coronavirus
Dorrit Harazim: E se…?
Caso Bolsonaro fizesse uma live defendendo o isolamento social, o índice de contaminação cairia para quanto?
‘Foi o derradeiro comando, o mais essencial”, escreveu George Orwell no clássico distópico “1984”, referindo-se à ordem da fictícia Oceania para que seus súditos rejeitassem tudo o que os olhos vissem e os ouvidos escutassem à margem da linha oficial. Donald Trump volta e meia adapta a citação quando aponta para o inimigo que adoraria domesticar: a imprensa independente. “Lembrem-se, o que vocês estão vendo e o que vocês estão lendo não é o que está acontecendo”, avisa sempre. No Brasil de Jair Bolsonaro o que se vê, ouve ou lê é bastante parecido com o que acontece intestinamente no governo manicomial eleito em 2018. Um assombro diário. E é o jornalismo arretado, investigativo, que nos permite ver e escutar. Já a tarefa de pensar fica a cargo de cada um.
Basta misturar alguns fatos da semana para constatar que eles mereceriam manter rigoroso distanciamento entre si. No Brasil que beira 15 mil mortes de Covid-19, o participante de uma reunião virtual de empresários com o chefe da nação se esqueceu de desativar a função “vídeo” e apareceu meio peladão na tela tornada pública. Debatiam-se os rumos da economia nacional. O país ultrapassa a barreira de 200 mil casos confirmados do vírus, o SUS pede socorro, erguem-se hospitais de campanha desossados e fraudados, aos moribundos resta esperar morrer fora da curva. Cinco meses após o primeiro caso da doença na China, Bolsonaro ainda se atrapalha com o uso de máscara e mistura “lockout” e “blecaute” com “lockdown” — talvez por horror ao real significado do termo.
Mas trocou de ministro da Saúde pela segunda vez em um mês, e comanda o país de 211 milhões de almas sem diretriz clara de enfrentamento da crise tríplice sanitária, política e econômica. A execução do pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 virou cipoal de armadilhas para os mais necessitados, e a realização do próximo Enem também promete ser. Jair Bolsonaro, pseudônimo Airton, Rafael ou Paciente 05 nos testes negativos de Covid-19 que apresentou dias atrás, libera academias de ginástica, salões de beleza e barbearias como sendo serviços essenciais. Não fosse tudo tão sério, o conjunto daria um roteiro e tanto para o diretor Cacá Diegues filmar um “Bye Bye Brasil 2020”.
Se em tempos excepcionais é desejável que o mundo tenha líderes de qualidades adequadas, em tempos de crise pandêmica é mais crucial ainda. É quando a diferença entre exercer ou não uma liderança sólida vai definir o cociente de vidas salvas ou mortes desnecessárias. Estatísticos e formuladores de métricas da Covid-19 poderiam trabalhar com uma variável hipotética: e se Jair Bolsonaro fizesse uma live proclamando que doravante, para o bem da amada pátria e em nome de Deus, todos deveriam aderir ao distanciamento social — se necessário até mesmo a um isolamento temporário? Considerando-se a fidelidade já demonstrada pelos milhões de apoiadores do presidente-mito, é provável que uma boa parcela o seguiria de casa e bíblia na mão.
Nessa hipótese, como seria a mudança de comportamento da curva do vírus no Brasil? O índice de contaminação diminuiria para quanto? E a mortandade? Poderíamos regredir quantas casas no sombrio ranking global? Dá para calcular o efeito de mais leitos de CTI e respiradores com tempo de se tornarem operacionais. Talvez deixássemos de ser o país-pária da atualidade, e fronteiras se entreabririam para o Brasil quando o mundo retomasse sua rotina. A gritante subnotificação de óbitos e contaminados do país teria mais chances de ser computada e aperfeiçoar as políticas sanitárias?
O exercício de métrica serve apenas para jogar o foco no tamanho da (ir)responsabilidade do ocupante do cargo.
Liderança é uma questão de fatos, não de opinião, e nem todo chefe de nação nasce estadista. As dificuldades se agravam quando o governante tem consciência íntima de estar aquém do exigido para conduzir um país em crise. No caso da Covid-19, deve ser irreprimível a tentação de acenar com a falsa promessa de uma vacina iminente ou uma droga capaz de inverter o quadro. A aposta presidencial no uso da cloroquina deve ter essa raiz.
Já disponível para outras enfermidades como malária mas ainda não liberada para tratar o coronavírus em sua fase inicial, a poção mágica abraçada por Bolsonaro torna-se, agora, política oficial para pacientes do SUS. Os dois ministros da Saúde defenestrados, ambos médicos, se opunham à medida devido a seus possíveis efeitos colaterais. “Votaram em mim para eu decidir e esta questão passa por mim”, decidiu o presidente.
Nos Estados Unidos, onde o número de óbitos se aproxima dos 100 mil, o Instituto de Alergias e Doenças Infecciosas deu início a um teste clínico da droga em 2.000 adultos. Até a conclusão do estudo, nem Donald Trump, outro fervoroso adepto da droga, terá vez. O terceiro promotor ativo da cloroquina é o venezuelano Nicolás Maduro, formando um improvável eixo de líderes errados para tempos de pandemia.
El País: Brasil supera a Espanha e já é o quarto país em infectados no mundo
Já são mais de 15.000 mortos, 816 nas últimas 24 horas. País se aproxima do Reino Unido em número de infectados, com 233.142 neste sábado. País digere a queda do segundo ministro da Saúde
O Brasil chega a este sábado com uma cifra triste de 15.633 mortes confirmadas por coronavírus. Foram 816 mortes confirmadas somente nas últimas 24 horas, segundo o Ministério da Saúde. O Brasil já superou a Espanha e a Itália em número de pessoas infectadas, com 233.142 casos confirmados. O país fica atrás agora de Estados Unidos, Reino Unido (241.461), um país de quase 70 milhões de pessoas, contra os 210 milhões no Brasil, em seguida Rússia (272.043) e Estados Unidos com quase um milhão e meio de infectados.
Quase 90.000 se recuperam do vírus, mas as contaminações continuam a escalas cada vez maiores. O epicentro da pandemia no país, São Paulo, soma 61.183 infectados e 4.688 mortes, seguido por Ceará e Rio de Janeiro. Essa realidade se depara com a insistência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em se concentrar na agenda econômica, enquanto perde seu segundo ministro da Saúde em plena pandemia. Nelson Teich pediu demissão por não aceitar a pressão de recomendar a cloroquina no combate à covid-19 — assim como seu antecessor, Luiz Henrique Mandetta (DEM-GO), um mês antes.
Eis um embate para o próximo nome que assumir a pasta. Até o momento não há estudos que comprovem a eficácia do medicamento no tratamento da covid-19. Duas grandes pesquisas feitas recentemente nos Estados Unidos com milhares de pacientes, e publicadas em respeitadas revistas científicas internacionais —o que significa que foram revisadas por outros cientistas—, mostraram que o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina não diminuiu a mortalidade por covid-19.
Enquanto isso, o Exército aumentou em 80 vezes a produção de cloroquina., conforme contou o EL PAÍS. O Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx) produziu 1,2 milhão de comprimidos do final de fevereiro até meados de abril. Até o começo da pandemia, a média era de 250.000 comprimidos a cada dois anos, segundo a assessoria de imprensa do Exército. O fármaco atende a quem sofre de lúpus, malária e, agora, segundo o Governo, pacientes com covid-19, apesar das negativas médicas. "A capacidade de produção pode ser de até 1 milhão de comprimidos por semana”, diz a instituição, que produz a droga sob encomenda do Ministério da Saúde.
O ex-ministro Mandetta chegou a dizer em entrevista ao Correio Braziliense que Bolsonaro quer “empurrar” a cloroquina para o tratamento de covid-19 para que as pessoas se sintam confiantes e reativem a economia. “Ele quer um medicamento para que as pessoas sintam confiança, para retomar a economia. A pessoa fica na sua tranquilidade achando que o medicamento resolve o problema. Como é barato e o Brasil produz, por ser medicamento da malária… Só que malária costuma dar em mais jovens”, afirmou.
O próximo à frente da pasta viverá essas pressões, assim como as cobranças pelo fim do isolamento social, outra bandeira de Bolsonaro durante a pandemia. Acertar um plano com o Brasil todo, que case cuidado com a saúde e com a economia é contar com o aceite geral da sociedade de soluções alternativas ao consenso mundial do controle da covid-19. A Organização Mundial da Saúde e a comunidade médica e científica advertem que é o único caminho para frear o ritmo de contágio neste momento agudo. Não se sabe o que acontecerá com o país conduzido com Bolsonaro. É um momento difícil no Brasil .
Eliane Brum: O nojo
É isso que diremos aos nossos filhos, que vamos esperar passivamente Bolsonaro nos matar a todos?
A menina tem pouco mais de dois anos. Está trancada em casa com os pais há dois meses devido à pandemia de covid-19. Sente falta dos amigos da creche, sente falta da sorveteria, sente falta da rua. Mas este não é o problema da menina. Nem é o problema de seus pais. O problema é que a menina tem medo. E não do vírus. Mas daquele que ela chama de “o homem mau”. Tem dificuldade de dormir, quer ficar agarrada à mãe, acorda assustada à noite. A menina tem pesadelos com “o homem mau”. E, quando desperta, “o homem mau” continua lá.
O “homem mau” é Jair Bolsonaro. De todo o medo daqueles que estão ao seu redor, a menina entendeu que o vírus vai ficar do lado de fora, se permanecerem em casa. Mas o homem mau não tem limites. Ele abusa. Invade. Viola. Mata. Os pais criaram uma história, a de que as árvores cresceram e cobriram o prédio, e assim o homem mau não enxerga a casa deles e, como não enxerga, não pode lhes fazer mal. Ela olha com seus olhos imensos, quer acreditar, mas já compreendeu que nem mesmo as árvores podem protegê-la, até porque descobriu que o homem mau também derruba a floresta. Há um novo vilão, e ele não vem dos contos de fadas ou dos filmes da Pixar.
Como ser uma criança e lidar com um vilão que é real, se nem os adultos parecem saber como se defender dele, se nesse conto da realidade ninguém parece saber como parar o vilão real? Se essa história parece não ter outro final que não seja a morte? A menina ainda não tem recursos para nomear o horror de estar num mundo a mercê de um vilão, e também o horror de perceber que nem seus pais, que nessa idade são quase todo o seu universo, podem protegê-la dele. Então, só balbucia: “o homem mau”, “o homem mau”, “o homem mau”. E não dorme.
Eu escuto muito. É minha profissão escutar muito e escutar pessoas de todas as cores, origens e classes sociais. A criança expõe, com os poucos recursos de que dispõe aos dois anos, um pânico que vai muito além dela e se espalha por todas as faixas etárias. Se o mundo vive um momento especialíssimo, o de uma pandemia global que está matando uma parte da espécie humana, nós, no Brasil, estamos sendo violentados dia após dia pela perversão do homem no poder em meio à expansão exponencial de um vírus que pode nos matar e já começou a matar pessoas que amamos. Tenho escutado gente muito diferente entre si afirmando que passou a ter reações físicas diante da imagem de Bolsonaro. Ou da voz. Ou mesmo se outra pessoa pronuncia o nome do presidente do Brasil.
Também acontece comigo. Comecei a sentir náusea diante de qualquer alusão a Bolsonaro. Não o enjoo de quando como um alimento que me faz mal. Mas o enjoo do asco. Sou possuída pelo nojo. Há mulheres que têm essa reação diante do estuprador, quando por alguma razão são obrigadas a vê-lo novamente. Outras pessoas manifestam reação semelhante no convívio com o sequestrador. Outras na presença do torturador. Bolsonaro é tudo isso. Ele tem nos violentado, sequestrado nossa sanidade, nos ameaçado com sua irresponsabilidade deliberada e também nos torturado todos os dias, usando para isso a máquina do Estado.
Somos um país de reféns, e o sequestrador está matando. Ele mata quando boicota as ações de combate à covid-19. Ele mata quando dissemina mentiras sobre remédios sem comprovação científica de eficácia. Ele mata quando contradiz a ciência. Ele mata quando diz que a covid-19 é um “resfriadinho”. Ele mata quando afirma que “o vírus não é tudo isso”. Ele mata quando forja a falsa oposição entre se proteger da doença e “salvar” a economia. E ele pode estar matando literalmente quando vai às ruas estimular outras pessoas a ir para as ruas, quando espirra e aperta mãos com seus dedos lambuzados de ranho, quando manipula celulares alheios, quando faz selfies com seus seguidores, quando pega crianças no colo. Ele mata e tenta dar um golpe quando faz tudo isso em manifestações golpistas contra a democracia, contra o Congresso e contra o Supremo Tribunal Federal. Bolsonaro mata quando, diante de milhares de brasileiros mortos por covid-19, ele zomba, tripudia e debocha: “E daí?”. Como diz Emicida, “eleja um assassino e espere um genocídio”.
Está acontecendo agora. Neste momento. É grande a possibilidade de que, no futuro, Bolsonaro seja julgado pelo Tribunal Penal Internacional e seja condenado por crimes contra a humanidade, como aconteceu com outros perversos antes dele. Pelo menos duas denúncias já alcançaram a corte. Mas, quando isso acontecer, será muito tarde. Poderemos estar todos mortos.
O que vamos fazer agora, já? Ou vamos deixar “o homem mau” nos matar a todos? O que, afinal, vamos dizer às crianças que esperam ser protegidas por nós?
Tenho nojo de Bolsonaro. Cada palavra que contorce sua face ao sair da boca é uma palavra violenta. O homem cospe cadáveres. Seus três filhos mais velhos são suas cópias, numeradas, como ele mesmo diz (zeroum, zerodois, zerotrês...), comprovadamente estúpidos como o pai e também perversos, pelo menos um deles claramente rondando a psicopatia. Precisei escrever um livro para compreender como foi possível eleger o pior humano para a presidência do Brasil. E não paro de seguir tentando compreender. Mas, para além de compreender, é preciso impedir. Nossa emergência é barrar Bolsonaro, porque a cada segundo a pilha de cadáveres aumenta. Não são números “os inumeráveis”, são pessoas que alguém amou.
Temos informação, pesquisa e capacidade de interpretação dos fatos para concluir que Bolsonaro não é uma anomalia, no sentido de que só existe ele. Se fosse assim, seria bem mais fácil. Bolsonaro representa uma parcela dos brasileiros. Não teria sido eleito não fosse esse núcleo que se identifica com ele e o reconhece como espelho. Segundo as pesquisas, Bolsonaro é a expressão de quase um terço dos brasileiros, que o apoiam mesmo em sua política de morte —ou provavelmente o apoiam exatamente pela sua política de morte. Teremos que nos debruçar por muito tempo e com muito afinco para compreender como nos tornamos um país capaz de produzir um tipo de humano tão desprezível e tão violento. Já temos bastante material de pesquisa para começar.
Sabemos também que não é apenas o Brasil. O mundo já produzia pessoas capazes de urrar de prazer diante de execuções de outros seres humanos ou diante de pessoas sendo devoradas por animais na arena antes de o Brasil existir. A história é pródiga em mostrar a massa gritando e pedindo mais sangue, mais dor, mais violência. Os horrores do século 20, como o nazismo, tão em evidência no momento, estão bem próximos de nós. Mas era possível desejar que talvez pudéssemos ter chegado ao século 21 com mais capacidade de lidar com nossa humana monstruosidade, mais aptos a nos proteger de personagens como Bolsonaro.
Por uma série de razões, já presentes no fato de termos sido o último país das Américas a abolir a escravidão negra, a sociedade brasileira tem suas deformações particulares para lidar. Como, por exemplo, a que nos faz um dos países campeões em linchamentos. Uma parcela dos brasileiros gosta de derramar o sangue dos outros, goza com a dor dos outros, traveste seu horror pessoal em moralidade. Amarra uma bandeira do Brasil no pescoço e vai defecar pela boca em praça pública, ameaçando todo o já desorganizado e insuficiente combate ao coronavírus e, portanto, condenando os mais desprotegidos à morte. É o pessoal capaz de buzinar na frente de hospitais, onde pessoas agonizam, e trancar ambulâncias no trânsito. Nós os conhecemos, seguidamente eles fazem parte da família.
Nenhum deles, porém, tinha chegado à presidência. Sempre parava no Congresso. E, então, esse limite foi rompido. O limite em que um Bolsonaro deixa de ser o pária do Congresso, o bufão que garantia sua reeleição como deputado mas não tinha nenhuma influência real, para se converter no presidente do Brasil. E mais: no “mito”. Ele assume o poder e, como anunciou que faria, converte o Governo numa máquina de produção de morte.
Sabemos que Bolsonaro não conquistou essa façanha sozinho. Que ele foi apoiado por parte das elites nacionais, em todas as áreas. Muitos já compreenderam o que fizeram e o abandonaram por medo de contaminar sua biografia com o sangue produzido em quantidades cada vez maiores por Bolsonaro. Hoje quase só restaram os piratas do empresariado, os generais com nostalgia de ditadura, os predadores do agronegócio e os evangélicos de mercado. Não é pouco o que ainda restou. Mas é menos do que já foi. Quem ainda tem o que perder, como Sergio Moro —herói decaído, mas não tanto que não tenha esperança de juntar os cacos—, está debandando. Do sangue, afinal, ninguém escapa. E há cada vez mais sangue nesse governo.
Já escrevi bastante sobre isso, antes e depois da eleição. Os artigos estão disponíveis para quem quiser lê-los. Agora, porém, preciso repetir que Bolsonaro está nos matando. É imperativo agir no modo emergência. Lutar contra Bolsonaro já não é apenas lutar por bandeiras essenciais como justiça social, igualdade de raça e de gênero, equidade na distribuição da renda, taxação das grandes fortunas, preservação da Amazônia e de seus povos. Passamos a um estágio muito mais agudo. Lutamos hoje para nos manter vivos, porque Bolsonaro boicota as ações contra o coronavírus. Bolsonaro não é coveiro, categoria corajosa e digna de brasileiros. Bolsonaro é assassino.
Não podemos lidar com um perverso como se o que ele faz fosse do jogo democrático. Nossa pergunta é clara: como vamos impedir Bolsonaro de usar a máquina do Estado para continuar a matar?
Nossos vizinhos temem por suas fronteiras. O Paraguai já constatou que a maioria de seus casos estão vindo do Brasil. No mundo inteiro o Brasil está se tornando um pária dominado por um pária. Brasileiros já são olhados com desconfiança. Governados por um maníaco, vivemos uma explosão no crescimento da contaminação por covid-19 e ninguém quer o vírus voltando a entrar pela sua porta depois de tanto esforço para tentar controlá-lo. O planeta já começa a enxergar uma tarja de risco biológico na nossa testa. É isso, sim, que pode prejudicar a economia por muito mais tempo.
Prestem atenção em quem está morrendo mais. São os negros, são os pobres. São os presos trancados em viveiros de vírus, numa violação de direitos inacreditável até para os padrões medievais do Brasil. Quem está morrendo mais são aqueles que desde a campanha Bolsonaro trata como matáveis —ou como coisas. O vírus mata cada vez mais nas aldeias indígenas e vai se espalhando pela floresta amazônica. Quando os invasores europeus chegaram, os vírus e as bactérias que trouxeram com eles exterminaram 95% da população indígena entre os séculos 16 e 17. Há chance de que o novo coronavírus produza um genocídio dessa dimensão caso não exista um movimento global para impedi-lo.
Bolsonaro já demonstrou que apreciaria se os indígenas desaparecessem ou se tornassem outra coisa. “Humanos como nós”, nas suas palavras. Humanos vendedores e arrendadores de terra, humanos mineradores, humanos plantadores de soja e de cascos de boi, humanos amantes de hidrelétricas, de ferrovias e de rodovias. Humanos que se descolam da natureza e a convertem em mercadoria.
São os povos indígenas que colocam literalmente seus corpos diante da destruição da Amazônia e de outros biomas. Mas parte dos apoiadores de Bolsonaro, que hoje também lideram campanhas de “abertura do comércio” nas cidades amazônicas, tem matado os indígenas (e também camponeses e quilombolas) à bala. O vírus pode completar o extermínio de uma forma muito mais rápida e numa escala muito maior. Basta fazer exatamente o que Bolsonaro está fazendo: nada para protegê-los e tudo para estimular a ruptura das regras sanitárias da Organização Mundial da Saúde; nada para protegê-los e tudo para estimular a invasão de suas terras por garimpeiros e grileiros. O que está em curso é exatamente isso: um genocídio.
E também ecocídio, porque na Amazônia esses entes não andam separados. Como sabemos, os destruidores da floresta não fazem home office. O desmatamento avança aceleradamente, aproveitando a oportunidade da pandemia. Os alertas cresceram 64% em abril, depois de já terem batido recordes no início do ano. Bolsonaro demitiu os chefes de fiscalização do Ibama que estavam tentando impedir o massacre da floresta. Está militarizando tanto a saúde, ao colocar militares em postos importantes do ministério, quanto a proteção do meio ambiente, ao subordinar o Ibama e o ICMBio ao Exército nas ações de fiscalização. Em toda a região, camponeses, ribeirinhos e indígenas denunciam que os caminhões cheios de árvores recém derrubadas não param de atravessar as estradas vindos da floresta. Eles gritam. Mas quem os escuta?
Bolsonaro está transformando (também) a Amazônia num gigantesco cemitério. Ele é tão perverso que usa a pandemia para matar a floresta e tudo o que é vivo. O presidente do Brasil pode se tornar o primeiro vilão da história que, sem poder nuclear, tem grande poder de destruição. Sem floresta amazônica não há como controlar o superaquecimento global. Sem controlar o superaquecimento global o futuro será hostil para a espécie humana. Se a Amazônia chegar ao ponto de não retorno, do qual se aproxima velozmente, seu território poderá se tornar um disseminador de vírus nos próximos anos. Neste momento, por mais que os demais países promovam ações de controle e fechem suas fronteiras, sem conter o novo coronavírus num país com 210 milhões de habitantes será muito difícil controlar a pandemia no planeta.
É disso que se trata. É real. Aqueles que lavam as mãos, como disse o ator Lima Duarte, “o fazem numa bacia de sangue”. Lima Duarte fez essa declaração após o suicídio de seu colega Flávio Migliaccio, que tirou a própria vida dolorosamente decepcionado com o Brasil e com os brasileiros. Eu iria ainda mais adiante que Lima Duarte. Quem segue com Bolsonaro não está apenas lavando as mãos numa bacia de sangue. Está matando junto com ele. Uma das perversidades do perverso é produzir cúmplices. E é isso que Bolsonaro faz. Não é possível testemunhar o que está acontecendo e seguir com o humano monstro sem se tornar o humano monstro. Não haverá sabonete, álcool gel, desinfetante capaz de apagar esse sangue das mãos dos assassinos, estejam eles na Fiesp, no Congresso ou no Theatro Municipal.
O que vamos dizer à criança de dois anos que denuncia a nossa impotência em protegê-la quando ela pede socorro contra “o homem mau”?
Neste momento, seguidores de Bolsonaro se aglomeram em Brasília. Alegam que estão praticando a desobediência civil. Como tudo o que tocam vira mentira, todas as palavras saem estupradas depois de passar por sua boca, o que fazem nada tem a ver com desobediência civil, conceito caro a tantos movimentos que tornaram o mundo mais justo e igualitário. O que exercitam diariamente é a mais vil obediência ao maníaco do Planalto e também aos seus próprios instintos de morte, ao seu gozo por sangue e pela dor dos outros. O que treinam cotidianamente é a obediência ao seu próprio sadismo e desejo de violência que Bolsonaro libertou pelo exemplo e pela impunidade que desfrutou. Tentam encobrir seus piores instintos com a bandeira do Brasil, da qual também se apropriaram como se o país pertencesse apenas a quem mata o Brasil.
Desobediência civil hoje é ficar em casa apesar do maníaco que manda sair. Desobediência civil é cuidar de todos os outros apesar do perverso que diz “e daí?”. Desobediência civil é desobedecer ao projeto de genocida que está no poder. E para isso é necessário usar os instrumentos de nossa cada vez mais ferida democracia para tirá-lo de lá e impedir que continue matando. É isso ou dizer para a criança de dois anos que somos covardes demais para protegê-la e, depois da palavra o gesto, abrir a porta da casa para a morte.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Eros Roberto Grau: O tempora, o mores
O tempo nos livrará da angústia da pandemia e da insegurança política que suportamos
Repito a mim mesmo um verso de um poema do Augusto Meyer, gaúcho como eu que conheci pelas mãos de Manuel Bandeira em 1958, no Instituto Nacional do Livro, no Rio de Janeiro. Tornamo-nos amigos então, ele encantado pelo fato de eu declamar alguns de seus poemas. Em especial aquele verso que, em glosa, agora repito assim: masco e remasco a minha ansiedade, minha angústia chewing gum.
Começo a escrever estas linhas também a partir do Cântico Negro, do José Régio: “não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí!”. O ímpeto de escrever a respeito de mim mesmo e da superposição do passado, do presente e do futuro toma conta de mim. Múltiplo enquanto ser humano, fui membro do Poder Judiciário, voltando a atuar como advogado desde 2010. Hoje produzo livros jurídicos e literatura de verdade, retornando à fotografia. Muitos eu mesmo no passado e no presente – hoje, aqui, agora – convictos de que o tempo é convenção.
Escrevi a respeito disso no meu A(s) Mulher(es) que Eu Amo, afirmando que os acontecimentos não são encadeados, não se seguem uns aos outros. Menos ainda consequentes. Nada impede que o antes ocorra depois e um estalar de dedos seja mais longo do que a eternidade. No quadro da literatura que tento praticar, um sujeito inventou um descompressor do tempo, mexeu no lugar errado e pum! Entramos na Antiguidade e passamos a ser uma civilização sem pré-história. Começamos pela metade. Dei-me conta de que se aumentarmos cem vezes, exatamente na mesma proporção, o tamanho de todas as coisas que enxergamos, nada será diferente do que é. Tudo exatamente na mesma proporção. Objetos, pessoas, horizontes, nós mesmos. Multipliquem por mil ou os dividam por um milhão e tudo será exatamente igual ao que temos aqui, agora.
Realmente estou confuso. Não sei a respeito do que escrever, pois o tempo é uma convenção e – aprendi ouvindo o Lulu Santos – nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. Pois tudo passa, tudo sempre passará. O velho Heráclito me ensinou ser impossível pisarmos duas vezes no mesmo rio. Depois Hegel, ao ensinar que a História não se repete e outro autor, ao escrever sobre o 18 Brumário.
Ainda que seja assim, manifestações do nosso Poder Executivo hoje me perturbam, de sorte que – sorte ou azar? – não sei o quê, do que falar, escrever…
Aqui mesmo, na edição de 2 de abril passado, afirmei que a pandemia que hoje suportamos impacta sobre o todo do qual somos meras partículas. Política é a atuação dos que se ocupam dos assuntos públicos, no quadro em que estão inseridas relações institucionais e sociais. A suposição de que se possa instalar acirramento entre essas relações é expressiva de ignorância ou de más intenções. Atuação que, na primeira hipótese, conduz a conflitos entre instituições políticas e o todo social. Conflitos que nos levam àquelas palavras de Jesus: “Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem”. Na segunda hipótese, expressiva de más intenções. Os graves momentos que hoje vivemos trazem de volta um poema de Álvaro Moreyra, no qual ele afirma que palavras não dizem nada, melhor é mesmo calar. Nada mesmo a dizer a respeito da atuação de quem se dispõe a agredir o todo a fim de obter vantagens pessoais.
São terríveis os momentos que hoje vivemos. Além da pandemia que assola o mundo em seu todo, habitamos um país onde os juízes dos nossos tribunais são agredidos aos gritos pelas ruas. Conheci Alexandre de Moraes na Faculdade de Direito da USP. Ele e o Toffoli eram da mesma turma. Eu – mais velho que eles – professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Anos depois, início do ano 2000, Alexandre tornou-se meu colega, docente lá nas Arcadas. Quando chegou ao STF eu já me aposentara por conta da idade, mas esses três vínculos nos unem para sempre. Um homem correto, praticante de prudência – a phronesis aristotélica – ao decidir corretamente, no quadro da Constituição e das leis. A conduta de Alexandre como magistrado traz a mim esperança e certeza de que o Tempo nos livrará não apenas da angústia decorrente da pandemia, mas também da insegurança política que nos dias que correm suportamos.
Felizmente, no entanto, a angústia dos dias de hoje é superada por momentos de alegria, quais os que me trouxeram dois professores das velhas Arcadas do Largo de São Francisco que haviam rompido a amizade comigo e há dois ou três dias me convocaram para a ela voltarmos.
A música e a poesia me acompanham, por conta do que vou andar por aí, pra ver se encontro a paz que perdi! De repente soa em meus ouvidos o último verso de um poema do meu amigo Manuel Bandeira, Pneumotorax: a única coisa a fazer é tocar um tango argentino!
Os que por aí estão deveriam ouvir Sócrates: só sei que nada sei! Embora no fundo de mim mesmo eu suponha que Sócrates hoje se referiria a outros, assim: só sei que eles nada sabem!
*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do Supremo Tribunal Federal
“O que virá depois?” é tema de webinar da Biblioteca Salomão Malina
Conversa online vai abordar mundo pós-pandemia do coronavírus e crise política no Brasil
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
A Biblioteca Salomão Malina realiza, nesta sexta-feira (15), a partir das 18h30, roda de conversa online (webinar) com o tema “O que virá depois?”, para discutir o pós-pandemia do coronavírus. A webconferência terá a participação do ex-governador do Distrito Federal Cristovam Buarque, do jornalista Luiz Carlos Azedo, do sociólogo Caetano Araújo e do historiador Victor Missiato. A transmissão será realizada pelo página da FAP (Fundação Astrojildo Pereira) no Facebook e pelo canal da entidade no Youtube.
Cristovam lamenta a crise sanitária global provocada pela pandemia, que já matou mais de 11 mil pessoas no Brasil e 284 mil no mundo até o início desta semana, mas reforça que a sociedade precisa se organizar e participar de debates virtuais no período de isolamento social. “Não podemos deixar que a epidemia nos confia e impeça o desenvolvimento de nossas ideias”, afirma. “Já que estamos confinados, é fundamental fazermos rodas de conversas pelos meios de comunicação a distância. Não podemos ser vencidos pela epidemia”, diz.
O sociólogo Caetano Araújo, que também é diretor executivo da FAP, ressalta a importância da webinar da Biblioteca Salomão Malina também em razão da crise política que atinge o Brasil. “Eventos como esse são particularmente importantes porque estamos enfrentando problemas complexos, agudos. De um lado, uma crise sanitária sem precedentes no país nos últimos 100 anos e, de outro lado, estamos enfrentando crise política que envolve escalada golpista de extrema direita”, assevera.
De acordo com Araújo, a sociedade deve debater política mesmo durante o isolamento social. “A pior coisa a se fazer é parar de discutir política. Como não podemos fazer reuniões presenciais e manifestações, o que temos de fazer é organizar discussões e debates sobre esses temas pela via do possível, que é a da internet”, pondera, para continuar: “Temos que persistir, conversar, trocar ideias, avançar na formulação de possíveis soluções, prospectar cenários futuros”.
Na avaliação de Missiato, doutor em história pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), a webinar da biblioteca Salomão Malina é um exemplo de que a pandemia do coronavírus vem acelerando a tendência da “participação democrática dos cidadãos” no mundo digital. “Acaba sendo aceleração de uma tendência até por conta das dificuldades de as pessoas se reunirem em cidades com muito trânsito ou em eventos que tenham que demandar diferentes atores de vários lugares, por exemplo”, afirma.
Ele observa que a pandemia do coronavírus é a primeira grande pandemia globalizada no que diz respeito à informação, por meio da participação dos cidadãos nas redes sociais. “De certa forma, as redes sociais ampliaram, globalmente, o debate em torno desse assunto. Mesmo que muitas vezes de forma tumultuada, democratizaram muito o debate”, acentua.
Victor acentua que, apesar da grande participação popular nas discussões, o poder de decisão sobre os assuntos debatidos ainda é concentrado. “Todos os debates nas redes sociais trouxeram uma politização muito grande em relação à própria humanidade”, pontua. “A participação política do cidadão na era digital conferiu ao cidadão enorme participação. Não quer dizer que o ambiente esteja mais plural, mais respeitoso”, observa.
Reinaldo Azevedo: Bolsonaro e Guedes querem excludente de ilicitude e AI-5 da pandemia
Medida provisória que protege agente público é direito criativo de lunáticos
A medida provisória 966 é escandalosamente inconstitucional. No hospício a que, por hábito, chamamos “governo”, resta só loucura. Foi-se o método. Quer a excludente de ilicitude da pandemia ou o AI-5 do coronavírus. Segundo o texto, os agentes públicos só poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem por dolo ou erro grosseiro. É direito criativo de lunáticos.
O texto vale para decisões ligadas à Covid-19, afeitas à saúde e à economia. O que é “erro grosseiro”? Jair Bolsonaro e Paulo Guedes explicam: é o “erro manifesto, evidente e inescusável, praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.” O que esse mar de subjetividade quer dizer? Qualquer coisa. Contra o usuário do serviço estatal.
Dispõe o parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
A inconstitucionalidade da MP, pois, é arreganhada. Poderiam objetar: a responsabilização do Estado na relação com o cidadão resta preservada, o que a MP altera é o “direito de regresso”, que é a possibilidade de o ente estatal, então, acionar o servidor.
Errado! Quando se limita uma demanda ao tal “erro grosseiro” e sua absurda imprecisão, o direito de apresentar uma petição ao Estado vai para o ralo. Sob o pretexto de proteger o servidor, querem criar o habeas corpus preventivo para o Estado.
Sem a evidência do “erro grosseiro” e do “dolo”, legitima-se o ato do ente estatal por ser ente estatal. Lembra o artigo 11 do AI-5: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”. Vale dizer: aquilo a que chamavam “revolução” legitimava o ato, e o ato, tudo o que dele derivasse. Era o círculo perfeito da tirania.
De fato, situações como a da pandemia podem gerar tal receio nos servidores que há o risco do apagão administrativo. Já existem os instrumentos para responder a isso. Um deles é a lei 13.655, de abril de 2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Leiam.
Ela é eficaz, nas esferas civil e administrativa, para proteger o servidor e o Estado de eventuais ações ou decisões judiciais fundadas apenas em “valores jurídicos abstratos, sem que que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Na esfera penal, há a nova lei que pune abuso de autoridade.
No texto da trinca desastrada, está escrito que “o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público”. Ora, o tal “nexo de causalidade” entre a conduta e o resultado danoso é o que comumente se chama “prova”. Não dá!
O presidente, com sua militância irresponsável e dolosa em qualquer esfera, vê se agigantar a montanha de cadáveres, mesmo com a brutal subnotificação. O ministro falha de maneira grotesca num diagnóstico minimamente realista da crise e na assistência a pobres e empresas.
Ambos temem uma avalanche de ações por improbidade administrativa e tentam uma vacina para se proteger. Estão perdidos e vituperando contra os mortos.
O tempo passou na janela, e as Carolinas não viram. Bolsonaro e Guedes têm seus fantasmas debaixo da cama. Num caso, o comunismo; no outro, o nacional-desenvolvimentismo. São, com a licença do Caetano Veloso de 1968, dois combatentes que pretendem matar amanhã velhotes inimigos que morreram ontem. Atrasos distintos e combinados. Suas ideias povoam cemitérios de passado e do presente, literal e metaforicamente.
Como não haverá tanques para atuar como “Deus ex machina” na tragédia dos mortos sem sepultura individual, buscam esbulhar direitos dos vivos para se proteger de sua própria incompetência. Ganharam um necessário Orçamento paralelo de guerra. Agora querem uma Constituição paralela. Não terão.
Hélio Schwartsman: Passaporte para a felicidade
Em teoria, faz sentido testar pessoas e permitir que aquelas que apresentem anticorpos voltem a trabalhar
Se há pessoas que já são imunes à Covid-19, seria loucura não utilizá-las na prestação de serviços essenciais e para começar a reerguer a economia. Não ignoro que o Sars-Cov-2 é um vírus novo, sobre o qual existem mais dúvidas do que certezas. Ainda não sabemos ao certo se uma infecção prévia confere imunidade nem, em caso afirmativo, por quanto tempo. Há também dúvidas quanto à confiabilidade dos testes para anticorpos disponíveis.
Muita pesquisa está sendo feita, e essas questões deverão ser respondidas em breve. Pelo que sabemos de outros coronaviridae, a melhor aposta é que os recuperados desenvolvam ao menos uma imunidade transitória. Também já teve início um processo de validação dos testes que deverá excluir os que não prestam.
Assim, se essas hipóteses se confirmarem, faz sentido, pelo menos em teoria, implementar os passaportes de imunidade, isto é, testar pessoas e permitir que aquelas que apresentem anticorpos (mais especificamente as imunoglobulinas do tipo G) voltem a trabalhar.
Usei a expressão “pelo menos em teoria” porque a pandemia gera um ambiente em que até a aplicação de medidas do mais puro bom senso produz efeitos colaterais. Os passaportes criariam duas classes de cidadãos. Os imunes estariam autorizados a trabalhar e a circular, estariam dispensados de usar máscaras e poderiam frequentar bares e restaurantes (à medida que fossem reabertos), enquanto os não imunes ainda teriam de viver os rigores do distanciamento social ou mesmo do confinamento.
Não é preciso bola de cristal para perceber que muita gente se veria tentada a infectar-se de propósito para passar para a classe dos privilegiados. Dependendo do tamanho desse movimento, poderíamos ver a curva dos contágios acentuar-se. Ainda acho que é insano manter em isolamento quem não precisa estar, mas é necessário reconhecer que o mundo se tornou um lugar ainda mais paradoxal.
Monica de Bolle: A economia da exclusão
Do debate sobre a renda básica à discussão sobre desigualdade de gênero e racial, o país que se revela é devastador
Como muitos leitores já sabem, tenho usado parte de meu tempo neste período de quarentena para me dedicar a um canal que criei no YouTube com a finalidade de disseminar conhecimentos sobre economia e de trazer alguns debates. A hora que eu perdia entre idas e vindas do trabalho agora uso nessa empreitada. Entre explicações sobre economia e debates com interlocutores, tem ficado cada vez mais evidente que nossa economia, essa economia que aceitamos como natural e pela qual passamos a conviver com injustiças diversas, é profundamente excludente.
Segundo dados do IBGE, em 2018, quando a economia brasileira estava “em bom estado”, isto é, não havia crise e o país ensaiava uma retomada, tínhamos cerca de 12 milhões de desempregados. Desses 12 milhões de desempregados, dois terços eram pessoas negras e pardas. Dois terços. Estamos agora no meio de uma pandemia, e o desemprego haverá fatalmente de subir. Se a queda do PIB for da ordem de 10% neste ano, conforme estimo, teremos, em breve, mais de 20 milhões de desempregados no país, ou 10% da população brasileira. Vou repetir: em poucos meses, 10% da população brasileira provavelmente estará desempregada. Quem serão essas pessoas? A julgar pelos dados de 2018, certamente a composição do desemprego será marcada pela gritante disparidade racial, refletindo o que já está acontecendo em outros países. Aqui nos Estados Unidos, onde a taxa de desemprego alcançou exorbitantes 14,7% no mês de abril, os que perderam seus empregos foram desproporcionalmente negros e hispânicos.
Eis outra dimensão de nossa imensa economia da exclusão: cinco anos após a chamada PEC das Domésticas ter sido sancionada — a emenda constitucional que regularizou o trabalho doméstico garantindo equidade de benefícios —, 70% das pessoas que trabalham no setor continuam na informalidade. Como também mostram os dados do IBGE, as mulheres são maioria no trabalho doméstico (97% dos cerca de 6,5 milhões de trabalhadores nesse setor), e, portanto, são elas as mais atingidas pela informalidade. Trata-se de mais de 4 milhões de pessoas trabalhando em condições precárias, muitas delas mães que sustentam famílias. São mães que sustentam famílias sem receber sequer um salário mínimo integral. Como revelam diversos estudos do Ipea, essa mulheres são majoritariamente negras e de baixa escolaridade. As trabalhadoras domésticas, lembra-nos o IBGE, são as que têm o menor rendimento médio entre todos os trabalhadores do mercado de trabalho.
Somos um país que cria muitos obstáculos para a entrada e a permanência de negros, pardos e mulheres no mercado de trabalho. Países que excluem, documentam os estudos empíricos, são países que têm pouco dinamismo e baixo crescimento. Países excludentes são aqueles que perpetuam as desigualdades, as quais se tornam estruturais por se reproduzirem de geração em geração, na falta de ações transformadoras. Nada disso é novidade, os dados brasileiros são conhecidos e há muita gente dedicada a estudar e esmiuçar esses temas há décadas.
O que há de diferente agora? Nada. E tudo. Nada, haja vista que a economia da exclusão é uma característica nossa como país. E tudo porque o momento atual suplica por apoio a uma mudança profunda. Tenho trazido para este espaço a discussão sobre a renda básica permanente no Brasil, e ela é um pilar fundamental a partir do qual podemos tornar não só nossa economia mais inclusiva, mas fazê-lo reconhecendo a dignidade das pessoas. É importante debater os entraves institucionais que contribuem para a manutenção de uma parte considerável de nossa população em condições de extrema precariedade e considerar os dezenas de milhões de adultos e crianças que não têm acesso a quase nada. Como bem disse o presidente da Cufa, com quem debati dia desses, o verdadeiro Estado Mínimo apregoado pelo ministro da Economia está nas favelas, nas comunidades, nas periferias.
Temos um governo cujo discurso é o da exclusão. Contudo, temos uma pandemia e uma crise econômica que revelam de forma crua a extensão dessa exclusão, as injustiças a ela associadas e a precariedade da vida de imensa parte de nossa população, logo, de nossa economia. Podemos optar por manter a economia da exclusão. Ou podemos finalmente fazer algo para começar a resolver problemas que, se não solucionados, implicarão desperdício de vidas e redução da capacidade de desenvolvimento do Brasil.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Ricardo Noblat: Como Bolsonaro pagará a conta do mal provocado pelo Covid-19
Não será com o cartão corporativo da presidência da República
A maior demonstração de pesar do presidente Jair Bolsonaro pela morte até aqui de mais de 10 mil brasileiros vítimas do coronavírus limitou-se a duas frases ditadas, ontem, por ele à entrada do Palácio da Alvorada: “Lamento cada morte que ocorre a cada hora. Lamento”.
Em seguida, explicou o que lhe caberia fazer a respeito: “Agora, o que podemos fazer, nós todos, é tratar com o devido zelo os recursos públicos. Está tendo denúncia em todo lugar. Gente presa. Em vez de fazer notinha de pesar, tem que dar exemplo. Gastar menos”.
Engana-se quem pensa que ele se referia à denúncia de que gastou só este ano com cartão de crédito corporativo R$ 3,76 milhões, segundo o Portal da Transparência. O valor representa um aumento de 98% em relação à média dos últimos cinco anos no mesmo período.
Também não se referia à fraude descoberta pelo Ministério da Defesa: militares de todas as patentes, da reserva e da ativa, se cadastraram no aplicativo da Caixa Econômica para receber o auxílio emergencial de R$ 600. A lei que criou o benefício não lhes deu tal direito.
Bolsonaro referia-se a denúncias de superfaturamento na compra por Estados e municípios de equipamentos médicos para enfrentar a pandemia. Há que se apurar se houve superfaturamento ou se o preço pago se deveu à procura bem maior do que a oferta.
Se tivesse mais preocupado com vidas perdidas do que com economia, Bolsonaro não teria assinado mais um ato de sabotagem às medidas de isolamento adotadas por governadores e prefeitos. Mas foi o que ele fez ontem, de resto como prometera fazer há um mês.
Baixou outro decreto, desta vez para incluir academias de ginástica e barbearias entre as chamadas “atividades essenciais”, não obrigadas a permanecerem fechadas. Com isso, ele incentiva a reabertura de negócios que podem provocar a circulação de muita gente.
Bolsonaro quer mais é que as pessoas se exponham. No último sábado, ele só suspendeu o churrasco que ofereceria a amigos e parentes no Palácio da Alvorada quando soube que o Congresso e o Supremo Tribunal Federal haviam decretado luto pela morte de tantas pessoas.
Agora, são 11.519 mortos. E o número de casos confirmados de coronavírus no país está próximo de 170 mil. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que valem para Estados e municípios as medidas de confinamento impostas por seus governantes, não pelo presidente da República.
Pouco importa. Bolsonaro continuará a assinar decretos sem validade. Estimular a desobediência civil é o seu propósito, mas não só. Mesmo com decretos inválidos, ele agrada parcela de sua base de eleitores de olho na reeleição em 2022. É candidato antes de ser presidente.
Em tempo: tão logo foram informados sobre o decreto assinado por Bolsonaro, os governadores do Pará, Maranhão, Ceará e Bahia se apressaram a dizer que academias e barbearias permanecerão fechadas em seus Estados. Outros, hoje, deverão dizer o mesmo.
Bolsonaro, queira ou não, pagará grande parte da fatura pelo mal do século que poderia ter combatido. Fugiu à luta. E não será com cartão de crédito corporativo da presidência da República que saldará o débito. Será com a hemorragia de votos que o desidratará.
Ramagem ataca Moro e nega maior aproximação com os Bolsonaro
Saiu da Polícia Federal como chefe da ABIN. Espera voltar como diretor
A respeito do delegado Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), seus desafetos poderão dizer o que quiser – menos que ele não tenha cara de pau. Tem, sim, e o demonstrou durante mais de quatro horas de depoimento à Polícia Federal.
Ramagem ousou negar maior proximidade com o clã dos Bolsonaro, logo ele que que já foi hóspede do presidente da República em sua casa no Condomínio Vivendas da Barra, no Rio. Logo ele que compareceu ao casamento do deputado Eduardo, o Zero Três.
O delegado cuidou da segurança de Bolsonaro depois da facada em Juiz de Fora. Foi graças a isso que os garotos Bolsonaro se encantaram com ele e convenceram o pai a nomeá-lo para a ABIN, e mais recentemente, para a direção-geral da Polícia Federal.
Ouvido no inquérito que investiga a denúncia de Sérgio Moro de que Bolsonaro tentou intervir politicamente na Polícia Federal, Ramagem defendeu o presidente e atacou o ex-ministro. Definiu Moro como “intransigente” e insubordinado por ter sido contra a sua nomeação.
Aproveitou para elogiar Bolsonaro. Agradeceu a confiança do presidente em seu trabalho. No limite, reconheceu que “goza da consideração, respeito e apreço” da família presidencial. Saiu da Polícia Federal como chefe da ABIN. Espera voltar como diretor.
Ricardo Abramovay: Lições da pandemia para a crise climática
Ao contrário do coronavírus, as emissões de gases de efeito estufa não respeitam o fechamento de fronteiras
A “Eu sabia que havia cem casos de coronavírus na França e estava para viajar àquele país. Eu sabia também que a evolução da doença era exponencial. Eu nem considerei o fato de que se a taxa de infecção estivesse dobrando a cada três dias, em um mês, o número inicial de infectados seria multiplicado por mil. Tudo isso está além de nossa compreensão intuitiva. Inclusive da minha”.
O depoimento à revista New Yorker seria trivial, não fosse o fato de que ele vem de ninguém menos que Daniel Kahneman, psicólogo, autor de “Rápido e Devagar” e contemplado com o Nobel de Economia em 2002, por mostrar o quanto nossos comportamentos distanciam-se da imagem canônica do homem econômico racional. Seu trabalho inspirou as pesquisas de importante vertente do pensamento social contemporâneo, voltada ao estudo da maneira como as pessoas se comportam diante do risco.
Um de seus mais importantes discípulos, Paul Slovic, abriu caminho a estudos que buscam explicar as bases psicológicas a partir das quais nos relacionamos com os riscos e sobretudo com os riscos resultantes de tecnologias industriais. No que se refere ao coronavírus, Slovic, ilustra o crescimento exponencial mostrando que, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, o tempo entre o primeiro caso da doença e a marca de cem mil atingidos foi de 67 dias. Outros cem mil casos foram registrados 11 dias depois. E levou apenas quatro dias para que mais uma leva de 100 mil pessoas adoecessem.
A análise de risco é fundamental sobretudo para eventos de baixa probabilidade, cuja ocorrência, no entanto, é de grande impacto. Sabemos lidar com eventos relativamente habituais como os acidentes de trânsito ou diferentes tipos de doenças. Mas faz parte dos mecanismos cognitivos básicos com base nos quais organizamos nosso dia-a-dia, guiarmo-nos pelo que já sabemos e a partir de referenciais que nos são fornecidos pelos grupos a que pertencemos. Tendemos a focar nossas decisões no curto prazo; a ignorar lições de desastres passados; a imaginar que nunca seremos atingidos por males que afetam os outros; a aderir a explicações simples diante de fenômenos complexos e a fazer escolhas apoiados na conduta e no universo cultural dos que nos são próximos.
Estas características cognitivas, resultantes de nossa própria evolução, constituem obstáculos à percepção de fenômenos que têm trajetória contrária ao que nos ensina nossa experiência cotidiana, como mostraram outros dois especialistas em análise de risco, Robert Meyr e Howard Kunreuhther, em The Ostrich Paradox.
A experiência acumulada no estudo sobre percepção de riscos é que explica o fato de Paul Slovic e Howard Kunreuther fazerem exatamente agora um alerta fundamental. Há outro fenômeno que traz a marca do crescimento exponencial e diante do qual, igualmente, se espalha a ilusão perceptiva de que seu poder destrutivo é menor e muito mais distante do que o anunciado pelos que o estudam: as mudanças climáticas.
Não poderia ser maior o contraste entre a mobilização massiva (ainda que, em tantos casos, tardia e hesitante) contra o coronavírus e a complacência diante da emissão de gases de efeito estufa, venha ela dos combustíveis fósseis; dos fertilizantes nitrogenados; do rebanho bovino ou da destruição florestal. Os gases de efeito estufa acumulam-se na atmosfera em magnitude tal que vai esgotando a capacidade de serem neutralizados por seus sorvedouros naturais, as florestas (que continuam sendo destruídas) e os oceanos. O derretimento das geleiras no Ártico (que, há apenas quarenta anos, cobriam o dobro da superfície que ocupam atualmente) faz com que o calor antes refletido passe a ser absorvido pelos oceanos, criando um feedback altamente destrutivo. O resultado é que o volume de CO2 na atmosfera que era de 315 partes por milhão em 1958 já está em 414 partes por milhão.
Só que nada disso é visível a olho nu, contrariamente ao que ocorre com as tristes imagens dos efeitos da pandemia no sistema hospitalar e até no sistema funerário. A pandemia é uma espécie de aceleração vertiginosa do filme a que estamos, quase imperceptivelmente, assistindo, como se fosse em câmara lenta, com as mudanças climáticas. É verdade que as mortes por covid-19 são atestadas por exames clínicos. O mesmo não ocorre com as enchentes que desabrigaram mais de 50 mil pessoas em Minas Gerais, no Espírito Santo e em São Paulo em fevereiro, com a ampliação em 163% da população suscetível de ser atingida por furacões na Flórida entre 1980 e 2018 (muito mais que o aumento demográfico no período) e com a estimativa de que as perdas globais com o aumento do nível do mar devem passar de US$ 52 bilhões em 2005 para US$ 1,2 trilhão em 2050. O vínculo entre estes eventos e as mudanças climáticas foge de nossa intuição imediata.
No caso da pandemia, soluções nacionais construtivas são possíveis, ao menos durante certo tempo. Mas, contrariamente ao coronavírus, as emissões de gases de efeito estufa não respeitam o fechamento de fronteiras. A conclusão é que o combate à pandemia, tem que ser acompanhado de um planejamento em cujo centro esteja a urgência climática. A criação de empregos, a redução das desigualdades e o crescimento econômico têm que girar em torno da necessidade de se evitar a grande ameaça representada pelo aumento exponencial a que assistimos até aqui das emissões de gases de efeito estufa. A urgência da pandemia é imediata, mas não é razoável que ela ofusque a urgência de se enfrentar a crise climática.
*Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, autor de “Amazônia. Por uma economia do conhecimento da natureza” (ed. Elefante/Outras Palavras).
El País: Brasil perde status de democracia liberal perante o mundo
Instituto V-Dem diz que país é mera democracia eleitoral. Ataque orquestrados a jornalistas, enfermeiros e cientistas são a ponta do iceberg. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade
Nesta semana, o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, apresentou um dado revelador: no mundo, 40% das postagens numa grande plataforma social sobre a covid-19 eram realizadas por robôs. Se o dado em si é surpreendente, a pergunta que precisa ser feita é óbvia: a quem serve tal esforço? Por qual motivo um movimento disfarçado de indivíduos anônimos ― e portanto de massa ― buscaria influenciar a opinião pública sobre uma pandemia que matou nos EUA mais que a Guerra do Vietnã?
E por qual motivo líderes de nações supostamente democráticas se lançam, ao mesmo tempo, em ataques explícitos ou camuflados de “espontâneos” contra a imprensa, um eventual antídoto à proliferação de desinformação? No domingo, em pleno dia internacional da liberdade de expressão, jornalistas foram atacados em Brasília. A opção da presidência foi por minimizar os eventos. Dias depois, foi a vez do próprio presidente Jair Bolsonaro revelar sua índole mais íntima ao mandar um repórter “calar a boca” e ofender a imprensa.
Os jornalistas são apenas parte de uma nova rotina do poder. Nesta terça, Bolsonaro gritou duas vezes com jornalistas mandando um “cala a boca”, algo que só a ditadura viu no Brasil. Mas os relatos se espalham pelo país sobre como enfermeiras e médicos estão sendo alvos de ataques de apoiadores do Governo. Não faltam agressões morais contra professores, artistas, intelectuais ou cientistas, todos eles vistos como potenciais ameaças. Enquanto isso, nas redes sociais, milhares de robôs e apoiadores autênticos de um movimento violento transformam plataformas em trincheiras da mentira.
Nos discursos, quase nunca de improviso, Deus e ódio se misturam nas mesmas frases. Judas é evocado para atacar antigos pilares do movimento. A religião passa a legitimar abusos de direitos humanos. Pede-se orações para que um líder cuja promessa era a de exterminar o contraditório. Todos se apresentam como pessoas de bem. Todos se apresentam como patriotas, únicos autorizados a vestir as cores nacionais.
Nas ruas, nas praças, no mundo virtual ou na violência diária, todos esses personagens têm algo em comum: o desprezo pela democracia. O ruído causado por esse grupo, instigado por seus líderes, certamente é maior que seu número real de apoiadores. Mas ainda assim tal massa é relevante no cenário em que vivemos. Uma massa que mistura classes sociais sob uma única ideologia, com um comportamento fanático capaz criar uma surdez crônica.
Instrumentalizada, ela cumpre justamente um objetivo, online e offline: o de dar pinceladas de legitimidade popular a um movimento claramente autoritário. “Foi uma demonstração espontânea da democracia”, afirmou o presidente, numa referência aos recentes atos. Nada disso é novo. Nenhum regime autoritário foi instalado sem uma manipulação prévia de uma parcela da sociedade.
Hannah Arendt aponta como, anos antes da chegada ao poder de tais forças na Europa, sociedades de classes foram dissolvidas em massas. Já os partidos foram destruídos e substituídos apenas por ideologias. Em Brasília neste fim de semana, as caravanas do autoritarismo eram a distopia de um sonho de uma cidade erguida para ser a capital de um novo século, democrático. Nas sombras dos traços do arquiteto estavam os reflexos de uma parcela da sociedade que jamais viu a democracia com entusiasmo, que sempre desconfiou da ideia do pluralismo, que jamais entendeu a noção do público e que, com seu egoísmo insultante, nutre a convicção de que as instituições são uma fraude.
Ameaçado pelo vírus e por uma recessão brutal, o Governo mobiliza suas tropas cegas pela ignorância para se defender, aprofundar seu desprezo pela verdade e levar um país ao limite de sua coesão nacional. Todos os sinais apontam na mesma direção: a democracia brasileira está ameaçada e seu desmonte ocorre em plena luz do dia. Em cada desafio disparado a um dos poderes, em cada gesto de violência, em cada mentira disseminada e em cada caixão enterrado.
O Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo, um dos maiores bancos de dados sobre democracias no mundo, já deixou de classificar o Brasil desde o começo do ano como uma "democracia liberal”. Agora, o país é uma mera democracia eleitoral.
O instituto produz e coleta informações sobre países entre 1789 a 2019 e conclui que, nos últimos dez anos, a deterioração da democracia no Brasil só não foi maior que a realidade verificada na Hungria, Turquia, Polônia e Sérvia. Segundo Staffan Lindberg, um dos autores do informe e diretor do instituto, tal tendência ganhou uma nova dimensão mais recentemente. “O Brasil foi um dos países no mundo que registrou a maior queda nos índices de democracia nos últimos três anos”, alertou.
Na ONU, gabinetes da alta cúpula da entidade são tomados por preocupações em terno do discurso anti-democrático e o encolhimento real do espaço civil. Pela primeira vez em décadas, o país é denunciado nas instâncias internacionais, inclusive por flertar com o risco de genocídio.
Em outras palavras: o direito inalienável de viver numa democracia plena não está garantido. O Centro para o Futuro das Democracias da Universidade de Cambridge foi categórico num recente informe sobre a situação das democracias no mundo: “Para o Brasil, ao que parece, o futuro foi adiado mais uma vez”.
Enquanto essa eterna promessa é uma vez mais torturada, a fronteira entre massa hipnotizada e dos robôs programados para disseminar desinformação parece se desfazer à medida que a crise institucional e de valores se aprofunda. No mundo virtual ou numa praça ensolarada, ambos tem a missão de disseminar um vírus mortal: a pandemia do ódio, capaz de aleijar uma democracia. Como troféu, seu mito governará sobre esqueletos, mordaças e carcaças. Ainda assim, com a fumaça negra desonrando o horizonte do Planalto Central, irá declarar solenemente: “e daí?”.
Fernando Gabeira: Bolsonaro perde bonde do corona
Ele apenas falou contra o isolamento. Foi incapaz de apresentar um plano, mesmo um pobre esboço, como Trump
Confesso que não fiquei tão perplexo com a ida de Bolsonaro ao STF levando um grupo de empresários. Acredito que, tanto quanto eu, ele não esperava nenhuma solução para o problema que levantava: a volta às atividades econômicas.
O objetivo de Bolsonaro era mostrar que estava trabalhando pela economia. Para isso, levou uma equipe de TV e transmitiu o encontro ao vivo, para surpresa do próprio STF. Um golpe de propaganda, nada mais. Interessante como Bolsonaro consegue perder os bondes nessa luta contra o coronavírus.
Perdeu o primeiro, quando se isolou, negando a importância da pandemia, criticando o trabalho de governadores e prefeitos. Uma nova oportunidade de liderança e alinhamento se abriria para ele, no processo de volta às atividades. Compete ao presidente unir governadores e prefeitos em torno de um detalhado plano de retomada.
Dois dias antes de Bolsonaro ir ao Congresso, Angela Merkel reuniu as lideranças regionais para definir e modular um plano de volta.
Esses planos são complexos. Não adianta pedir ao Tofolli, porque ele não tem. Implicam a definição dos dados necessários, como número de casos, disponibilidade de hospitais, capacidade de testar.
Implicam também um redesenho das escolas, das fábricas, dos escritórios. Na Alemanha, técnicos foram às escolas para redefinir o espaço, inclusive determinar o novo lugar dos professores na sala.
Em alguns países, houve escalonamento de turmas escolares; em algumas regiões, normas para restaurantes ao ar livre.
Normas para o funcionamento de teatros e casas de espetáculo também estão sendo trabalhadas nos detalhes. Os intervalos, por exemplo, serão suprimidos para evitar aglomeração. O próprio futebol na Alemanha volta no dia 16, mas com portões fechados, sem plateia.
Bolsonaro até o momento apenas falou contra o isolamento. Foi incapaz de apresentar um plano, mesmo um pobre esboço, como Trump.
Essa pressa acaba se estendendo a outros setores. O governador de Brasília queria que a final do campeonato carioca fosse jogada no Estádio Mané Garrincha mesmo com um hospital de campanha instalado ali.
Não sei a que atribuir esta loucura. Nós temos uma singularidade cultural, que é a improvisação. É inegável que ela tem qualidades, no compositor que escreve seus versos num botequim, nos profissionais que driblam a falta de recursos para alcançar um certo resultado.
Na formulação de uma política nacional e solidária contra o coronavírus, é preciso liderança e capacidade de planejamento. Bolsonaro trabalha por espasmos, acorda pensando na briga nossa de cada dia, a quem vai combater e orientar sua galera a chamar de lixo.
O ministro da Saúde tem dito que o Brasil é um país diverso. Todos concordam. Mas é precisamente por ser diverso que necessita de um plano com modulações.
Basta olhar no mapa para ver quantas cidades brasileiras não tiveram casos de contaminação. Até elas precisam ser orientadas a rastrear com rigor caso apareça alguém contaminado por lá.
Na verdade, é um projeto que se enquadra nessa expressão muito usada de nova normalidade. Os Estados Unidos viveram algo parecido de longe com isso, depois do atentado de 11 de setembro.
As circunstâncias agora são diferentes. O redesenho da sociedade não se faz diante de inimigos humanos, mas ameaças biológicas que podem nos dizimar. A etapa final do planejamento seria concluída com a existência de uma vacina, acessível a toda a população.
Mas, no entanto, a existência de uma pandemia como essa abriu os olhos de muita gente para a possibilidade de outras. Algumas delas podem ser favorecidas pelo desmatamento.
Tive a oportunidade de sentir isso quando cobri a volta da febre amarela. Aparentemente, a destruição de algumas áreas de mata acabou expondo os trabalhadores agrícolas e algumas populações rurais.
Estamos trabalhando com algo muito sério para o futuro das crianças. Se não houver uma transformação cultural que nos faça pensar coletivamente e nos convença da necessidade de planos cientificamente adequados, vamos ser uma presa fácil.
Nos anos de política, lamentava que o Brasil era um país onde o principio de prevenção não pegou. Não esperava um governo que, além de imprevidente, desprezasse a ciência. Tudo do que o coronavírus gosta.