coronavirus
Demétrio Magnoli: Carta a um não confinado
Consertamos a economia depois, todos juntos, sem individualismo
Não ponho o pé na rua há semanas. Leio, aproveito meu pacote da Netflix, experimento receitas, até comecei a pintar. Exercito-me na esteira da sala. Peço tudo por aplicativo. Faço sacrifícios: sinto falta do Iguatemi, dos meus restaurantes preferidos, de viajar.
Você, não confinado, sabota meus sacrifícios, espalhando o vírus. Devo qualificá-lo como um ser antissocial.
Não há vacina ou remédio confiável. O governo Bolsonaro ignora a pandemia, fechou o Ministério da Saúde, não coordena esforços de testagem. São mais motivos para ficar em casa, nossa única salvação.
O renomado cientista Miguel Nicolelis disse que a quarentena é para "evitar contágios". Itália e Espanha estão flexibilizando a medida com, respectivamente, 1.552 e 2.397 contágios médios diários na última semana. Seus governos irresponsáveis deram as costas à ciência. Você nunca a seguiu.
Leio na Folha as palavras sábias do sanitarista Claudio Henriques, que adiciona prazos à meta expressa por Nicolelis. A quarentena deve perdurar por "mais de um ano" e precisará ser reforçada por períodos de "lockdown" com "cerca de duas semanas cada". Ok: home office direto, via Zoom. Perdi um naco de renda; meus gastos, porém, também diminuíram. Mas essa extensão de meus sacrifícios só terá sentido se você ficar em casa, como eu. Hora de chamar a polícia, Doria!
Os restaurantes, graças aos céus, ainda não podem abrir na Itália. Seus proprietários iniciaram um movimento coletivo de entrega das chaves aos prefeitos. Mercenários: pressionam pelo desconfinamento em nome do vil metal. Vocês, donos de lojinhas e serviços não essenciais que furam a quarentena no Belém, no Brás, no Pari, são ainda piores que eles. Chega, né, Covas? Tem que trancar tudo, com multas exemplares.
Guedes boicota a rede emergencial de proteção social, atrasando o pagamento dos vouchers para os pobres. São meros R$ 600. Ok, acho pouco. Mas nada disso desculpa as cenas das favelas que retomam a normalidade. A vida é o bem maior. Você, informal desconfinado, revela sua ignorância ao desrespeitar a norma sanitária ditada pela ciência. Todos estamos no mesmo barco: dê sua cota de sacrifício, como dou a minha.
Quarentena tem, afinal, coisas boas. O planeta descansa, a natureza respira, a humanidade usa o tempo livre para reaprender a solidariedade. Louvo os corajosos médicos que estão na linha de frente. Postei homenagem no meu Insta, que ganha seguidores.
Vejo imagens de crianças descalças jogando bola na rua de uma favela, não sei se na zona oeste ou na leste. Serão filhos de auxiliares de enfermagem? Pouco importa: um sacrifício não justifica uma negligência. As escolas fecharam para evitar o tráfego do vírus pela ponte dos assintomáticos. Meu filho brinca no playground do prédio, quando desliga o celular. De quantas mortes você precisa para segurar as crianças em casa?
Sigo, atento, as estatísticas da Covid-19. A curva sobe, sinistra. Leio projeções sombrias de queda do PIB. Cinco milhões perderam empregos ou tiveram cortes salariais. Há, nesses milhões, gente como você, que se desconfina --e diz ao Datafolha que a quarentena deve terminar. Por falta de escola, você não aprendeu a ordem das coisas: a distinção entre gráficos relevantes e insignificantes. Economia, consertamos depois. Daqui a um ano pensamos nisso. Todos juntos, sem individualismo.
O Ocidente fracassou --e nem falo dos EUA. A Alemanha reabriu todo o comércio num dia com 282 óbitos, mais de mil contágios. É deboche da ciência. A China, sim, funciona. Lei marcial. Queria ver você lá, em Wuhan, onde dão valor à vida. O isolamento em São Paulo caiu a 47%. Covas, fracote, desistiu de bloquear avenidas. Mas disse certo: "As pessoas não entenderam a mensagem".
Basta. "Lockdown" já! Com esse zé povinho não dá. Odeio você.
Assino: um cidadão informado. Volto às séries.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Elio Gaspari: A fila única para a Covid está na mesa
Rede privada tem 15.898 leitos de UTIs, com ociosidade de 50%, e a rede pública tem 14.876 e está a um passo do colapso
O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto defendeu a instituição de uma fila única para o atendimento de pacientes de Covid-19 em hospitais públicos e privados. Nas suas palavras:
“Dói, mas tem que fazer. Porque senão brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar. Não tem cabimento isso”.
Ex-diretor da Agência de Vigilância Sanitária e ex-superintendente do Hospital Sírio-Libanês, Vecina tem autoridade para dizer o que disse. A fila única não é uma ideia só dele. Foi proposta no início de abril por grupos de estudo das universidades de São Paulo e Federal do Rio. Na quarta-feira, o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Zasso Pigatto, enviou ao ministro Nelson Teich e aos secretários estaduais de Saúde sua Recomendação 26, para que assumam a coordenação “da alocação dos recursos assistenciais existentes, incluindo leitos hospitalares de propriedade de particulares, requisitando seu uso quando necessário, e regulando o acesso segundo as prioridades sanitárias de cada caso.”
Por quê? Porque a rede privada tem 15.898 leitos de UTIs, com ociosidade de 50%, e a rede pública tem 14.876 e está a um passo do colapso.
O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (ex-diretor de uma Unimed) jamais tocou no assunto. Seu sucessor, Nelson Teich (cuja indicação para a pasta foi cabalada por agentes do baronato) também não. Depois da recomendação do Conselho, quatro guildas da medicina privada saíram do silêncio, condenaram a ideia e apresentaram quatro propostas alternativas. Uma delas, a testagem da população, é risível, e duas são dilatórias (a construção de hospitais de campanha e a publicação de editais para a contratação de leitos e serviços). A quarta vem a ser boa ideia: a revitalização de leitos públicos. Poderia ter sido oferecida em março.
Desde o início da epidemia os barões da medicina privada se mantiveram em virótico silêncio. Eles viviam no mundo encantado da saúde de griffe, contratando médicos renomados como se fossem jogadores de futebol, inaugurando hospitais com hotelarias estreladas e atendendo clientes de planos de saúde bilionários. Veio a Covid, e descobriram-se num país com 40 milhões de invisíveis e 12 milhões de desempregados.
Se o vírus tivesse sido enfrentado com a energia da Nova Zelândia, o silêncio teria sido eficaz. Como isso era impossível, acordaram no Brasil, com 60 mil infectados e mais de seis mil mortos.
A Agência Nacional de Saúde ofereceu aos planos de saúde acesso aos recursos de um fundo se elas aceitassem atender (até julho) clientes inadimplentes. Nem pensar. Dos 780 planos, só nove aderiram.
O silêncio virótico provocou-lhes uma tosse com a recomendação do Conselho Nacional de Saúde. A fila única é um remédio com efeitos laterais tóxicos. Se a burocracia ficar encarregada de organizá-la, arrisca só ficar pronta em 2021. Ademais, é discutível se uma pessoa que pagou caro pelo acesso a um hospital deve ficar atrás de alguém que não pagou. Na outra ponta dessa discussão, fica a frase de Vecina: “Brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar.” Os números da epidemia mostram que o baronato precisa sair da toca.
A Covid jogou o sistema de saúde brasileiro na arapuca daquele navio cujo nome não deve ser pronunciado (com Leonardo DiCaprio estrelando o filme). O transatlântico tinha 2.200 passageiros, mas nos seus botes salva-vidas só cabiam 1.200 pessoas: 34% dos homens da primeira classe salvaram-se; na terceira classe, só 12%.
Sinal dos tempos estranhos
Um dia alguém vai estudar o Brasil de 2020 durante a pandemia.
Enquanto a rede pública de saúde dava sinais de colapso, o presidente da Federação Brasileira de Hospitais, guilda de 4.200 instituições privadas, informava que a ociosidade média dos leitos de UTIs de seus associados estava em 50%.
O diretor do Sírio-Libanês, o hospital das celebridades (Lula, Dilma e companhia), explicava o efeito dessa ociosidade, provocada pela suspensão dos procedimentos eletivos para clientes de planos de saúde dos abonados:
“Todos os nossos hospitais nesse momento que estão com ocupação baixa têm custos fixos que têm que ser pagos. Essas empresas vão ficar numa situação econômica difícil. Já neste mês há instituições com dificuldade de pagar a folha de pagamento. Outros vão aguentar de dois a três meses. Mas se essa situação persistir por muito tempo, vão ter problema de solvência.”
Se esse darwinismo econômico é irredutível, vale o que disse o doutor Paulo Guedes: “É da vida ser abatido, é do mercado. Uma economia de mercado de vez em quando é atingida”. Quem acha que é da vida ser abatido pelo coronavírus deve entender que também é da vida que sua empresa pegue o vírus da insolvência.
Madame Natasha
Natasha adora as entrevistas do ministro Nelson Teich. Suas platitudes permitem que ela tire sonecas vespertinas.
Por acaso ela ainda não tinha adormecido quando o doutor disse o seguinte:
“O que tem que ficar claro é que é um número que vem crescendo”.
Naquele dia haviam morrido 473 pessoas (durante todo o ano em que combateu o exército alemão na Itália, a Força Expedicionária Brasileira perdeu 474 pracinhas).
Como o ministro havia visto sinais de que a epidemia estava contida, deveria ter dito o seguinte:
“Ficou claro para mim que o número vem crescendo.”
Na mesma entrevista, o ministro apontou para o fato de que o aumento das mortes estava restrito a alguns estados, como São Paulo, Rio e Amazonas.
Em agosto de 1945, os militares japoneses aloprados diziam em Tóquio que havia um problema restrito às cidades de Hiroshima e Nagasaki.
Chavismos
A deputada Joice Hasselmann, ex-líder do governo de Jair Bolsonaro no Congresso, disse à repórter Julia Chaib que o Brasil corre o risco de cair “num chavismo de verdade, com sinal trocado”.
Em 2018, durante a campanha eleitoral, o general Hamilton Mourão, que foi adido militar na Venezuela, explicou a essência do poder chavista:
“Existe uma corrupção muito grande nas Forças Armadas venezuelanas. Elas perderam a mão em relação à missão que têm no país.”
Vargas tentou
Quando o ministro Alexandre de Moraes bloqueou a nomeação de um delegado amigo da família Bolsonaro para a direção da Polícia Federal, mostrou que o bom funcionamento das instituições acaba protegendo os presidentes.
Na manhã de 29 de outubro de 1945, Getulio Vargas decidiu nomear seu irmão Benjamin para a Chefatura de Polícia do Rio, um dos cargos mais importantes da República. À noite, estava deposto.
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e garante:
Essa epidemia é uma gripezinha, o programa Pró-Brasil era apenas um estudo e o amigo inglês de Paulo Guedes está pronto para oferecer 40 milhões de testes para o coronavírus.
Miguel Reale Júnior: Pandemônio
Comportamentos de Bolsonaro indicam possível anormalidade de personalidade
Em entrevista ao programa Câmera Aberta, da Band, em 1999, Bolsonaro, indagado se, caso fosse presidente, fecharia o Congresso, respondeu: “Não há a menor dúvida. Daria golpe no mesmo dia”. Nessa entrevista defendeu a tortura e disse que o Brasil “só vai mudar, infelizmente, quando partirmos para uma guerra civil (...) matando uns 30 mil (...). Vão morrer alguns inocentes. Tudo bem. Em toda guerra morrem inocentes”.
Ao votar no impeachment, ele o fez em homenagem ao torturador coronel Brilhante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”, disse.
Pela segunda vez, em plena pandemia, dia 19/4, Bolsonaro foi à manifestação dominical contra o Congresso Nacional e a favor da ditadura. Antes da fala de Bolsonaro, circunstantes gritavam “Fora Maia”, “AI-5”, “Fecha o Congresso”, “Fecha o STF” e carregavam faixas pedindo “intervenção militar já com Bolsonaro”, que em seu discurso falou: “Eu estou aqui porque acredito em vocês. Vocês estão aqui porque acreditam no Brasil” – adotando como seu, portanto, o teor do encontro.
A identificação com essa reunião se comprova ao pretender interferir a favor dos manifestantes, com a mudança do diretor da Polícia Federal: na mensagem enviada a Moro, ministro da Justiça, Bolsonaro reproduz nota do site O Antagonista segundo a qual a PF está “na cola” de 10 a 12 deputados bolsonaristas.
O presidente, então, escreveu: “Mais um motivo para a troca”. Patente, destarte, que buscava intervir no inquérito determinado pelo ministro Alexandre de Moraes instaurado para verificar “a existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia e a divulgação em massa de mensagens atentatórias ao regime republicano”. A nomeação de pessoa íntima para a diretoria da PF, cuja posse foi obstada pelo STF, é prova do interesse de demissão do então dirigente para se imiscuir nas investigações.
A atitude de Bolsonaro em face da pandemia, “uma gripezinha”, mostra indiferença pelo que poderia acontecer se desrespeitadas as normas de isolamento e quarentena determinadas pela OMS e pelo ex-ministro Mandetta.
Na última terça-feira, 28, indagado sobre o aumento do número de mortes, o presidente deu resposta agressiva: “E daí? Lamento. Eu sou Messias, mas não faço milagres”. A soberba, todavia, revela-se no uso das expressões “eu sou a Constituição”, “tenho a caneta”, “o presidente sou eu”, “quem manda sou eu”.
Tais comportamentos indicam possível anormalidade de personalidade, a merecer análise médica acurada.
Já opinei ser a interdição um caminho eventual para Bolsonaro. Não estava a fazer blague. As atitudes habituais permitem supor possível transtorno de personalidade, falha profundamente estudada por Odon Ramos Maranhão, titular de Medicina Legal (Psicologia do crime, 2.ª ed. Malheiros, 1995, cap. 7) e objeto de classificação pela CID-10, a Classificação Internacional de Doenças da OMS, em livro específico sobre doenças mentais (Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento, editor Artes Médicas, pág. 199).
Nessa classificação, o transtorno de personalidade antissocial tem por características a “indiferença insensível face aos sentimentos alheios; uma atitude flagrante e persistente de irresponsabilidade e desrespeito a regras; a baixa tolerância à frustração; a incapacidade para experimentar culpa e propensão a culpar os outros”.
Poderia haver, eventualmente, transtorno de personalidade paranoide, cujos sintomas seriam, por exemplo, “combativo e obstinado senso de direitos pessoais; tendência a experimentar autovalorização excessiva e preocupação com explicações conspiratórias”.
Outra publicação respeitada é o DSM-5, da Associação Psiquiátrica Americana, que em http://www.niip.com.br/wp-content/uploads/2018/06/Manual-Diagnosico-e-Estatistico-de-Transtornos-Mentais-DSM-5-1-pdf.pdf, nas páginas 645 e seguintes, estuda os tipos de transtornos da personalidade, cabendo destacar: “1- paranoide, caracterizado por desconfiança e suspeita tamanhas que as motivações dos outros são interpretadas como malévolas; 2- antissocial, cujo padrão é desrespeito e violação dos direitos dos outros; 3- narcisista, que apresenta sentimento de grandiosidade, necessidade de admiração e falta de empatia”.
Atentemos para o comportamento reiterado de Bolsonaro, ao longo do tempo, em favor de situações que geram dor, em apoio a manifestações pelo fechamento do Congresso e do STF, chegando a agir, como presidente, para não se apurar devidamente a organização do ato de domingo 19 de abril; em campanha contra o isolamento social, única medida possível para reduzir mortes; usando a trágica expressão, “e daí?” acerca do aumento do número de mortes; no gosto pelo aplauso popular, pois, no domingo 15 de março, ao ser ovacionado em frente ao Planalto falou: “Isso não tem preço”.
São esses os sinais indicativos de possível enquadramento nas categorias psiquiátricas acima lembradas, o que cumpre ser verificado por experts em medida adotada em defesa do País.
No meio da pandemia, um pandemônio.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Fernando Gabeira: Pergunte ao coronavírus
O Brasil politizou o vírus. O governo mergulhou na cegueira ideológica
Num momento de ansiedade e incertezas, multiplicam-se as previsões e os cenários sobre o mundo pós-pandemia. Mas todos esses cenários, creio, dependem da evolução da mesma variável que nos pôs nesta situação tão difícil: o coronavírus.
Uma das minhas referências nas previsões sobre o coronavírus é Bill Gates. Ele dedica parte de sua fortuna ao financiamento de projetos de saúde pública. Precisa ser bem informado, no mínimo, para não jogar dinheiro fora. Em curto artigo sobre as perspectivas, Gates acha que uma vacina eficaz contra o coronavírus estará pronta até 2021. Os caminhos da pesquisa indicam duas direções. Uma delas é a vacina tradicional, que utiliza um vírus desativado. A outra, aproveitando os avanços da genética, poderia informar as células para que bloqueiem o vírus.
Existe uma possibilidade mais rápida, anunciada pelos cientistas de Oxford no jornal The New York Times. Eles acham que conseguem lançar sua vacina ainda em setembro de 2020. Fizeram experiências com seis macacos e foram bem-sucedidos. Pretendem agora experimentá-la em 5 mil pessoas e obter a licença.
Nesse cenário, o mais otimista possível, até o final do ano já estaria em circulação uma vacina eficaz contra o coronavírus. Além de algumas centenas de milhares de mortes, apenas o ano de 2020 estaria perdido.
Outra variável que Gates aborda é a dos remédios. Ele considera ter havido um subinvestimento em pesquisas de remédios antivirais, comparadas com os antibacterianos. Acho que vai se mover nesse campo. Não existe hoje uma bala de prata. Como não existiu na luta contra o HIV-aids, para o qual, finalmente, se chegou a um coquetel de drogas.
Talvez as coisas sejam mais promissoras no campo dos testes. A tendência é que evoluam, possam ser vendidos com mais facilidade e ser usados em casa. Como já o são alguns outros testes, como o de gravidez.
Gates acha que, assim como depois de 1945 foi necessário criar uma instituição internacional para garantir a paz, será também necessária uma organização internacional para combater as pandemias, novos vírus que podem vir tanto de morcegos como de pássaros. Esse desdobramento internacional não é fácil. Uma declaração da ONU de cooperação em torno de vacinas, remédios e testes não foi apoiada por EUA, Brasil e mais 12 países.
Imagino que uma das razões da reserva norte-americana seja o direito de exploração conferido pelas patentes. Suas grandes empresas investem milhões de dólares em pesquisas e, naturalmente, querem receber esse investimento de volta, com os devidos lucros.
Esse foi um grande debate travado também no período da aids, quando se questionou o respeito às patentes numa situação excepcional. O Brasil tinha razões para questionar. Adotou uma lei que garantia o coquetel gratuito aos portadores de HIV e isso custava caro ao País. O ministro da Saúde na época era o hoje senador José Serra. Ele defendeu o que me parece ter sido a posição correta de acordo com o interesse nacional.
Hoje, em plena pandemia de coronavírus e diante de outras que podem vir, o Brasil se distancia da ideia de cooperação internacional para se alinhar com os EUA, que têm interesses bem específicos. A julgar pela posição do chanceler Ernesto Araújo, estamos diante de um “comunavírus”, que tende a acentuar a influência internacional sobre os países, reduzindo sua autonomia.
É um raciocínio que se assemelha às posições do Brasil sobre o esforço internacional para atenuar os efeitos do aquecimento planetário. Assim como é difícil, hoje, prever uma nova situação sem levar em conta a trajetória da covid-19, será muito difícil também excluir a variável ambiental de qualquer cenário futuro.
Ao contrário de países como a Nova Zelândia e a Austrália, o Brasil politizou o vírus. Eles foram bem-sucedidos, assim como, de certa forma, Portugal, onde governo e oposição se uniram diante do inimigo comum.
Num dos primeiros artigos que escrevi sobre o vírus, quando ele estava circunscrito a Wuhan, na China, afirmei que para combatê-lo seria necessária uma visão nacional e solidária. Não foi isso o que aconteceu. Assim como pesou para as civilizações antigas na América ter uma visão mítica sobre os invasores, ou deve pesar no Haiti encarar com o vodu os grandes desastres naturais, o Brasil mergulhou na cegueira ideológica.
Durante muito tempo, discutiu-se se era um vírus comunista destinado a enfraquecer o governo. Da mesma forma, discutiu-se se a cloroquina era ou não um remédio de direita.
O vírus é apenas uma proteína envolvida numa capa de gordura. E a cloroquina, uma substância química usada contra malária e outras doenças.
Portanto, quando se escrever a história dessa peste no Brasil, não se pode apenas culpá-la pelos estragos que fez. O governo digeriu mal a tese da imunização pelo amplo contágio e refugiou-se nela na esperança de tocar a economia.
Se continuar se comportando com o meio ambiente com a mesma cegueira ideológica com que encara o coronavírus, os cenários do futuro, não importa quão sofisticado for o seu desenho, terão de contar com o pano de fundo de uma terra arrasada.
*Jornalista
Miguel Calmon du Pin e Almeida: Sobre novas escolhas
Pelo que tenho lido, o maior responsável pelo número de mortes na pandemia que estamos atravessando é o tempo. Adoecemos todos ao mesmo tempo, e assim não dá tempo de cuidar de todos os que adoecem. Morremos aos milhares por falta de assistência médico-hospitalar. Não dá tempo.
O isolamento social horizontal, corretíssima estratégia adotada nos países que têm conseguido melhores resultados no enfrentamento da pandemia, é uma determinação para ganharmos tempo. Ganhar tempo, me repito, significa que não adoeçamos todos simultaneamente, que aconteça a rotatividade na ocupação dos leitos hospitalares, que os recursos necessários aos cuidados possam ser produzidos para todos.... Ganhar tempo, eis o que estamos lutando por alcançar.
Não é curioso que isso aconteça no momento histórico onde a maior parte das reflexões e observações sobre a vida cotidiana fale sobre a aceleração do tempo? Tudo on-line, em tempo real, a capacidade orgulhosamente exibida de estarmos em vários lugares ao mesmo tempo, nos ocuparmos de várias atividades ao mesmo tempo. Na hierarquia que avalia moralmente os indivíduos e as sociedades, quanto mais em menor tempo, mais valioso se é.
A pandemia revirou esta lógica consumista de cabeça pra baixo. No confinamento de cada um de nós, temos sido desafiados a (re)aprender a desacelerar o tempo.
Olhando de longe, para aqueles que tem condições de algum conforto, ficar em casa não parece ser um grande desafio. Olhando de longe. Porque, de perto, vermo-nos privados de pequenas próteses, cuja finalidade é manter nosso equilíbrio mental, nos expõe ao risco de desorganizações as mais variadas, em seus modos e intensidades. Refiro-me a pequenas atividades que servem como barreiras de contenção, barreiras de paraexcitacão, ao desenvolvimento da angústia. Quando tais barreiras nos faltam, ficamos expostos ao risco de não termos como frear o ritmo avassalador com que a angústia nos invade, e de que ela nos prive da maior parte de nossos recursos intelectuais e afetivos.
Tenho pensado que o que justifica o enorme esforço que todos temos feito para “ficar em casa” se dá no encontro e reconhecimento destas pequenas atividades que nos servem como barreiras de contato contra a invasão da destrutividade.
Entender e aceitar que a determinação da OMS para o isolamento social é físico e não afetivo. Com certeza, este entendimento tem favorecido o uso dos mais variados aplicativos, por meio dos quais temos mantido contato com nossos filhos, netos, amigos e colegas. É fundamental não se deixar isolar pelo isolamento social.
Do mesmo modo, os afazeres domésticos: amigos e amigas empenhados em aprender a passar roupa, a cozinhar, faxinar a casa. Outro dia, engraxei os meus sapatos. Isso que dito deste jeito parece uma brincadeira, e em certo sentido o é. No entanto esta brincadeira tem uma função extraordinária ao estabelecer as tais barreiras de contato. Não esperemos que sejam a solução de tudo. Seu reconhecimento se faz na percepção de que, depois de nos ocuparmos mecanicamente destes afazeres, algo em nosso humor mudou. Por um certo tempo, o automatismo exigido nestas tarefas barra, ou, na melhor das hipóteses, desacelera o desenvolvimento da angústia. Tenho observado que aqueles que visam como finalidade de suas ações o se livrar definitivamente da angústia, estes são os que se desesperam. Ao fracassar, se desesperam. Nada mais há por fazer. Liberado o caminho para pulsão de morte, o meio mais rápido para se livrar de tudo é... se livrar de tudo.
Tempos muito difíceis, duros, quando estamos sendo desafiados a desacelerar o tempo a fim de dar tempo para sobrevivermos à pandemia.
Muitas perdas, muitas dores, muito medo.
Ao mesmo tempo, temos tido oportunidade de descobertas as mais surpreendentes, e algumas até mesmo sublimes, que espero que possam se manter para além da pandemia.
O novo coronavírus mudou a face da Terra. Serei apenas mais um a repetir que a vida não será mais a mesma e a maneira com que enfrentarmos a Covid-19 determinará que caminhos se abrirão à nossa frente: se o caminho da necessária e urgente cooperação e solidariedade entre todos (cuidar de mim implica cuidar dos outros e vice-versa); ou se se acirrará o caminho do “América first”, como se a vida no planeta fosse possível em desconexão com os demais indivíduos, esquecendo ensinamentos fundamentais de Freud, principalmente aquele que nos mostra que nos constituímos na relação com os semelhantes.
Leonardo Padura: O mundo de ontem
Há outras doenças, além da causada pelo vírus, como nacionalismos e fundamentalismos, para as quais não haverá vacina e que despertam temor sobre como as coisas se organizarão
Stefan Zweig foi um romântico europeu que, pouco antes de se suicidar, longe de uma Europa que se desintegrava pela mais desoladora de suas muitas guerras, escreveu um maravilhoso e esmigalhado testamento, intitulado O Mundo de Ontem (1942), no qual falava não de seu próprio devir, “mas do de toda uma geração, a nossa, a única que carregou o peso do destino, como, certamente, nenhuma outra na história”.
A geração do judeu austríaco Zweig é a que nasce na Europa do final do século XIX, vive em sua juventude a Primeira Guerra Mundial e o triunfo da Revolução de Outubro e, em sua maturidade, a perversão utópica executada pelo stalinismo, a ascensão paralela do nacional-socialismo e conflitos fratricidas como a guerra civil espanhola. A fornada europeia que, já em sua velhice, assiste ao início da Segunda Guerra Mundial, com Holocausto incluído.
Stefan Zweig se suicidou em seu exílio brasileiro em 1942 e não soube que cairiam bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.
Muito mais recentemente, o muito reconhecido e lido Noah Yuval Harari (também judeu, aliás, também heterodoxo, claro) nos recorda em suas 21 Lições para o Século 21 que o homem de hoje, nossa afortunada geração, foi, ao longo de toda a história do Homo sapiens, a que menos riscos teve de morrer de fome, de guerra ou de epidemia, os três grandes flagelos que sempre perseguiram a humanidade. E oferece cifras que sustentam sua afirmação.
Harari, entretanto, nem por isso deixa de expressar seus temores sobre as características e qualidades deste tempo presente no qual se perdeu boa parte da fé de que desfrutavam o pensamento e o modelo liberal, incluindo a globalização, enquanto os países se blindam com muralhas de nacionalismo e fundamentalismos religiosos excludentes, quando a humanidade se encontra mais perto de um horripilante descalabro ecológico. E o historiador israelense anota, além disso, as incertezas geradas por um futuro presumivelmente desenhado por inteligências artificiais alimentadas por algoritmos ou criações do estilo.
Acredito, como Harari e como muitos outros, que pertenço à geração que sofreu menos a violência bélica, que nasceu com mais anos de expectativa de vida, teve mais altura para se debruçar sobre o futuro, inclusive para vivê-lo e se congratular com ele. E também de se horrorizar com as variantes possíveis desse futuro que parece cada vez mais próximo.
Nas décadas que vão da nossa adolescência à idade adulta, fomos testemunhas presenciais de uma mudança de era histórica: o trânsito arrasador dos tempos dos recursos mecânicos e analógicos para o período do império da digitalização, com todas as múltiplas consequências positivas e negativas que tais processos revulsivos costumam entranhar.
Hoje somos beneficiários de ferramentas de comunicação, conhecimento, de avanços médicos, de mobilidade que meio século atrás pareciam argumentos exclusivos de filmes de ficção científica. As revoluções da tecnologia da informação e da biotecnologia mudaram quase tudo, e é certo que mudarão até mais dentro de alguns anos. Somos melhores por isso? Viveremos melhor no futuro? Fará mais sentido a falta de sentido existencialista da vida? Devo admitir que tenho sérias dúvidas a respeito. E não só porque esteja ficando velho e, talvez, me tornando um lamentável conservador, e o meu recipiente de pessimismo transborde. A conjuntura universal que hoje vivemos, calcada em fantasias como as de H. G. Wells em A Guerra dos Mundos, é uma confirmação dolorosa.
Minha afortunada geração, junto a seus tremendos feitos científicos, sofreu também profundos traumas capazes de alterar muitas de nossas percepções da vida e a forma de encará-la. Quando desfrutávamos da juventude apareceu e nos traumatizou a aparição do HIV/Aids, uma doença então mortal, que afetou de maneira bastante radical o exercício da sexualidade. Uns vinte anos depois, fomos vítimas, e todos, ao mesmo tempo, telespectadores, do ataque de 11 de setembro de 2001 que transformou os cânones da segurança, introduziu o medo do terrorismo na política de Estado e o transformou em um trauma individual que conseguiu degradar o desfrute da viagem, da aventura, do descobrimento (entre outros gozos), para fazer dele uma tarefa cheia de entraves e traumas (você não pode viajar de avião com um potinho de iogurte na sua bagagem de mão). E se achávamos que já tínhamos o bastante, justo quando chegamos aos tempos de maior desencanto político das últimas décadas (ou de desencanto com os políticos e suas atuações que estivemos sofrendo nas últimas décadas), pois nos apareceu o coronavírus, ou covid-19, que nos impede de viajar e nos recomenda não nos aproximarmos de outras pessoas – e nem sonhar em fazer sexo com um desconhecido. Que nos falemos com um metro e meio de distância entre nós, que nos autoconfinemos…
O mundo que parecia se ampliar e se tornar menos alheio (mais globalizado) é hoje um lugar hostil, de onde devemos nos afastar se quisermos chegar a viver os oitenta anos de média que nos deram de presente os avanços médicos, uma melhor alimentação e a superação de grandes guerras. Devemos nos trancar e nos comunicar com cuidado, melhor se for através do Facebook ou do Instagram, sem saber até quando não poderemos assistir a um evento esportivo ou a um show musical, porque devemos tomar cuidado com as grandes aglomerações de pessoas. Fugir dos beijos e abraços.
O mundo que parecia se ampliar e se tornar menos alheio é hoje um lugar hostil, de qual devemos nos afastar
A justificadíssima histeria gerada por este novo vírus tem e terá proporções e consequências realmente apocalípticas, independentemente de sua justificação real, avalizada pelas cifras de contagiados e mortos. O fato é que as economias cambaleiam, as sociedades se fecham, a maravilhosa ciência da era digital patina e não avança. A mesma ciência que decodificou e sintetizou o genoma humano, mas ainda não conseguiu um antídoto contra o câncer, a epidemia mais incontrolável destes tempos, que cada dia mata tantas pessoas como o coronavírus…
Até onde chegaremos nesta corrida de dor e medo? Ninguém sabe. É o fim dos tempos, da sociedade? Não, não é o fim dos tempos nem da sociedade, mas pode ser o fim de uma maneira de viver no tempo e em sociedade. Pressinto que, mesmo com uma (relativamente) rápida solução da crise sanitária que hoje vivemos e tanto nos aterroriza, nosso mundo não voltará a ser o mesmo, e não para melhor. E não sou dos que acreditam que o mundo de ontem tenha sido o mais feliz e que devemos recuperá-lo, como pede Trump quando clama por devolver à América a grandeza perdida. A grandeza dos tempos de uma feroz discriminação racial legalizada (proibida a entrada de cães, judeus e negros), por exemplo? Ou uma grandeza como a que sonha um Putin, que se reelegerá presidente ad infinitum: a recuperação do orgulho russo graças ao qual os cidadãos talvez pudessem escolher entre czarismo e stalinismo, se é que algo podem escolher.
O mundo de ontem, o ontem de nossa privilegiada geração, não era melhor, embora cada vez mais nos pareça assim. “Acontece que estávamos melhor quando acreditávamos que estávamos pior”, disse-me alguém. Porque, até com as amostras de solidariedade e de altruísmo que aplaudimos, o mundo de hoje está doente, não só de coronavírus, mas sim de outros males para os quais não haverá vacinas (nacionalismos, fundamentalismos) e me faz temer por como se organizará o mundo de amanhã, talvez quando os poderes políticos nos digam que outra vez podemos nos beijar e nos abraçar, nos falar e nos tocar… e já tenhamos medo de fazê-lo ou, inclusive, não saibamos mais como fazê-lo.
*Leonardo Padura é escritor.
Arminio Fraga: Respostas a uma tempestade perfeita
A sinalização de que existe solução viável para a crise ajuda a reverter o pessimismo
Há décadas tenho me dedicado ao estudo das crises econômicas. Nesse período convivi com o tema atuando aqui e no exterior como economista, professor e gestor de investimentos. Tive inclusive a ocasião de trabalhar duas vezes no Banco Central, ambas abundantes em crises.
A atual é a mais desafiadora que já vi. No nosso caso, trata-se de uma verdadeira tempestade perfeita. Isto porque temos que lidar ao mesmo tempo com três graves crises: sanitária, econômica e política.
As três vêm sendo objeto de intensa cobertura e debate. Por isso, vou apenas resumir o quadro, para a seguir focar no que fazer a respeito (em tese, pelo menos).
A pandemia vem exigindo relevante isolamento social, em parte por determinação oficial, em parte por medo da doença. Seus impactos já se mostram dramáticos e heterogêneos. Sofrem como sempre mais (e muito) os mais pobres, assim como as empresas que lidam diretamente com clientes, sobretudo as pequenas e médias.
O desemprego, que já vinha alto, vai aumentar muito. O crescimento, que já era anêmico, vai virar queda substancial no PIB. Esse quadro de doença e desemprego é motivo de ansiedade geral. Infelizmente, falta ainda uma estratégia clara e de âmbito nacional para se lidar com a pandemia.
Na economia, medidas vêm sendo tomadas na direção de amortecer a perda de renda de milhões de pessoas e a falta de crédito para as PMEs mais atingidas. Com o (necessário) aumento dos gastos ligados à crise e com a queda na arrecadação decorrente da recessão, as necessidades de financiamento do Estado vão crescer muito.
Os mercados terão que absorver muita dívida. Paira no ar o medo de que gastos temporários se tornem permanentes, hoje uma ameaça concreta, como uma bactéria oportunista.
Essa dupla incerteza sanitária e econômica é paralisante, e ameaça se transformar em uma perigosa espiral recessiva. A ficha precisa cair quanto a esse grave risco.
Como se não bastasse o massacre social e econômico que está encomendado, o quadro político vem se complicando com repetidos sinais de desprezo pela democracia e pela ciência emitidos pelo Executivo federal, acompanhados por desentendimentos entre os Poderes e relevantes trocas de comando nos altos escalões do governo federal.
Como consequência da tempestade perfeita, a Bolsa vem caindo e o dólar e os juros de longo prazo vêm subindo.
O que fazer então? Crises econômicas em geral se resolvem quando se vislumbra um caminho de saída viável, em direção a objetivos bem definidos e plausíveis. Esse caminho tem que ser construído. Nos piores momentos de uma crise, tudo parece impossível.
Mas a sinalização de que existe uma solução viável em geral ajuda a reverter as expectativas mais pessimistas. Na medida em que as expectativas comecem a ser confirmadas por ações concretas, a crise tende a amainar, e a economia a se recuperar. O que podemos plausivelmente esperar do nosso caso?
Na saúde, busca-se o fim da pandemia com o menor custo possível em termos de vidas e sofrimento. As experiências internacionais recomendam que um grau elevado de isolamento social seja mantido até que as curvas de contaminação e óbitos claramente se invertam. Estamos longe desse ponto.
Para minimizar o dano, urge reforçar as equipes médicas e seus equipamentos, assim como massificar o uso de máscaras, de testes e de rastreamento de casos. Apesar de contarmos com a ampla rede do SUS, do ponto de vista das ferramentas necessárias estamos bem atrasados.
Muito provavelmente a pandemia só será debelada quando vacina e/ou cura chegarem. Esse horizonte longo complica deveras o encaminhamento das soluções.
Portanto, parece certo que o elevado estresse social também durará bastante tempo e exigirá a continuidade das políticas assistenciais, provavelmente adentrando 2021. Digno de menção aqui o extraordinário esforço da sociedade através do terceiro setor.
As demandas sobre o Estado já são enormes e tendem a crescer. Nesse contexto, ideias exóticas como moratórias de pagamentos e empréstimos compulsórios vêm sendo cogitadas. Ora, as cadeias de pagamento em uma economia moderna são extensas e complexas. Há que se tomar cuidado aqui. Propostas mal desenhadas podem acrescentar uma crise financeira às já existentes nas áreas sanitária e econômica.
O enfrentamento de um desafio destas dimensões requer necessariamente que o Executivo federal assuma seu papel institucional de liderança e coordenação, algo que não vem ocorrendo. Não basta o importante esforço de governadores e prefeitos.
Urge um bom diálogo com o Congresso, para adequar as pautas às urgências do momento. É necessário também definir prioridades para os gastos correntes, limitando-os às necessidades temporárias da crise.
E, por fim, o Executivo precisa deixar claro que, uma vez superada a crise sanitária, a busca do equilíbrio fiscal estrutural será retomada. Estes são desafios enormes para qualquer governo, que dirá para um em crise política.
*Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
Conselho Curador da FAP aprova prestação de contas e defende frente democrática
Frente democrática é alternativa à tensão e polarização políticas no país, conclui Colegiado da FAP durante reunião online
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O Conselho Curador da FAP (Fundação Astrojildo Pereira) aprovou, neste sábado (25), a prestação de contas da entidade relativas ao ano de 2019, por unanimidade, e discutiu a conjuntura política do Brasil com sugestões para o fortalecimento da democracia. Pela primeira vez, o colegiado realizou reunião online, por meio de uma sala virtual com acesso exclusivo aos conselheiros, por causa da orientação da OMS (Organização Mundial da Saúde) de manter o isolamento social em meio à pandemia do coronavírus.
O presidente do Conselho Curador da FAP, Cristovam Buarque, parabenizou a iniciativa da diretoria da fundação de realizar a reunião virtual e manter o compromisso com a prestação de contas. Ele lembrou que, enquanto atuou como senador, apresentou a proposta no Parlamento para que possibilitasse a participação virtual de senadores em discussões e votações, mesmo que estivessem em outros compromissos nos seus respectivos Estados.
O diretor-geral da FAP, Luiz Carlos Azedo, destacou as ações da fundação em defesa dos valores democráticos e republicanos. Segundo ele, a instituição tem se empenhado cada vez mais para atuar da melhor forma possível e levar resultado de qualidade à sociedade, por meio dos eventos, publicações e do curso de formação política Jornada da Cidadania.
» Confira como foi a Reunião do Conselho Curador da FAP no vídeo abaixo ou clique aqui.
https://youtu.be/65dJ8PhTLwQ
Investimentos
Em sua apresentação, o diretor financeiro Ciro Gondim Leichsenring detalhou todos os investimentos da fundação no ano passado, na ordem de R$ 584,1 mil, para a realização do IV Encontro de Jovens, dos Seminários Desafios da Democracia e Cidades Inteligentes, além de outros eventos. Todas as iniciativas tiveram a participação de importantes pesquisadores, professores de universidades e grandes nomes do mercado.
Leichsenring também destacou a grande importância das publicações da FAP, como as revistas Política Democrática online e impressa, as quais, segundo ele, colaboram muito para o pensamento crítico da sociedade. “São publicações importantes porque levam conteúdos de muita qualidade para o público”, disse.
No total, em 2019, R$ 636,4 mil foram investidos em publicações, edições e lançamentos de livros, produção de teatro e filme, em ações de comunicação digital e no planejamento da Jornada da Cidadania. O curso de formação política é realizado pela FAP, por meio de uma plataforma online, interativa e com acesso gratuito aos alunos matriculados.
Frente democrática
Durante a reunião, os conselheiros demonstraram preocupação com o atual momento político do país. Eles apresentaram propostas, como a necessidade de se fazer uma ampla frente democrática em defesa da democracia, da Constituição e da independência entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
A discussão partiu de um texto produzido pelo conselheiro Paulo Fábio Dantas Neto, escrito inicialmente para analisar os principais fatos políticos das últimas semanas, como a exoneração do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, mesmo durante a epidemia do coronavírus. Durante a reunião, o autor atualizou o texto, incluindo no debate o caso do ex-juiz Sérgio Moro, que, nesta sexta-feira (24), pediu exoneração do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
» Paulo Fábio Dantas Neto: Notas sobre a conjuntura e o depois – abril 2020
Conforme lembra o sociólogo e diretor executivo da FAP Caetano Araújo, o colegiado também considerou a questão da pandemia, que, conforme discutido, trouxe à tona a necessidade de solidariedade e a importância de implementá-la, principalmente, na saúde pública. “Isso era algo que já existia na sociedade, mas que a pandemia escancarou ainda mais”, afirmou ele.
Além disso, o conselho curador também sugeriu a necessidade de pôr fim à lógica da polarização, substituindo-a pela cooperação. “Isso não é esquecer divergências, mas trabalhar consensos e deixar claros os pontos que são dissenso, outra linguagem da política, diferente da que tem predominado no Brasil, nos últimos cinco ano, que é a da polarização”, disse Caetano.
Mario Sergio Conti: O inferno são os outros, e os outros fazem carreatas em defesa da peste
Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, 'Entre Quatro Paredes'
A peste pegou em cheio a linguagem pública e a particular. A pública porque ela é manipulada pelo poder para perverter a realidade. A particular porque, apinhados e à míngua entre quatro paredes, os pobres foram silenciados. A verborreia dos dominantes mantém a mudez dos dominados.
Ilustração de carros verdes enfileirados dando a volta em um quadrado amarelo. O quadrado parece um cômodo vazio com uma pessoa deitada no chão. Há um círculo azul na imagem e algumas bandeiras do Brasil em alguns carros.
A perturbação linguística desmoraliza clichês da idade clássica. Caso do Rubicão, o rio que generais eram proibidos de cruzar para não se acercarem com tropas do coração do império, Roma. Júlio César o cruzou e disse: “A sorte está lançada”. Deu-se bem e virou ditador.
Bolsolígula disse que a peste era gripezinha e o confinamento, asneira. Propagou perdigotos. Pregou a ditadura nas barbas do Supremo e do Congresso, exortando a tropa a atropelá-los. Enxotou o ministro da Saúde e depois o da Justiça, cortesãos sebosos que tantos serviços lhe prestaram.
Toda vez que Bolsonero atravessou o Rubicão, ouviu-se a algaravia da indignação oficialesca, acompanhada por semblantes graves. Mas sobressaiu na cacofonia o vagido ameno, o bacharelês castiço, o dó de peito impotente dos potentados: “Lamentável sob todos os aspectos etc.”.
Já não há Rubicões: eis a novidade além-linguagem. Ele foi cruzado tantas vezes que quase dispensa uma boa quartelada. Na republiqueta do Messias, milicos mandam e paisanos obedecem. Antes, contudo, as vestais de toga encaram os fardados e, altivas, questionam: “Quer um café, general?”.
A última azeitona verde-oliva na empada do Planalto é o interventor na Saúde. Ele logo avisou: “Vou como instituição, não como Eduardo Pazuello”. Ao funéreo ministro nominal, o chofer do rabecão, cabe olhar o chefe nos olhos e indagar: “Que tal uma fatia de bolo, general?”.
Militares na política têm uma vantagem crucial sobre políticos civis. Como não querem votos, e sim cargos e salários, não posam de Miss Simpatia. Dirigem suas piscadelas coquetes apenas ao capitãozinho que tem a caneta.
Mas a má fé dos de quepe é idêntica à dos sem-quepe.
Mal chegados ao Planalto, os generais já prometeram um Plano Marshall. Há 81 anos, o plano original respondeu à pressão dos povos europeus que venceram o nazismo.
Em 1945, houve guerras civis na Grécia e nos Balcãs; insurreições na França e na Itália; expropriações no Leste.
O Plano Marshall respondeu também ao interesse americano em reconstruir a Europa. Os Estados Unidos investiram ali o equivalente a US$ 100 bilhões. Pois bem. Existe pressão popular hoje? Há interesse em pôr capital produtivo no Brasil? Alguém vê US$ 100 bilhões à disposição?
A quimera militar, pois, é como a mitológica: tem cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. É uma figura especiosa da retórica, uma mentira troncha para enganar os trouxas. Como diz o vulgo, é uma fake news —um meticuloso amálgama do simbólico com o real.
Antes do Plano Marshall, estreou em Paris uma peça de Sartre que desde o título expressa a peste e o confinamento, “Entre Quatro Paredes”. Ela se passa dentro de um quarto, onde se digladiam um escritor heroico que se acovarda, uma patroa infanticida e uma funcionária ressentida.
Sem referências rombudas, por meio de uma linguagem estupenda, se percebe que, fora do quarto, rondam os lobos acinzentados, os nazistas, os colaboracionistas da ocupação. No fim, se revela que, sem demônios de tridente, enxofre e labaredas dramáticas, o quarto é na verdade o inferno.
As três personagens estão condenadas a se atormentarem por toda a eternidade. A última fala da peça marcou época: “O inferno são os outros”. Ao contrário do clichê que se tornou, ela mostra o primado da vida social, a interdependência entre o ser e os outros, e não sua solidão infinita.
Ela pode ser completada por duas outras frases de Sartre: “a existência precede a essência” e “o marxismo é a filosofia insuperável de nosso tempo”. Enquanto a sociedade estiver dividida em classes, a liberdade será motivo de engajamento, um devir. O inferno são os outros.
Alguns outros. Os lobos promovem carreatas pela peste na avenida Paulista e Brasil afora. Seguem ordens do presidente e de seu clã, dos seus generais, empresários e milicianos. A linguagem deles não é a da lei nem a da urbanidade. É a da mentira, da força, da agressão. São fascistas.
Eles devem ser enfrentados como tais. Com firmeza, união e audácia, e não com nhenhenhém. A existência da peste, vivida entre quatro paredes, ensina o que está na essência de Bolsonaro e sua gangue: a vontade de destruir e dominar.
*Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".
Demétrio Magnoli: Ciência serve para políticos fugirem à responsabilidade por suas decisões
Na guerra, o poder deve ser transferido aos generais? Na emergência sanitária, devemos recorrer ao 'governo dos epidemiologistas'? A resposta democrática é duas vezes 'não'
O físico Neils Bohr, um dos fundadores da teoria quântica, sabia o que não sabia. “A predição é muito difícil, especialmente sobre o futuro”, afirmou ironicamente, para explicar que a ciência cuida, essencialmente, da descrição. É útil recordar sua frase, nesses tempos em que líderes políticos —com o apoio de não poucos cientistas presunçosos— enchem a boca para dizer que suas decisões sobre a emergência sanitária fundamentam-se “na ciência”.
João Doria decidiu, “com base em ciência”, conservar regras lineares de isolamento social no estado de São Paulo, até 10 de maio. Já Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, resolveu flexibilizar as restrições no interior de seu estado —claro, “com base em ciência”. Os cenários são similares, embora não idênticos. A ciência também poderia ser invocada por cada um deles para adotar as iniciativas do outro.
O finado Mandetta justificou o isolamento social com o argumento de evitar o colapso hospitalar, um raciocínio que propicia flexibilizações em áreas de baixa pressão sobre leitos e UTIs.
O neurocientista Miguel Nicolelis, que assessora os governadores do Nordeste no mapeamento da epidemia, discorda veementemente. Segundo ele, em entrevista à TV, o isolamento social tem a finalidade muito mais ambiciosa de “evitar contágios”, o que exigiria rígidas quarentenas em todos os lugares, por período indefinido. Os dois falam —adivinhe!— em nome “da ciência”.
A ciência está na moda —o que é sempre bom, e melhor ainda nessa era de Bolsoneros, rezas coletivas para assustar o vírus, presidentes que receitam remédios, teorias conspiratórias veiculadas por ignorantes com cargo público. Contudo, o fetiche da ciência não ajuda a ciência e, sobretudo, serve como vereda para os políticos fugirem à responsabilidade por suas decisões, que são sempre políticas.
A ciência faz descrições e, no limite, formula hipóteses probabilísticas sobre o futuro. Um modelo sobre a pandemia da Universidade de Washington recomenda que nenhum estado dos EUA reabra a economia antes de maio —e que alguns deles só o façam no longínquo julho. Mas, rejeitando o fetichismo, o responsável pelo estudo disse que “se fosse um governador, certamente não tomaria decisões baseadas apenas no nosso modelo”.
O modelo da Universidade de Washington reflete, exclusivamente, uma especialidade científica: a epidemiologia. Não desapareceram, contudo, na tempestade viral, outros campos do conhecimento, como a sociologia e a economia (a “ciência sombria”, na definição de Thomas Carlyle). Essas ciências têm algo a dizer sobre os efeitos não epidemiológicos do congelamento prolongado de amplos setores da produção e do consumo.
A maior depressão mundial desde a Grande Depressão terá fortes implicações sobre a saúde pública. A ONU alerta para o risco de uma “fome de proporções bíblicas” em países pobres, como resultado da ruptura do sistema econômico. Investigações (científicas!) realizadas nos EUA indicam que o desemprego de longa duração corta a expectativa de vida em algo entre cinco e dez anos. Há mais coisas sob o sol do que o vírus.
O fundamentalismo epidemiológico (“evitar contágios”) pode ser tão desastroso quanto a negligência criminosa (“uma gripezinha”). A saída encontra-se na ciência desfetichizada —ou seja, numa visão holística da emergência sanitária.
A Alemanha, com folga no sistema de saúde, reduz paulatinamente as restrições na hora em que ainda se registram milhares de novos contágios diários. É uma decisão política, certa ou errada, tomada pelos representantes eleitos, não por epidemiologistas.
Na guerra, o poder deve ser transferido aos generais? Na emergência sanitária, devemos recorrer ao “governo dos epidemiologistas”? A resposta democrática é duas vezes “não”. No segundo caso, inclusive, para não converter a ciência em superstição.
*Demétrio Magnoli é sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Vinicius Miguel: Coronavírus, desarmonia federativa e estratégias democráticas para a pandemia
A redação de ponderações sobre eventos inconclusos é sempre delicada. Mais cautela ainda é necessária quando se trata de fenômenos que não podem ser inadvertidamente comparados
A pandemia da doença do corona vírus é um desses momentos históricos, sem equivalentes na história recente.
Tantas circunstâncias da conexão do tempo-espaço da sociedade industrial-global ainda conferem mais complexidade ao intrincado problema: migração internacional e fluxos acelerados de pessoas; celeridade de desinformação com potencial de letalidade sem precedentes e escassez de instituições multilaterais capazes, de pronto, a ofertar respostas efetivas para a pandemia.
Esses aspectos realçam a prévia fragilidade dos sistemas de saúde – sobretudo de Estados periféricos – apontando para a vulnerabilidade de nossas sociedades.
A incapacidade societal e estatal de coordenar a melhoria da saúde pública e coletiva conduz à reflexão sobre temas indispensáveis, mas usualmente negligenciados, como o saneamento básico, a vigilância epidemiológica e sanitária, a ampliação de imunização e demais mecanismos de rompimento da cadeia de transmissão de doenças, de melhora da qualidade de vida de uma população e do exercício democrático da administração de políticas de saúde.
Merece alguma ponderação a dimensão da paradiplomacia subnacional no combate à doença do corona vírus (Covid-19).
É bem sabido pelos estudos em Saúde Pública e Coletiva que as doenças não conhecem fronteiras e invalidam a clássica noção de soberania política: as bactérias e os vírus trespassam limites de nacionalidades sem para isso precisarem de passaporte.
A participação de entidades subnacionais (Estados e municípios) sempre foi um aspecto observado com peculiar curiosidade pelo Direito Constitucional e pela Política Internacional. Dito de outro modo, a persistência de Estados e municípios como atores e sujeitos de direitos (e obrigações) no esquema federativo e de relações internacionais é um tema de considerável importância.
A disputa interfederativa já se instalou no Estado brasileiro. Além disso, governadores e prefeitos tem recorrido a uma “paradiplomacia”, ao acessarem diretamente o governos da República Popular da China, em busca de produtos hospitalares, que seriam transportados para o Brasil por aviões da FAB.
Na atual pandemia, o comando constitucional de solidariedade nas responsabilidades para assegurar a saúde ganhou contornos graves.
Em tempos de indisponibilidade de equipamentos médico-hospitalares (como o clássico respirador), o acirramento de conflitos entre os entes federativos vem ocasionando intensas batalhas político-judiciais. Não menos, a escassez no mercado internacional dos mesmos itens, vem gerando disputas entre Governos Estaduais com fornecedores internacionais.
Na tentativa de coibir a remessa para o exterior de respiradores, o Ministério da Saúde proibiu exportação. Não bastando, proibiu igualmente a venda para qualquer município ou Estado, requisitando de forma compulsória os aparelhos.
Essa medida vem gerando evidente turbulência nas esferas locais.
Exemplo dessa disputa interfederativa, foi o caso do município de Recife (PE), que se socorreu na Justiça Federal para obter a liberação de 200 respiradores requisitados pela União
Outro exemplo foi o município de Cotia (SP), que usou do mesmo expediente judicial para vencer o bloqueio da União e ter acesso aos respiradores. A ansiedade foi tamanha, que em cena pitoresca, o vice-prefeito foi buscar os aparelhos na fábrica, sem que tivessem certificados de adequação para o uso.
Outro ponto de conflito entre Estados e União (ou, ao menos, à figura da Presidência da República) tem sido as medidas a serem adotadas.
As medidas de isolamento social, de fechamento de comércios e até mesmo de regulação do transporte aéreo e fluvial foram pontos de acirramento das tensas relações entre a Presidência e Governos Estaduais.
Nesse aspecto, duas Medidas Provisórias foram editadas pela Presidência da República, tentando subverter Decretos estaduais (as MP Nº 924, de 18 de março de 2020 e a MP Nº 926, de 20 de março de 2020).
Parte de tais conflitos escoou no STF, na Medida Cautelar na ADI 6.341 (DF). Na ação, o PDT demandou o Presidente da República e o Rel. Min. Marco Aurélio determinou que os Municípios e Governos podem/poderão, de forma concorrente, restringir a locomoção e o transporte aéreo/fluvial/terrestre. Marque-se que o STF suspendeu o dispositivo da MP 926 em apenas 04 dias após sua edição.
A escalada de ataques da Presidência da República contra poderes locais e autoridades regionais vem se dando igualmente na dimensão discursiva.
Em 23/03, Bolsonaro fez pronunciamentos lançando ataques aos Governos Estaduais:
"Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia na questão do corona vírus”
"Não exterminar empregos, senhores governadores. Sejam responsáveis. Espero que não queiram me culpar lá na frente pela quantidade de milhões e milhões de desempregados"
Tentando jogar a responsabilidade política e econômica aos Governadores pelo fechamento do comércio, em 27/03, o Presidente lançou:
“Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante, etc, que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo, os encargos trabalhistas, quem paga é o governador e o prefeito, tá ok?”
A retórica provocativa contra os governadores avançou, em 02/04, com o Presidente dizendo que os mesmos estariam “com medinho” do vírus e por isso não saiam às ruas.
Dessa forma, se evidencia o recurso de mobilização ao “povo”, atribuindo responsabilidades aos Governadores, seja pelas medidas de restrição de tráfego, seja pelo fechamento de comércios ou por possíveis prejuízos imediatos (salários) ou futuros (“extermínio” de empregos).
Na ausência de ordenamento de demandas, se vê a formatação de um quadro de desarmonia federativa.
A incerteza jurídica e a instabilidade econômica tendem a agir de forma conjugada em uma deterioração da sociedade brasileira, podendo aprofundar radicalismos ideológicos.
Há, também, o risco do acirramento de enfrentamentos partidários em decorrência da proximidade do calendário eleitoral. Com isso, podem-se antecipar impactos ainda mais negativos na busca de soluções colaborativas.
As experiências internacionais, como no caso das conhecidas epidemias de HIV/Aids, Ebola ou de Zika, demonstram que os esforços interinstitucionais e a solidariedade multilateral são os únicos remédios disponíveis para a mitigação do sofrimento humano.
Nessa configuração, na escala nacional, em diálogo com a sociedade civil, as Defensorias, os Tribunais de Contas e os órgãos do Ministério Público ganham um importante protagonismo não apenas de controle democrático, como de mediação e de proposição de afinamentos institucionais indispensáveis para se vencer a crise federativa e epidêmica em curso.
No escopo das relações internacionais, reconhecer a interdependência de Estados nacionais e a essencialidade de organismos multilaterais para uma estratégia de governança colaborativa agora é, mais do que nunca, um projeto para salvar vidas.
Que da necropolítica possa emergir um potencial colaborativo e democrático para a efetivação do direito social fundamental à saúde.
Míriam Leitão: Abertura do país antes da hora
Os estados começam a relaxar o isolamento, e o governo faz plano para depois da pandemia, mas o país ainda não venceu o vírus
O governo federal apresentou um programa de retomada da economia sem o Ministério da Economia. Lembrava uma mistura do PAC do período Dilma com os PNDs do regime militar, mas ainda em rascunho. É o Plano Pró-Brasil, com dois eixos, Ordem e Progresso, para quando a pandemia passar. Os estados começaram a anunciar a saída do distanciamento social. Alguns com mais planejamento, outros com menos, mas em todos os casos talvez seja cedo demais, porque o Brasil continua subindo o Everest. O coronavírus não nos deu trégua ainda.
O ministro Nelson Teich continua seu período de aprendizagem. Reclama das perguntas dizendo que só está no cargo há cinco dias. Mas ele não está inaugurando o Ministério da Saúde. A máquina está lá, e lá estão a memória e os dados que ele diz desconhecer. Quem aceita assumir no meio de uma emergência tem que saber o que fazer. O ministro Teich ainda pesquisa e divaga. Disse que se preocupa com a saúde dos hospitais privados se os enfermos de outras doenças não forem se tratar. “Os hospitais não vão sobreviver” e isso levaria, segundo ele, a outro problema, quando acabar a pandemia, “a não capacidade de atender à demanda reprimida do não covid”. Sobre o SUS ele faz apenas breves referências.
O ministro disse que em uma semana entrega diretrizes aos governadores sobre como abrir a economia. Chegará atrasado, porque os estados já estão fazendo seus próprios planejamentos. O governador João Dória apresentou ontem, com equipe completa, o seu Plano São Paulo. Tinha pelo menos as palavras certas, a obediência à ciência, a tomada de decisão no diálogo entre saúde e economia, e a criação de parâmetros para saber quando e por que abrir. Segundo a secretária de Desenvolvimento Humano, Patrícia Ellen, as atividades serão retomadas por fases, por regiões e por setores. Tudo será dividido em cores. Hoje o vermelho é dominante em todo o estado e o distanciamento continua até 10 de maio. Depois só abre dependendo de fatores como testagem e capacidade hospitalar. Não será ao mesmo tempo em todo o estado. “Em hipótese alguma será desordenada, com flexibilização aleatória ou desrespeitando a ciência.”
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também começou a abrir a economia obedecendo a critérios e seguindo a testagem feita por universidades. Em entrevista à CBN, disse que os testes feitos pela Universidade de Pelotas mostraram que apenas 0,05% dos gaúchos foram infectados e isso não pode parar um estado com 495 municípios. Essa conta de percentual da população também foi feita em Brasília por Teich. O ministro disse que 2% da população teve contato com o vírus e que 70% podem vir a ter, que isso vai demorar muito e um país não pode ficar parado tanto tempo.
É preciso, claro, planejar a retomada como estão fazendo alguns governadores, e é necessário pensar em como reativar o crescimento após a pandemia, como está fazendo o governo federal. O problema é que, antes de qualquer plano, precisamos saber como vencer o Covid-19. O país ainda vive o enorme desafio do crescimento do número de infectados e de mortos pelo vírus. Em São Paulo, 73% dos leitos de UTI estão ocupados, Manaus está em colapso, o governador Hélder Barbalho, do Pará, disse à revista “Veja” que teme que Belém seja uma nova Manaus, o governador Camilo Santana disse à Globonews que ainda é hora de aumentar o rigor. O Ceará foi um dos primeiros estados a adotar medidas, inclusive teve que entrar na Justiça para fechar o aeroporto de Fortaleza para voos internacionais. Mesmo assim, é o terceiro estado com mais casos da doença.
– É bom ter um plano, mesmo que não seja lançado na data. São Paulo deve ter sido o primeiro local de infecção, mas os números de casos ainda estão em fase ascendente da curva e nas próximas duas semanas devem continuar assim – disse a economista Monica de Bolle, sobre o plano do governador João Dória.
O Plano Pró-Brasil, lançado pelo ministro-chefe da Casa Civil, general Braga Netto, ainda não é nada além de uma coleção de projetos de obras. O anúncio passou a impressão de que tudo está sendo feito sem a concordância da equipe econômica. Tem o cheiro daqueles velhos planos estatizantes. E a ideia do Ministério da Economia não era bem esta.