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Vinicius Torres Freire: Um banqueiro caminha na esteira do Brasil

País precisa de governança e trocar gasto ruim por saúde e investimento, diz executivo

A situação é meio desesperadora, mas o país vai ter uma folga de um ano para se organizar, diz o ex-presidente de um grande banco. A contragosto, fala por quarenta minutos enquanto caminha na esteira. Não quer dar entrevista porque não quer se meter na confusão em que está o país.

Que “folga” é essa? A taxa básica de juros deve ficar negativa por uns dois anos, pois a economia está deprimida e as taxas mundiais devem ajudar, também negativas, isso se o país não fizer besteira. O banqueiro refere-se ao fato de que a Selic, definida periodicamente pelo Banco Central, está menor do que a inflação e assim deve ficar pelo menos até fins 2021.

Que “besteira” o país faria? O governo gastar mais. Só isso, basta manter o “teto”? Não, esse é o mínimo, o fundamental (evitar o gasto), para que o país não comece a explodir no ano que vem. O detonador da explosão seria o sinal de que a dívida pública vai continuar a crescer sem limite, o que provocaria alta de juros, do dólar e desorganização geral das expectativas.

Para o banqueiro, algum aumento de imposto será inevitável, no mínimo para financiar algum programa de renda básica, pois “muita gente” vai ficar na pobreza e sem emprego por “muito tempo”. Mas o aumento de imposto financiaria então despesa extra, que está para bater no “teto” constitucional. Não é contraditório? O banqueiro diz então que se pode fazer uma concessão provisória em 2021, como no caso do estado de calamidade deste ano, desde que exista um programa profundo de ajuste fiscal.

No mais é “reforma, reforma, reforma”, rapidamente. Isto é, mudança nos impostos “inacreditáveis”, nas leis de falência e garantias e na regulação do investimento, além de redução “pesada” de gastos com servidores e redução e congelamento dos reajustes da previdência, também nos estados e municípios.

É preciso “trocar o gasto” para o governo investir mais, pois o setor privado sozinho não vai fazer muita obra necessária de infraestrutura, afirma, e porque “está ainda mais claro” que é preciso melhorar o sistema de saúde, evitar destruição ambiental e dinheiro para pesquisa científica e tecnológica. Haveria um “monte de gasto horrorosamente ineficiente” em saúde e educação, mas “talvez” ainda falte mesmo dinheiro.

Quem tocaria tal programa? “Esse é o problema”, diz o banqueiro, para quem o governo não tem capacidade executiva, política ou de coordenação de expectativas. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, “fazia um pouco esse papel, mas não podia tudo, não é presidente”, perdeu força e não pode ser reeleito.

“Melhor não ter impeachment, impeachment nunca é bom, confusão política desse nível é sinal de falta de maturidade e civilidade no país”, mas as “investigações” e a “popularidade” é que definiriam o destino de Jair Bolsonaro. Acha que não acontece nada neste ano, por causa da epidemia, das eleições e da “indefinição dos políticos” de como agir em relação a Bolsonaro.

Se houver processo de impeachment, 2021 estaria “perdido” e sabe-se lá o que pode vir daí. O que fazer, então? O banqueiro diz que não sabe, que não é político. Mas está óbvio, diz, que Bolsonaro precisa mudar “180 graus” e é preciso haver um acordo geral para montar uma “governança” para o país.

E os bancos na crise? Estão “sólidos” e “ajudam no que podem”. Mas bancos emprestam e empresários investem quando acham que o país vai crescer e que não vão ser “espoliados”, “é simples assim, o resto é fantasia".


Juan Arias: Bolsonaro está doente da alma

Sua soberba ficou, se isso é possível, mais evidente na maneira arrogante e provocadora com que anunciou que foi contaminado

Mais do que doente de coronavírus, o que aflige o presidente Jair Bolsonaro é algo muito mais grave, é uma doença da alma, uma doença sem cura.

Do vírus ele poderá se curar ou morrer, como todo mundo. No entanto, o mal que nele é grave é sua soberba, sua teimosia em querer negar as evidências. Primeiro, enquanto se gabava de sua condição de atleta e exibia sua imunidade, levando os outros a acreditar que era uma simples gripe que a ciência e a medicina exageravam e que ele não tinha nada a ver com os mortos. E enquanto os cadáveres se amontoavam e cresciam as lágrimas daqueles que perdiam seus entes queridos, Bolsonaro continuava rindo e minimizando o risco de contágio.

Sua soberba ficou, se isso é possível, mais evidente na maneira arrogante e provocadora com que anunciou que sim, que foi contaminado. Ao dar a notícia, nunca fora visto rindo com tanto gosto. Parecia até feliz. E manifestou sua felicidade ao afirmar que, no fim das contas, o coronavírus era “uma chuva” que iria molhar todo mundo. E chegou a provocar a ciência e a medicina recomendando novamente o uso da cloroquina, cuja eficácia não só não foi comprovada, como seu uso poderia piorar o quadro dos pacientes com o vírus.

Exatamente no momento em que poderia ter demonstrado à nação com um gesto de humildade que havia se equivocado ao minimizar a doença que de alguma forma tinha se vingado dele, permaneceu fiel à sua teimosia e soberba ao afirmar que se está exagerando a força da pandemia. E voltou a repetir que mais importante que as mortes e mais urgente é que todos voltem ao trabalho para render culto ao deus da economia.

Enquanto ouvia o presidente falar, em minhas veias sentia pena, raiva e vergonha por este país que merecia nestes momentos de tragédia nacional, com 66.000 mortos, uma palavra de consolo e não de arrogância de quem detém a mais alta autoridade do Estado.

Bolsonaro alardeia ser católico, evangélico e se importar mais com a Bíblia do que com a Constituição. Deveria saber que nesses textos fica evidente que todos os pecados podem ser perdoados, menos o da soberba que pressupõe que a pessoa se coloca acima de Deus. O vírus de Bolsonaro é de um gênero diferente dos milhões já contagiados. O seu é diabólico.


Fernando Reinach: Navegar ao sabor do vírus

Abrimos mão de controlar a pandemia e o vírus está nos levando para onde deseja

Navegar ao sabor do vento significa içar vela e deixar que o vento nos leve para onde soprar. É abrir mão de comandar o futuro. O Brasil está navegando ao sabor do vírus. Abrimos mão de controlar a pandemia e o vírus está nos levando para onde deseja. Talvez mais lentamente do que poderia, pois não levantamos completamente a vela: lavamos as mãos, usamos máscaras e fazemos um mínimo de isolamento. Sem dúvida estamos caminhando em direção à tragédia, mas em câmara lenta, e não temos planos para retomar o controle. É a consumação da estratégia que chamei em 9 de maio de imunidade de rebanho por incompetência.

Ao sabor do vírus a pandemia no Brasil só terminará quando atingirmos a imunidade de rebanho, o único mecanismo biológico conhecido que inibe a propagação do vírus sem intervenção humana. Navegar ao sabor do vírus pode custar a vida de até 1% dos contaminados. A imunidade de rebanho geralmente ocorre quando 70% a 80% da população suscetível tiver sido infectada. Talvez ocorra antes, mas chegaremos lá antes de a vacina estar disponível. Isso é quase uma certeza. Quais são as evidências de que navegamos ao sabor do vírus? O gráfico abaixo, cortesia do meu amigo Cal, mostra nossa rota desde a chegada do vírus no Brasil.

No eixo vertical estão os números de novos casos por dia, por milhão de habitantes, em cada um de quatro países. Os dados diários foram plotados como uma média móvel de sete dias. O Brasil registra hoje por volta de 150 novos casos, a cada dia, por milhão de habitantes (sem contar as subnotificações), um número maior que os 90 registrados nos Estados Unidos. No eixo horizontal estão os dias que se passaram desde que cada país registrou um caso por milhão de habitantes. Isso ocorreu quando o Brasil registrou 220 novos casos por dia, os EUA, 330, o Reino Unido, 66, e a Itália, 60.

É fácil observar como a Itália, após um crescimento rápido do número de casos por dia, impôs um lockdown rigoroso após o dia 30 e tomou controle do barco. Passados 90 dias, estava com a pandemia sob controle. O Reino Unido demorou para responder e o lockdown veio mais tarde. Mas desde o dia 60 conseguiu reduzir o número de novos casos por dia. Os EUA também se assustaram com o crescimento rápido dos novos casos, implementaram um lockdown nas principais cidades, conseguiram estabilizar o número de novos casos, mas quando começaram a tomar pé da situação relaxaram o distanciamento social. Os resultados da abertura são gritantes, o crescimento rápido do número de novos casos por dia já está ocorrendo.

O mais impressionante é o barco brasileiro. Medidas brandas de distanciamento social retardaram o crescimento da pandemia, que cresceu lenta e livremente por 80 dias. Quando as medidas estavam começando a fazer efeito, veio o relaxamento do distanciamento social e a pandemia voltou a crescer mais rapidamente do que antes, totalmente fora de controle.

O pior no Brasil é que simplesmente não temos um plano para controlar esse crescimento. O exemplo mais claro dessa atitude é o anúncio da abertura das escolas no Estado de São Paulo. Ele deve ocorrer no início de setembro caso todas as áreas do Estado estejam com níveis de propagação classificadas como verde já no início de agosto. O problema é que não foi anunciado simultaneamente um plano capaz de garantir que o Estado de São Paulo atinja essa a condição no início de agosto. Sem executar algum plano seguramente não chegaremos lá, pois São Paulo está batendo todos os dias os recordes de novos casos por dia e número de mortes por dia. Ou seja, as escolas não abrirão em setembro se o governo cumprir o que decretou.

Até agora as medidas anunciadas são inócuas para controlar a pandemia. Oferecer mais leitos de UTI ajuda os pacientes graves, o que é importante, mas não diminui o número de casos. E esse aumento tem limite, que eram respiradores, mas de agora em diante serão profissionais da saúde capazes de atender um número crescente de leitos. Liberar gradativamente as atividades ao menor sinal de desocupação de leitos vai seguramente na direção oposta do controle, pois cada liberação significa levantar um pouco mais a vela desse barco que navega ao sabor do vírus.

E a testagem em massa? Ela tem sido um fracasso em nosso Estado e em todo o País. Os governos sequer detalham o que significa esse termo e como ele pode levar ao controle da pandemia. O número de testes de RT-PCT, que detectam pessoas durante a fase em que estão transmitindo o vírus, e podem ser usados para isolar pessoas que estão transmitindo a doença, são executados em número ínfimo. Pululam iniciativas governamentais baseadas em testes sorológicos, que, sabemos muito bem, somente identificam pessoas que já passaram pela fase crítica da doença e já contaminaram quem deveriam contaminar. São inúteis para controlar a doença e uma bênção para o vírus.

Em suma, não existe nenhuma medida em andamento que tenha alguma chance de reverter o andamento da pandemia nos próximos meses. Nenhuma.

A impressão é que nossos governantes esperam por algum milagre, alguma intervenção divina que provoque a diminuição do espalhamento da doença de maneira mágica, sem que eles tenham de executar algum plano que tenha embasamento científico. Como a fração da população já infectada ainda é baixa, não existe nada no horizonte que vai conter o crescimento diário do número de novos casos em 2020. Estamos navegando ao sabor do vírus com a vela a meio mastro. 

*É BIÓLOGO


Humberto Saccomandi: Uma epidemia de ódio ameaça EUA e Brasil

O ódio político pode afetar a economia pois leva ao impasse

Cuidado com a sua raiva. Raiva do presidente Jair Bolsonaro, do PT, do STF, do MST, da mídia, do movimento LGBT, dos ambientalistas, do seu colega evangélico, do seu primo que pede intervenção militar. A raiva política, que parece ter o efeito positivo de ressaltar nossas convicções e/ou indignações, provavelmente está trazendo prejuízos a todos. É um epidemia para a qual não existirá vacina tão cedo.

Essa é, adaptada ao Brasil, a tese de Steven Webster, professor de Ciências Políticas na Universidade de Indiana (EUA), que lancará em setembro o livro "American Rage", a raiva americana. Há uma extensa literatura recente que tenta lançar luz sobre o crescente fenômeno da polarização política nos EUA. Webster disse ao Valor que se concentrou nas consequências sistêmicas.

Para ele, a raiva ao oponente político virou a força dominante da política americana. E essa extrema polarização está destruindo a confiança das pessoas nas instituições, o que leva a um governo disfuncional, ameaça a democracia e causa prejuízos à economia. Isso parece ocorrer no Brasil também.

A disfunção ficou evidente na reação catastrófica dos dois países, na área da saúde, à epidemia. Para os apoiadores de Donald Trump/Bolsonaro, a cloroquina era uma solução, apesar da evidências científicas de que o medicamento não funciona. Os presidente não buscaram políticas de consenso nem colaboração com os Estados. Agora, ambos ignoram a disparada no número de casos.

Sempre houve raiva política na história dos EUA. O que há de novo nos últimos 25 anos, diz Webster, é a extensão da raiva dos americanos e a frequência com que eles estão dispostos a expressá-la.

Ele atribui isso a três fatores principais: um é o casamento da identidade partidária com a identidade racial, cultural ou ideológica. “Cada vez mais os republicanos são o partido dos brancos, e os democratas são uma coalizão multiétnica. Essa diferente composição influencia as políticas que os partidos acabam defendendo.”

Os outros dois fatores são: as mudanças na mídia, com a importância crescente da mídia explicitamente partidária; e as novas tecnologias de internet, que facilitam a expressão do ódio. É mais fácil ser agressivo com alguém numa rede social, sentado no sofá de casa, do que fazê-lo socialmente, num bar.

“Trata-se cada vez mais de um jogo de soma zero. Minha vitória é a sua derrota, e vice-versa. Houve uma transição de eu perceber que há pessoas que discordam de mim para eu achar que essas pessoas são oponentes a serem derrotados”, diz Webster. “A raiva leva as pessoas a enxergar os outros pela lente da política, e não como pessoas, numa espécie de desumanização política. Os apoiadores do outro lado são vistos cada vez mais como uma ameaça ao bem-estar do país e até como menos inteligentes.”

Essa polarização pela raiva não foi criada nem por Trump nem por Bolsonaro. Ela os precedeu e é provável que continuará depois deles. Mas ambos deliberadamente a fomentam e se nutrem dela.

Webster diz que os dois principais partidos americanos mudaram e rumam para os extremos. Mas ele condivide a teoria da polarização assimétrica, isto é, que os republicanos foram mais para a direita do que os democratas para a esquerda. E, para se justificarem, precisam tentar colar no oponente a pecha de extremista. Trump repete todo dia que os democratas foram tomados por radicais. No Brasil, qualquer um que se oponha a Bolsonaro vira instantaneamente socialista ou comunista.

“O ódio político pode afetar a economia porque leva ao impasse. Se os eleitores estão com raiva do partido rival, isso cria o incentivo para as autoridades eleitas não façam acordos com membros do outro partido. E sem esse entendimento suprapartidário, é difícil enfrentar grandes questões nacionais”, disse.

O Medicare, o programa de saúde público para pessoas com mais de 65 anos, criado em 1965, no governo do democrata Lyndon Johnson, só passou no Congresso dos EUA graças ao voto favorável de 13 senadores republicanos, pois 7 senadores democratas votaram contra. Quando o Obamacare, seguro saúde compulsório com ampla participação privada, foi aprovado em 2010, nenhum deputado ou senador republicano votou a favor. Trump não conseguiu derrubar o programa, mas o desidratou. Com isso, dezenas de milhões de americanos enfrentam agora a epidemia sem plano de saúde.

Nem todo o mundo é assim, claro. A Dinamarca aprovou nesta semana um ambicioso plano de cortar as emissões de carbono em 70% até 2030. A proposta teve o apoio de mais de 95% do Parlamento. Os principais lobbies empresariais defendem o plano, ainda que ele possa levar a um aumento de impostos para financiar a conversão energética.

No Brasil e nos EUA, esse consenso é impossível. Temas de ambiente e aquecimento global foram colocados no escaninho da esquerda. Viraram não-assunto para a direita. Do mesmo modo, limitar a imigração é tema ignorado pela esquerda, apesar de ser demanda legítima de parte da população.

O candidato democrata, Joe Biden, pode não alimentar o ódio na sua campanha, mas ele quase não precisa disso, pois boa parte do país já tem tanta raiva de Trump e só a presença do presidente nas eleições já basta. “E é muito provável que grupos democratas explorem essa raiva.”

Ainda que a raiva possa ajudar os democratas nas eleições, ela é um risco à democracia, diz Webster. “Quanto mais os EUA ficarem polarizados, mais difícil se tornará manter a democracia. A democracia requer confiança, fazer concessões, um equilíbrio delicado, cada vez mais raro.”

Há saída para essa epidemia de ódio? “Espero, mas sou pessimista”, diz Webster. “Acho que será preciso algo grande e que afete todo o país para fazer as pessoas deixarem de lado a sua natureza partidária. Há evidência de que, quando algo as fazem se enxergar como americanos, e não democratas ou republicanos, isso reduz a hostilidade. Foi o que ocorreu no 11 de Setembro. A confiança no governo aumentou, o presidente George W. Bush teve a sua maior aprovação e muita gente trabalhou junto para um objetivo comum. É difícil saber se isso é factível sem que algo terrível aconteça. E ninguém deseja um ataque terrorista.”

Ele recomenda conter a raiva. “Uma dose de raiva é bom, pois eleva a participação na politica. Precisamos de uma quantidade saudável de raiva, não demais”.

*Humberto Saccomandi é editor de Internacional


Adriano Massuda: “Nem o pior ministro da Saúde fez o que Exército está fazendo, desmontando a engrenagem do SUS”

Adriano Massuda, ex-secretário de Saúde de Curitiba e professor da FGV, diz que nunca intervieram tanto na estrutura da pasta como agora, com a ocupação de cargos-chave por militares

Por Flávia Marrero, do El País

Adriano Massuda, 41 anos, não economiza termos fortes para descrever os desacertos do Governo Bolsonaro e de parte das gestões estaduais no enfrentamento da maior crise sanitária do século. “Faltou a organização de uma resposta nacional com a dimensão que essa pandemia exige. E não tem desculpa! A gente teve tempo para se preparar”, lamenta o ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde e especialista em gestão em saúde, lembrando que o novo coronavírus surgiu na Ásia e levou quase três meses para chegar até aqui.

“Só não estamos em situação pior justamente porque nós temos o SUS [Sistema Único de Saúde] e porque o Brasil tem uma tradição em programas de saúde pública”, diz o professor da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador-visitante na Escola de Saúde Pública de Harvard. O problema, afirma Massuda, é que justamente essa tradição de saúde pública está sendo ameaçada com a profusão de militares e profissionais sem experiência instalados em cargos-chave na atual configuração do Ministério da Saúde. O pior, segundo o professor, é que mudanças nas engrenagens do sistema que foram construídas ao longo dos últimos 30 anos podem fazer um “estrago” muito além da pandemia.

Pergunta. Como o senhor avaliou essa tentativa do Ministério da Saúde, revertida pelo STF, de mudar a forma de divulgar os números da covid-19?

Resposta. Isso demonstra uma degradação cada vez maior na capacidade do Governo Federal em lidar com uma ameaça tão grave como essa pandemia. Podemos dividir a resposta em três tempos. Primeiro a gestão de Luiz Henrique Mandetta. Apesar das críticas ao atraso na tomada de medidas para preparar o país, houve iniciativas de alerta a população sobre a gravidade da situação. O segundo tempo foi Nelson Teich, o Breve. Aí o ministério praticamente parou, deixando de exercer um papel de coordenação nacional do sistema. E agora o ministério atrapalha a resposta à pandemia. Nessa terceira fase é pior, com ministro interino há mais de um mês, a tentativa de negar informação, como se isso fosse diminuir o problema —uma atitude insana que é muito a cara desse Governo— cria um conflito com Estados e municípios. O Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde] publicou uma carta histórica bastante dura, com o posicionamento dos secretários estaduais de Saúde contra a possível maquiagem dos números, de dizer que os números estão inflados por Estados e municípios. Isso cria um conflito federativo bastante perigoso para governança do sistema de saúde, que antes estava restrito aos governadores e ao presidente.

P. Como senhor vê essa profusão de militares na pasta?

R. O Exército está ocupando cargos técnicos quando o Brasil tem profissionais extremamente competentes na área da saúde coletiva brasileira. Poucos países têm a inteligência que nós temos neste setor. Essa inteligência não está no Exército. Junto com a piora da pandemia, pode haver piora em outros problemas de saúde negligenciados por causa dela. Há inúmeros outros programas de saúde que dependem da coordenação técnica do ministério. Como é que vai ficar a coordenação nacional do câncer? Como é que vai ficar a política nacional do HIV, do sangue e hemoderivados, e as vacinas que dependem da ação do Ministério da Saúde? É algo muito arriscado e a sociedade tem que ficar bastante atenta. O problema não é só a covid-19.PUBLICIDADE

P. Por que o senhor acha essa presença dos militares tão perigosa?

R. O volume de ocupação de cargos técnicos por militares e por indicações políticas sem qualificação necessária na estrutura do Ministério da Saúde tem ocorrido como nunca antes desde que o SUS foi criado. Nem o pior ministro da Saúde fez o que está acontecendo agora. Há áreas técnicas do Ministério da Saúde, fundamentais a manutenção de programas de saúde, que já passaram por diferentes governos, de diferentes bandeiras políticas, e nunca foram modificadas, devido ao saber acumulado. Pode haver um processo de desmonte da engrenagem que fez o sistema de saúde funcionar nos últimos 30 anos que é muito perigoso. O Exército pode estar puxando pro seu colo a responsabilidade de desmontar o sistema de saúde brasileiro. Esse sistema que é essencial para garantir a segurança sanitária do nosso país.

P. Que estruturas estão sendo modificadas?

R. Além da coordenação de programas técnicos, mudanças na estrutura da secretaria executiva do Ministério da Saúde são preocupantes, pois é a área faz o planejamento orçamentário e que coordenada o repasse de recursos para Estados e municípios por meio do Fundo Nacional de Saúde. Não sou o primeiro a alertar isso na imprensa. Isso pode trazer vários problemas futuros para para Estados e municípios. De imediato, ajuda a entender a baixíssima capacidade de execução orçamentária na pandemia, em que menos de um terço do recurso extraordinário aprovado foi executado após três meses do seu início. Os militares tem competência em muitas áreas, mas não tem experiência na gestão do sistema de saúde brasileiro, que é muito complexo. Se eles conhecessem, não fariam as modificações em áreas extremamente sensíveis como estão fazendo.

P. Apesar dos problemas, o SUS é tido, consensualmente, como uma fortaleza de que o Brasil dispõe para lutar contra pandemia. Mas, mesmo no Estado mais rico do país, São Paulo, há hospitais que precisam de doação para funcionar bem. Como vê as condições do SUS para enfrentar o problema?

R. Primeiro, um sistema de saúde não deve depender de doações. Isso revela uma série de fragilidades estruturais do sistema. Por outro lado, só não estamos em situação pior porque nós temos o SUS. O Brasil tem experiência de resposta em epidemias anteriores, que foram razoavelmente bem sucedidas. O país poderia estar utilizando a sua estrutura de vigilância epidemiológica e de atenção primária à saúde, que cobre 75% da população brasileira. A vigilância e atenção primária poderiam jogar um papel muito importante na identificação precoce de casos, monitoramento de grupos de risco e rastreamento de contatos —pessoas que tiveram próximas de infectados. Se a gente tivesse utilizando adequadamente essa estrutura que o Brasil dispõe, talvez não precisaríamos de um isolamento tão radical por tanto tempo.

P. Por que não estamos conseguindo usar o potencial a nosso favor?

R. O sistema tem várias problemas estruturais que se agravaram nos últimos anos, como o subfinanciamento, a fragilidade de governança e má distribuição de recursos. Se conseguimos promover uma boa expansão de atenção primária, não conseguimos fazer uma reforma na atenção hospitalar: 70% das Regiões de Saúde têm o número de leitos de UTI abaixo do que seria recomendado para situação de normalidade. E estamos falando só do número de leitos. Se formos falar de qualidade da atenção hospitalar... Os doentes graves de covid-19 exigem equipes técnicas extremamente qualificadas pra lidar com a complexidade dos casos, e no Brasil há grande carência nesse aspecto. E por que razão isso acontece? O percentual do gasto público em saúde no Brasil é um dos menores do mundo. O maior gasto concentra-se no setor privado: 56% do total que dirige-se a menos de 25% da população. Ou seja, é um gasto que não ajuda a fortalecer o SUS. Nos últimos anos isso piorou, pelas medidas de austeridade fiscal, que agravaram o subfinanciamento. O Brasil perdeu de 20 a 30 bilhões de reais desde que, em 2016, foi aprovado o congelamento de gastos públicos federais. E aí agora, diante situação com a pandemia, não conseguimos utilizar adequadamente o que temos de bom, e por outro temos uma rede hospitalar tão precária que depende de doações.

P. E a questão da governança? Isso vem de antes do Governo Bolsonaro, certo?

R. Temos no sistema de saúde com áreas de excelência no SUS. Você pode cair num hospital público e pode ter um excelente atendimento, num Incor, num Hospital de Clínicas da USP [ambos em São Paulo]. Agora, são ilhas. A realidade é que a grande parte dos hospitais não é assim, e a gente está falando de São Paulo. Se formos para o interior do Brasil ou mesmo outras capitais, o problema na atenção hospitalar é ainda maior. A descentralização da gestão do SUS para os municípios, sem organizar adequadamente regiões de saúde, criou problema de governança do sistema, pois as capacidades gerenciais são muito distintas. Esse problema é agravado por iniciativas de terceirização que aumentaram a precarização, pois atribuíram responsabilidade a gestores sem nenhum compromisso com o SUS. Apesar de haver algumas boas organizações sociais, existem outras em que o interesse não é produzir saúde. Esse problema ficou mais evidente com o caso dos hospitais de campanha do Rio de Janeiro. Tem hospital que é só tenda, não tem equipamento. Às vezes tem equipamento, mas não tem profissional. Ao mesmo tempo tem um número grande de leitos em hospitais públicos que estão fechados: tem estrutura, mas não tem pessoal. E tem leitos privados ociosos: uma alternativa poderia ser o poder público contratar leito privado e pagar adequadamente para isso. Seria mais econômico do que montar hospital de campanha.

P. E como vê a situação nos Estados e municípios?

R. Os problemas na coordenação nacional afetaram a capacidade de resposta de governos estaduais e municipais. Entretanto, apesar dos problemas, o SUS conseguiu abrir mais de 7.000 novos leitos de UTI em grande medida por iniciativa de Estados e municípios. Tem alguns Estados e municípios fazendo um bom trabalho técnico, mas vemos que infelizmente predomina a falta de capacidade de planejamento e gestão. Só para dar um exemplo do problema da governança do sistema de saúde brasileiro, em vários Estados já houve troca de secretários. O Acre já mudou duas vezes [a mudança foi na gestão municipal de Rio Branco, que trocou uma vez de secretário], Amazonas duas vezes, Amapá duas vezes, Rio de Janeiro duas vezes, Distrito Federal uma vez, Minas Gerais uma vez, Paraíba uma vez, Roraima cinco vezes, Santa Catarina uma vez, Sergipe uma vez, Tocantins uma vez. Estamos no terceiro ministro da saúde desde o começo da pandemia. Como governar um sistema de saúde com tanta troca? Isso expõe fragilidades que precisarão ser enfrentadas se quisermos ter melhor capacidade de defesa a desafios como a pandemia da covid-19 nos apresenta.


Cida Bento: Eugenia e coronavírus

Crianças e adolescentes da periferia e das favelas são os mais atingidos pela Covid-19

Inúmeras são as reportagens e estudos apontando que o ocultamento ou manipulação do dado cor/raça nos formulários de notificação da Covid-19 e, acrescente-se a esse contexto, a retirada do CEP dos registros representam um esforço de encobrir uma política eugênica que não investe esforços para estancar a pandemia porque quem está sendo preferencialmente atingido são os pobres, os negros e os favelados.

Assim, o crescimento e a ampliação de vozes contra a ideia de que algumas vidas valem mais do que outras, que caracteriza o fascismo e o racismo, é fundamental como forma de preservar e fortalecer as instituições, que devem se posicionar firmemente protegendo os direitos de sua população, em particular de suas crianças e adolescentes.

No Brasil, o número de mortes e internações de crianças e adolescentes na pandemia está muito acima dos demais países, e a maior parte dessas crianças e adolescentes são negras, vivem em periferias, favelas ou bairros pobres, de acordo com artigo de Julia Dolce, da Agência Pública, de junho de 2020.
No universo dos adolescentes, são 59,4% de negros entre os casos notificados, ante 38,8% dos de brancos.

Dolce destaca ainda que a mortalidade de jovens brasileiros por Covid-19 é praticamente dois terços maior do que a verificada em países ricos, segundo pesquisa da Universidade de Paris.

No entanto, o dado cor/raça, fundamental para compreender melhor essa situação, figura como “ignorado” ou mesmo não preenchido em aproximadamente 40% dos formulários de hospitalizações e óbitos, indicando que a lei não vem sendo cumprida e o Estado não desenvolveu campanhas explicativas sobre a importância dessa informação para a definição de políticas públicas a fim de enfrentar os desafios da pandemia.

Importa destacar aqui que a mortalidade de crianças e jovens negros, de indígenas, idosos, quilombolas, seja pela ação, seja pela omissão do estado, pode representar a política eugenista, na atualidade.

A eugenia significa esterilizar, exterminar, invisibilizar, separar os indesejáveis. Assim, se crianças e adolescentes das periferias e favelas são atingidos diferencialmente pela Covid-19, eles também o são pela brutalidade policial, como observamos no aumento de assassinatos de crianças e adolescentes nos últimos anos.

Em 2019, cinco crianças de menos de 12 anos e 43 adolescentes de 12 a 18 anos foram mortos nas favelas do Rio de Janeiro por agentes do Estado brasileiro —policiais.

E, segundo o Atlas da Violência 2019, na idade de 21 anos, quando ocorre o pico dos riscos de uma pessoa ser vítima de homicídio, negros têm 147% mais chances de serem assassinados do que brancos.

Mortos em casa, em parques de diversões, nas escolas, em diferentes lugares das periferias e favelas onde deveriam estar protegidos. Diversos estudos têm revelado que a identificação do local é um dos elementos que legitimam a morte.

A ideia de favela construída como ausência, ilegalidade e desordem, um “problema” a ser solucionado, vem permitindo a entrada abusiva do Estado para lidar com a violência. Então, retirar o CEP de registros não é invisibilizar a política nas periferias e favelas?

Mais do que nunca, precisamos juntar as diferentes vozes da sociedade brasileira na retomada dos pactos civilizatórios que possibilitam o cumprimento do que define a Constituição Federal: a proteção integral de todas as crianças e adolescentes e de segmentos vulnerabilizados da sociedade.


Ricardo Noblat: Dez motivos para culpar Bolsonaro pelas mortes da Covid-19

Por que Bolsonaro não compareceu até hoje ao velório de uma única vítima do coronavírus?

No dia em que o Brasil superou a triste marca de 50.650 mortos e mais de 1 milhão de infectados pelo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro voou de Brasília ao Rio para participar do velório de um militar paraquedista. À tropa ali reunida, Bolsonaro disse que foi grande amigo do general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército durante o governo José Sarney.

Para variar, mentiu. Está em livros de história que o general fez tudo para punir Bolsonaro, acusado de ter planejado atentados à bomba a quarteis quando reivindicava melhores salários para soldados como ele. Em troca do título de capitão, Bolsonaro acabou concordando em ser afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética, como consta de sua folha corrida.

Por que Bolsonaro não compareceu até hoje ao velório de uma única vítima do coronavírus? Não precisaria deslocar-se para outra cidade. Não se passa um dia sem que novos mortos sejam sepultados em cemitérios de Brasília e das cidades do seu entorno. No Paranoá, a pouca distância do Palácio do Planalto, de cada 100 pessoas testadas, 30 têm o vírus. É onde mais se morre.

O que fez Bolsonaro até agora desde que o primeiro brasileiro perdeu a vida para o Covid-19 no final de março último?

  1. Por ignorância ou, pior, maldade, subestimou a doença como se ela não passasse de uma “gripezinha.
  2. Por uma ou a outra razão, acreditou que a pandemia só seria contida depois que contaminasse 70% da população. Haveria mortes? É claro que sim, mas e daí? A morte é o destino de todos, como observou um dia.
  3. Por ignorância ou interesse monetário, apostou contra todas as evidências científicas que a cloroquina deteria o avanço do vírus, salvando vidas se receitada desde o início da doença. O Exército produziu a droga em larga escala, e ainda produz.
  4. Recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra as medidas de isolamento social baixadas por governadores e prefeitos a conselho da Organização Mundial da Saúde. Como o tribunal as manteve, passou a sabotá-las ostensivamente.
  5. Demitiu o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, em meio à pandemia. Provocou a demissão do sucessor dele, o médico Nelson Teich. Promoveu um general que só entende de logística a ministro interino da Saúde. Orientou-o a esconder o número de mortos. O general transformou o ministério em um cabide de emprego para militares da ativa e da reserva.
  6. Foi sob a pressão de Bolsonaro que alguns governadores e prefeitos afrouxaram a regra do isolamento social. Vidas importam, mas a economia importa mais. Em vários lugares onde o comércio reabriu, aumentou o número de mortos e de infectados. Tem dono de shopping que amarga prejuízo por tê-lo reaberto.

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  1. Se tivesse dependido somente dele e do ministro Paulo Guedes, da Economia, o auxílio aos brasileiros mais pobres seria de 200 reais por dois ou três meses. É de 600 reais graças ao Congresso.
  2. Bolsonaro deu o mau exemplo de circular em Brasília sem usar máscara. Contrariou as determinações médicas de não aproximar-se de pessoas desprotegidas e de não tocá-las. Uma vez, ao pé da rampa do Palácio do Planalto, tocou em 272.
  3. Politizou o combate ao coronavírus. Os momentos mais tensos do seu governo até aqui foram provocados por ele para tirar a atenção sobre a doença. Entrou em conflito com os demais Poderes e quase desatou uma grave crise institucional.
  4. Agora que o primeiro pico da doença se aproxima, está às voltas com a prisão de Fabrício Queiroz, operador financeiro do seu filho Flávio, acusado de desvio de dinheiro público. Entrega cargos do governo ao Centrão para driblar o risco de ser derrubado.

Haverá maior sócio do coronavírus do que Bolsonaro?


Oliver Stuenkel: Brasil pagará preço incalculável por ter um presidente incapaz na pandemia

O coronavírus provavelmente moldará nossa era mais do que qualquer outro evento, elevando governantes mundo afora à posição de líderes cujas decisões terão impacto por décadas

A pandemia como a que estamos vivendo é tão rara e grave que pode ser tornar o evento histórico mais marcante de nossas vidas. Marcará o início de uma nova era. Em função disso, as decisões dos líderes no momento e nos próximos anos, em um mundo em fluxo, terão consequências sistêmicas em longo prazo para seus países e a ordem global.

Como afirmou recentemente Janan Ganesh, colunista do jornal britânico Financial Times, é provável que o próximo presidente dos Estados Unidos tenha, junto com o presidente chinês Xi Jinping, a oportunidade de definir os fundamentos da era pós-pandemia. Cita como exemplo histórico o presidente americano Harry Truman, que chegou ao poder depois da morte de Franklin D. Roosevelt no fim da Segunda Guerra Mundial. Em circunstâncias normais, Truman dificilmente teria sido um líder relevante. O momento histórico em que se tornou presidente, porém, era atípico. Truman implementou o Plano Marshall para reconstruir a economia da Europa Ocidental e fundou a OTAN, tornando-se o líder americano de maior impacto da segunda metade do século 20. Por décadas, seus sucessores operaram dentro do sistema geopolítico que ele havia desenhado. Em um mundo em fluxo, líderes ao redor do mundo se tornaram altamente relevantes para suas nações naquele momento, desde Konrad Adenauer na Alemanha, Mao Tsé Tung na China até o premiê indiano Jawaharlal Nehru e o líder israelense David Ben-Gurion. Como observa Ganesh, “as circunstâncias contavam mais do que o indivíduo.”

Tal como em 1945, há cada vez mais evidência de que a atual pandemia será um momento de transformação, elevando governantes mundo afora, mais uma vez, à posição de líderes cujas decisões terão impacto em seus países por décadas. A resposta confusa dos EUA ao novo coronavírus sugere que a época marcada pela liderança global de Washington chegou ao fim, iniciando um processo complexo de transição para um sistema liderado por duas potências. A pandemia também deve simbolizar o fim da hiperglobalização, provavelmente com um maior papel do Estado na economia e taxas de crescimento mais baixas em países em desenvolvimento. James Crabtree, professor da Universidade Nacional da Singapura, escreveu recentemente que todo o conceito de Mercados Emergentes deve deixar de existir, com profundas consequências para a distribuição global de poder e o futuro do capitalismo. A crise sanitária global causará o primeiro retrocesso no desenvolvimento humano global em três décadas, causando aumentos bruscos nas taxas de pobreza e instabilidade política em numerosos países ao redor do mundo, alimentando a xenofobia, o nacionalismo e acelerando a crise do multilateralismo. Até a chegada de uma vacina, países terão que intercalar a flexibilização da quarentena com novos períodos de isolamento, sempre acompanhados de milhares de testes.

No meio disso tudo, nascerá uma ordem diferente, moldada pelas estratégias adotadas por líderes ao redor do mundo. Como as escolhas durante a atual pandemia deverão definir o contexto no qual futuros governos operarão, os países que atualmente têm líderes inteligentes e visionários provavelmente serão recompensados ​​desproporcionalmente —simplesmente porque, devido ao momento histórico, suas lideranças terão maior impacto. Países com governos eficientes sairão da crise mais unificados e resilientes, com sociedades mais empáticas e seguras de sua capacidade de superar desafios complexos. Nesse países, cientistas e profissionais da saúde ganharão mais visibilidade e respeito, e há um debate público construtivo sobre como encontrar o equilíbrio certo entre aumentar a capacidade de monitoramento do Estado e a proteção da privacidade, como reabrir a economia sem pôr vidas em risco e como financiar os pacotes de estímulo econômico.

Países que atualmente têm maus líderes, por outro lado, podem acabar sendo punidos mais do que em circunstâncias normais. Além de gerir mal a pandemia e prorrogar a crise sanitária e econômica, eles não levam evidência científica em consideração e não atuam de maneira transparente. Deixarão de estabelecer as bases necessárias para iniciar a dolorosa adaptação de longo prazo. Ao invés de unificar seus países, deixarão suas sociedades mais divididas e desconfiadas, inviabilizando um debate público sobre os numerosos desafios, desde o futuro da educação, da economia, do emprego, do transporte e até do processo eleitoral em tempos de pandemia. Como sempre na história, países com lideranças inteligentes aproveitarão do mundo em fluxo para galgar posições, enquanto as nações à deriva perderão relevância.

Levará muito tempo para se poder avaliar as consequências geopolíticas da pandemia e o inevitável rearranjo na distribuição de poder entre nações. Porém, até agora, tudo indica que o Brasil será um dos grandes perdedores geopolíticos deste momento histórico. Quando o Brasil não foi nem sequer convidado para lançar, em abril, a iniciativa “Colaboração Global para Acelerar o Desenvolvimento, Produção e Acesso Equitativo a Diagnósticos, Tratamento e Vacina contra a Covid-19”, que reúne Governos, organizações internacionais, fundações e empresas privadas, revelou-se ali uma irrelevância internacional do Brasil que pode ser o novo normal pós-pandemia —e que demoraria anos para ser revertida. A triste realidade é que, neste momento, o Brasil traz muito pouco à mesa dos debates sobre os maiores desafios que a humanidade enfrenta. É relevante apenas no sentido em que causa preocupação dentro e fora do país. Além das muitas mortes que poderiam ser evitadas com uma resposta mais coerente e baseada em evidências científicas, o Brasil pode chegar a pagar um preço muito maior, por muito mais tempo, do que a maioria acredita.


Juan Arias: Quem é o verdadeiro Bolsonaro?

De tanto ser nada, presidente está se revelando como um cavalo descontrolado que, quanto mais acossado, mais coices dá

Em seus 500 dias de Governo já se disse de tudo sobre o presidente de extrema direita, o capitão reformado Jair Bolsonaro. E, entretanto, sua verdadeira personalidade ainda é um mistério. Sobre ele já opinaram de psiquiatras a cientistas políticos e historiadores e ainda continuamos sem conhecer realmente a verdadeira periculosidade do personagem.

Ele, que sempre foi um obscuro político sem relevância, célebre, de todo modo, por suas grosserias contra os diferentes e as mulheres, é hoje examinado, já no comando da República, sob os traços mais obscuros de sua personalidade. A psicologia o descreve como um paranoico com complexos de inferioridade e fúrias destrutivas de morte, e os políticos como um personagem menor com desejos de vingança por ter passado 30 anos na sombra.

Assim se explica sua ambição exorbitada e sua fome de poder e de querer demonstrar que desta vez verdadeiramente o tem. Só que ele não entendeu que esse poder é compartilhado e que ele é responsável somente por presidir um país ao lado das outras instituições independentes do Estado. De ser nada passou a sentir a onipotência bater a sua porta e está se revelando como um cavalo descontrolado que quanto mais acossado mais coices dá. Mostra arroubos de valentia quando é criticado e se reveste de uma autoridade que não lhe pertence. E chega a proclamar como os velhos ditadores do passado, tantas vezes personagens complexados na vida, “eu sou a Constituição”, e “sou eu quem manda” e “as Forças Armadas estão sob meu comando”. E “eu quero o povo armado nas ruas”. Onipotência descarada e simplista que só pode conduzi-lo ao fracasso e levar o país ao abismo.

Não restam dúvidas de que na História sempre foram personagens complexados que, para demonstrar sua força, infringiram descaradamente todas as regras mais elementares da democracia para dar vida a experiências totalitárias que acabaram ensanguentando o mundo. Acho que hoje sobre o presidente brasileiro há algo claro e é que parece disposto a tudo, até a pisotear os valores da convivência com suas fúrias de poder.

Tivemos dias atrás mais uma amostra de seu viés não só autoritário como golpista após a reação à publicação por ordem do Supremo do vídeo já tristemente célebre da reunião ministerial de 22 de abril no qual aparecem ele e seus ministros mais ideologizados despidos de dignidade e ameaçando outras instituições, enquanto se esqueciam vergonhosamente do drama que o país está vivendo pelos efeitos da epidemia cujos mortos já nem encontram cemitérios para ser enterrados.

O vídeo deixou em evidência não só a mediocridade e o baixo calão do presidente e de seus principais ministros, mas também o perigo que significa uma nação da envergadura do Brasil ser governada por um punhado de pessoas sem empatia à dor e que ameaçam levar o país a uma nova aventura militar.

O conciliábulo deixou o país atônito, envergonhado e atemorizado ao ouvir da boca do presidente da nação, além de um rosário de palavras vulgares, que seu desejo é contar com uma população armada nas ruas. Para quê? Para matar? Para dar vida a uma guerra civil entre irmãos? Chegou ao sarcasmo de afirmar que o povo armado é o melhor antídoto contra a ditadura.

Era de se esperar que após o opróbrio público daquelas cenas de política obscena da reunião, o presidente Bolsonaro desaparecesse por uns dias na sombra envergonhado e com medo das consequências judiciais do encontro. Isso significaria, entretanto, não conhecer o personagem que como o touro quando recebe as bandeirolas do toureiro se enfurece ainda mais. Desse modo, apareceu em público antes de 48 horas para se encontrar com seu grupo fanático de seguidores que todos os domingos se juntam em frente ao palácio presidencial para aplaudi-lo e gritar palavras de ordem a favor de uma intervenção militar e contra as outras instituições do Estado.

Dessa vez foi possivelmente mais grave porque Bolsonaro apareceu ao lado do general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional. O presidente se sentiu tão seguro ao lado do general que dessa vez nem sequer se preocupou em pedir aos seus seguidores que retirassem os cartazes golpistas. Não só não teve uma palavra de pesar pelo rio de vítimas que todos os dias estremece o país, como fez questão de quebrar todas as normas contra o coronavírus ditadas pelas autoridades médicas e pelos governadores e se misturou às pessoas abraçando-as sem máscaras e sem escrúpulos.

Nessa mesma hora, como para rubricar um ostensivo apoio de uma parte do Exército às suas tentações golpistas, um grupo de 89 militares da reserva da Agulhas Negras, onde Bolsonaro se formou como paraquedista e de onde foi expulso por seus devaneios terroristas da época, publicou um documento de apoio ao presidente no qual chegam a fazer alusão a uma possível “guerra civil” caso o velho capitão hoje reformado não for obedecido.

Os que chegaram a pensar que os nove ministros militares do Governo e os mais de 2.000 militares colocados nos outros escalões do Estado poderiam servir de freio para deter as tentações autoritárias do presidente, começam a perder a esperança, já que a cada dia se revelam mais alinhados com ele e lançando ameaças claras de um golpe militar.

Tudo isso agravado pela decisão de Bolsonaro de conquistar com cargos e benefícios a parte mais repugnante e corrupta do Congresso, o chamado “centrão”, que é formado por muitos políticos ainda com processos nos tribunais. Para quem venceu as eleições em boa parte por sua promessa de acabar com a velha política e suas práticas corruptas, esse novo casamento com os partidos mais envolvidos em escândalos de corrupção, esse se jogar nas mãos da parte mais podre do Congresso, não pode deixar de aparecer como um sarcasmo e uma chacota aos seus eleitores.

Talvez o Brasil esteja perto de entrar em um dos piores momentos de sua história pelo afã do presidente de reviver velhos fantasmas autoritários inimigos dos valores democráticos que no passado só criaram fome, miséria e desprezo à cultura.

É urgente que o Brasil e suas forças democráticas, deixando de lado suas lutas partidárias, se unam para deter o cavalo descontrolado das velhas saudades autoritárias, já que acredito que restam poucas dúvidas de que Bolsonaro chegou para ficar e que a cada golpe recebido levanta a cabeça com mais orgulho ferido. E que nele não existem limites e cercas capazes de distinguir entre civilização e barbárie. E ainda mais acreditando-se enviado e iluminado por Deus. Por fim, da mesma forma que todos os déspotas da História.


Cacá Diegues: O Ministério de Ontem

Está tudo tão antigo, tão ligado a ideias que pareciam mortas e enterradas, a ações já tentadas e vencidas em outros tempos

Tem dias que a gente acorda meio molenga, dá uma olhada nas notícias on-line, lê umas coisas nos jornais e fica tentando descobrir em que ano estamos. Está tudo tão antigo, tão ligado a ideias que pareciam mortas e enterradas, a ações já tentadas e vencidas em outros tempos, que, durante uns segundos, a gente pensa que segue amarrado a um sonho que não termina. Sonho, não. Pesadelo.

Corre pelo mundo uma pandemia danada, matando gente em tudo que é continente. Na China, onde o vírus primeiro apareceu, parece que está tudo sob controle. O que não acontece ainda na Europa, que está quase chegando lá. No Sudeste Asiático e na Nova Zelândia estão os heróis da humanidade, intrépidos vencedores do vírus diabólico. Ele é o único inimigo que devíamos estar enfrentando com empenho, todos juntos, unidos e inseparáveis, porque pode acabar com todos nós, sejamos de que partido formos. De direita, de esquerda ou de todas as tendências de centro. O vírus só reina onde não se tem nenhuma consciência política disso, ali está a crise aguda.

Na América do Norte, um presidente insensível, que só pensa na reeleição cada vez mais difícil, odiado por todo mundo que ainda crê na viabilidade do amor, resume sua participação na guerra contra o vírus a crises de mau humor com os que censuram suas mentiras virtuais. E, na parte de baixo do continente, a América do Sul inteira fecha suas fronteiras para o perigo que vem do Brasil, isolado dali e do mundo. De nosso país, é que podem chegar os perigos da Covid-19 para nossos vizinhos de língua espanhola, que já tiveram muita inveja de nós e de nosso jeitinho esperto de viver. Hoje, eles nos evitam, como se fôssemos apenas amantes protetores e fiéis do vírus diabólico. A porta aberta para que eles invadam a vizinhança.

As notícias da manhã me levam a um mundo agendado por uma espécie de Ministério de Ontem, onde a política se repete numa evidente tentativa de golpe de Estado, comandado por gente doente e doida, desta vez eleita, mesmo que ocasionalmente e por engano. Eles não só não nos deixam pensar na luta contra o vírus, nos concentrarmos na defesa de todos nós contra a “gripezinha”, como agem contra toda tentativa de enfrentar o bichinho maldito. Como se o vírus não existisse e não estivesse atrás de nós, é tudo invenção desses comunistas. Enquanto isso, brincam de espingarda na gravata e gritos apopléticos de horror, cada vez que são apanhados em flagrante.

Como não temos partidos em que podemos confiar, com os quais nos identificamos e a eles seguimos, cada vez que temos uma eleição decisiva ficamos diante de escolhas que não sabemos por onde analisar. No meio do caminho, somos muitas vezes obrigados a topar a violência de um impeachment, afastando do governo, por meio de manobras de salão, quem foi eleito pela simpatia espontânea da população. Nas duas últimas vezes em que isso aconteceu na política brasileira, o eleitor já não tinha muita confiança em ter acertado em sua escolha. E isso foi o que nos salvou de uma crise mais longa e mais séria.

O capitão foi eleito como uma reação da população aos 15 anos do oposto no poder, por causa de grave decepção popular. O número de eleitores arrependidos hoje é imenso. Arrependidos, não. Eleitores que simplesmente deploram não lhes ter sido dada opção mais sã e mais sólida, como alternativa. O primeiro sinal que tive do resultado futuro da eleição de 2018 foi-me dado pelos motoristas de táxi. Todos iam votar no capitão. Agora, antes da quarentena, todos afirmavam sua decepção com o voto que deram. Mas sempre acrescentando a pergunta melancólica: mas eu ia votar em quem?

A nós, que prestamos mais atenção, sempre nos ocorreu o que podia acontecer. Ou ninguém se lembra que, graças aos apresentadores do “Jornal Nacional”, os espectadores não viram as páginas abertas da “cartilha sexual” que o Ministério da Educação do governo anterior havia preparado para as crianças, onde a chupeta tinha uma forma de pênis? Foi o casal de jornalistas que não deixou que o então candidato mostrasse a cartilha pervertida, típico objeto de fake news, para as câmeras.
Em grande parte, quem ganhou a eleição graças a esses disparates receia que eles sejam agora criminalizados.

Insisto que, se o cara foi eleito democraticamente, mesmo que por engano (a democracia, às vezes, também se engana), temos que respeitar esse resultado, sempre atentos ao que ele pode aprontar. Serão mais dois anos e meio de desacertos, sustos e ameaças. A não ser que ele pise na bola mais gravemente, o que se há de fazer?


Arminio Fraga: Uma resposta à altura da crise

Reformas menos impactantes nos deixariam na ciclotimia medíocre de décadas

Em minha última coluna discorri sobre a tempestade perfeita de crises que assolam o Brasil: sanitária, econômica e política. Argumentei que o desafio exigia liderança esclarecida por parte do Executivo. De lá para cá a tormenta recrudesceu.

Já não é de hoje que o governo vem dando sinais preocupantes. Ataques constantes à imprensa. Rejeição à política e ao diálogo. Repressão ao terceiro setor e à cultura. Desdém pela ciência, meio ambiente, questões identitárias, pela própria democracia. O vídeo da reunião de abril confirmou de forma assustadora esses sinais.

Resulta daí grande incerteza. E não surpreende, portanto, que o investimento nacional esteja há tempo parado em seu menor nível histórico.

No campo econômico, a agenda pouco evoluiu. A privatização, a PEC Emergencial (de natureza fiscal) e a abertura da economia não andaram. As cruciais reformas tributária e administrativa não foram sequer apresentadas.

O ambiente político anda crescentemente tenso, como no título do livro “A Batalha dos Poderes”, de Oscar Vilhena Vieira, colega aqui nesta Folha. O governo parece se alimentar do confronto. Chama a atenção nesse contexto a montagem de uma base de apoio em linha rejeitada na campanha. Sugere uma guinada para modo de sobrevivência. Não é um bom sinal.

Independentemente do rumo que a política brasileira vier a tomar, cabe um alerta quanto ao cenário econômico.

A crise econômica tem suas raízes nas equivocadas escolhas da gestão de Dilma Rousseff, amplamente debatidas, embora não devidamente absorvidas. Meu resumo: modelo econômico velho (intervencionista, de baixa produtividade) e crise de confiança por descontrole fiscal a partir de 2014 (fato frequentemente esquecido).

A despeito da aprovação da reforma da Previdência e da introdução do teto para o gasto público, que impactaram positivamente os mercados, faltam ainda condições objetivas para que o teto seja cumprido a médio e longo prazos. Como resultado, o investimento público, que já vinha baixo, caiu para próximo de zero. As despesas livres foram também espremidas e se aproximam de um limite mínimo. Houve sim estabilização da dívida pública (como proporção do PIB), mas de maneira insustentável.

Nesse contexto chega o vírus. O governo saiu gastando agressivamente em saúde e assistência social, corretamente, mas sem planejamento. Como nossa convivência com o vírus pelo visto vai durar bem mais do que se imaginava, o buraco fiscal deve aumentar bastante. Estima-se um déficit primário que pode neste ano chegar a inimagináveis 12% a 15% do PIB (num cenário em que o PIB caia entre 6% e 10%). A implacável aritmética levará a dívida pública dos atuais 75% para mais do que 90% do PIB.

O orçamento chamado de guerra (que veio em boa hora) acertadamente proíbe que os gastos extraordinários adentrem 2021. Mas as pressões para mais gastos serão enormes. A despeito das regras legais, há risco que ocorram (lembremo-nos aqui que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi violada a partir de 2014). É bem possível que ano que vem a dívida se aproxime de 100% do PIB.

As enormes e crescentes necessidades de financiamento do setor público forçarão um encurtamento no prazo da dívida. Vejamos como. Um aumento do endividamento como o que está programado gera insegurança e reduz a demanda por títulos de longo prazo. A consequência direta é que sobe o custo da dívida de longo prazo, o que já está ocorrendo. No limite, a demanda pode secar completamente, como em 2002. Nesse contexto, o Tesouro é obrigado a encurtar o prazo de suas captações.

Esse encurtamento pode ocorrer através de vários mecanismos, que a não especialistas parecem misteriosos. Alguns envolvem o Banco Central. Mas no final das contas, o que importa é que o prazo da dívida pública em poder do público vai encurtando. Ou seja, parte da dívida vai se transformando em uma quase moeda.

O encurtamento reduz o custo do financiamento, mas cria a dependência de rolagens frequentes e grandes da dívida. Quando em algum momento os financiadores se assustam, as taxas de juros de curto prazo também ficam pressionadas. Parte do dinheiro pode inclusive querer sair do país, o que pressiona também a taxa de câmbio e, eventualmente, a inflação.

Como bem advertiu Edmar Bacha em evento quinta-feira passada na Câmara dos Deputados, não precisamos ir muito longe para vermos que inflação pode coexistir com recessão: basta ir à Argentina (ou consultar nossa própria história).

Temos assim diante de nós um colossal desafio para 2021 e adiante. Considero gestão temerária estabilizar a dívida pública em patamar superior a 70% do PIB, especialmente com prazo encurtado. Algumas economias avançadas podem fazê-lo, mas não o Brasil, com seu histórico de inflação, confiscos, controles de câmbio e moratórias. Temos que sair dessa! Para tanto, será necessário fazer um ajuste fiscal de 4 a 5 pontos do PIB. Assim se garante que a dívida entre em trajetória crível de queda, o que acalmaria as expectativas.

Além do ajuste macroeconômico, será necessário obter recursos para investimentos públicos em áreas como saúde, tecnologia e infraestrutura, algo como quatro pontos do PIB. A soma bate sim em 8 a 9 pontos do PIB. Não podemos nos iludir —esse é o tamanho do desafio. Tenho plena convicção de que valeria a pena enfrentá-lo.

De onde viriam os recursos? Cabe aqui o que no mundo empresarial seria chamado de um benchmarking. No caso, uma comparação com outros países, em busca de oportunidades para mais economia e eficiência. No Brasil, os gastos com Previdência e funcionalismo atingem cerca de 80% do total das despesas públicas. Na esmagadora maioria dos países esse número não passa de 60%. Se as duas contas fossem para 60%, cifra ainda alta, daria para economizar até sete pontos do PIB (20% dos 35% do PIB de gastos totais).

Como? Do lado da Previdência, com uma reforma adicional que inclua os estados e elimine algumas folgas nas regras. Assim seria possível se obter um total de três pontos por ano. O projeto coordenado por Paulo Tafner em 2018 oferece um exemplo detalhado de como se chega a esse resultado.

Uma reforma da área de recursos humanos do Estado deveria gerar mais três pontos do PIB (além de melhores serviços para a população). A reforma incluiria uma redução do número de funcionários (ao longo de alguns anos), avaliações de todos os funcionários, fim de promoções automáticas, ajustes nos planos de carreira e correções de distorções (como supersalários). Seria possível simular caminhos e criar metas detalhadas.

Há ainda uma terceira fonte de recursos, que viriam de uma redução de subsídios que não fazem sentido econômico ou social. No orçamento de subsídios da União é possível identificar economias de 2 a 3 pontos, sobretudo nas regras dos regimes especiais do Imposto de Renda, que são absurdas sob o ponto de vista distributivo. Esse passo teria o benefício adicional de conferir autoridade moral ao conjunto de propostas, pois deixariam claro que as perdas seriam proporcionalmente maiores para os mais capazes de arcar com elas.

Que fique claro também que sem as reformas as perdas gerais seriam imensas e recairiam sobre os mais pobres.

No curto prazo, creio que com contenção de salários e de contratações no setor público e com a eliminação de subsídios se poderia chegar a um ajuste de três pontos do PIB. As reformas mencionadas aqui cuidariam do restante, ao longo de alguns anos.

Estamos diante de problemas enormes. Felizmente, como demonstrei, existem respostas de igual dimensão. Se adotado, o roteiro apresentado aqui porá o Brasil em uma trajetória de crescimento sustentável e inclusivo. Reformas menos impactantes nos deixariam na ciclotimia medíocre em que estamos há décadas. Nada fazer nos garantiria um final distópico.

*Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).


Sergio Fausto: Com democracia e bom governo detivemos a aids

Essa memória não pode ser destruída, porque nos serve para enfrentar o desafio da covid-19

Uma das vigas-mestras da mitologia bolsonarista é a afirmação falsa de que, entre o fim do regime autoritário e a o atual governo, o País esteve entregue aos interesses mesquinhos da pequena política e à degeneração moral da sociedade. Bolsonaro seria o líder providencial com a missão de restabelecer o primado do interesse nacional, com maiúsculas, e dos valores tradicionais, protetores da vida.

Essa mitologia se esfarela a cada dia com a expansão de casos de covid-19 pelo território brasileiro e o crescimento do número de mortos. Em lugar de se guiar pelo interesse maior da sociedade, liderando um esforço nacional de combate aos efeitos sanitários e socioeconômicos da pandemia, o mito se dedica a agitar as suas hostes, em manifestações contra o Congresso e o STF, a proteger a si e aos seus com investidas contra a autonomia da Polícia Federal e a cerrar fileiras com a pequena política para preservar o seu mandato. Um espetáculo de desgoverno como nunca antes se viu na História deste país.

Tão importante quanto mostrar que o rei está nu é desconstruir a sistemática campanha de desmoralização do período de conquista e consolidação da democracia no Brasil. Nada mais oportuno do que comparar a politização descabida e a descoordenação da resposta à covid-19 com a construção da política pública de combate à aids, doença infecciosa que crescia velozmente no Brasil no final do século passado.

Não se trata de desconhecer as diferentes formas de transmissão e as distintas consequências para a saúde pública e a economia provocadas pelo HIV e pelo novo coronavírus, mas de destacar os fatores que levaram o Brasil a se tornar um exemplo mundial de sucesso no combate à aids. Essa memória não pode ser destruída, pois nos serve para enfrentar o desafio atual.

O Brasil fez do combate à aids uma política de Estado. Contribuiu para tanto a democratização da sociedade, que se tornou mais aberta e mais engajada graças à liberdade de imprensa e ao aprendizado feito na luta contra o regime autoritário. Particular importância teve o movimento gay, que, defendendo o grupo social no qual era maior a prevalência da doença, soube fazer alianças e tornar o combate à aids um tema de interesse geral da sociedade. Contribuiu também a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), previsto na Constituição de 1988, decisivo na distribuição dos antirretrovirais quando estes se tornaram disponíveis na segunda metade dos anos 90. Igualmente decisiva foi a compreensão por sucessivos governos de que a doença não deveria tornar-se objeto de disputa política mesquinha. Em 1996 o Congresso aprovou lei tornando gratuita a distribuição do chamado “coquetel antiaids” na rede do SUS e governo federal, junto com Estados e municípios, concretizou a medida.

Ao contrário da previsão do Banco Mundial, que previra 1,2 milhão de pessoas infectadas, o Brasil tinha na virada do século 600 mil indivíduos com o vírus do HIV. Nos anos seguintes, a taxa de mortalidade caiu a menos da metade. A mudança drástica na trajetória da doença não teria sido possível se uma coalizão ampla de forças não tivesse vencido resistências conservadoras que, desde o início, procuram minimizar e estigmatizar a doença como “um câncer gay”.

Respaldado por bons resultados, o Brasil ganhou protagonismo na cena internacional, em particular quando se colocou a questão da quebra de patentes dos antirretrovirais, detidas por grandes empresas farmacêuticas. Em 2001, na inauguração da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio, o Brasil foi autor da proposta que abriu caminho para que as empresas se dispusessem a reduzir o preço de venda daqueles remédios.

Sem antiamericanismo, mas também sem subserviência, o Brasil enfrentou a posição capitaneada pelos Estados Unidos. A decisão favorável à proposta brasileira tornou a compra de antirretrovirais acessível a muitos países que de outra maneira não poderiam comprá-los em quantidade minimamente suficiente, mesmo com os recursos a fundo perdido mobilizados pelo programa das Nações Unidas.

Para que fique claro o custo de decisões erradas tomadas em momentos cruciais, recorro, para concluir, ao exemplo negativo da África do Sul, país onde quase 20% da população adulta se encontram hoje infectados pelo HIV. Parte importante da responsabilidade por essa tragédia humanitária se deve ao desatino do ex-presidente Thabo Mbeck, no poder entre 1999 e 2008. Alegando que a compra de antirretrovirais custaria muito dinheiro e que não haveria comprovação científica de que a aids fosse causada pelo vírus HIV ou suscetível à ação daqueles remédios, Mbeck resistiu até onde pôde às pressões internas e externas para fazer a coisa certa. Só o fez depois que a Corte Suprema do seu país, acionada por movimentos da sociedade civil, o obrigou a tanto. Estima-se que a resistência de Mbeck a comprar e distribuir os antirretrovirais tenha custado mais de 300 mil vidas.

Ainda é tempo de evitar que o Brasil enverede por semelhante descaminho.

*Diretor-geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP