coronavirus
Luiz Sérgio Henriques: Os fenômenos mórbidos da crise
O assustador número de mortos na pandemia não parece comover Trump nem Bolsonaro
Com sua torrente incomum de surpresas e sobressaltos, os dias em curso parecem confirmar que estamos em meio aos fenômenos mórbidos que, segundo a frase famosa, se colocam entre o velho que morre e o novo que não consegue nascer. Longe de virar jargão, a frase descreve situações por certo inéditas e espantosas. Comecemos pelo fato de que um dos dois grandes partidos que vertebram a democracia norte-americana acaba de ser definitivamente tomado de assalto por uma extrema direita subversiva, “leninista”, a qual, impossibilitada eleitoralmente de levar a cabo a fatídica obra de esvaziamento das instituições, ameaça uma das regras mínimas da democracia, a saber, o exercício da regular alternância no poder.
Não é nada fácil para esse tipo de extremismo ter êxito na empreitada, mas o simples fato de tentá-la já é um mau presságio. Indica, antes de mais nada, alto grau de confiança na novíssima estratégia de erguer despudoradamente uma realidade paralela a partir de “fatos alternativos”. Para tanto se deve metodicamente corroer o bom senso e degradar o senso comum, implodindo a realidade objetiva e os modos compartilhados de vivenciá-la. Tudo o que é sólido se desmancha numa sequência estonteante de conspirações, irrealidades, fantasmagorias. A Terra não é redonda, ninguém jamais pisou na Lua e Trump não perdeu as eleições, pelo menos se forem contados os votos da sua preferência. E com a certeza dos simples muitos se associarão a essas sandices.
Muitos, mas não todos e menos ainda a maioria. Por isso, neste tempo de situações patológicas, a estratégia da direita “revolucionária” – não confundir com a direita constitucional, que participa normal e legitimamente do jogo democrático – renuncia previamente ao argumento racional, só ele capaz de agregar consensos e sustentar as boas sociedades, mesmo quando se transformam. Não diria que, para os “leninistas” de direita, tudo seja política, mas certamente tudo é ideologia: o mundo, assim, sem maiores escândalos, pode ser impunemente virado do avesso ou percebido de ponta-cabeça. E para que esse objetivo insano seja atingido se requer uma alucinada obra de regressão cultural que, ao fim e ao cabo, afaste as pessoas das modernas promessas de autonomia e as torne prisioneiras de um passado de fábula.
Veja-se, para dar um só exemplo, a realidade dos dois maiores países ocidentais – Estados Unidos e Brasil –, que desgraçadamente experimentam a associação entre governos extremistas e pandemia do novo coronavírus. O assustador número de mortos em nenhum momento parece comover Donald Trump, Jair Bolsonaro e as respectivas equipes dirigentes. Falece a esse tipo de governante, por princípio, a capacidade de “sentir com”, a inspiração de falar a verdade à população, de mobilizá-la para usar os recursos disponíveis, seja o distanciamento social, seja uma simples máscara. Estão alheios até mesmo ao “conservadorismo com compaixão” de épocas mais previsíveis; o que lhes importa é que a máquina econômica continue a girar, como se, bem ali ao lado, a pilha de mortos não importasse ou só merecesse um “lamento” vazio e falso.
Pior: dirigentes desse tipo agem conscientemente para promover a involução cultural de que se nutrem e com que se afirmam. Ao longo dos meses ambos apregoaram curas falaciosas e medicamentos nocivos, como no caso da cloroquina (antes, o curandeirismo do presidente Bolsonaro já se manifestara com uma certa pílula do câncer, o que o singulariza como um reincidente problemático). As vacinas em desenvolvimento são tratadas como matéria de política rasa – de ideologia –, de sorte que, como subproduto indesejado, se dissemina entre muitos uma atitude contrária à vacinação e à própria ciência. Arenga-se inutilmente, irracionalmente, sobre a “nacionalidade” do vírus, como se a irrupção deste e de outros vírus não fosse catástrofe prevista e até potencializada por um conjunto de práticas deletérias, entre as quais o desmatamento, em que nosso país tem tido um protagonismo acabrunhante.
Em tempos mais convencionais, há um nexo entre democracia, conhecimento e elevação intelectual generalizada, um dos poucos indicadores certos de que o gênero humano progride e consegue disseminar, ainda que desigualmente, os frutos deste seu progresso. Inversamente, em tempos atribulados, autocracia, obscurantismo e rebaixamento intelectual andam de mãos dadas, golpeando a convivência civil e a boa política, que assim perde a capacidade de estimular o confronto de paixões e interesses, ao mesmo tempo que recompõe o terreno comum entre os que se confrontam.
A vitória de Joe Biden e os bons ventos que inspira, ao prenunciarem as dificuldades da direita “revolucionária”, não constituem só um fato político, mas têm alcance, por assim dizer, moral e cognitivo. Se tivermos sorte, marcam o início do fim de um ciclo de pesadelos antimoderno ou típico de uma modernidade reacionária. De algum modo nos permitem ver além dos fenômenos patológicos do presente e devolvem a esperança em nossa comum humanidade.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Vinicius Torres Freire: A nova temporada de festas do corona
Negligência festeira e governo incapaz criam risco de verão sufocante: a Europa avisa
Parte da gente remediada, bem de vida ou rica que frequenta as praias do litoral norte de São Paulo marca grandes festas de fim de ano, noticia esta Folha. Aparecem relatos aqui e ali de hospitais privados cuidando de mais doentes de Covid-19, embora os dados não sejam bastantes nem para esboçar um chute de estimativa das internações recentes.
O governo paulista, que teria o mapa completo do problema, diz que não há tendência de aumento da ocupação de leitos por causa da epidemia.
As notícias da agenda animada de festas, no entanto, fazem lembrar da negligência do início da calamidade, das festas de casamento e outras aglomerações que ajudaram a espalhar o vírus como bombas sujas, radioativas.
Não há fatos que indiquem um repique da epidemia em São Paulo, na maior parte dos estados ou na média nacional. Mas, como se escrevia faz duas semanas nestas colunas, a Europa outra vez nos dá um alerta. Foi assim em fevereiro e março, para o que muita gente aqui ligou pouco.
Para resumir um assunto complicado, a situação em muitos países da Europa está por ora fora de controle, a julgar pelo número de mortes. Como as novas restrições e distanciamentos foram impostos no início do mês, ainda não dá para saber se tiveram resultado. Mas o espalhamento da doença, com ou sem restrições, vai danar a atividade econômica europeia em novembro.
O repique de casos, mesmo sem restrições, já prejudicara outubro. A retomada em dezembro, se houver, será entre cautelosa e lenta, para ser otimista.
Na Europa, o número relativo de novas mortes é o triplo do brasileiro (medido pela média móvel de mortes em sete dias, por milhão). Na França, 5 vezes o do Brasil. Na Itália, 4,4 vezes. Na Espanha, 3,5 vezes. No Reino Unido, 3,2. Mesmo na disciplinada e organizada Alemanha, o número relativo de novas mortes agora é praticamente igual ao daqui.
A taxa de infecção geral acumulada nos maiores países europeus, menos a Alemanha, não deve ser muito diferente da brasileira, embora estejamos de novo no escuro a respeito disso.
De qualquer modo, o Brasil poderia entrar em temporada menos triste na saúde e na economia. O número diário de mortes rondou a casa de 5 por milhão, em julho; é de 1,7 agora, ainda o horror de 365 mortes por dia, mas diminuindo.
Os auxílios emergenciais vários evitaram recessão convulsiva. As taxas de juros estão em níveis historicamente baixos. Comércio e indústria vinham despiorando em ritmo melhor do que o esperado. Se o controle da epidemia fosse melhor, haveria menos mortes, menos medo, e o setor de serviços estaria andando mais rápido também.
Se houvesse governo federal, haveria um plano sanitário. Haveria ao menos um plano econômico, um programa para lidar com o fim dos auxílios, em dezembro, e um projeto qualquer de diretriz econômica que fosse apenas sensato, “arroz com feijão”. Ou seja, um plano ao menos para satisfazer os donos do dinheiro e não causar tumulto financeiro, um plano básico para cuidar do orçamento. Não há nada disso.
O verão pode ser muito abafado. Que não seja sufocante. As festas da negligência alegre podem ser mortíferas. A paralisia da administração econômica pode largar de novo muita gente em miséria ainda maior, no mínimo. O governo de Jair Bolsonaro continua o seu culto da morte, a campanha de desmoralização das vacinas e a nomeação de terraplanistas militares para cargos técnicos da saúde. Vai ser por sorte ou andanças desconhecidas do vírus que poderemos escapar de uma segunda onda de desgraça.
El País: Com menção a pólvora e maricas, Bolsonaro desvia atenção do desemprego e acusação contra seu filho
Foi mais um dia marcado pelas palavras do presidente, que pisou no acelerador, possivelmente com os olhos voltados para o primeiro turno das eleições municipais do próximo domingo
Naiara Galarraga Gortázar, do El País
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, lançou mão de um comentário homofóbico como fez tantas vezes ao longo de sua carreira política. Nesta terça-feira foi para se queixar da crise do coronavírus, de como está sendo administrada e da atenção midiática que recebe. “Temos que deixar de ser um país de maricas”, disparou durante uma cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília. Bolsonaro, conhecido negacionista da gravidade da doença, governa um dos países mais afetados do mundo, com 162.000 mortos e a caminho dos seis milhões de infectados. O mandatário populista dinamitou durante o dia a tônica dos últimos meses em que reduziu a frequência de suas típicas grosserias: comemorou a suspensão do teste clínico da vacina chinesa, insultou homossexuais, pela primeira vez se referiu a Joe Biden desde as eleições nos EUA, mas não para cumprimentá-lo, e gabou-se do poder de dissuasão militar diante dos EUA.
Foi mais um dia marcado pelas palavras do presidente, que pisou no acelerador, possivelmente com os olhos voltados para o primeiro turno das eleições municipais do próximo domingo. Bolsonaro é um artista que desvia a atenção dos problemas relevantes como o desemprego, a inflação ou a recém-formalizada acusação de corrupção contra o filho mais velho. Fica incomodado que o coronavírus ainda esteja no centro do debate político porque é um campo em que seu principal rival, João Doria, se movimenta bem.
Nenhum dos dois é candidato às eleições para prefeitos e vereadores, mas cada um apoia um candidato em São Paulo, a cidade mais rica e populosa do Brasil, onde o homem do presidente, Celso Russomanno, está bem atrás do atual prefeito nas pesquisas, Bruno Covas, apoiado por Doria.
Bolsonaro presidia uma solenidade no Palácio do Planalto sobre a necessidade de reativar o turismo, moribundo por causa da pandemia, quando deu renda solta à sua exasperação: “Tudo agora é pandemia. Tem que acabar com esse negócio, pô. Lamento os mortos, lamento, mas todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, da realidade. Temos que deixar de ser um país de maricas e enfrentar isso de peito aberto, lutar”, disse Bolsonaro, um paraquedista militar aposentado que construiu sua carreira política como um dos políticos mais medíocres, mas provocadores, do Congresso. O atual presidente ganhou fama há muitos anos por seus elogios à ditadura, além de seus insultos machistas e homofóbicos.
O governador de São Paulo aproveitou a crise sanitária para se destacar entre os vários aspirantes a candidato às presidenciais de 2022. Doria apostou na ciência desde o início da pandemia e sua prioridade agora é a vacina chinesa produzida pela Sinovac em colaboração com Instituto Butantan. É por isso que a recente suspensão do teste dessa vacina por parte do Governo, em uma decisão cercada de suspeitas, é um revés para Doria que Bolsonaro comemorou com entusiasmo como uma vitória pessoal.
O chamado Trump dos trópicos também aproveitou para romper o silêncio sobre a vitória de Biden sobre o Trump verdadeiro, aliado e candidato preferido do brasileiro. Bolsonaro não mencionou o democrata pelo nome, referiu-se a ele como “um grande candidato a chefe de Estado”. Criticou as propostas do próximo presidente dos EUA de liderar um fundo de financiamento para preservar a Amazônia –que o Brasil considera um ataque frontal à sua soberania– e, diante de hipotéticas sanções comerciais, exibiu poder de dissuasão: “Apenas na diplomacia não dá. Porque quando acaba a saliva, tem que ter pólvora, senão não funciona. Precisa nem usar pólvora, mas tem que saber que tem”, declarou o capitão.
Entre os graves problemas que o presidente quer afastar dos holofotes está o desemprego, que ronda os 14 milhões, incluindo um milhão de pessoas acrescentadas no último trimestre. Embora o Brasil tenha melhores perspectivas econômicas do que a maioria de seus vizinhos e o fluxo de dinheiro público para os bolsos dos brasileiros tenha mitigado o impacto, a pandemia interrompeu os ambiciosos planos econômicos. As reformas previstas avançam em passo de tartaruga. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, se diz frustrado por não ter conseguido privatizar uma única empresa pública em dois anos de mandato. E também existe o caso de corrupção contra o senador Flavio Bolsonaro. O filho mais velho do presidente acaba de ser formalmente acusado pelo Ministério Público de peculato, de ter aumentado o seu patrimônio em um milhão de reais graças ao desvio de fundos públicos no Rio de Janeiro.
As eleições de domingo não servirão para saber com precisão se o bolsonarismo goza de boa saúde porque o presidente está há meses sem partido e seus aliados estão espalhados em uma infinidade de siglas. Será mais fácil avaliar a situação do Partido dos Trabalhadores de Lula.
RPD || Reportagem Especial: Risco de nova onda do coronavírus divide governos sobre volta às aulas presenciais
Maioria dos estados já decidiu pelo retorno gradativo às atividades nas escolas; profissionais da Educação criticam medida
Cleomar Almeida
Oito meses após o fechamento das escolas por causa da pandemia do novo coronavírus, em março deste ano, 16 redes públicas estaduais de ensino retomaram parte das aulas presenciais ou têm previsão de retorno às salas de aula, ainda em 2020. Em outros oito estados, governadores já se posicionaram pela volta dessas atividades somente no ano que vem, diante do risco da segunda onda de Covid-19 na Europa aumentar ainda mais os efeitos trágicos no Brasil. Professores e governos travam briga até na Justiça.
O sinal verde para a volta às aulas tem como parâmetro portaria do Ministério da Educação (MEC) publicada em julho e que define diretrizes para a retomada das atividades presenciais. Entre elas, está a obrigatoriedade do uso de máscaras, distanciamento social de 1,5 metro e afastamento de profissionais que estejam em grupos de risco. No entanto, governos estaduais e municipais têm autonomia para definição do calendário pedagógico a fim de reorganizar as aulas nas escolas.
Nos estados que já reabriram as salas de aula gradativamente, as escolas devem seguir uma série de protocolos sanitários estabelecidos em portarias dos governos e continuarem oferecendo ensino a distância aos alunos que optarem por essa modalidade. Nessa lista estão Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins.
Em geral, os governadores sustentam suas decisões na diminuição do número de casos de Covid-19 nos respectivos estados. As estruturas hospitalares emergenciais passaram a ser desmobilizadas. Dos leitos clínicos e de UTI do Sistema Único de Saúde (SUS) abertos a partir do início da pandemia, 65% já foram fechados. Por outro lado, o Brasil é o segundo país com mais mortes – atrás dos Estados Unidos – e o terceiro com maior quantidade de contaminações registradas – atrás dos Estados Unidos e da Índia.
A segunda onda de Covid-19 na Europa é um alerta importante aos governadores que decidiram optar por cautela e autorizar retorno às aulas presenciais somente em 2021 ou após a confirmação de uma vacina para imunizar a população. Nesse grupo, estão Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Roraima. Bahia e Rondônia ainda não firmaram posição sobre o assunto.
Em Goiás, o governador Ronaldo Caiado (DEM), aliado do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), contraria autorização de volta às aulas presenciais do próprio Comitê de Operações Emergenciais de Enfrentamento ao Coronavírus (COE), nas unidades de educação básica e superior. Para ele, as atividades escolares só devem ser normalizadas após a vacina. “Garantir vacinação antes do retorno às aulas é fundamental para evitar uma segunda onda da doença no Brasil”, afirmou ele.
De acordo com a imprensa internacional, a segunda onda de infecção pelo novo coronavírus em alguns países da Europa foi impulsionada pelo retorno antecipado às aulas, como ocorreu na França e Espanha. Ao voltar à escola e ter contato com outras pessoas, as crianças aumentam o potencial de proliferação do vírus. Hoje, os países estão sentindo o impacto dessa medida com a volta do toque de recolher e recessões maiores.
Em Roraima, apesar de manter aulas remotas neste ano, o governo estadual determinou o retorno dos professores ao trabalho presencial, exceto os que forem de grupo de risco. A diretora do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Roraima (Sinter), Josefa Matos de Freitas, e a Organização dos Professores Indígenas de Roraima (Opir) criticaram a medida. “Não é justo com o servidor ter que voltar, porque a pandemia nem acabou nem melhorou", disse a diretora.
No Distrito Federal e em Minas Gerais, a decisão sobre o retorno, ou não, às atividades presenciais está travada em imbróglio judicial. O governador Ibaneis Rocha (MDB) recorreu da decisão da Vara da Infância e Juventude do DF que determinou o retorno às aulas. “Essa é uma decisão que não caberia à Justiça. Mais uma vez, é a Justiça tentando governar", criticou. Ele argumentou falta de condições sanitárias adequadas e teve apoio do Sindicato dos Professores (Sinpro).
Em Minas Gerais, o governador Romeu Zema (Novo) trava outra briga com a Justiça, mas para garantir a retomada das atividades presenciais nas escolas. O Supremo Tribunal Federal (STF) negou pedido do Estado, concedendo liminar ao Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-Ute). A categoria também disse que a medida do governo contraria as regras de isolamento e que não há dados que indiquem redução de contágio pela doença, nem diminuição do número de mortes no estado.
Em outubro, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou parecer que permitia a fusão dos anos letivos de 2020 e 2021, em um currículo adaptado, e estendia a permissão das aulas remotas por mais um ano, até dezembro de 2021. O documento ainda não foi homologado pelo MEC.
Contrários ou favoráveis ao retorno das aulas presenciais, todos os governos estão suscetíveis a reverem suas decisões, a qualquer momento, caso a situação do país melhore ou piore na pandemia. O Brasil tem taxa de cerca de 84 mil testes a cada 1 milhão de pessoas. O número é baixo se comparado a outros países como o Reino Unido, que tem 453 mil testes a cada 1 milhão de habitantes, ou mesmo ao Chile, com 209 mil testes a cada 1 milhão de habitantes.
Alunos estão mais desmotivados e com menos aproveitamento
A dinâmica das aulas remotas tem levado estudantes a ficarem ainda mais desmotivados e diminuírem o aproveitamento nos estudos com o passar dos meses, segundo pesquisa sobre educação na pandemia. Os dados foram obtidos pelo Instituto Datafolha, a pedido da Fundação Lemann, Itaú Social e Imaginable Futures. Especialistas alertam para o risco de aumento de evasão escolar.
O levantamento aponta que o percentual de alunos sem motivação para estudar passou de 46%, em maio, para 54%, em setembro, conforme dados mais recentes. Segundo a pesquisa, outra grande barreira para os estudos na pandemia é a dificuldade de se organizar para estudar em casa. O índice de pessoas que confirmaram essa reclamação passou de 58% para 68%, no mesmo período.
A pesquisa ouviu 1.021 pais ou responsáveis de alunos de escolas públicas municipais e estaduais, de 6 a 18 anos, entre 16 de setembro e 2 de outubro. O chefe de educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Ítalo Dutra, mostra preocupação com a perda do vínculo escolar durante a pandemia.
“Nós fechamos as escolas sem planejamento. Na maioria dos Estados, o que vimos foi recesso, férias e depois ensino remoto. E essas atividades evidenciaram as desigualdades educacionais que o país tem”, disse. “Em São Paulo, menos da metade dos alunos tinha acesso ao conteúdo online em maio, e estamos falando do estado mais conectado e rico do país. A não manutenção desse vínculo pode impactar no abandono escolar”, alertou.
O diretor executivo da Fundação Lemann, Denis Mizne, destaca o risco de estes alunos desistirem da escola. “A evasão e o abandono escolar terão reflexo sobre o estudante, sua família e a sociedade, aumentando ainda mais a desigualdade”, disse ele. “O modelo criado na correria para dar conta de uma paralisação de dois ou três meses, e que acabou se estendendo para o ano inteiro, mostra desgaste”, avaliou Mizne.
Segundo a pesquisa, 92% dos estudantes receberam atividades para fazer em casa em setembro, contra 74% em maio. O índice aumentou em todas as regiões do país, especialmente no Norte, que passou de 52%, em maio, para 84%, em setembro. No entanto, o desgaste dos estudantes apontado na pesquisa indica o desafio para o ano letivo de 2021, que deverá ocorrer de forma híbrida, com aulas remotas e presenciais, além de rodízio das turmas.
Em julho, a pesquisa Pnad Contínua 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelou pela primeira vez dados sobre o abandono escolar, além das análises sobre taxas de escolaridade. O país aumentou a proporção de pessoas de 25 anos ou mais com ensino médio completo, passando de 45%, em 2016, para 47,4%, em 2018, e 48,8%, em 2019. No entanto, segundo o levantamento, 69,5 milhões dos adultos (51,2%) não concluíram essa etapa educacional.
De acordo com o IBGE, entre os principais motivos para a evasão escolar estão a necessidade de trabalhar (39,1%) e a falta de interesse (29,2%). Entre as mulheres, aparecem como causa gravidez (23,8%) e atividades domésticas (11,5%).
Busca por emprego faz maioria dos alunos deixar de estudar
Aliada à baixa atratividade das aulas remotas e à perda de renda das famílias, a busca por emprego pressionou 56% dos alunos a abandonarem os estudos durante a pandemia causada pelo novo coronavírus. É o que mostra a pesquisa nacional TIC Covid-19, divulgada no dia 5 de novembro.
O levantamento ainda aponta que alunos mais pobres lideram a lista dos que não acompanharam as aulas remotas. Do total, 29% estão na classe D e E; 20%, na classe B; e 11%, na classe AB. A pesquisa foi realizada entre 10 de setembro e 1º de outubro, com 2.728 pessoas de 16 anos ou mais, usuários de internet, que estudam ou estudavam desde a educação básica até o ensino superior.
A pandemia de Covid-19 também gera alerta sobre a falta de preparo das escolas para garantir o direito à educação aos alunos. No total, 32% dos entrevistados declararam que deixaram de estudar porque a instituição de ensino não ofereceu aulas ou atividades do curso.
Outras barreiras apareceram para os alunos que tiveram conteúdos disponibilizados pelas escolas, como dificuldade para tirar dúvidas com professores (38%), baixa qualidade da conexão ou inexistência dela (36%), falta de estímulo para estudar (33%) e baixa qualidade das aulas (27%).
Em relação a equipamentos de conexão, a pesquisa revela que a maioria dos alunos acompanha as aulas online pelo celular (37%). Outros declaram que usam notebook (29%), tablet (1%) ou televisão (1%).
RPD || Ligia Bahia (UFRJ) e Mario Scheffer (USP): Como o SUS sairá da pandemia?
Promessas não cumpridas, omissões, evasivas e o reconhecimento da indisponibilidade de insumos estratégicos para o Sistema Único de Saúde têm marcado a gestão do Governo Federal no combate à pandemia
A pandemia do Covid-19 e seus trágicos desdobramentos sanitários, políticos e econômicos concederam ao Brasil lugar destacado entre os países com respostas tardias e insuficientes à prevenção de casos e óbitos. A demora e desproporção entre a quantidade de recursos para rastreamento e tratamento de pacientes mobilizados e a magnitude da epidemia passaram a ser um problema em si. Entre fevereiro e agosto de 2020, houve nítida mudança no conteúdo de pronunciamentos governamentais. No primeiro semestre, a preocupação com a “falta” de leitos, equipamentos e testes competiu com debates em torno do uso ou não da cloroquina.
Em seguida, o foco das atenções convergiu para o auxílio emergencial e para a abertura das atividades econômicas. Em maio de 2020, três meses após o Governo Federal ter declarado o estado de emergência em saúde pública no Brasil, em 4 de fevereiro, o SUS, os profissionais da saúde e a população diretamente afetada pela Covid-19 ainda conviviam, em muitas cidades, com grave insuficiência de leitos de internação, falta de médicos e de equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde, assim como era precário o fornecimento de ventiladores e kits de testes diagnósticos.
O tom otimista e tranquilizador de autoridades governamentais sobre a “preparação do País” e a “capacidade do SUS” para o enfrentamento da pandemia foi pouco a pouco substituído por promessas não cumpridas, omissões, evasivas e o reconhecimento da indisponibilidade de insumos estratégicos. Por ocasião do registro oficial do primeiro caso positivo no país, em 26 de fevereiro, o então Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou que recursos novos estariam sendo investidos para a expansão de leitos, compra de equipamentos de proteção individual para profissionais de saúde e em laboratórios para a realização de testes.
O alegado investimento, como outros anúncios oficiais que se seguiram, teve pouca repercussão prática. Em maio, ainda estava explícita a carência extrema de testes e leitos para internação, além do colapso de unidades de terapias intensiva em capitais como Fortaleza, Manaus e Rio de Janeiro. Entre os meses de fevereiro e maio, embora menos eufóricos, discursos oficiais insistiam, no ápice da pandemia, em anunciar a expansão da rede hospitalar e a aquisição de insumos que deveriam ter sido providenciados muito antes da explosão da Covid-19 no País.
Em pleno agravamento da falta de vagas para internação de pacientes no SUS, transmitido diariamente pela mídia, ainda se ouvia que muitos leitos estariam disponíveis somente quando estivessem prontos novos hospitais, concluídas reformas e readequações na rede pública ou iniciadas negociações de compra de vagas do setor privado. Um dos principais parâmetros para a saída do isolamento social, o indicador de ocupação hospitalar, restava inviável, num cenário em que sequer os leitos prometidos e necessários eram ofertados. A tentativa tardia de responder, face à constatação da imensa subnotificação de casos, que em parte pode até hoje ser atribuída à ausência da testagem em larga escala, foi malograda. O então Ministro da Saúde, Nelson Teich, prometeu que o governo compraria 46 milhões de testes, quando sequer a divulgação de Mandetta, o ministro anterior, de distribuir 23,9 milhões de testes, havia sido concretizada. Similarmente, a divulgação oficial de que o Ministério da Saúde cadastraria cinco milhões de profissionais da saúde para reforçar o enfrentamento ao coronavírus fracassou.
Foram crescentes a falta de médicos, de especialistas em medicina intensiva e de pessoal na linha de frente assistencial, em condições de trabalho inadequadas e inseguras, com excesso de pacientes, sobrecarga de horas de trabalho, estresse emocional, infecção, bem como os óbitos de trabalhadores da saúde. Sem uma gestão coordenada de recursos humanos, viu-se a dificuldade de contratações temporárias e improvisadas, delegadas a organizações sociais privadas, fragmentadas em editais e chamadas pouco atrativas. Promessas de recursos financeiros com dois dígitos de bilhão, testes com dois dígitos de milhão, respiradores e leitos com dois e três dígitos de milhar, respectivamente, não se concretizaram, nem nas compras anunciadas, nem nos prazos previstos, nem nas datas de entrega, invariavelmente atrasadas, se e quando ocorreram. Expressões como “colapso do sistema de saúde” e “pontuação em UTI”, para avaliar quem vive e quem morre, chegaram a ser naturalizadas em determinado momento.
O fenômeno biológico do coronavírus e as dificuldades objetivas que o cercam, como a inexistência de terapias eficazes e de vacina, definitivamente, não são da mesma natureza da desorganização de um sistema de saúde e dos desmandos políticos que repercutiram decisivamente no aumento do número de mortes e, mais de seis meses após a entrada da Covid-19 no Brasil, são responsáveis por péssimos indicadores de controle da pandemia. Mesmo em meio às incertezas sobre a doença, diversos países resolveram as equações para o controle da disseminação e a redução da letalidade no âmbito do sistema de saúde, das instituições e dos serviços.
Os obstáculos objetivos para a contagem de todos os casos de Covid-19, assintomáticos e sintomáticos, comuns a tantos países, são bem distintos das barreiras que, no Brasil, impediram a contagem transparente de leitos de internação, o acompanhamento da execução orçamentária excepcional, da quantidade de testes ou do número respiradores colocados à disposição da população.
Imprecisões das informações sobre o modo de transmissão e disseminação da doença não são comparáveis à precariedade dos registros administrativos para o exercício do controle social e a produção de conhecimento científico sobre as respostas governamentais à epidemia. No Brasil, essa confusão, seja proposital ou não, impede até agora o discernimento dos rumos tomados pelo SUS e pelas políticas de saúde durante a pandemia.
Dos recursos previstos, de rotina do SUS ou excepcionalmente autorizados para a pandemia, o que de fato foi liberado e entregue, quando e para quem? A magnitude dos recursos que foram de fato operacionalizados é compatível com as necessidades de atendimento e as demandas acrescidas durante a pandemia?
A pergunta a ser respondida futuramente é se o SUS, que passou a ser reconhecido como um sistema de saúde adequado ao Brasil, sai maior, mais potente e com maior aceitação social após a pandemia do novo coronavírus?
*Lígia Bahia é médica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1980), mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1990) e doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (1999). É professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
*Mario Scheffer é professor Doutor do Departamento de Medicina Preventiva (DMP) da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), na área de Política, Planejamento e Gestão em Saúde.
Miguel Reale Júnior: Vacina obrigatória
Campanha contra a vacinação por motivos políticos pode ser crime de responsabilidade
O obscurantismo bolsonariano faz-nos retroceder no tempo mais de um século. Em 1900 a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, era conhecida como empesteada, vítima de febre amarela, peste bubônica e cólera. Oswaldo Cruz, diretor de saúde pública no governo Rodrigues Alves, enfrentou as duas primeiras a partir de 1902 e em 1904 deu início ao combate à varíola, cuja imunização poderia dar-se pela aplicação de vacina já conhecida havia décadas.
Depois de muita discussão, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei n.º 1.261, de outubro de 1904, que determinava a vacinação compulsória. Houve, então, já naquele tempo, tanto fake news, difundindo ser perniciosa a vacina, como exploração política de positivistas, seguidores de Augusto Comte, e florianistas, adeptos de Floriano Peixoto, que tomaram a questão da vacina como pretexto para tentar derrubar o presidente.
A contestação à obrigatoriedade, liderada por parlamentares, antes oficiais do Exército, ganhou cores gravíssimas, pois entre 10 e 20 de novembro as ruas foram ocupadas por revoltosos, com um saldo terrível de 30 mortos e mais de 900 presos, dos quais 450, por antecedentes criminais, foram enviados para o Acre. Muitos feridos.
Até Rui Barbosa se pôs contra a vacina, ponderando que, “assim como o Direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme”. A obrigatoriedade foi revogada. Em 1908 muitos morreram de cólera e a população acorreu, então, para tomar a vacina. Rui alterou sua posição e em 1917 homenageou Oswaldo Cruz, reconhecendo dever-se a ele a vitória sobre o flagelo e a diferença entre o “Brasil pesteado, que encontrou, e o Brasil desinfectado, que nos veio a legar”.
Em plena pandemia, antes do meio do mandato, Jair só pensa na reeleição. E por interesse político, como em 1904, lança suspeitas sobre a vacina e nega sua obrigatoriedade para contentar seguidores e atacar governadores, contrariando os valores básicos da Constituição e os termos da legislação específica por ele mesmo sancionada. E daí?
No campo legal, a Lei n.º 6.259/75 e o Decreto n.º 78.231/76 impõem a obrigatoriedade da vacina a todos os adultos, aos quais incumbe submeter à vacinação os menores sob sua guarda.
A prevenção da contaminação da covid-19 é, especificamente, disciplinada pela Lei n.º 13.979/20. No artigo 3.º da lei, dispõe-se: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (…) III - determinação compulsória de (…) d) vacinação”. Essa conduta pode ser adotada, segundo o parágrafo 7.º desse artigo 3.º, pelos gestores locais de saúde, ou seja, pelos governadores, desde que cientificamente recomendada a providência.
Na Constituição da República consagra-se o valor da solidariedade no artigo 3.º, segundo o qual é objetivo fundamental da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ser vacinado é ser solidário, pois não apenas se protege a si mesmo, mas todos da comunidade, visando a alcançar a imunização. A solidariedade, na expressão de Dworkin, vem a ser “considerar a vida dos outros como parte de suas próprias vidas” (Uma Questão de Direito, pág. 297), significando “a pessoa se abrir à outra, pensá-la, sofrer com”, no dizer de Arias Bustamante (Alternativa Ideológica: Comunitarismo, pág. 40), unidos todos por grande cordão umbilical.
Pela via da solidariedade social pode-se cimentar, orientar e construir concretamente nossa unidade como povo, surgindo em face desse objetivo da República o dever de solidariedade que a todos vincula (André Corrêa, Solidariedade e Responsabilidade, pág. 313).
Como transmissores, somos todos iguais perante o vírus. Ninguém, por nenhuma razão, pode colocar-se acima dos demais e negar-se a colaborar com a comunidade na precaução contra o malefício da infecção. Rejeitar a vacina, autorizada pela Anvisa, é atuar com desprezo pelo outro, em superioridade antissolidária.
Como elucida o Supremo Tribunal Federal (Oscar Vilhena, Direitos Fundamentais, pág. 388, reproduzindo votos de Celso de Mello), “a proteção à saúde representa um fator que associado a um imperativo de solidariedade social impõe-se ao Poder Público”, em qualquer plano da organização federativa, tomando medidas preventivas e curativas.
Em outro voto, Celso de Mello observa que a negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida com base nos direitos sociais significa a renúncia a “reconhecê-los como verdadeiros direitos” (pág. 399), em arrepio ao princípio da solidariedade.
Assim, campanha contra futura vacinação, por motivação política, significa não reconhecer a precaução eficaz contra o vírus como um direito da comunidade, a ser explicado e exigido de todos pelo chefe da Nação. Tal conduta infringe o artigo 7.º da Lei n.º 1.079/50, ou seja, pode ser crime de responsabilidade consistente em violar o direito social à saúde, pois incita a impedir a imunização, objetivo solidário de todo o povo. Que flagelo!
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Eliane Cantanhêde: No Forte Apache…
Em forte sem comandante, pode faltar gás no Posto Ipiranga e tinta na caneta Bic
O embate entre o capitão da caneta Bic e o general de Exército com ordem de comando marca uma nova etapa na relação do presidente Jair Bolsonaro não só com o vice-presidente Hamilton Mourão, mas com as Forças Armadas. A unanimidade aparente ruiu, a insatisfação silenciosa emergiu e o momento é de avaliação de danos, ou de contagem de votos para um lado e para outro.
Sem noção da gravidade na saúde, na economia, no ambiente, na política, o presidente acha que pode falar e fazer o que lhe vai pela cachola, trocando a responsabilidade do cargo pelo oba-oba de uma campanha extemporânea, divertindo-se com a “boiolagem” cor-de-rosa do Guaraná Jesus, humilhando o general da Saúde, tirando o gás do ministro da Economia e guerreando contra a “vacina do Dória”.
É puro non-sense, mas Bolsonaro vai comprando lealdade com cargos e camaradagem. Qual um paizão às antigas, grita e dá umas palmadas, fingindo não ver a safadeza do caçula com o mais velho, mas resolve tudo bajulando o ofendido. A vítima dá um sorrisinho e cede: “um manda, o outro obedece”. Pergunte-se a Paulo Guedes e aos generais Luiz Eduardo Ramos, Augusto Heleno e Eduardo Pazuello e todos reagem com um sorriso condescendente: “o presidente é assim mesmo, diz tudo na bucha, mas gosta muito de mim”.
O passo seguinte é descrever uma situação em que Bolsonaro, depois de mais uma bordoada, fez uma gracinha e alisou o ego do subordinado diante de um microfone. Pazuello teve direito a vídeo no leito da covid, Ramos foi paparicado com passeio de moto e num discurso em que foi tratado como “meu amigão”, não Secretário de Governo e articulador político. Comovido, deixou pra lá o “Maria Fofoca” disparado por Ricardo Salles.
Desanimado, mas tentando demonstrar o contrário, Guedes tem definido o governo como um forte apache cercado de índios e flechas, mas com todo mundo dentro guerreando entre si. Ele não diz, mas isso só ocorre em forte apache em que o comandante não comanda e soldados fazem o que querem. Um dado relevante no incômodo crescente do oficialato é a desenvoltura que Bolsonaro confere à tal “ala ideológica” dos filhos, Salles e os Weintraub que pululam no governo. O próprio, demitido da Educação, foi curtir a vida nos States, ganhando em dólar no Banco Mundial.
Em sequência, Bolsonaro disse que não vai comprar a “vacina da China” e desautorizou o anúncio feito por Pazuello aos governadores e ao País, Salles atacou Ramos como “Maria Fofoca” e o presidente da Câmara como “Nhonho”, até que o general e ex-porta-voz Otávio do Rêgo Barros alertou em artigo que o poder “inebria, corrompe e destrói” e que líderes não podem ficar reféns de “comentários babões” e “demonstrações alucinadas”.
Na contabilidade do Planalto, 90% dos militares ficaram irritados com Rêgo Barros. Nos corredores militares, a avaliação é diferente, com muitos aliviados por alguém, enfim, sair da toca para reforçar o general Santos Cruz e dizer o que precisava ser dito. A diferença é que, nos palácios, dizem o que os poderosos querem ouvir. Nos bastidores, é mais fácil ser sincero.
No fim, Mourão firmou sua independência (ou descolamento), desdenhando da briga política com o governador de São Paulo, falando pragmaticamente sobre a China e desdizendo o presidente: “O governo vai comprar a vacina, lógico que vai”. A reação de Bolsonaro foi de confronto: “A caneta Bic é minha”. A guerra está só começando.
O desconforto bate nas Forças Armadas, Itamaraty, várias áreas de governo e da sociedade, com reflexo no Congresso, onde nada anda e há um risco real: chegar a 2021 sem Orçamento aprovado. O Forte Apache precisa de um chacoalhão. Assim como o Posto Ipiranga está perdendo gás, a caneta BIC também pode perder a tinta.
*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta
Vinicius Torres Freire: Carta sobre a vacina brasileira para o leitor cansado do coronavírus
O que o SUS, a Alemanha e a recaída europeia dizem sobre a doença no Brasil
A Alemanha acha que é difícil vacinar seus 83 milhões de habitantes até o final de 2021. Sim, vacinar contra a Covid. Sim, a eficiente, organizada e disciplinada Alemanha. Aplicar 100 mil doses por dia seria “um desafio”, disse na semana passada Thomas Mertens, o chefe do Comitê Permanente de Vacinação do Instituto Robert Koch, agência alemã de controle e prevenção de doenças.
No Brasil, o SUS chega a atender 1 milhão de pessoas por dia nas campanhas de vacinação contra a gripe. Em alguns anos, esteve preparado para vacinar quase 1,5 milhão de pessoas por dia, em cerca de 65 mil postos.
Isso dá o que pensar nas burrices que o governo diz sobre vacina e sobre as nossas possibilidades de conter a doença, muitas desperdiçadas de modo criminoso até agora.
Sim, de um modo ou de outro, estamos fartos de ouvir, falar ou saber de coronavírus. Mas ainda podemos fazer um esforço para atenuar a situação e reagir contra a ignorância homicida. Se por mais não fosse, a Europa nos dá outro alerta de perigo, como em março.
Ainda não há vacina. Alguns países, Alemanha, Estados Unidos, Indonésia ou Brasil, se preparam para distribuí-las a partir de dezembro, mas apenas isso: preparam-se para o melhor. Cientistas discutem ainda a possibilidade de, a princípio, usar as vacinas apenas de modo comedido, limitado, experimental mesmo. Há quem diga que a vacinação precoce pode até atrapalhar a continuidade dos testes de eficácia e segurança, que ainda prosseguirão por meses ou anos.
Anthony Fauci disse nesta semana que talvez em dezembro apareçam dados suficientes para que uma ou duas das vacinas que estão sendo testadas nos Estados Unidos possam ser submetidas à aprovação das autoridades sanitárias. A vacinação ficaria então para o início do ano que vem, se tudo der certo. Fauci é chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e a autoridade oficial americana em matéria de Covid.
Isto posto, é um crime contra a humanidade enxovalhar a vacinação em geral, como faz Jair Bolsonaro, ou uma possível vacina contra a Covid, seja anglo-sueca, chinesa, americana, alemã ou russa. Devemos nos preparar para oferecer vacinas e não esquecer que a epidemia está longe de terminar.
Os mortos por Covid no Brasil ainda são o triplo do número de assassinados no país, na média por dia. A Covid mata 15 vezes mais que o HIV, ainda pela média diária. Quatro vezes mais que os acidentes de trânsito.
Na União Europeia, o número diário de mortes baixara muito até julho, quando chegou a 0,2 por milhão de habitantes. Agora está em 2,9 por milhão, por dia, e crescendo rápido. No Brasil, estamos com 2 mortes por milhão, por dia. Mas há indícios que a taxa geral de infecção por aqui não seja lá muito diferente da espanhola, por exemplo –haveria muita gente que pode ser infectada ainda. Assim, em tese, é possível um repique da doença. Não sabemos, mas o risco é sério.
Os maiores países da Europa voltaram a fechar as portas de muito negócio e atividade. Mesmo antes disso, em outubro, a economia já balançava de novo, se é que a recaída na recessão já não estava ocorrendo. Não é o “lockdown” que derruba os negócios, mas a doença. Mesmo quase sem restrições oficiais, o movimento nos trens e metrôs de São Paulo ainda é a metade do que se via no ano passado.
Há esperanças: uma vacina, o nosso SUS e que a maioria de nós não seja infectada pela desumanidade presidencial. Enquanto esperamos, nós que aqui estamos temos de tomar cuidado ainda. A Europa está nos avisando.
Marco Aurélio Nogueira: Ainda o futuro
Difícil voltar ao que havia antes. Mas não sabemos bem o que virá nem o que queremos
A notícia de que uma segunda onda de disseminação do coronavírus atingiu diversos países europeus dramatizou a questão que nos perturba desde o início do ano: que futuro teremos? Em que medida ele será afetado pelas medidas que acompanharam a marcha da covid-19 pelo mundo? Quando virão as vacinas e que efeitos terão?
No Brasil, em particular, tudo ganha maior proporção, dado o caráter atrabiliário e anticientífico do presidente da República. Seus esgares ideológicos sugerem uma preferência explícita pela morte e pelo descaso, menosprezam vacinas e põem planos eleitorais à frente de providências médicas e sanitárias. Colidem com o bom senso e a responsabilidade. Embaçam ainda mais o futuro.
Não restam dúvidas de que a vida já sofre mudanças importantes. Estamos sendo obrigados a alterar hábitos e comportamentos às pressas, sem o devido processamento mental, prático e organizacional. Em dez meses vivemos como se houvessem transcorrido vários anos. Pulamos do mundo físico, material, analógico para o mundo digital. A casa passou a ser refúgio valorizado e os filhos, acompanhados mais de perto. O delivery aumentou e novas atividades produtivas brotaram. A mal chamada “uberização” invadiu setores bem estruturados.
Ingressamos com vigor no teletrabalho. A flexibilidade de horários articula-se com maiores doses de informalidade. Novos padrões infiltraram-se inapelavelmente na vida cotidiana, com vantagens e desvantagens: menos movimentação e deslocamentos, mas mais percepção de que se trabalha 24 horas por dia, de que ficamos mais dependentes de celulares e computadores, mais estressados e angustiados. A torrente de informações que desaba sobre nós provoca pasmo e confusão. A informalização crescente desprotege, causa insegurança e medo.
Tudo, porém, é seletivo e tem um claro corte de classe: as maiorias sofrem para se adaptar, ficam desempregadas com facilidade e sentem na pele a corrosão da renda. Cada passo no processo de digitalização produz uma modificação no plano do trabalho. Há mais produtividade e a mão de obra passa a ser substituída com rapidez. Máquinas de inteligência artificial deslocam os humanos, competem com eles, terminam por vencê-los. A obsolescência surge em cada curva da estrada. A exigência de qualificação torna-se a porta de entrada do mundo do emprego, que, no Brasil, paga alto preço pela baixa qualidade do sistema educacional. A nova economia pede a incorporação de recursos técnicos e intelectuais de novo tipo, cria exigências atitudinais e de formação continuada. A maioria da população está longe disso. Tudo é arrastado pela voracidade do mercado. A “desregulamentação” é do tipo arrasa-quarteirão: desmonta o que existia e de algum modo protegia.
Difícil imaginar que possamos voltar ao que havia antes. Estamos amarrados a um presente que se modifica incessantemente sem que consigamos atravessar a névoa que embaça o futuro.
Não se trata de uma “nova normalidade”. Mudanças socioculturais transcorrem quase sempre em silêncio, de modo molecular, e nos espasmos de seus fluxos vão se impondo aos indivíduos, convencendo-os de que é preciso adotar novos hábitos e valores. Mesmo quando há uma metamorfose social não há modificações repentinas. Não serão os condicionantes da covid, nem o modo como a pandemia está sendo administrada, que farão a vida ser virada de ponta-cabeça num átimo. Os efeitos dos vigorosos processos em curso amadurecerão aos poucos, em decantação. Com mais sofrimento que prazer.
Porque a política está congelada no tempo. Os partidos continuam aprisionados à mesmice. No Brasil, são desafiados pelos movimentos de renovação política, que fazem intenso trabalho pedagógico. Há protestos variados pelo mundo, mais lutas contra o racismo, a discriminação, a violência policial. A agenda eleitoral permanece ativa, a defesa da democracia agrega vozes, formando uma retórica de indignação que poucos resultados produz. Os governos continuam inoperantes, líderes “populistas” seguem se multiplicando, sem que a política consiga confrontá-los. A situação é terrível para os partidos mais à esquerda, que sofrem por estar numa posição antissistêmica sem terem uma ideia clara de sistema alternativo e sem terem, também, sustentação social consistente, o que decorre da desconstrução a que está submetida a estrutura de classes.
Ainda não se pôs em movimento uma política dedicada a pensar o futuro. Sem ela ficamos às cegas, agarrados às nossas fantasias, aos nossos fantasmas, às narrativas impulsionadas pelas redes.
Não sabemos bem o que virá pela frente, nem o que queremos. Talvez consigamos deslindar o que não desejamos: o autoritarismo, as discriminações, o racismo, a violência, a insegurança. Mas a forma do futuro permanece imprecisa, uma esfinge perturbadora. E assim permanecerá enquanto não surgir uma proposição política democrática que organize o presente e elabore uma carta de navegação que nos una e nos leve ao futuro.
*Professor titular de teoria política da UNESP
Vinicius Torres Freire: Como vai a 'vacina chinesa' pelo mundo
Teste paulista é seguro, dizem cientistas; Brasil e EUA são maiores campos de prova
João Doria disse que a vacinação contra a Covid começa no dia 15 de dezembro em São Paulo, desde que seu governo tenha autorização da Anvisa. Em fins de março, a população paulista inteira estaria vacinada.
Até meados de dezembro, menos de dois meses, já será possível saber se a vacina é mesmo segura e funciona?
Duas pessoas envolvidas nos trabalhos dos testes científicos da Coronavac, a “vacina chinesa”, da Sinovac, dizem que sim.
Pelo menos em uma avaliação de uso emergencial, será possível ter dados para aplicar a vacina com segurança, embora o estudo de seu grau de proteção ainda vá depender de acompanhamento mais demorado —pelo menos até meados de 2021.
Os efeitos colaterais da vacinação com a Coronavac seriam raros ou leves, como os de uma vacina de gripe ou ainda menos, dizem esses pesquisadores de São Paulo.
Na opinião dessas pessoas, que não têm cargo político ou de direção superior, o governador paulista não está atropelando a análise científica. Dizem que o pessoal da Sinovac obviamente também não quereria colocar em risco sua reputação comercial e o prestígio diplomático da China com um desastre em país como o Brasil.
Observam que Doria correria o mesmo risco, na raia política, se avançasse o sinal.
Em suma, o prazo seria bem apertado, mas não maluco. No entanto, ninguém quis explicar quais são os critérios desse calendário da responsabilidade.
O Brasil e os Estados Unidos são os campos de prova de vacinas mais importantes do mundo, dadas a extensão e a gravidade da epidemia e o estágio em que estão os testes em fase três (o último antes da aprovação para uso geral ou regular da vacina).
Nos EUA, os testes começaram no dia 27 de julho. No Brasil, no dia 21 do mesmo mês.
A Coronavac está sendo testada apenas aqui, na Indonésia e na Turquia, que começou os exames em setembro. Nas próximas semanas, começa a ser avaliada no Chile. O acordo para o teste em Bangladesh deu chabu.
Logo, São Paulo e, por tabela, o Brasil estão por sua conta e risco de pioneirismo. Risco de grande sucesso inclusive.
Na Indonésia, país de 270 milhões de habitantes e algo mais de 12.500 mortes pela Covid, testes começaram em 11 de agosto.
A universidade e a estatal farmacêutica que fazem a pesquisa esperam concluir o acompanhamento das pessoas submetidas ao teste até o final de dezembro. O governo quer começar a vacinar um pouco antes disso, o que a Sinovac acha possível. Os indonésios também compraram vacinas de outras duas firmas chinesas. Desenvolvem ainda um produto nacional, com apoio coreano, a “vermelha e branca”, cores da bandeira do país.
A China fez também seus testes da Coronavac, mas afortunadamente não deve ter meios de verificar com facilidade o sucesso da vacinação em massa, pois o país quase não tem casos da doença. A imprensa chinesa diz que mais de 350 mil pessoas foram vacinadas no país até setembro. No final de junho, havia sido autorizada essa aplicação emergencial de quatro tipos de vacinas em pessoas que trabalham em situação de risco e nas empresas que desenvolvem os imunizantes.
Na semana que passou, a província de Zhejiang começou a oferecer justamente vacinas da Sinovac para a população em geral, com prioridade para profissionais de saúde, funcionários de portos, aeroportos, alfândegas e trabalhadores de serviços essenciais.
Se houver mais vacina, o interessado pode pagar 400 iuans (cerca de R$ 330) pelas duas doses, tomadas em intervalos de 14 a 28 dias.
Mas não há liberação oficial para a vacinação em massa.
Cacá Diegues: Compromissos fraternos
Governo precisa criar programas para que a população tenha empregos para sair da invisibilidade
Meu bom e velho amigo Joca nos convidou para passar um fim de semana em sua casa, no meio do mato. Como eu e Renata somos agora só nós dois, e o netinho lindo, de 1 ano e meio, que podia nos ocupar um pouco, mal vemos (a mãe tem um medo que se pela do coronavírus), foi fácil aceitar o convite do Joca.
Joca mora numa borda da Mata Atlântica, de onde se podem ver tucanos, estranhas borboletas, maracanãs e maritacas, pequenas fauna e flora que parecem estar sempre renascendo. Podem-se observar macaquinhos, parece que pregos, bravos remanescentes da Mata Atlântica, planejando invadir a casa, em busca de alimento mais fácil. Aposto que, se os outros animais do planeta tivessem as mesmas virtudes de organização que temos, praticariam sem dúvida a mesma política de extermínio que praticamos, eliminando o que incomoda e atrapalha nossos planos materiais. Escrevemos lindos poemas diante do vasto oceano, mas não abrimos mão da peixada com frutos do mar, no almoço do Joca.
O melhor amigo da onça não pode ser um leão. O jacaré pode até se aproximar do papagaio, mas será sempre por disfarçado projeto de devorá-lo. Que eu saiba, nenhum animal possui animal de estimação, como temos cães ou gatos que criamos e cuidamos. Podemos ter, mesmo preso na gaiola, um rouxinol de estimação. Mas, se um gato tentar experiência parecida, terminará comendo o passarinho. Os bichos andam sempre em grupos homogêneos, sem a participação indesejável dos diferentes em seus passeios e programas.
Foi o ser humano que inventou a solidariedade, como reconhecimento e proteção do outro. Em certos casos, até já avançamos moralmente mais um pouco, reinventando o elogio da mistura, como consciência de que somos um só em nossas diferenças.
Inventamos a solidariedade e somente nós a praticamos sobre a face da Terra. Se não a praticássemos, a natureza se reduziria a uma constante guerra entre todos, pelo melhor abrigo e alimento, pela melhor companhia. E Joca completou, de passagem por ali: “Estaríamos condenados à guerra sem fim, à qual direita e esquerda convencionais já nos querem condenar como inevitável”. Por que temos que nos submeter ao mal natural, se podemos inventar outro mundo, a partir de um pensamento solidário?
O governo criou auxílio emergencial para as verdadeiras vítimas da crise sanitária. Uma colaboração sem princípios, mas bem-vinda, para milhões de “invisíveis” que perderam ou já não tinham renda, que sempre morrem de fome independentemente do momento social que o país vive. “Invisíveis” são os brasileiros que andam em desespero por periferias e favelas, mas nem tomamos conhecimento de que existem. Não saberemos nunca quantos são; mas, apesar de sua distribuição imperfeita, o auxílio emergencial os alcançou, e mais de 15 milhões deixaram a linha de pobreza e fizeram a classe C, a classe média baixa, chegar a 63% da população brasileira. Com R$ 600 por pessoa, o governo conseguiu um feito que melhorou a imagem do presidente e sua expectativa para as eleições de 2022. Saiu até barato.
Não sabemos, e o governo ainda não nos contou, o que acontecerá em seguida. Ninguém pode ser contra atitudes assistencialistas necessárias, como a Renda Cidadã deste governo e o Bolsa Família, criado e alimentado por governos do PT. São um socorro a quem precisa e não tem de onde tirar. Mas o governo, qualquer governo, precisa criar programas para que a população tenha uma oferta de empregos para sair da invisibilidade e não precisar mais se angustiar com esmolas de emergência.
Isso pode ser conseguido por meio de estímulos a investimentos privados, que gerarão mais progresso e mais empregos. Ou do próprio Estado, na criação de novas empresas públicas, conforme as necessidades do país. Diante da segunda hipótese, Joca, que era um craque “científico” na época da faculdade, riu de mim e me chamou de “keynesiano tardio”, tenho a impressão que uma forma elegante de considerar abjeta essa hipótese. Não acho, mas deixa pra lá.
Como diz a nova e bela encíclica do Papa Francisco, “sejamos capazes de reagir com um novo compromisso de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras”. Sobretudo porque precisamos estar bem vivos e cada vez mais juntos, para ajudar na eleição de nossos sonhos, em 2022. A do youtuber Felipe Neto.
Luiz Carlos Azedo: Imunização de rebanho
“O Ministério da Saúde não combate a pandemia, deixou essa tarefa a cargo de estados e municípios, a pretexto de que o Supremo assim decidira, o que é uma interpretação falsa”
Parece piada pronta: o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, nomeou para comandar o Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis, responsável por todo o programa nacional de vacinas do governo federal, o médico veterinário Maurício Monteiro Cruz, formado no Centro Universitário de Desenvolvimento do Centro-Oeste, em Goiás, com mestrado em prevenção e controle de doenças em animais pela Faculdade de Agronomia e Veterinária da Universidade de Brasília. Cruz estava lotado na Diretoria de Vigilância Ambiental em Saúde do Governo do Distrito Federal e é especializado no controle da leishmaniose.
Como não lembrar da magistral interpretação de Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, por Jair Rodrigues, um clássico da nossa música popular: “Mas o mundo foi rodando/ Nas patas do meu cavalo/ E nos sonhos que fui sonhando/ As visões se clareando/ As visões se clareando/ Até que um dia acordei/ Então não pude seguir/ Valente lugar-tenente/ De dono de gado e gente/ Porque gado a gente marca/ Tange, ferra, engorda e mata/ Mas com gente é diferente”. Sem nenhum preconceito, não se pode acusar o general Pazuello de incoerente. Afinal, o ministro interino está operando uma estratégia de “imunização de rebanho” para gerenciar a pandemia da covid-19 no Brasil. Veterinários são especialistas nisso e profissionais de grande importância para a saúde pública. Alguns são grandes sanitaristas.
O Ministério da Saúde não está combatendo a pandemia, deixou essa tarefa a cargo de estados e municípios, a pretexto de que o Supremo Tribunal Federal (STF) assim decidira, o que é uma interpretação falsa, pois a decisão da Corte foi apenas de que caberia aos governadores e prefeitos gerenciar a política de isolamento social. Tecnicamente, a imunização de rebanho não é uma estratégia, é o efeito de proteção que surge em uma população quando uma percentagem alta de pessoas contraiu ou se vacinou contra uma doença. Mesmo quem não foi vacinado nem foi infectado, acaba protegido da doença porque um grande número de pessoas já foi imunizada, constituindo uma barreira humana contra a propagação do vírus.
Estima-se que o índice de 95% de vacinação seja o ideal para que isso ocorra, preservando as pessoas que não podem tomar a vacina, como acontece com o sarampo. Com isso, o vírus acaba desaparecendo. Veterinários, por exemplo, têm grande experiência em vacinação contra a febre aftosa, que ataca os rebanhos. O selo de imunização contra essa doença é fundamental para a exportação de carne bovina. No caso da covid-19, como não se tem vacina ainda, especialistas discutem qual seria a percentagem de contaminados para quem não teve a doença deixe de correr risco de se infectar. Não há respostas ainda, mas alguns pesquisadores estimam o número entre 60% e 80% da população total.
Vacinação
O departamento comandado por Cruz é responsável pela organização do calendário de vacinas do país, as campanhas nacionais e a distribuição dos medicamentos aos estados, assim como por acompanhar a cobertura vacinal. Sua tarefa é, sobretudo, de planejamento e logística, porém, depende da chegada da vacina contra a covid-19. Apesar de o Programa Nacional de Imunizações ser considerado uma referência mundial, desde 2016 a cobertura vacinal no país não tem atingido as metas, nem mesmo nas vacinas infantis obrigatórias. Nenhuma das 10 vacinas obrigatórias para menores de 2 anos atingiu as metas de cobertura em 2019. Entre elas, a poliomielite, que teve cobertura de apenas 82,1% das crianças. Considerada, oficialmente, erradicada no Brasil desde 1994, a doença ainda exige vacinação porque o vírus circula pelo mundo.
Mesmo com as subnotificações, com 120,9 mil mortes — das quais 30 mil em São Paulo — e 3,8 milhões de casos confirmados, o Brasil ainda está muito longe de alcançar a imunização de rebanho. A média móvel de casos dá sinais de que está começando a cair, mas ainda está num patamar muito elevado, que registra uma média móvel, nas últimas duas semanas, de 875 mortes e 36 mil casos por dia. O grande destaque no combate ao novo coronavírus foi a resiliência dos heróis anônimos na linha de frente do enfrentamento à pandemia, muitos dos quais contraíram a doença e morreram, sobretudo profissionais da saúde. O desempenho do Sistema Único de Saúde, com todos os problemas, está sendo fundamental para evitar uma mortalidade muito maior. A ideia de que a pandemia está acabando é muito perigosa; os fatores decisivos para controlá-la ainda são a política de isolamento social e a autoproteção individual.