

RPD: Nessas últimas semanas, o presidente Bolsonaro tem insistentemente se manifestado em favor da suspensão do isolamento, ao arrepio da visão majoritária de médicos e pesquisadores. Qual seria, de seu ponto de vista, o critério técnico para que este isolamento venha a ser suspenso? Há um índice de contaminação da sociedade como um todo, da população, que possa garantir que a suspensão desse isolamento não implique o retorno da doença, em um pico mais alto? 

HB: A suspensão, a meu ver, é impensável, porque a única arma que nós temos contra a doença é o isolamento. Não temos alternativas. Quando eu escuto a alternativa do isolamento vertical, vejo apenas uma vontade, muito longe de se implantar. Foi eficiente na Coréia do Sul, porque se fizeram exames individuais, desde o início. Como se faz isso? Você sai fazendo diagnóstico a partir de testes na população de sintomáticos e assintomáticos. Identificado um positivo, ele é isolado. Se tiver condições, na sua residência; se não, no hospital ou em hotel. O isolamento é imediato. Isso é feito antes do início da elevação da curva.

Essa opção, aqui no Brasil, não existe. Vejo as pessoas que colocam isso como uma desculpa para abandonar as pessoas à sua sorte. Quem for morrer morre e pronto. Isso tem um custo econômico, um custo de vidas e um custo ético que é inviável. Do ponto de vista político, inteiramente inviável. O discurso de ‘vamos suspender o isolamento’ é um discurso de pura irresponsabilidade ética, social e médica. Eu não vejo como a própria pessoa que faz esse discurso pode se levar a sério. Essa possibilidade não existe. E não existe por que nós não teríamos, em curto prazo, condições de atendimento do número de casos que há – pelo tamanho da curva – entre a população.

De início, a doença contagiou os estratos socioeconômicos mais privilegiados do país. Apareceu nos hospitais de maiores recursos, em pessoas com maior poder aquisitivo. O grande dilema será quando se massificar o atendimento, com a contaminação de pessoas menos favorecidas no plano econômico. Nossa rede hospitalar está ocupada, sempre faltando leitos de UTI. Não é com essa epidemia que aparece a notícia de falta de leitos de medicina intensiva. Temos já uma carência no cuidado dos pacientes com quadros de acidente vascular cerebral, de infarto agudo de miocárdio, de doenças pulmonares crônicas... A carência de leitos de medicina intensiva já é crônica. Para se evitar a carga de uma demanda repentina em ascensão, impõe-se um eficiente isolamento social.

 

RPD: O senhor acha que a Covid-19 vai determinar o fim do isolamento, e não o isolamento é que vai determinar o fim da Covid-19? 

HB: Não existe nada que seja de eficácia 100%, é sempre uma questão de redução de danos. Essa redução de danos vai ser mais eficiente na medida em que nós consigamos atender à demanda de leitos de medicina intensiva. A situação de pessoas morrendo sem assistência ventilatória em um quadro de insuficiência respiratória é muito dramática. Dramático para o paciente, para o médico que assiste, para uma sociedade. Uma sociedade minimamente saudável não convive com isso em paz.

 

RPD: A Revista gostaria de fazer um registro, para conhecimento de nossos leitores. Trata-se de militantes de todas as lutas democráticas desses últimos trinta anos e, também, do movimento sanitário do Brasil, a quem o SUS muito deve. Menciono, em particular, Sérgio Arouca, Eleutério Rodriguez Neto e Eric Jenner Rosas. Todos eles moraram muitos anos aqui em Brasília.

O presidente Bolsonaro aparentemente está fazendo uma aposta política, pondo suas fichas na área da saúde, da crise sanitária, dessa pandemia que corre o mundo e o Brasil. Essa aposta centra-se no fim do isolamento e em um tratamento que não tem garantia científica alguma. É uma aposta de muito risco, que as pessoas com um pouco de conhecimento diriam que é uma aposta no caos. Qual é sua opinião a respeito? Qual será o ganho possível, em termos políticos, do presidente, com uma aposta no caos? E quais seriam as perspectivas do SUS após a doença? 

HB: O SUS é uma obra coletiva, tanto de tanto médicos, como de profissionais de saúde, em geral, e do povo brasileiro, em particular. Três pessoas foram citadas, mas é uma obra coletiva e um orgulho, uma referência para o mundo. Acho que é o maior sistema único de saúde com atenção universal do mundo. E essa crise recoloca a importância de se ter uma estrutura estatal de atenção à saúde, permanente. A ideia de planos de saúde que pudessem dar conta dessa condição não tem desenho precedente do mundo. Isso ficou muito claro na Itália, na China e, especialmente, nos Estados Unidos, onde a medicina, a atenção médica, o modelo para o mundo são o maior desastre. Hoje, o número de mortes nos Estados Unidos, em um dia, bate o recorde do mundo. Ou seja, a capacidade da assistência médica americana, de atender os casos de insuficiência respiratória, está em colapso.

Então, qual é o cálculo político que o presidente da República faz ao assumir uma conduta com expectativas de drogas que a gente sabe o quanto não funcionam? Essa não é uma droga que não foi utilizada, ela já foi utilizada na China, ela está sendo utilizada aqui entre nós. Conhecemos as limitações da droga. Não é nenhuma maravilha, não dá conforto em termos de assistência ventilatória. Não modifica a condição de segurança do paciente. Nós sabemos o quão limitada ela é. Continuamos sem ter tratamento eficaz, medicamentoso, para o Covid-19. O cálculo político que é feito, o que eu vejo de fora – já que não sou político – me provoca muito medo, porque a impressão que me dá é de negação da doença; que não se planeja nenhuma atenção para o tamanho da catástrofe. Isso preocupa. É claro que o preço a pagar é grande, inclusive do ponto de vista de quem implementa essa política. Espero que o governo faça ainda, a tempo, um esforço de reconstrução do que nós temos de SUS, para que dê tempo, ainda, de fazer a atenção médica necessária, a atenção à saúde necessária aos cuidados desses pacientes.

 

RPD: Quanto à possível debelação do vírus. Estudos recentes mencionam que a ação do Covid-19 seguiria danosa até contaminar um determinado percentual da população. Os números propostos variam entre 50% e 80%. Para o senhor, haveria a possibilidade de eliminação da doença de maneira radical?

HB: Não. Ela pode ser atenuada em termos de número de casos, mas essa é uma doença que veio para ficar. Ainda vamos ter de conviver com ela por algum tempo. Desde Hipócrates, a quatro mil anos de nós, melhoramos muito o diagnóstico e melhoramos muito a terapêutica, mas não o prognóstico. O número de variáveis é tão grande.... Há cerca de um mês, tive casos graves do H1N1, que chegou ao Brasil em 2009. Boa parte dos brasileiros já está imunizada contra essa doença. Deixa, portanto, de ser uma doença endêmica entre nós. Ela é tratável, mas não dá para falar em cura. Não registra mais aquele volume de casos que poderia pôr em colapso os atendimentos, mas é uma doença que veio para ficar. É tratável, só que não dá para falar em cura. Já o Covid-19 é uma situação aguda para agora e para os próximos meses. Provavelmente, vamos viver de forma dramática com essa doença até, pelo menos, o final do ano.

 

RPD: Quando e se Covid-19 for contido, que mundo teremos? Mais solidário? Mais xenófobo? Mais socialmente consciente? Ou com maior enfrentamento entre ricos e pobres?

HB: Eu torço para um lado. Torço para que a humanidade ganhe em termos de solidariedade, mas a possibilidade da barbárie existe. Essa é uma preocupação nos momentos de muita escassez de recursos e em que as pessoas tentam se salvar sozinhas. Essa é uma doença diante da qual nós podemos lavar as mãos, manter o distanciamento de um metro e meio um do outro e pronto, o resto são ações coletivas. Ninguém se salva sozinho dessa epidemia. Para se salvar, vai ser necessário alta dose de solidariedade. A gente vê prevalecer, em vários estratos sociais, essa coisa de “quem morrer, morreu, quem se salvar se salvou, esse é o curso natural da vida”. Mas a experiência coletiva de falta de solidariedade pode ser um fator de agravamento das possibilidades de barbárie no futuro. E aí os ressentimentos, a falta de compromisso dentro da sociedade podem levar a uma condição de mundo em que eu não gostaria de viver.

Que a experiência trágica dessa epidemia, no mundo, nos conduza à construção de um mundo mais solidário, mais fraterno, onde o sofrimento das pessoas não seja a distância. Que nós tenhamos um compromisso social e político de atender a todos. Espero que façamos disso um mundo melhor.

 

 


RPD || Eduardo Rocha: O pós-coronavírus - Por uma Conferência Mundial pela Produção e Emprego

Dar respostas rápidas para salvar vidas e manter a produção e serviços é o principal desafio enfrentado em todos os países por conta da pandemia do coronavírus Covid-19

A violência meteórica da pandemia global do coronavírus em todo o sistema de reprodução social do gênero humano irrompe nova época histórica, cujo enigma desafia a inteligência a decifrá-la de modo a dar respostas às exigências emergenciais – salvar vidas em risco e manter a produção e serviços –, e futuras da humanidade.

O infarto econômico mundial reconfirmou ontologicamente o trabalho – este eterno e necessário intercâmbio entre o gênero humano e a natureza para a reprodução da vida – como a força material fundante na gênese e no desenvolvimento do ser social, e revelou a necessidade de nova crítica de toda economia política vigente e a reinvenção das relações capital-trabalho.

No Brasil e no mundo, surgiram excelentes estudos explicativos sobre as recentes medidas governamentais para atenuar os efeitos recessivos da pandemia que mundialmente coexiste agora com a quarta revolução industrial. Dois fenômenos que intensificam uma conexão histórico-universal nunca vista, realçam velhas e novas contradições, operam e operarão transformações na totalidade do ser social e demandarão a criação inédita de uma governança global para a construção de uma nova sociabilidade humana ao longo do século XXI.

A pandemia retrai a taxa real de acumulação de capital e problematiza o funcionamento sistêmico do capitalismo global. A reativação econômica e a reinserção produtiva de trabalhadores demandam mais do que as atuais terapias intensivas. Demandam nova arquitetura socioeconômica global, voltada para o futuro da humanidade, de modo a livrá-la da força gravitacional da recessão sistêmica tenebrosa, da profunda insegurança, da pavorosa incerteza e de um futuro sinistro e sombrio.

Pode ajudar na construção dessa nova arquitetura socioeconômica global a realização, sob a responsabilidade da Organização das Nações Unidas (ONU), de uma Conferência Mundial pela Produção e pelo Emprego (CMPE), visando a harmonizar os fluxos monetários e financeiros internacionais, com vistas a canalizar a poupança pública e privada em investimentos reais com as globais necessidades sociais, produtivas, de emprego e desenvolvimento global dos povos.

Seria como uma “Conferência de Bretton Woods da Produção e do Emprego” focada na criação de políticas e ações multilaterais para fazer valer a reativação econômica – da produção, do emprego, do pleno funcionamento da rede de proteção social e pavimentar minimamente as vias macroeconômico-globais para impulsionar o desenvolvimento em vastas regiões do planeta.

Além dos chefes de Estado, desta Conferência deveriam participar os demais organismos multilaterais e da sociedade civil. Uma Conferência não para fazer futurologia social utópica, mas concentrar-se na reflexão e proposição de elementos constitutivos de uma macroeconomia global num quadro histórico no qual o amado e odiado clássico keynesianismo, circunscrito na esfera do Estado-nação, é insuficiente na produção de respostas. Tanto de economias nacionais integradas globalmente quanto de um mundo integrado que ainda não dispõe de um governo mundial. São muitas questões em aberto. Se a teoria é feita por dúvidas, a política é feita com convicção. E hoje esta convicção aponta para a necessidade desta Conferência.

Por fim, a questão da redução da jornada de trabalho, a contratação de trabalhadores adicionais dentro de um plano de redistribuição do emprego (na indústria, agropecuária, construção civil, comércio, serviços, setor público) com elevação da produtividade adquirirá importância universal, tanto no aspecto teórico, como no aspecto político prático para a reativação e sustentabilidade do desenvolvimento. A antítese disso é o aumento da superexploração do trabalho.

Em 1998, a França reduziu a jornada de trabalho para 35 horas com duas medidas complementares: a) redução de impostos sobre a folha de pagamento e b) contratação de trabalhadores adicionais aos já existentes. No Brasil, contudo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, em plena pandemia, prometeu reduzir impostos da folha de pagamento após a crise e não exigiu contrapartida alguma dos empresários.

O futuro das relações capital-trabalho dificilmente reeditará as atuais, que nada mais são do que a expressão superestrutural de relações de produção de um mundo que está ruindo aos olhos de todos. É ilusão querer que o mundo “volte à normalidade do passado”. Não há volta. Aquele mundo não existe mais. O caminho terminou, a viagem começa, diria Georg Lukács (1885-1971). O coronavírus abriu nova página da história e desafia o gênero humano a escrevê-la e apontar para onde ir: barbárie ou civilização?

Alea jacta est.

 


Monica de Bolle: Quarentenas intermitentes

A economia precisa se voltar para a saúde, entendendo suas necessidades e buscando atendê-las

Quarentenas intermitentes muito provavelmente serão o nosso “novo normal”. Queiramos ou não aceitar essa nova realidade, a verdade é que ela já está posta. É esse o cenário com o qual trabalham cientistas, infectologistas e pessoas que estão na linha de frente do combate à covid-19. As razões são múltiplas: da falta de conhecimento sobre a imunidade conferida pelo vírus à imprevisibilidade das manifestações clínicas da doença; das dificuldades de desenvolver uma vacina para um vírus novo à logística de distribuí-la por todo planeta, caso ela venha a existir.

Não sou infectologista. Contudo, como economista tenho a obrigação de manter-me bem informada sobre os determinantes da crise econômica e do quadro futuro que se apresenta. Esses determinantes não são de natureza econômica: são provenientes do comportamento de uma fitinha de RNA, o vírus Sars-CoV-2. Tenho conversado e interagido com profissionais das áreas de saúde pública, infectologia, virologia, microbiologia. Não tratar do que se passa de forma interdisciplinar é erro certo não apenas na formulação dos cenários que se apresentam, mas, sobretudo, nas medidas econômicas necessárias para atender às necessidades da população.

Já escrevi nesse espaço que o quadro de quarentenas intermitentes requererá, necessariamente, a adoção de uma renda básica permanente: de outro modo, não haverá como sustentar a população mais vulnerável do País nos momentos em que o recrudescimento da epidemia resultar em medidas de distanciamento ou isolamento sociais. Em artigos para este jornal, para a Revista Época e em vídeos no meu canal do YouTube tenho dito à exaustão que o momento pede que todos comecem a se preparar para uma nova realidade. Não retornaremos ao mundo que conhecíamos em janeiro de 2020 tão cedo – talvez esse mundo tenha já desaparecido para sempre.

Fazer chegar essa mensagem aos ouvidos das pessoas, tarefa para a qual eu e muitos outros temos nos dedicado, é muito difícil. Evidentemente, ninguém quer acreditar que o modo de vida com o qual estavam acostumados se foi. Mas é preciso preparar-se para isso e acreditar no que a ciência nos tem dito.

A economia das quarentenas intermitentes é algo que não conhecemos. É um sistema que não funciona da forma relativamente contínua com a qual estamos acostumados, mas um sistema que soluça e engasga. Para atenuar esses espasmos e a volatilidade deles decorrente, tenho insistido, junto com outras pessoas, que é preciso pensar na reconversão da indústria. A economia precisa se voltar para a saúde, entendendo suas necessidades e buscando atendê-las.

Esse esforço passa pela produção em escala de equipamentos hospitalares diversos, incluindo os de proteção individual, de que toda a população precisará quando as quarentenas forem temporariamente relaxadas. Abordei esse tema em entrevista concedida ao programa Roda Viva na última segunda-feira. Serviços também precisarão se readequar: restaurantes, por exemplo, terão de aprender a funcionar em rodízios, com poucos clientes e com uma capacidade de entrega que hoje não têm. Comerciantes terão de adaptar seus negócios para a convivência com o vírus, redesenhando normas e adotando plataformas online quando possível. Também precisarão, inevitavelmente, contar com serviços de entrega.

Novas tecnologias terão de ser desenvolvidas. Elevadores não poderão ter botões, já que são foco de contaminação. Deverão ter sensores térmicos? Tecnologias de reconhecimento de voz? É provável que a indústria tecnológica dê um salto de dez anos, que o processo de automação, já em curso, ganhe imenso ímpeto. Nesse caso, as relações de trabalho haverão de mudar ainda mais rapidamente, tornando a adoção da renda básica permanente mundo afora uma medida indiscutivelmente necessária.

Para aquelas empresas que podem trabalhar em rodízios, reduzindo o número de pessoas nos escritórios, o trabalho de casa será uma realidade que veio para ficar. Vamos precisar de mais capacidade para os serviços de internet, testemunharemos o crescimento em larguíssima escala da indústria de aplicativos para fins diversos. A segurança online será exponencialmente mais importante do que já é. A regulação da privacidade e da comercialização de dados precisará sair do papel.

Deixo essas ideias para que reflitam sobre o cotidiano, sobre tudo aquilo em que não paramos para pensar. Deixo-as para que comecem a se adaptar desde já.

* ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY


El País: Drenado por crise forjada por Bolsonaro, Brasil fica no escuro quanto ao coronavírus

Um dia após atos pedindo intervenção militar, presidente recua de respaldo e diz não apoiar fechamento do Congresso e STF. Enquanto isso, Ministério da Saúde erra cifras sobre aumento de óbitos

Felipe Betim, do El País

Em meio a uma crise política forjada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que participou neste fim de semana de atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal e defendiam uma intervenção militar, o Brasil dá sinais de caminhar no escuro com relação ao real avanço de casos e mortes por coronavírus. Na tarde desta segunda-feira, o Ministério da Saúde divulgou um balanço em que confirmava 383 novas mortes pela covid-19 em 24 horas, mas cerca de uma hora depois corrigiu a informação e assegurou tratar-se de 113 novos óbitos registrados no período. O motivo do equívoco era um erro de digitação. Na tabela com o balanço diário, a pasta afirmou inicialmente que o Estado de São Paulo somava 1.307 mortes, mas o correto era 1.037. Assim, o balanço foi corrigido de 2.845 óbitos (7% de mortalidade) para 2.575 (6,3% de letalidade). O número total de novos casos confirmados ficou em 40.581, isto é, 1.927 a mais que o dia anterior.

Desde que o Governo trocou o comando do Ministério da Saúde, na quinta-feira da semana passada, os dados sobre o avanço da covid-19 são atualizados sem que ocorra a coletiva de imprensa com a equipe técnica da pasta, prática que era comum durante a gestão de Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS). Nestas entrevistas, o informe diário sobre a crise era acompanhado de anúncios sobre decisões do Executivo federal para frear a pandemia no Brasil, além de explicações sobre a curva de crescimento de casos, os gargalos do SUS, o avanço ou atraso em relação aos desafios do Governo ante a crise, além das respostas às perguntas dos jornalistas. A ausência de explicações técnicas dificulta entender o comportamento do vírus no Brasil, como saber se a expansão de casos se deve à ampliação dos testes ou à queda da adesão do isolamento social, por exemplo.

O novo ministro, Nelson Teich, que assumiu em 16 de abril a pasta, defendeu a transparência das ações do ministério ao tomar posse, mas ainda não deixou claro se retomará a rotina das explicações técnicas. No sábado, sem agenda oficial, Teich viajou ao Rio de Janeiro (onde ele mora). Na tarde desta segunda-feira, sem que o compromisso constasse na agenda do ministro, ele se reuniu com o presidente Bolsonaro no Palácio do Planalto. Nesta segunda-feira, o único membro do primeiro escalão do Governo a participar da coletiva imprensa diária foi o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, para falar sobre o pagamento da renda básica emergencial.

Teich, por sua vez, limitou-se a divulgar um vídeo de pouco mais de três minutos em que informava que o Governo estava adquirindo testes de coronavírus, que passariam de 24 milhões para 46 milhões de kits. O objetivo, explicou Teich, era realizar a testagem em massa da população, como fez a Coreia do Sul, para “entender a doença e sua evolução”, e assim “fazer um planejamento para revisão do distanciamento social”. O ministro ainda participou nesta segunda de uma reunião no Palácio do Planalto que estava fora da agenda oficial e deve ainda nomear pessoas para sua equipe ―o presidente chegou a dizer que também faria indicações.

Tensão política

O afrouxamento das medidas de distanciamento social decretadas por Estados e Municípios é uma das obsessões de Bolsonaro. Houve uma escalada da tensão política no país no último fim de semana, em que um número expressivo de bolsonaristas se juntaram em atos e carreatas com buzinaços em cidades como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro.

Além dos pedidos pela reabertura dos comércios e retomada da atividade econômica, muitos manifestantes pediam o afastamento do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), além de uma intervenção militar ou um novo AI-5 —decreto de 1968 da ditadura que permitia o fechamento do Congresso e a suspensão dos direitos políticos dos cidadãos. No domingo, Bolsonaro foi até a sede do Exército em Brasília, se aproximou de manifestantes —sem máscara e tossindo, conforme mostram imagens— e fez um inflamado discurso de confronto com os demais Poderes da República. “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil”, afirmou o presidente, sob aplausos.

Nesta segunda-feira, o procurador-geral da República, Augusto Aras, indicado por Bolsonaro para o posto, pediu que o Supremo Tribunal Federal (STF) abrisse um inquérito para investigar as manifestações de domingo. Aras quer apurar se houve violação da Lei de Segurança Nacional por conta de “atos contra o regime da democracia brasileira por vários cidadãos, inclusive deputados federais, o que justifica a competência do STF”. As manifestações também geraram repúdio de ministros do STF, de Maia e outras autoridades. O presidente acabou recuando nesta segunda-feira: na saída do Palácio da Alvorada, ao se dirigir a jornalistas, afirmou não ser a favor de um AI-5 ou do fechamento do Congresso. “O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Eu já sou o presidente da República", afirmou. Em seguida, falou: “Eu sou, realmente, a Constituição”.

Em outro momento, minimizou mais uma vez a pandemia de coronavírus no Brasil, assim como as mortes que estão ocorrendo: “Aproximadamente 70% da população vai ser infectada. Não adianta querer correr disso. É uma verdade. Estão com medo da verdade?”, disse. “Levaram o pavor para o público, histeria. E não é verdade. Estamos vendo que não é verdade. Lamentamos as mortes, e é a vida. Vai morrer”, acrescentou. E completou: “Essa é uma realidade, o vírus tá aí. Vamos ter que enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, porra. Não como um moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade. É a vida. Todos nós iremos morrer um dia.”


Hernan Chaimovich: As carreatas da morte

O Brasil é, aparentemente, o único país do mundo onde carreatas que podem ser consideradas verdadeiras manifestações a favor da pandemia COVID-19 se realizam com certa frequência em várias cidades, sem que o Estado tome qualquer providência.

Poder-se-ia pensar que a única ação possível para os que induzem, organizam e participam dessas atividades, que, além de irem contra qualquer racionalidade, são um chamado à morte, seria a recomendação de tratamento ou de internação psiquiátrica. Além de serem medidas de difícil implementação, existem ações bem mais concretas, legítimas e legais, que, por serem de implementação bem mais realista, devem ser praticadas com urgência, sob o risco de a loucura imperar em nosso país.

Para começar, transcrevo aqui um tweet de um médico que eu, por não estar autorizado, não posso identificar, mas com o qual me identifico “Eu trabalho em dois dos hospitais pelos quais passou a carreata da morte em São Paulo hoje. Saí de um deles as 7h a caminho de outro plantão. Na frente da gente, nas UTI´s gente lutando para não morrer de COVID. Do lado de fora “gente” querendo ver mais gente morrer. É desesperador”. Simultaneamente, compartilho uma notícia recente: “Presidente foi em comitiva ao Setor Militar Urbano, e participa de ato contra a quarentena e pró-intervenção militar em frente ao Quartel Geral do Exército, em Brasília” (@reporterenato).

Perante esta situação, nada mais eficiente do que sugerir algumas ações que dizem respeito às pessoas e às Instituições.

Começo pelo indutor mor, Jair Messias Bolsonaro. Um dos pedidos de afastamento do Presidente da República foi encaminhado à Procuradoria Geral da República pelo Ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, onde cita diversas condutas de Bolsonaro que colocam em risco o país em relação à epidemia de COVID-19. Esse pedido, se a PGR aceitar, segue para o STF, que, se aceitar, pede autorização à Câmara para dar andamento. Como se pode perceber, esse procedimento é lento, e, no meio da pandemia, se requer ação rápida e processo pode não afetar tão cedo as carreatas da morte.

Outras ações que podem ser tomadas contra organizadores e participantes das carreatas estão em Leis e Decretos. O que chamo de “caravanas pró-pandemia” acontecem em cidades onde decretos estaduais e municipais impõem distanciamento social e uso de máscaras protetoras em público. Assim, burlar os Decretos estaduais de quarentena e de isolamento social deveria resultar em ação policial direta, pois o direito de ir e vir não colide com determinações legais que, por causa de uma emergência sanitária, limitam esses direitos.

Estas carreatas, com seus carros de som, fazem questão de se deter frente a hospitais e clínicas, afrontando as leis de Contravenções Penais além de diversas outras leis e decretos estaduais e municipais. A produção de sons acima de 50 dB no entorno de hospitais é passível de pena de reclusão. É evidente, pois, que existem condições onde o Estado está legalmente obrigado a coibir com força policial carreatas como a caravana a favor da pandemia.

Ora, se o Estado permanece inerte e as carreatas continuam, é dever dos indivíduos e das associações clamar contra o Estado na justiça. Desde os níveis mais básicos até o foro maior, o Supremo Tribunal Federal, se instâncias anteriores não forem efetivas, é imperioso recorrer contra um Estado que permite caravanas da morte. Por último, se nenhuma das instâncias nacionais aceitar que estas manifestações soturnas deveriam ser banidas, restam os foros internacionais que protegem os direitos humanos. Afinal de contas, dentro do rol dos diretos humanos, a vida é o direito mais fundamental.

Hernan Chaimovich, Professor Emérito do Instituto de Química da USP


Fernando Gabeira: Viver na incerteza

O que nos favorece é a grande capacidade humana de se adaptar

Simone de Beauvoir escreveu no célebre livro “O segundo sexo” que era difícil se sentir uma princesa, em tempos de menstruação, com um incômodo pano entre as pernas.

É difícil se sentir o rei da cocada preta fechado em casa, com um medo de uma invisível partícula proteica que mata as pessoas e devasta a economia planetária. Sobretudo, é difícil sentir-se dono de grandes certezas, num mundo em que a normalidade foi para o espaço.

Edgard Morin merece admiração por isso. É quase centenário, e seu pensamento ao longo dos anos evoluiu para enfatizar a complexidade e a incerteza.

Apesar de ter escrito muitas vezes sobre segurança biológica e ter detectado o impacto desse vírus nos seus primórdios, confesso que, como quase todos os outros, o subestimei.

Ao sair de Fernando de Noronha, em 16 de março, ainda tinha esperanças de seguir viajando pelo Brasil, na presunção de que o vírus não chegaria aos lugares onde vou.

De fato, tenho tido contato permanente com pontos remotos do Brasil e, à exceção de Fernando de Noronha e grandes cidades, o vírus ainda não chegou lá.

Esqueci-me das estradas, dos postos de gasolina, dos restaurantes e hotéis no caminho, dos perigosos aeroportos e aviões. E esqueci que estava bem próximo dos 80 anos.

Interessante nesse mundo de grandes incertezas como as pequenas certezas nos mobilizam. As redes estão cheias de conselhos sobre o que ler, como se exercitar, rezar, o que comer, a que filmes assistir, como organizar toda a rotina.

Essa enxurrada de conselhos às vezes confunde. Por isso, achei engraçado um áudio que caiu na rede. Era de um homem que lamentava com a amiga: todos dizem que tenho de lavar as mãos, lavar as mãos, não se esqueça de lavar as mãos, mas eu queria também tomar um banho, será que pode?

Da mesma forma, achei interessante o desabafo de uma jovem diante de um certo otimismo exagerado, do gênero “o coronavírus veio para melhorar nossos sentimentos, aumentar a solidariedade, mudar o mundo”.

O vírus veio para nos destruir e devastar a economia. Essa é a verdade inicial. Ele não é revolucionário. Tudo vai depender de nossas escolhas daqui para a frente.

Sem dúvida, bons sentimentos afloraram, milhares de profissionais de saúde arriscam suas vidas pelas nossas, mas houve também quem tentasse aplicar golpe nas pessoas que precisam dos R$ 600 emergenciais, gente que hostilizou enfermeiros em transporte público, países que confiscam carregamento de máscaras ou especulam com o preço de equipamentos médicos.

O mundo continua um espaço onde bem e mal coexistem, assim como a grandeza e a miséria dos seres humanos não desapareceram com o vírus.

Certamente, ficaremos materialmente mais pobres, com movimentos mais limitados e sempre sujeitos a um novo recolhimento forçado, enquanto não aparecer uma vacina.

Certamente, sairemos mais humildes e não pronunciaremos o termo civilização com arrogância. Mas o que nos favorece é a grande capacidade humana de se adaptar às novas situações, e encontrar uma centelha de felicidade mesmo nos lugares e momentos mais difíceis.

Às vezes, à noite, depois de uma torrente de notícias pesadas, acordo sobressaltado, qualquer tosse noturna traz sempre a pergunta: será ele, o vírus, será essa a hora?

Tomei todas as precauções. Se ele entrou pelo vão da porta, se veio navegando pelo suave vento que entra pela janela, o que fazer?

Nessas horas, respira-se fundo e se reafirma o compromisso com a vida. No mais é como dizem nos países hispânicos: que vengan los toros, let it be, na linguagem dos 60.

Assim como as viagens, segundo o poeta, nos lembram que estamos sós ao nascer, o vírus pelo menos tem a utilidade de nos lembrar que somos mortais. Com ou sem ele, temos de usar bem esse tesouro: o tempo que nos resta.

Não quero adicionar mais uma avalanche de conselhos que nos soterra desde o início da crise.

Mas já parou para sentir como é bom respirar?


José Roberto Mendonça de Barros: Da tragédia para as novas perguntas

Na crise, crescem os segmentos onde a ciência e a tecnologia foram aplicadas 

Este é o terceiro artigo desde o aparecimento do novo coronavírus no Brasil.

Vimos que a pandemia se tornou uma ameaça global e provocou a parada súbita no sistema econômico, o que precipitou uma recessão.

Nesta semana, o Fundo Monetário Internacional (FMI) deu uma ideia da dimensão do problema, que é, sem dúvida, a maior ameaça para a economia mundial desde a 2.ª Guerra. No caso básico, o PIB global cairá 3%, sendo que os números serão muito piores para as economias ricas: -5,9% nos EUA, -7,5% na zona do euro, -5,2% no Japão. China e Índia, os gigantes emergentes crescerão 1,2% e 1,9%, respectivamente. A América Latina vai na mesma direção, encolhendo 5,2%. Um show de horror.

A pergunta é o que acontece no ano que vem, isto é, se a recuperação será rápida ou relativamente lenta. No modelo do FMI, a recuperação será bem significativa, com o PIB global, crescendo 5,8% em 2021.

Tenho grande dificuldade em aceitar essa projeção, uma vez que ela tem como base algumas hipóteses que são heroicas para mim, a começar da ideia de que não haverá uma segunda onda do ataque do vírus. Em segundo lugar, haverá um número enorme de quebra de empresas de todos os tamanhos, em muitos lugares do mundo, especialmente, nos Estados Unidos, onde a dívida corporativa é a maior da história. Em terceiro lugar, o crescimento do desemprego e o grande desarranjo que acontecerá nos orçamentos familiares.

Depois de sairmos de uma experiência tão dramática, colocam-se algumas perguntas a respeito de para onde irá a economia global.

Nesta semana, duas reuniões patrocinadas pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) foram particularmente úteis para ter uma visão do problema. Na segunda-feira, participei de um debate com Demétrio Magnoli e Pedro Malan e na quarta-feira assisti a um belíssimo diálogo entre Fernando Henrique Cardoso e o embaixador Marcos Azambuja. Desses eventos saem quatro grandes questões:

1 - Para onde irá o conflito China / Estados Unidos: serão competidores, adversários ou inimigos?

2 - O nacionalismo e o protecionismo seguirão prevalecendo sobre o multilateralismo?

3 - As cadeias de produção globais vão ou não se reconstituir?

4 - Como as ameaças globais, clima e aquecimento, pandemias, pobreza e migração, serão tratadas?

Naturalmente, a pergunta que se segue é como deverá o Brasil proceder perante essas questões? Minha percepção é que o governo atual nem sequer compreende qual é o problema, especialmente, no Planalto e no Itamaraty.

A parada súbita pegou o Brasil numa situação pior do que a de muitos países, porque não estávamos crescendo, mas tentando juntar as condições para tanto.

Após certa hesitação inicial, o governo foi desenvolvendo políticas que acabaram por cobrir as áreas necessitadas de atenção. A grande questão agora é a execução desses programas até chegar na ponta final.

Entretanto, mesmo com todos esses gastos a queda da atividade será enorme: o FMI projeta -5,3%, o Banco Mundial -5,0% e a MB -4,7%.

É também quase um consenso que o déficit primário será maior do que R$ 500 bilhões e que a relação dívida/PIB subirá para algo entre 85% e 90%.

O pior é que voltaremos após a emergência sanitária à árdua tarefa de reconstruir as condições de retomada do crescimento, mais pobres e num mundo que será diferente.

O governo Bolsonaro não tem mais chances de mostrar um crescimento relevante. Continuaremos numa trajetória medíocre, que vem desde 2014.

A revolução liberal sonhada pela equipe econômica naufragou totalmente. Ela nunca teve mesmo muita chance com um chefe do executivo iliberal.

Apesar de toda crítica de Paulo Guedes à social-democracia, nossa má distribuição de renda é grande o suficiente para não ser ignorada. Imagine o que estaria acontecendo no País se não tivéssemos o Bolsa Família e o SUS.

Em vez da abertura externa, o que vimos foi uma grande coalizão do Ministério da Economia com a Fiesp.

Poucos setores estão conseguindo enfrentar a crise. Os mais relevantes são o agronegócio e a logística, o sistema financeiro, as telecomunicações (que estão suportando o home office em massa, apesar de sua insuficiência), as empresas com plataformas mais sólidas de e-commerce.

A educação a distância, a telemedicina e outros serviços remotos explodiram. Todos esses segmentos têm um enxame de startups em torno de si.

Ou seja, apenas onde a ciência e a tecnologia foram sistematicamente aplicadas na elevação da produtividade, na criação de competências e na inserção no mundo.

Espero que na penosa reconstrução da capacidade de crescer, esses sejam os segmentos com mais voz, em vez das tradicionais corporações que nos dominam.

Aí, teremos mais chances.

* ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE